Maternidade de Maria

A importância da maternidade divina de Nossa Senhora para a piedade católica, é que todas as graças extraordinárias que Ela recebeu e que fizeram d’Ela uma criatura única em todo o universo e na economia da salvação, têm como título e ponto de partida o fato de Maria ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, envolvida nesse fato, a afirmação da Igreja de que Ela é Mãe de Deus!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1965)

Admiração e afeto da Virgem-Mãe

Ao contemplar o Menino Jesus, Nossa Senhora tinha por Ele um afeto cheio de admiração, primeiramente considerando-O como Deus, e secundariamente em sua fragilidade humana.

Ao meditarmos no relacionamento de Maria Santíssima com seu Divino Filho ainda criança, consideremos a adoração da criatura para com seu Deus e Criador e, ao mesmo tempo, o afeto d’Aquela Mãe celeste para com seu Filho único e incomparável.

Afeto que começa por atos de admiração

Sendo modelo de humildade, Nossa Senhora não se aproximaria do Menino-Deus antes de ter-Lhe manifestado todo o respeito e toda a admiração que Ele merecia. Por outro lado, Ela, que sabia Quem era enquanto mera criatura, ou seja, a chave de cúpula da Criação, entretanto não poderia deixar de se colocar nessa posição humilde diante do Salvador. Porque a mais alta das criaturas está tão infinitamente abaixo do Criador que pode falar a Nosso Senhor como se fosse a última delas. Por exemplo, se uma pessoa se julgasse mais próxima do Sol por medir dez centímetros a mais do que o comum dos homens, daríamos risada, porque é tal a distância entre a Terra e o Sol que se pergunta: o que são dez centímetros?

Assim Deus, sendo infinito, até mesmo a imensa distância que separa Nossa Senhora de todos nós é pequena diante daquela que A separa de Nosso Senhor. Portanto, é compreensível a série de atos de humildade que Ela poria na presença do Menino Jesus.

Não é uma humildade egocêntrica, e sim teocêntrica. Ela não começa apenas a dizer “Eu sou a última das criaturas”, mas, mais do que a sua condição limitada de criatura, Nossa Senhora tem em vista a grandeza infinita de Deus. Por isso, seus afetos começam por atos de admiração.

Há nisso uma ordenação lógica que merece um rápido comentário. Quando queremos muito bem a alguém, devemos começar por admirá-lo. Porque a admiração é o fundamento do amor verdadeiro. Amar por quê? Ter amor por outrem apenas como alguém que gosta de um bonequinho, isso é sentimentalismo. No caso concreto, a Santíssima Virgem tinha para amar Aquele que, enquanto homem, era a mais admirável de todas as criaturas, e enquanto Homem-Deus, hipostaticamente unido à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, estava infinitamente acima de tudo. A Santíssima Trindade, nem se têm palavras para admirar. Ora, se não há palavras para admirar, também não há palavras para exprimir suficientemente o amor, pois este é a defluência da admiração.

No frágil Menino, contemplar a infinita grandeza de Deus

Evidentemente, Maria Santíssima tinha razões para amar seu Filho recém-nascido muito acima do fato de Ele ser muito engraçadinho, bonitinho, etc. Isso tem seu papel legítimo também, mas não é o principal. Muita gente imagina que Nossa Senhora olhou o Menino Jesus e disse: “Que engraçadinho! Que bonequinho!” Absolutamente isso não estaria à altura da circunstância.

Ela conhecia, por revelação divina feita diretamente a Ela, que o Filho gerado n’Ela era a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E o primeiro assombro é: “Tão fraquinho, tão pequenino, entretanto Deus, na sua infinita grandeza, e na sua admirabilidade incomensurável. Deus está aí!” O primeiro pensamento d’Ela vai para Deus no que Ele tem de grandioso, depois se volta para o Menino, medindo o espaço que vai de um a outro, a profundidade da união hipostática, e a glória que essa união faz defluir, a torrentes solares, sobre o Menino; para depois começar a analisá-Lo com afeto de mãe, e ver no olhar d’Ele o sol de Deus que se faz refletir. Entra, então, a ternura materna pelo Filho tão pequenino.

A admiração e o afeto são duas posições de alma correlatas

Contudo, a admiração não desaparece nessa hora, para deixar lugar ao puro afeto, porque na hora em que admiração morresse, o afeto morreria também; assim como na hora em que morresse o afeto, morreria a admiração.

A admiração e o afeto são duas posições de alma correlatas, a tal ponto que quando uma boa mãe tem um bebê, ela se enternece com a criança, mas deveria estar, ainda que no subconsciente dela, a seguinte ideia: “Que grandeza há no fato de uma criatura humana, chamada a levar uma vida de longa duração, a cumprir obrigações graves, como as da paternidade ou da maternidade, e, sobretudo, os deveres para com Deus, a ser boa filha ou bom filho da Igreja Católica, dominar as suas paixões, santificar-se, ir para o Céu por toda a eternidade! Este como que projeto de anjo que está aqui, que coisa extraordinária! E como eu fico enternecida vendo como uma coisa tão grande cabe em tão pouco.”

Ao considerar que aquele pequenino é seu filho, entra uma ternura muito grande, mas também uma grande admiração: “Que mistério admirável pelo qual eu, criatura humana, gerei outra criatura humana! Que coisa misteriosa e profunda! Nasceu de mim, foi alimentado por mim, formou-se no meu claustro, eu o liberei para a vida e aqui está tão pequenino, tão minúsculo, mas para ele existir realizou-se um imenso mistério.”

Depois este outro mistério: a hora exata, que não se sabe qual é, na qual Deus, como que Se debruçando sobre aquele embrião, “sopra” uma alma, e lhe dá algo que a mãe não gerou, que não veio do ato nupcial, mas criado diretamente por Deus. Que coisa magnífica!

Na ternura de uma mãe verdadeira, bem orientada para com seu filho, deve aparecer isto.

Toda essa série de mistérios que se formaram nela, ao qual ela deu origem, e que fizeram com que sobre a carne da carne e o sangue do sangue dela — esse “outro eu mesmo” — pairasse o Divino Espírito Santo, e criasse uma alma que não foi dada por ela, em que a obra de Deus se somou à obra dela para fazer uma coisa tão imensamente maior: infundir-lhe uma alma. Com a alma, os horizontes se abrem para aquela criança! Horizontes na Terra, horizontes de luta, de batalha, de abnegação, horizontes também de dias de alegria, de vitória, em que se tem a impressão de estar tocando o Céu com as mãos. Mas também horizontes de tristeza, de abatimento, de desfalecimento, em que se tem que pedir graças a Deus para se continuar.

Elucubrações de uma verdadeira mãe

Então, aparece outro aspecto do nascimento de uma simples criança. Segundo a Igreja, a vida de toda criatura é comparável a um herói que se prepara com exercícios para a luta, e, depois, na hora de entrar na arena, se prepara por fricções, óleos perfumados, etc., para que toda a musculatura esteja em condições para enfrentar as feras que vai combater, ou então outros gladiadores com os quais vai lutar. Pega as armas, o escudo, e com tudo em forma entra na arena. Quem olhasse para um herói desses na sala dos gladiadores, dos domadores de feras, e o visse sentado esperando o chamado, tranquilo, pronto, para uma imensa batalha, não poderia deixar de se admirar.

Ora, uma criança que entra no mundo é como esse herói. Ela está na entrada de uma imensa batalha. Seja uma menina ou um menino, se a mãe tiver uma verdadeira noção das coisas, ela dirá: “Batalhador! Batalhadora! Eu te admiro porque és combatente do bom combate! Teu dever é este. Uma vez que recebas o Batismo, a graça te chamará. E a partir desse momento começará uma vida sobrenatural em ti que é mais ou menos como uma vela na qual alguém ateia um fogo.” Então a criança é para a mãe como uma vela que daqui a pouco vai ser acessa. Ela mesma vai levá-la até o padre que vai acender ali a luz da graça, participação criada na vida de Deus. Ela olha e diz: “Quanto vai arder esta alma? Que bem fará? Que glória dará a Deus?”

Se for um medíocre, mas tiver a coragem de assumir a própria mediocridade, dirá: “Eu nasci e Deus me criou de inteligência, de saúde, de capacidade de atrair, de capacidade de agir medíocres, eu todo sou medíocre. Mas em mim uma coisa não é medíocre: eu adoro a Deus de todo o meu coração! Creio na Santa Igreja Católica com toda a minha alma, e estou disposto a viver a minha vida medíocre e a carregar a minha cruz de mediocridade, que me imporá em todas as circunstâncias o segundo, o terceiro, o quinto lugar, pouco importa, mas eu carregarei tudo isso comigo até o fim.

E quando eu morrer, entregarei a Deus a minha mediocridade ornada pelo meu sacrifício, pela minha aceitação, pela minha humildade. Deus receberá essa mediocridade ornada com o amor com que Ele a criou medíocre. E na escala de valores, Ele amorosamente me destina um lugar no Céu. Que maravilha ter a fronte no Céu iluminada por toda a eternidade com esta nota: é um medíocre que amou sua mediocridade com todo o amor, porque assim realizava os desígnios de Deus. Oh, grande homem!”

Na mesma hierarquia dos seres celestes, nós poderemos encontrar talvez grandes homens, com grande inteligência, e na fronte escrito: “Grande homem, teve grandes dotes e fez algo por Deus”. Isto lhe valeu um lugar no Céu.

Assim é como uma mãe olha para o seu filho.

Antes de tudo, ver nas almas o desígnio de Deus

Mais ainda, se uma mãe tiver a coragem de levar os seus raciocínios até o fim, ela não poderá deixar de pensar: “Não será que essa criança vai, um dia, ofender a Deus? Não abusará ela da paciência divina? Não será que Deus descarregará sobre esta pessoa a sua cólera e ela irá para o Inferno? A mim, como mãe, que preparei para ele este berço tão delicado, tão esplendoroso, como me dói pensar que esta boquinha que chora é capaz de ser condenada, de tal maneira que blasfemará contra Deus por toda a eternidade! E se eu me salvar, do alto do Céu, por toda a eternidade, verei esta criancinha, já adulta, blasfemando contra Deus por toda a eternidade! E direi: ‘Meu Deus! Não teria sido melhor que não tivesse nascido a correr esse risco?’”

Entretanto, se ela for verdadeira mãe, é porque antes de tudo soube ser verdadeira filha de Deus e, portanto, pensará de outra maneira:

“Se acontecer que essa minha criança, apesar de eu rezar por ela como Santa Mônica rezou por Santo Agostinho, resistir a qualquer graça e for precipitada no Inferno, oh! Deus, que destino terrível! Mas se ela merecer a vossa cólera eterna, eu não sei, meu Deus, desunir-me, desligar-me de Vós; e se Vós a odiardes, eu a odiarei também! E quando ela blasfemar contra Vós no Inferno, e Vós a amaldiçoardes, desde já junto à vossa a minha maldição de mãe. Se ela for vossa inimiga, ela terá a mim, mãe dela, como inimiga também.”

Esta seria a meditação de uma mãe levada até o último ponto.

Convívio entre Nossa Senhora e Nosso Senhor

Mas, voltando a meditar no convívio entre a Santíssima Virgem e seu Divino Filho, podemos considerar a história d’Eles durante os trinta anos em que Jesus passou recolhido na casa de Nazaré, assistiu à morte de São José — proclamado, com muito tato e acerto, pela Igreja, como Padroeiro da Boa Morte, pois não se pode morrer em melhores condições do que assistido por Nossa Senhora e pelo próprio Menino Jesus —, e o auxílio prestado pelo Filho a sua Mãe que ficara viúva.

Poderíamos imaginar as conversas d’Ele com Ela, quando, estando sozinhos na casa de Nazaré, à noite, terminada a refeição, olhavam-se e se queriam bem, fruindo da enorme felicidade de estarem juntos, de se olharam e de se quererem bem, de conversar, trocar pensamentos, etc.

Nossa Senhora meditando no que aconteceria futuramente, pensava, inclusive, que viria um determinado momento em que os Anjos haveriam de transportar aquela casa santa pelos ares para não cair nas mãos dos maometanos. Que a santa casa de Nazaré, ia ser pousada num lugar chamado Loreto, e que ali, um número incontável de peregrinos, provavelmente até o fim do mundo, iriam venerar as paredes santas entre as quais ecoaram essas conversas, onde se ouviram os risos cândidos e cristalinos do Menino Jesus, onde se ouviu a voz grave, paterna e afetuosa de São José, onde se ouviu a voz de Virgem-Mãe, modulada quase ao infinito como um órgão, exprimindo adoração, veneração e ternura em todos os graus e modalidades.

Maria Santíssima pensava na vida pública de Nosso Senhor, nos milagres que Ele iria praticar, nas almas que Ele iria atrair, como tudo isto daria no momento em que Ele começaria a ser recusado pelos judeus, e na traição de Judas.

Depois Pentecostes, a dilatação da Igreja por toda a bacia do Mediterrâneo, os lugares misteriosos por onde andariam os Apóstolos, enchendo a Terra com a presença deles. A libertação da Igreja por Constantino, a Igreja que brilha na face da Terra, a invasão dos bárbaros, depois São Bento, que se desprende daquele pantanal, caminha até Subiaco e ali começa uma vida espiritual da qual nascerá a Idade Média.

Vem a Idade Média, mas começa a Revolução: o Renascimento, o Humanismo, o Protestantismo, a Revolução Francesa, a Revolução Comunista…

Tudo isso nós devemos considerar quando estivermos ao pé do Presépio, e dizer: Ele é a pedra de divisão, a pedra de escândalo que divide a História pelo meio. Tudo quanto está com Ele, é a Contra-Revolução, tudo quanto é contra Ele é a Revolução.

Prece ao Divino Infante

Poderíamos, então, fazer esta oração junto ao Presépio:

Aqui está mais um filho da Igreja militante, Senhor Jesus Cristo, trazido pela graça que vossa celeste Mãe, por suas preces, obteve de Vós. Aqui está este batalhador, ajoelhado diante de Vós, antes de tudo para Vos agradecer.

Agradeço-Vos a vida que destes ao meu corpo, o momento em que insuflaste minha alma, o plano eterno que tínheis a respeito de mim, como de qualquer homem, um plano determinado e individual, por onde deveria haver nos desígnios de Deus alguém que, dentro da coleção dos homens, haveria de ocupar este lugar, mínimo que fosse, no enorme mosaico de criaturas humanas, que devem subir até o Céu.

Agradeço-Vos por terdes posto uma luta no meu caminho, para que eu pudesse ser herói. Agradeço-Vos a força que me destes para rezar, resistir e espancar o demônio, como dizia Santo Antonio Maria Claret, o fundador dos padres do Coração de Maria: “A Dios orando y con el mazo dando”.

Agradeço-Vos todos os anos de minha vida que já se foram e que se passaram na vossa graça. Agradeço-Vos os anos que se foram e que, embora não se tenham passado na vossa graça, Vós os encerrastes, num determinado momento, e eu abandonei o caminho da desgraça, para entrar de novo na vossa graça.

Agradeço-Vos, oh! Divino Infante, oh! Menino Jesus, a hora em que eu disse sim e comecei a Vos servir.

Eu Vos agradeço tudo quanto fiz de difícil para combater os meus defeitos; por não Vos terdes impacientado comigo, e por terdes me conservado vivo para que eu ainda tivesse tempo de corrigi-los antes de morrer. E se um pedido quero Vos fazer neste Natal, Senhor Jesus, ei-lo, adaptando um pouco o versículo de um Salmo que diz “Não tireis a minha vida na metade dos meus dias”: Não me tireis os dias, na metade da minha obra, e concedei-me que meus olhos não se cerrem pela morte, meus músculos não percam seu vigor, minha alma não perca a sua força e sua agilidade, antes que eu tenha, para a vossa glória, vencido todos os meus defeitos, galgado todas as alturas interiores que Vós me criastes para galgar, e no vosso campo de batalha eu tenha prestado a Vós, por feitos heroicos, toda a glória que Vós esperáveis de mim quando Vós me criastes. Assim seja.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1988)

Santo Odilon

O famoso abade do mosteiro beneditino de Cluny foi objeto dos comentários de Dr. Plinio durante uma série de conferências proferidas no ano de 1972. Nos seguintes trechos selecionados, Dr. Plinio salienta como até o modo de andar ou de falar de uma pessoa pode demonstrar a santidade de sua alma.

Cada época histórica possui grandes homens característicos. Santo Odilon o foi para a Idade Média: grandioso no sentido verdadeiro da palavra.

Apesar de possuir grande valor pessoal, o que sobretudo transparecia em nosso santo eram as graças sobrenaturais — incomparavelmente mais preciosas do que qualquer valor pessoal — que adornavam sua alma.

Sua personalidade tinha tal amplitude harmônica de aspectos, como não se encontra nos grandes homens do tempo da Revolução.

O modo de andar

Passemos a comentar trechos de sua vida, retirados de uma ficha biográfica(1):

“Comecemos por seus méritos menores. E digamos que esse homem tinha um andar grave, uma voz admirável, ele falava bem. Era uma alegria vê-lo.”

Ao descrever o porte e o modo de ser do santo, o autor ressalta mais os sinais da virtude do que a virtude propriamente dita.

O modo de andar das pessoas as define muito, e por causa disso o biógrafo, contemporâneo de Santo Odilon, julgou que deveria começar a descrevê-lo pelo passo.

O que é um passo grave?

É um passo firme, varonil, de alguém que, ainda que não tenha diante de si obstáculos visíveis, anda vencendo. É um passo cheio de consequências e de ponderação.

Compostura respeitosa

“Cada um de seus movimentos exprimia honestidade. Sua fisionomia era angélica e seu olhar sereno.”

Honestidade, no francês antigo, significava compostura. “Un honnête homme” significava um homem muito composto, muito digno. Vê-se, então, que todo o modo de ser de Santo Odilon era cheio de compostura e de dignidade.

É preciso ressaltar também que na Idade Média o conceito de anjo não era o desse tipo de anjinho gorduchinho, com ares de irresponsável. Não seria um elogio dizer para alguém que ele tem aquela carinha. A ideia que o medieval fazia dos anjos era a que está expressa nos vitrais medievais: os grandes heróis do Céu; príncipes na presença do Altíssimo.

Percebe-se, assim, o que o autor quer dizer quando afirma que “sua fisionomia era angélica”. Este era Santo Odilon, que grande figura

Continua a ficha:
“Cada dobra de seu hábito sacerdotal apresentava dignidade e mostrava o respeito que ele tinha por si mesmo e pelos outros.”

Santo Odilon sabia que era a “alma” do grande movimento de Cluny, o qual, por sua vez, era a “alma” irradiante da Idade Média.

A verdadeira humildade consiste em respeitar-se a si próprio como deve ser respeitado.

Sabendo ser Superior de uma Ordem religiosa, homem sagrado por Deus, ele se respeitava enormemente. Vemos que o porte desse varão de Deus era, ao mesmo tempo, principescamente angélico e cheio de humildade.

Alma luminosa

Continua a narração:

“Ele trazia consigo qualquer coisa de luminoso, que convidava a imitá-lo e venerá-lo. A luz da graça, que estava nele, brilhava, por assim dizer, no exterior, e manifestava a qualidade de sua alma.”

O autor soube fixar essa luminosidade que havia em Santo Odilon, a qual nota-se em tantos santos. Ela é algo difícil de descrever, pois trata-se de uma luminosidade do olhar e de algo que paira em torno da personalidade.

Assim como há algo que distingue um homem morto daquele que apenas dorme, há também uma luz na fisionomia do santo, a qual o distingue de quem não o é.

“Seu rosto exprimia a uma vez a autoridade e a benevolência.”

O autor acentua muito bem os contrastes: autoridade e benevolência.

Imaginemos um claustro medieval, repleto de ogivas, e Santo Odilon andando sozinho. Ao longe, um noviço o vê e se ajoelha, Santo Odilon passa e o abençoa.

É bem o contrário daquilo que a Revolução procura incutir nas mentalidades: quem tem autoridade é uma espécie de fera que subiu e, quando encontra a oportunidade de pisar nos outros, fica contentíssima, como quem diz: “Eu apanhei até subir; agora desconto nos que estão embaixo”.

Uma concepção da autoridade não pode ser mais ordinária do que essa.

Pelo contrário, a autoridade existe para fazer o bem. Sua missão é cumprir a benevolência. Benevolência quer dizer querer o bem dos outros.

“Para os bons, ele se mostrava risonho e acolhedor, mas, para os orgulhosos e rebeldes, se tornava tão terrível que era difícil conseguirem fitar seu olhar.”

Que verdadeira maravilha! Eu tenho entusiasmo por essa arma do homem que é o olhar. Quão poucos homens a possuem! O autor dessa ficha soube ver o olhar terrível de Santo Odilon. Isso é admirável! Terrível como um exército em ordem de batalha!

“Seus olhos brilhavam com brilho singular: eram olhos acostumados às lágrimas.”

Como o mundo moderno não compreende mais isso! O mundo moderno só gosta dos olhos habituados a rir; olhos estultos e néscios, os quais só dizem o que sente o egoísmo. O mundo antigo compreendia qual era o valor dos olhos habituados a chorar pelas coisas santas. Chorar pela Paixão de Nosso Senhor, chorar pelos pecados, pelos outros e por si. O pranto sagrado transforma o interior do olhar e o faz luminoso como uma linda rosácea banhada pelos raios do sol.

“Mesmo em viagem, Santo Odilon trazia sempre um livro nas mãos. Enquanto viajava a cavalo, sua alma refazia as forças através da leitura.”

Não entendamos isso à maneira moderna, onde o indivíduo tira do bolso um livrinho e lê comodamente. Devemos pensar que os livros do tempo de Santo Odilon eram in-fólios, pesadões, feitos em pergaminho.

Apesar disso ele tinha sempre um livro consigo. Quer dizer, ele aproveitava todos os pequenos interstícios para ler alguma coisa e assim desenvolver seu espírito na meditação das coisas celestes.

Ademais, a locomoção não era como hoje em dia! Viajava-se a cavalo ou a burro. E as estradas, como eram? As mais precárias possíveis. As menores distâncias eram transpostas em longos períodos.

Imaginemos, então, que cena pitoresca: o cavalo trotando e Santo Odilon com uma das mãos na rédea e com a outra segurando um pergaminho escrito com umas letras enormes; ele enrola a folha que terminou de ler, pensa um pouco, coloca essa folha num saco, e tira outra página. O animal andando em meio de precipícios, onde Santo Odilon para e pede o auxílio do Anjo da Guarda!

“Gloria tibi, Domine”… E continuava.

Autoridade e benevolência, virtudes indissociáveis

“Santo Odilon difundia a caridade fraterna por sua própria feição, antes de ensiná-la. E ele a ensinava, sobretudo por seus atos.

“Amando seus irmãos com o interno calor de sua alma, o santo queria engrandecer a cada um deles, e levá-los ao amor de Deus. Jamais desprezava ou rejeitava pessoa alguma; por sua caridade — verdadeiramente divina — ele convidava a todo o mundo, sem nenhuma reserva, a aproveitar de sua indulgência, pois aquele que é verdadeiramente grande arde nesse desejo de amar o próximo.”

Santo Odilon foi abade de Cluny numa época em que a íntima conjugação das instituições temporais e espirituais fazia de um abade um personagem de grande importância. E, tomando em consideração que Cluny representava a maior abadia francesa do tempo, ser seu abade significava ser um dos homens mais consideráveis da estrutura política e social da Idade Média.

Ademais, o mosteiro de Cluny possuía os direitos feudais sobre grande quantidade de terras, e isso dava a Santo Odilon não só o poder espiritual, mas também o material. Ele, por sua reputação pessoal, pelo prestígio de sua santidade e cultura, estava elevado muito acima de seus contemporâneos.

Esse homem, tão insigne por uma porção de circunstâncias, sabia, entretanto, ser muito paterno para com os monges colocados sob a sua jurisdição.

Então, o biógrafo mostra como ele se aproximava de cada um com afeto, entrando em seus problemas pessoais para resolvê-los, e fazendo junto a cada um o papel de Bom Pastor.

Continua a ficha:

“Pois, como é natural, quanto mais alto é um homem, tanto maior é a caridade que ele tem para com os seus irmãos.”

Segundo o espírito que sopra no mundo depois do Protestantismo e da Revolução Francesa, tem-se a errada idéia de que quanto mais um homem é elevado, mais ele despreza os que estão abaixo de si; o superior vê no inferior um concorrente, o qual quer subir e necessita ser espancado para não ter êxito; o inferior, por sua vez, vê no superior um tirano que está lhe explorando e precisa ser derrubado. Desse modo, em qualquer lugar onde haja um degrau hierárquico, há uma luta entre superior e inferior.

Na história de Santo Odilon vemos o contrário. Quanto mais elevado está um homem, mais ele deve tender à bondade, à proteção dos inferiores e a exercer uma autoridade benfazeja.

Onde está o fundamento da idéia de autoridade, como ela era exercida por Santo Odilon?

São Tomás de Aquino explica, esplendidamente, que o superior está para com o inferior como uma imagem de Deus. Quer dizer, ele deve proteger o menor, orientá-lo, guiá-lo, à semelhança de como Deus protege todas as suas criaturas.

Na ordem estabelecida por Deus, os anjos são desiguais, o superior guia o inferior.

Isso se verifica também no mundo humano. Os mais eminentes — por seu poder, talento ou autoridade — devem representar a Deus junto aos que estão abaixo de si e fazer-lhes bem.

Segundo essa consideração, quanto mais alta é a autoridade de alguém, maior é a responsabilidade que ele tem de fazer bem aos outros.

Por isso os súditos devem amar especialmente suas autoridades e querer bem aos que estão constituídos numa dignidade especial.

Este é o princípio que rege a Santa Igreja Católica. Por exemplo, numa paróquia, não é razoável que um fiel ame o seu Vigário e espere dele toda proteção e apoio? Mas, o fiel deve amar ainda mais ao Bispo. E, por isso, não há motivos para esperar maior bondade do Bispo do que do Vigário? E o Papa, não deve ser ainda mais venerado? E não há também motivos para esperar mais indulgência dele do que do Prelado?

A “poluição” do mundo moderno

Essas são considerações que nos descansam da brutalidade de todos os dias!

Não é verdadeiro que nos despolui pensar nisso?

Quando leio nos jornais matérias referentes à poluição em nossas cidades, tenho vontade de dizer: “Vocês não percebem que o que mais polui o mundo contemporâneo é o homem contemporâneo? Não há chaminé que polua mais do que a Revolução!” A verdadeira despoluição se daria quando tivéssemos na terra verdadeiros “Santos Odilons”…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 23 e 25/9/1972, 2 e 13/10/1972)

1) Não possuímos referência exata para a citação do trecho comentado.

Ternura da Mãe de Deus

O protótipo de ternura é o coração materno. Especialmente o é o Coração da Mãe das mães, que excede de um modo inimaginável a ternura de todas as mães que houve, há e haverá. Quase que se poderia dizer que Nossa Senhora é a personificação da ternura.

Para exprimir isso aos homens por formas diversas, Maria Santíssima multiplica suas graças. Ora Ela aparece sob a forma de uma Rainha esplêndida, em homenagem à qual se constroem catedrais magníficas; ora sob o aspecto de Mãe de misericórdia, meiga, que Se contenta com o culto que Lhe é tributado em pequenas choupanas, onde, entretanto, Ela faz milagres excelentes para tornar mais patente sua maternal bondade, animar os homens a Lhe pedirem, com confiança, tudo quanto queiram, e convidá-los a amá-La por causa da ternura que Ela lhes demonstra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/5/1966)

Virgem e Mãe

Não há título maior do que o de Mãe de Deus. Não é dado a uma criatura ser elevada a honra maior do que esta. A Igreja, não satisfeita de chamar Nossa Senhora de Mãe de Deus, chama-A também de Virgem; e com frequência Ela é tratada de Virgem-Mãe, nos livros de piedade.

Embora a virgindade esteja ao alcance de qualquer pessoa que queira ser pura e conte com a graça divina para isso, a Igreja preza tanto esta virtude que quis conjugar esses dois títulos em Maria Santíssima.

O próprio Jesus, nosso Senhor, ama tanto a virgindade que não Se contentou em adornar sua Mãe com todos os dons, preservando-A do pecado original, mas quis que Ela fosse virgem antes, durante e depois do parto, realizando para isso um milagre estupendo!

(Extraído de conferência de 22/5/1990)

Mãe admirável

O início de um novo ano sempre traz consigo incógnitas e esperanças. Sabendo disso, a Santa Igreja, através de suas festas litúrgicas, dá aos homens a clave na qual devem impostar as almas para transpor os dias vindouros. Solenemente, na aurora do novo ano, recorda a Maternidade Divina de Maria, lembrando aos fiéis que o amor materno da Santíssima Virgem e sua poderosa intercessão jamais faltarão àqueles que a Ela recorrem. Poucos dias depois, a Liturgia contempla a figura dos Magos que, vindos do Oriente, adoram ao Menino como verdadeiro Deus.

Infindas lições espirituais poderíamos tirar destas duas grandes solenidades, entre elas a importância e a beleza da virtude da admiração, comentada por Dr. Plinio na presente edição(1).

O que é admiração? — perguntava, certa vez, Dr. Plinio.

“Mirare ad”: olhar para. É olhar para algo com entusiasmo, compreendendo sua grandeza e, por causa disso, amá-lo.

A admiração é a porta de toda a grandeza e é impossível eu admirar algo sem que a grandeza daquilo que admirei, de algum modo, penetre em mim. Por isso, a grandeza é dada aos que admiram e se dedicam ao objeto de sua admiração. Aqueles que são grandes, esses devem ser dedicados.

Neste sentido poder-se-ia interpretar o versículo do Magnificat que diz “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1, 52) como um convite feito aos poderosos para descerem de sua sede e servirem os pequenos; e a estes a se elevarem pela admiração e se encherem da grandeza dos Anjos. Temos, assim, a admirável harmonia do universo, onde grandes e pequenos coexistem uns para os outros, segundo a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo(2).

Não há maravilha mais autêntica do que a alma verdadeiramente maravilhável. Essa tem o amor de Deus, pois a perfeita Caridade consiste em maravilhar-se humilde e desinteressadamente com as coisas divinas. Não só com as invisíveis conhecidas pela Fé, mas também com as visíveis que Deus colocou ao nosso alcance.

Eis a virtude, tão fundamental para a alma contrarrevolucionária e para o espírito católico, que devemos procurar e pedir a Nossa Senhora que, como ninguém, foi a mais maravilhável das almas.

Se Deus concedeu a Maria Santíssima o Menino Jesus para encerrar-Se no seu claustro virginal, passar sua infância ao lado d’Ela, viver trinta anos maravilhando-A, é porque Ela possuía uma potência de maravilhar-Se que estava na proporção dessa maravilha. Compreende-se, assim, qual era a capacidade de maravilhar-Se de Nossa Senhora.

Resultado: tornou-Se maravilhosa. Por isso todas as gerações a chamarão Bem-aventurada (Cf. Lc 1, 48). Pelo desinteresse com que Maria amou, pela humildade com que Ela admirou, tornou-Se admirável(3).

 

1) Ver “Admiração: doutrina e exemplos”, p. 18 e “Admiração e afeto da Virgem-Mãe”, p. 12.
2) Conferência de 3/2/1973.
3) Conferência de 19/6/1971.

A Paz de Cristo no Reino de Maria

Na Sagrada Família, o menor de todos era o chefe: São José. Em seguida, vinha a Mãe, enormemente superior ao esposo; e depois o Filho, infinitamente maior do que os dois.

Em torno dessa Família se reúnem, desde os primeiros dias, os grandes e os pequenos da Terra: expressão significativa de que Cristo Nosso Senhor veio trazer a paz como característica das relações entre as classes sociais.

São José, nobre como um príncipe e humilde como um carpinteiro; os Magos, dignos como reis e súplices como mendigos; o jovem pastor, um casto adolescente que parece trazer no cordeiro o símbolo de sua pureza e ver no Menino-Deus a fonte de toda castidade.

Queira a Sagrada Família obter para nós, para nossas famílias, para nossa querida nação, que se afastem tantos fatores de preocupação e de tensão, por efeito da única solução que uns e outros podem ter validamente: a Paz de Cristo no Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1977 e 16/12/1991)

Auge desigual de perfeições

As almas que têm o verdadeiro senso da hierarquia amam os que lhes são superiores e têm encanto em admirar o que é inferior. Assim, na humilde casa de Nazaré, Dr. Plinio cogita o  relacionamento da Sagrada Família com base na contemplação mútua das perfeições desiguais, harmônicas e culminantes de cada um de seus membros.

Narra o Evangelho que o Menino Jesus crescia em graça e em santidade perante Deus e ante os homens (Lc 2, 52). Se é verdade que Ele crescia, de qualquer natureza que fosse esse crescimento,  era algo de uma perfeição perfeitíssima.

Ascensão contínua de graça e santidade

Ao lado do Menino Jesus, Nossa Senhora, concebida sem pecado original e confirmada em graça desde o primeiro instante de seu ser, portanto, também Ela sem defeitos — e o importante da  consideração está nisto —, Ela crescia de ponto em ponto constantemente.

Ao lado deles estava São José. É difícil fazermos um elogio de um homem, de qualquer grandeza terrena, depois de ter lembrado a grandeza de São José, o homem casto, virginal por excelência, descendente de Davi.

Diz-nos São Pedro Julião Eymard numa das suas conferências — ele não cita o documento, mas afirma — que era o chefe da Casa de Davi e o pretendente legítimo ao trono, ocupado, derrubado, com Israel dominado pelos falsos reisinhos dos reinos em que se tinha dividido e dominado pelos romanos. Mas o pretendente legítimo era ele, varão tão perfeito que o Espírito Santo modelou  para ter proporção com Nossa Senhora.

Pode-se imaginar o que isso representa? Nossa Senhora, uma mera criatura, mas que chegou na ordem do criado a uma tal altura que d’Ela só não se pode dizer que é Deus. Como é o homem  formado pelo Espírito Santo para estar na proporção de sua Esposa? A que altura, a que píncaro esse homem deve ter chegado? As palavras humanas não podem exprimir.

É verdade que também ele — eu pessoalmente não tenho dúvida nenhuma — era confirmado em graça. Então, na humilde casa de Nazaré, que depois os Anjos levaram para Loreto, na Itália, havia uma ascensão em graça e santidade das três pessoas excelsas que moravam lá. Se na quele tempo houvesse relógio capaz de fazer tique-taque, diríamos que a cada tique-taque aquelas três pessoas cresciam em graça e santidade perante Deus e perante os homens.

Perfeições que chegaram ao cume Em certo momento a Providência leva São José. É o padroeiro da boa morte porque tudo leva a crer que Nossa Senhora e Nosso Senhor assistiram à morte dele e o ajudaram a morrer. Não se pode ter ideia de uma morte melhor do que a dele, admirável, perfeita. Ao seu lado estava Nossa Senhora e Nosso Senhor ajudando- o a levar, até ao último momento, a sua alma àquela perfeição pinacular para a qual ele fora criado.  Não era a perfeição de Nossa Senhora, era uma perfeição menor. Ele, se chegasse ao extremo de sua perfeição, chegaria a uma altura menor do que a de Nossa Senhora, mas era a perfeição enorme para a qual ele fora chamado.

Nossa Senhora, a cada momento subia a uma perfeição maior. Não se sabe o que dizer, só os Anjos poderão cantar no Céu para nós apreendermos o que é essa perfeição. Por cima disso, de modo supereminente, Nosso Senhor.

São José, quando o seu olhar embaçado já ia se apagando para a vida, olhando para a sua Esposa e para Aquele que juridicamente era seu Filho — porque ele tinha direito paterno sobre o fruto das entranhas de Maria —, ele, ainda nos últimos instantes, contemplava aquilo que foi o seu enlevo a vida inteira: ver aqueles dois subirem, subirem, subirem.

E vendo-Os subir, por sua vez subia também. Essa ascensão contínua foi, a meu ver, o encanto de Deus e dos homens na humilde casa de Nazaré. De tal maneira essa reflexão me encanta, que eu, que sempre tive desejo de ir à casa de Loreto, mas por essas ou aquelas razões não tive tempo nem meios de ir, formei aqui o propósito de ir à casa de Loreto, ajoelhar-me — qualquer que seja a dificuldade daí decorrente — e oscular o chão daquela casa, pensando em Jesus, em Maria e em José. Mas pensando n’Eles especialmente daquele ângulo: três perfeições que chegaram todas ao auge ao qual cada uma devia chegar.

Auges desiguais

Entretanto, esses auges não eram iguais. Eram desiguais e se amavam e se inter compreendiam intensamente, e nos quais a hierarquia que Deus quis era em ordem admiravelmente inversa: aquele que era o chefe da casa, no plano humano, era o menor na ordem sobrenatural; o Menino, que deveria obediência aos dois, era Deus. Quer dizer, era uma espécie de inversão que faz amar ainda mais as riquezas e as complexidades de toda a ordem verdadeiramente hierárquica.

Eram perfeições altíssimas, admiráveis, mas desiguais, realizando uma harmonia de desigualdades admirável como não houve no resto da Terra jamais uma coisa igual, ali dando lugar à alma fiel que quisesse fazer uma reflexão sobre esse assunto para que pudesse começar o hino de grandeza, de admiração e de fidelidade a todas as hierarquias e todas as desigualdades.

Extremos da hierarquia

Estas hierarquias Deus as quis assim. Leão XIII mostra especialmente que Deus quis outro mistério dessas complexidades nobilíssimas da ordem hierárquica: Ele quis que São José fosse o  representante da Casa mais augusta que houve na Terra. Porque nas outras Casas nasceram reis; o que dizer da casa onde nasceu um Deus? Os únicos cortesões à altura são os Anjos do Céu,  evidentemente.

Deus quis, ao mesmo tempo, que este chefe da Casa de Davi fosse trabalhador manual, carpinteiro. Quando essa circunstância é lembrada no Evangelho — “Nonne hic est fabri filius? Este aqui não é o filho do carpinteiro?” (Mt 13, 55) —, é dita como quem diz: “Homem que não vale nada, não é nada, não representa nada”. Nosso Senhor quis exatamente que as duas pontas da hierarquia  temporal se ligassem n’Aquele que é o Homem-Deus. Ele tinha a condição de príncipe pretendente da Casa de Israel. Isso talvez nos faça compreender aquela insistência dos Apóstolos de quando viria o reino d’Ele, porque Nosso Senhor tinha o direito de ser rei. Eles, aliás, pareciam desejar isso com cupidez, para ter lugares importantes.

De qualquer maneira, a coincidência dessa perfeição com a do operário no extremo oposto da classe social, em ambos os aspectos — Criador-criatura; em aspecto incomparavelmente menor, Rei-operário — reunindo os extremos para reforçar a coesão dos elementos intermediários da hierarquia.

É como quem aperta, vamos dizer um pouco prosaicamente, uma sanfona dos dois lados, comprime aquela parte intermediária e faz com que fiquem inteiramente juntos. A hierarquia nos aparece aqui não mais só como um conjunto de cimos tão altos que a nossa vista física e mental custa a alcançar tudo quanto isso representa, mas mostra-nos também um amplexo hierárquico desigual, mas afetuoso da ordem social inteira. De maneira que o que está mais alto abraça afetuosamente o que está mais baixo e diz: “Na natureza humana todos nós somos um.”

Nossa Senhora sozinha em Nazaré

Morre São José. Depois vem o momento duro da despedida de Nosso Senhor. Ele vai começar a sua vida pública, e havia vivido trinta anos com Ela.

Podemos imaginar o que é o afeto de mãe ardentíssimo d’Ela para com Ele, a adoração d’Ela para com Ele, como também a primeira noite de vazio da casa de Nazaré depois que Nosso Senhor foi embora… Sendo que Nossa Senhora sabia, pela profecia de Simeão, que um gládio havia de atravessar o Coração d’Ela. Ela entendeu bem que aquilo era uma coisa com o Filho divino d’Ela, e, portanto, lhe foi muito mais dolorido do que se Ela soubesse que era uma coisa com Ela. Nossa Senhora percebeu que Ele partiu para aquilo que nós poderíamos chamar a “tragédia” senão fosse o  épico da glorificação final. Ela ficou sozinha, São José no Limbo, Nosso Senhor entregue às feras, começando a sua vida que havia de terminar como nós sabemos. Na humilde casa de Nazaré uma janela aberta, pela janela entrando o luar, e Ela sentada, sozinha, no escuro, talvez nem sequer uma candeia acesa, rezando intensamente e lembrando-se do passado.

Para Ela, o que tinha graça a não ser lembrar o passado e pensar no futuro que era a crucifixão do Menino Jesus? Frequentemente nos presepes o Menino Jesus aparece com os braços abertos para simbolizar a cruz em que Ele haveria de ser pregado.

Ela devia ter noção exata ou quase exata disso, e pensava em tudo isso. Saber um fuxico na aldeia  de Nazaré, o que aconteceu, qual é o próximo funcionário romano que ia governar a província, a  política do lugar, talvez por condescendência, por bondade para poder atrair uma alma, Ela ouvisse com uma espécie de atenção, mas não era tema para Ela, absolutamente.

Qual era o tema que A atraía? Era aquela ascensão que Ela viu continuamente e que contemplou da seguinte maneira: Qual é o modo pelo qual cada um deles considerava a sua própria ascensão? Porque eles sabiam que estavam se santificando.

Nosso Senhor nem se fala, São José também sabia que estava se santificando, que estava subindo. E, inevitavelmente, ele pensava em tudo quanto havia de bom nele no começo, depois como  aquilo foi progredindo, em que estado ele estava e ia vendo até que ponto ia subir.

De maneira tal que provavelmente ele pressentiu a morte quando notou que não cabia mais perfeição nele.

Vamos refletir um pouco sobre São José, pensando nas formas antigas de sua perfeição, quando ele, Nossa Senhora e o Menino Jesus entraram naquela casinha, se instalaram lá, nos primeiros momentos de vida ali.

Cogitações de Nossa Senhora

Imaginemos Nossa Senhora, morto São José, ausente Nosso Senhor, refletindo em tudo isso. Relembrando aqueles graus de perfeição menor que tinham ficado para trás, e quão para trás, mas que Ela amava tanto e considerava com um sorriso.

Aquelas perfeições em que o Menino Jesus tinha crescido, mas que Ela tinha conhecido, por assim dizer — a palavra é incorreta —, “pequeninas”. Eu só digo “pequeninas” porque Ele era  pequenino, mas eram perfeições fulgurantíssimas.

Nossa Senhora talvez sorrisse comprazida relembrando tal episódio, tal circunstância. Depois a reação de São José e também ele depois como cresceu. Percorrendo várias vezes no seu espírito e no seu Coração aquela gama de perfeições a que Ela os tinha visto subir, pensando Ela mesma — é inevitável — nas várias perfeições pelas quais Ela mesma tinha subido rumo à perfeição maior.

Qual era a atitude d’Ela diante da perspectiva das perfeições que Ela tinha que adquirir até ao momento de sua morte? De sua dormição, diz numa linda expressão a linguagem dos fiéis e a  Liturgia, porque teve uma morte tão leve que foi como um sono, Ela ressuscitou logo.

Até esse momento Ela não deixou de progredir e tinha ideia de aonde ia. Estava, vamos dizer, a três quartos da escalada, tinha ainda alguma coisa a alcançar, mas atrás d’Ela a ascensão era vertiginosa.

O amor que Ela tinha ao que tinha ficado para trás era um amor menor do que o amor que A atraía para o alto, porque no alto estava Deus, e evidentemente o sentido teocêntrico de toda alma que visa a perfeição é um sentido fortíssimo, porque o centro é Deus e para o centro é que todos nós devemos caminhar.

Alegria e comprazimento

O sentimento interior das três pessoas da Sagrada Família é de uma altura que, entretanto, se sente abaixo de uma outra altura, que ama a altura que tem porque sente em si a perfeição do que tem e a do que é, que ama em si o que foi posto por Deus. Nossa Senhora tinha que amar o que Deus pôs n’Ela.

O cântico do Magnificat exprime isso bem: “Magnificat anima mea Dominum. Et exsultavit spiritus meus in Deo salvatore meo” (Lc 1, 46-47). Vemos que Ela tinha a alegria de sentir o Espírito Santo e a graça presentes n’Ela. O Magnificat desenvolve isto: aquela alegria de sentir o que é, e como aquilo que Ela é tem relação com Deus. Uma alegria de lembrar com afeto o que foi, quer  dizer, aquilo que é menos do que Ela era naquele instante, mas que é em ponto menor tão parecido, tão harmônico, tão afim com Ela — era Ela! — em estado menor. Lembrando-se e sorrindo com comprazimento, com alegria.

Isso indica uma forma de enlevo, de deleite espiritual, de amor de Deus, pelo qual Ela amava a Deus  em cada um dos graus sucessivos em que Ele A tinha feito subir. Amava a Deus daquele tipo de amor que correspondia àquele grau. Ela amava a Deus e amava o amor que Deus tinha posto n’Ela.

Esse amor, amando o amor, formava uma harmonia interior que se poderia comparar ao tecido de seda, de boa qualidade, fazendo fru-fru quando uma parte encosta na outra. Era a categoria amando a categoria nos seus vários graus, na matéria mais alta que é a espiritual, perto da qual todas as que ficam abaixo são figuras, não são nada.

Essa é a grande categoria, é o amor da santidade menor pela santidade maior, é o amor da excelência menor pela excelência maior. Há nisto uma harmonia, um deleite, uma alegria, uma forma de respeito que é o encanto de admirar, de venerar, de servir aquilo que ela vai ser. O próprio dinamismo do progresso espiritual contém isto e caminha para isto.

Há nisso um desprendimento completo. Hierarquia do puro amor Escolhi o exemplo de São José, de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo para compreenderem essa hierarquia no que ela tem de mais puro, de mais perfeito, de mais límpido, onde não entra egoísmo, não entra nada, porque entra esse puro amor de Deus gerando este amor às várias hierarquias sem a preocupação de “megalice” de ser e de fazer muita coisa, de poder muita coisa. Nada disso. É o puro amor, pelo amor do Amor, amor a Deus.

Nesta Terra as almas que têm o verdadeiro senso da hierarquia, é deste modo que elas amam os que são superiores. A palavra majestade tem para as almas retas um sentido, tem um mistério, um lumen especial que torna de tal maneira respeitáveis e veneráveis os reis e imperadores, às vezes até quando estão no estado de não merecerem por suas qualidades pessoais a homenagem que recebem por serem nobres. Mas se eles são quem são, eles têm aquilo, eles foram chamados para alguma coisa mais alta, e em relação àquilo em algo eles correspondem.

E esse algo, por pequeno que seja, é como um perfume de uma flor incomparável da qual se tira uma gota que vale mais do que um tonel de qualquer perfume do mundo. É uma coisa especial.

A sensação que se tem diante de uma majestade é uma sensação assim. Exemplo: a Rainha de Inglaterra, o Tzar da Rússia. Ele, um greco-cismático; ela, uma anglicana. Entretanto, quem de nós ousaria dar uma bofetada neles? Quem não teria sensação de praticar um sacrilégio? Apesar do horror que tenho ao cisma e à heresia, e do amor exclusivista que tenho ao Papado, a verdade é esta: neles há o aroma de uma gota espiritual, não sei de que gênero, que produz sobre o homem reto um efeito como o da santidade maior produz na santidade menor, com alguma analogia no que se passava na Sagrada Família entre as três pessoas indizivelmente excelsas — uma divina — que a compunham.

Há uma analogia que se estende depois à aristocracia como tendo esse perfume mais difuso e menos acentuado também, mas que faz lembrar o perfume da majestade. A aristocracia é um halo mais diluído da majestade real que se constitui em torno dela, como em torno de uma gota de perfume muito intensa o que se respira à distância é mais tênue, mas é uma irradiação do que na gota se encontra. Assim é a aristocracia.

Dignidade do que é modesto

Assim se dá com as outras classes sociais, mas com este traço: de que a majestade e aquilo que se irradia da majestade isto morre nos limites da aristocracia. Quando os limites da aristocracia acabam, começa outro limite de uma coisa muito elevada: é a dignidade. E a dignidade que pode ser tão digna, que diante dela não se tem o que dizer.

Ainda ontem à noite osculei uma relíquia de Beata Ana Maria Taigi. Ela era uma cozinheira do século passado, da Casa dos Príncipes de Colonna, em Roma. Ela tinha um ar tão majestoso e tão  digno que a presença da graça punha nela, que as pessoas que a encontravam na rua — apesar dos trajes humildes que ela usava — comentavam: “Parece uma rainha!” O que é isso? É a dignidade do ofício humilde, modesto, honesto de uma cozinheira, na qual vem habitar a graça de Deus, iluminar aquilo por dentro e fazer notar alguma coisa que já não é aquilo, mas é parecido com aquilo, e que perfuma de um encanto especial, de uma atração especial todo o lar digno onde se ama verdadeiramente a Deus, onde o pai é rei, a mãe é rainha e os filhos são os súditos. Havia na França do “Ancien Régime” essa expressão: “O pai é o rei dos filhos, e o rei é o pai dos pais”.

Portanto, na dignidade da casa mais modesta e mais humilde, como aquela luz irradiada da coroa, passando por camadas atmosféricas diferentes, transpondo as legítimas alterações, chega para dar toda a sua beleza, toda a sua simplicidade, todo o seu encanto à casa modesta do operário, de tal maneira que se poderia dizer que a casa de um operário onde mora um santo era a melhor expressão da casa de Nazaré.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/11/1992)

Majestade e sofrimento

Com a alma pervadida de enlevo, veneração e ternura, Dr. Plinio imagina como seria o convívio diário na Sagrada Família, abordando desde os assuntos mais comezinhos até os mais sublimes. E compõe uma oração própria de uma pessoa que não foi maculada pela Revolução.

Encontramos diversas estampas pitorescas, várias delas muito respeitáveis, decorosas, apropriadas e dignas, representando a santa casa onde residiu a Sagrada Família.

Simplicidade sublime

Em geral essas ilustrações se empenham em representar a casa de Nazaré com uma pureza diáfana, uma luz que não era apenas a de um dia lindamente luminoso, mas uma luminosidade persistentemente matinal, ao lado de uma grande simplicidade e uma limpeza absoluta.

O que dizer da limpeza dessa casa?

É difícil imaginar, porque talvez nem sequer os Anjos tinham o privilégio de limpá-la. Era Nossa Senhora, a Rainha dos Anjos, São José, o castíssimo esposo d’Ela, e às vezes, quando estavam cansados, o próprio Menino que, diante de todos os coros angélicos extasiados, limpava a casa para que seus pais descansassem.

Num canto, um jarro simples do qual se levanta uma açucena, muito ereta, como a virgindade, como a pureza, perpendicular, da qual brota o cálice de uma flor maravilhosa; é a única coisa que fala de arte, de gosto; o resto é muito simples.

Mas olhando para qualquer madeira tosca, para o ponto em que um pé de cadeira encosta no chão, o ponto em que uma prateleira suporta três ou quatro pequenos objetos indispensáveis para viver, fica-se extasiado, sem saber o que dizer diante dessas sublimes bagatelas, tão comuns na vida de qualquer um, mas que por estarem postas naquela luz tomam um caráter maravilhoso! 

E para muito adequadamente realçar a humildade de personagens tão puros, apresentam dentro deste décor, a Sagrada Família: São José que, sentado, está torneando algum móvel; Nossa Senhora fazendo uma costurinha; o Menino em pé, tão pequeno ainda que se apoia, não na mesa, mas em uma cadeira vazia, sobre a qual brinca com dois ou três objetos, como se aquilo fosse uma mesa.

Atentos aos gestos, à voz, ao olhar do Menino Jesus

Um silêncio no qual ninguém diz nada, mas todos se entendem superlativamente. Ao mesmo tempo, juntando a vidinha de todos os dias de uma pobre família operária e o encanto de considerações metafísicas, sobrenaturais, de Nossa Senhora e de São José que viviam inundados pela presença do Menino, com tudo quanto essa presença significava e era.

O Menino, nascido da Virgem-Mãe, da raça de Davi e, portanto, da mesma estirpe de São José — que possuía sobre Ele um autêntico direito de pai, por ser a criança o fruto das entranhas de sua esposa —, mas que era o Filho gerado pelo Espírito Santo no seio virginal de Maria.

O que dizer disso? Não há palavras que bastem!

A Santíssima Trindade, por assim dizer, “Se movia” ao menor movimento do Menino, brincando com algumas pedrinhas ou mexendo com uma coisa qualquer, enquanto sua infância ia se desenvolvendo segundo a ordenação posta por Deus na natureza humana, mesmo sendo esta tão elevada e tão distante do pecado original, como era a do Menino-Deus, Filho de Maria Virgem, concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser.

Poderíamos, assim, imaginar as cenas mais comuns na vida de uma criança, como procurar algum objeto, hesitando sobre se estaria aqui ou lá, e não encontrando onde procurou, para depois buscar no lugar certo porque Nossa Senhora ou São José tinha mudado de lugar o objeto, ou o vento soprou e tocou para longe o paninho que Ele tinha separado…

Que repercussão episódios tão simples teriam nas relações das três Pessoas da Santíssima Trindade?

Por outro lado, São José e Maria Santíssima também cuidando dos afazeres domésticos, mas, tanto quanto possível, procurando não perder um gesto, um movimento, atentos à mínima emissão de voz d’Ele como a uma música inefável. O menor olhar d’Ele era um tesouro sem conta, o menor movimento tinha uma majestade e uma graça inexprimíveis! E eles sabiam que era o Homem-Deus que estava ali, hesitava, Se movia, falava… Podemos imaginar o enlevo sem fim que os inundava!

Como seria o convívio diário na Sagrada Família?

Deveria acontecer também que, pelas contingências da vida concreta, pela necessidade de prestar atenção nos afazeres, às vezes eles desviavam a atenção do Menino. De repente, tinham uma surpresa com alguma atitude e comentavam-na entre si, cochichando baixinho.

Em outras ocasiões, um dos dois esposos tinha estado fora e, quando voltava, recebia encantado o “jornal falado”.

Outras vezes era o próprio Menino Jesus que tinha saído para brincar com outra criança no jardim, enquanto São José e Nossa Senhora ficavam dentro de casa, confabulando: “O que estará fazendo Ele?”, sabendo não se tratar apenas da satisfação de um desejo infantil de ter um companheiro, mas considerando como tudo quanto Ele fazia tinha um significado muito profundo.

Como seria o relacionamento entre os três, na casa de Nazaré? Teriam entre Si um contato, uma interlocução tal que a todo o momento fizessem referência à natureza divina de Jesus? E o Menino, à virgindade fecunda de sua Mãe e à virgindade milagrosa, florindo num casamento casto, de São José? Ou esses eram temas que eles sabiam, veneravam, mas sobre os quais falavam pouco, deixando-os implícitos e conversando sobre eles apenas nas grandes ocasiões, quando baixavam do Céu luzes extraordinárias e, contemplando o Menino, o santo casal tinha êxtases místicos?
Com exceção desses momentos, talvez o resto do tempo transcorresse em uma vida comum, com os assuntos cotidianos:

— José, meu esposo, fostes vós que abristes aquela porta? Quereis porventura sair levando um banco que acabastes de fazer, ou quereis ainda ficar aqui?

— Senhora, eu ainda preciso ficar aqui, exceto se vossa vontade for outra…

Algum tempo depois, diria São José:

— Senhora, Vós vos distraístes — ele bem sabia que Ela tinha estado conversando com os Anjos! — e o almoço já vai longe no nosso pequeno fogareiro; vede um pouco como está… Enfim, poder-se-ia imaginar tudo.

Refulgindo como no Tabor

Eu seria propenso a achar que, na maravilha desse convívio interno, as coisas mais diferentes se davam simultaneamente. Entretanto, tudo se juntava em uma fórmula maravilhosa que não sabemos qual é, mas podemos intuir.

Seria uma fórmula que comportaria momentos de uma seriedade extraordinária, de uma gravidade maravilhosa, em que a Santíssima Trindade se manifestasse ao santo casal? Ou que o Menino — que quando adulto reluziu no Tabor entre Moisés e Elias, de um modo tão esplendoroso — de repente aparecesse a eles com um brilho cada vez mais intenso, num momento inopinado em que Ele viesse pedir licença para brincar um pouco no jardim. E ambos passassem um tempo sem conseguirem responder ao Menino que, entretanto, esperava reluzente a resposta; e eles completamente transportados para outra esfera, pois estavam diante de Deus!

Poderia ser que, depois de terem visto esse esplendor, não comentassem. E Maria dissesse a José:

— Está ficando tarde, não é? Vou recolher a roupa que está lá fora.

E ele diria:

— Senhora, preciso acabar este objeto que me encomendaram para hoje à tarde.

Enquanto Ela ia pegar a roupa e ele trabalhava no objeto, este tomava rapidamente a forma que ele queria. Nossa Senhora, entrava, via o objeto pronto e dizia:

— Senhor, já está pronto o objeto? — suspeitando ter sido concluído pelos Anjos.

E ele, discreto, responderia:

— Senhora, às vezes as coisas correm depressa…

Há um matiz nesse convívio da Sagrada Família que eu não vejo reproduzido na iconografia, e compreendo, porque não é fácil reproduzir. Isso tudo estava impregnado de uma respeitabilidade, de uma majestade, de uma seriedade augusta, de uma determinação forte, para dizer tudo em uma palavra só, de uma seriedade e de uma dor desconcertantes.

Prefiguras da Agonia no Horto, do levar a Cruz ou da coroação como Rei

Em certos momentos, o santo casal deveria ver que o Menino brincava e Lhes aparecia, de repente, chagado dos pés à cabeça, esmagado de dor, e brincando com dois pauzinhos que Ele carregava às costas. E era o precônio da Cruz.

Eles ficavam com o coração partido, e viam o Menino andar de um lado para outro, determinadamente, fazendo um gesto ao Padre Eterno. E era um primeiro, um segundo, um quinto lance prefigurativos da Agonia no Horto. Que dor, que nobreza, que grandeza, que majestade!

Outros dias Ele aparecia como Rei, em comparação com o qual os Césares não eram senão moleques.

Poderíamos, assim, imaginar formas de venerabilidade as mais augustas.

Acredito que os que quisessem habitar na dor seriam pouco numerosos. Mais raros ainda seriam os que não se cansassem da majestade.

Escudo e espada para defender o Menino-Deus

Contudo, quem, considerando a grandeza dessas cenas, não tivesse nenhuma nódoa de Revolução na alma, diante dessa majestade se ajoelharia e diria:

“Ó Majestade divina, dentro desse mar imundo de vulgaridade que é hoje a Terra dominada pela Revolução, quanto Vos procurei sem saber que era a Vós que eu procurava! Quanto Vos desejei, quanto me comprouve em pegar os menores fiapos de majestade que encontrei pelo meu caminho e me deter diante deles conscientemente, pensando em Vós que eu não conhecia!

“Mas afinal, ó Majestade, eu Vos encontro! Majestade, eu Vos compreendo! Vós tendes todo o império dos Anjos, sois tudo quanto há de grande!

“Quando apareceis a mim, ó Majestade, penso no estrondo das cataratas mais caudalosas que, entretanto, são minúsculas torneiras abertas diante de Vós. O oceano parece um dedal de água em vossa presença, e todas as grandezas da Terra não são nada em comparação convosco.

“Ó Majestade, quanto eu Vos procurei, ó pátria de minha alma! Afinal Vos encontro!

“Quando eu fitava a Igreja e renovava enlevado o meu ato de Fé, não sabia que um dos nomes dela era “Majestade”. Agora compreendo. A Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, receptáculo da Majestade, vaso de honorificência!

“Se eu visse Maria, que majestade! Se eu visse José, o modesto carpinteiro, que majestade! Se eu visse o Menino, minha alma procuraria rimas para celebrar-vos, ó Majestade!

“Meus braços ansiariam por um escudo e por uma espada para Vos defender! Meu corpo inteiro se retesaria diante da possibilidade de Vos proclamar diante dos homens, ó Majestade!

“E precisamente porque Vos compreendo, ó Majestade, compreendo também que na vossa imensidade cabem todas as outras coisas: não há amor paterno nem materno, nem carinho fraterno, nem amizade, nem socorro, nem proteção, nem nada do que o coração humano possa produzir de mais suave e de mais terno, que não more em Vós, ó Majestade! Vós sois todas as grandezas, todas as magnificências, até mesmo das coisas pequenas.

“Vós sois o meu repouso quando estou cansado; a tranquilidade e a harmonia do meu sono; a alegria do meu despertar.”

Morar no santuário da majestade

Quem compreende que no santuário incomensurável da majestade há um altar, bem no centro, colocado para o sofrimento? Portanto, também para esta forma de dor de espírito, que é a ascese, por onde o homem abandona o que é frívolo, superficial, fútil, e se volta para o que é profundo, sério, para o esforço da mente na procura da verdade, para o esforço do corpo inteiro na procura do bem e do belo; holocausto mil vezes feito de todos os modos pela alma à procura da verdade, do bem, e da beleza.

Sem essa dor, para nós, concebidos no pecado original, não teria sentido o santuário infinito da majestade. Essa é a verdade.

Há a dor, há a cruz. A Cruz sacrossanta de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quem ama a dor? Quem ama a cruz? É tal a ligação entre a cruz e a majestade que, a partir de certo momento da História cristã, nenhuma coroa houve que não fosse encimada pela cruz. O píncaro da majestade, a cruz pequena sobre a coroa, como se a cruz estivesse numa altura tal que mesmo sobre a coroa ela fosse difícil de ver. Tal é a majestade da cruz!

Quem amará esses pensamentos? Quem se habituará a conviver com eles? Quem quererá morar no santuário da majestade, ajoelhado aos pés da cruz?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1982)

“Filho, eis aí tua Mãe”

Repousais, Senhor, em vosso mísero e augustíssimo presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros inauferíveis de seu respeito e de seu carinho.

Jamais uma criatura adorou com tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus. Nunca um coração materno amou mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera criatura. E nunca filho amou tão plena, inteira e super abundantemente sua mãe.

Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí o teu filho. Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26-27). E, considerando a perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta das  profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens por Ele amados”. (Lc 2, 14).

(Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1963)

Coordenação do Blog João Sérgio Guimarães