Mãe e Advogada nossa

Mãe do Homem-Deus, a Santíssima Virgem foi Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mãe do Redentor, tornou-Se Mãe dos pecadores e desempenhou, assim, um papel que, de certo modo, o próprio Deus não poderia exercer. Ele é o eterno Juiz que deve punir os que O injuriam. Nossa Senhora, porém, é Mãe. E às mães não cabe a tarefa de julgar, as a de interceder.

Elas são as naturais advogadas dos filhos, e estão solidárias com estes até quando o pai os increpa a justo título. Assim, por mais miserável, imundo e repelente que seja o filho pecador, a Mãe de misericórdia o perdoa e roga por ele ao Senhor, aplacando a justiça divina. Advogada supremamente boa, Nossa Senhora, em favor de cada um dos pecadores que a Ela recorre, dirige a Jesus Cristo esta súplica: “Meu Deus e meu Filho, pelo vosso dolorosíssimo sofrimento no Calvário, pela minha Imaculada Conceição, pela minha perpétua virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, peço-Vos: perdoai-o!”

Eis a missão de Maria Santíssima como nossa Mãe e Advogada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

Os ódios sapienciais do Imaculado Coração de Maria – I

Maria Santíssima é toda cristalina, feita de suavidade e de pureza, dir-se-ia ser uma alma incapaz de odiar. Entretanto, pelo próprio amor insondável que Ela tem a Deus, é impossível que não odeie o que é contrário a Ele

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e o ponto de referência de todos os elogios feitos a Deus. Não podemos conceber um louvor de Deus perfeito que não tenha a Ela como ponto de referência.

O caminhar do espírito humano

O espírito humano caminha para a cognição de “proche en proche” – de próximo em próximo, mas nesse caminhar, qual é o próximo d’Aquele que é eterno, absoluto, perfeito, infinito, transcendente em relação a qualquer criatura? Deus mora, a um título muito especial, no interior das criaturas por Ele amadas. Então, como Ele habita em Nossa Senhora, que é tão especialmente objeto de seu amor?

N’Ela temos o modo de nos tornarmos mais próximos de Deus. Embora Ele seja inacessível, fica ao alcance de nossa mão, porque habita em nossa Medianeira. Sendo Ela o Palácio da Trindade, o Paraíso do Homem-Deus, por meio d’Ela podemos ter com Ele aquele contato sem o qual nada somos.

Por essa razão, para exaltar qualquer perfeição divina, até mesmo a sagrada cólera d’Ele, não podemos tratar disso sem falar a respeito d’Ela.

Quando um indivíduo peca e se fixa irreversivelmente no pecado, torna-se odioso

Como medir a cólera do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria? Como podemos sequer conceber o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria em cólera? Parece que as expressões são contraditórias, antitéticas. N’Ela não pode haver cólera, Ela é toda cristalina, toda feita de suavidade, de pureza. A cólera parece uma vibração de indignação, do amor de si mesmo contrariado, do egoísmo vilipendiado. Como se pode conceber disposições de alma tão baixas n’Aquela criatura que é toda Ela elevação?

A quem e como Nossa Senhora odiou? Costuma-se dizer que Ela odiou o pecado. É verdade. Mas o pecado só existe na pessoa do pecador. Não há um pecado tomado em abstrato. Antes de Adão e Eva pecarem, não havia pecado, pois não havia pecadores. Existia uma possibilidade de alguém pecar. Então, poder-se-ia odiar essa possibilidade, mas o ódio não teria como objeto um ser existente. Se Adão e Eva tivessem esse ódio ao pecado, enquanto sendo uma eventualidade, teriam encontrado mais recursos de alma para não pecarem.

Maria Santíssima odeia em todos os pecadores aquilo que é pecado e ama os pecadores, pois ama neles a possibilidade que, por disposição divina, têm de se arrepender. Mas a situação atual do pecador, enquanto permanecendo no estado de pecado, Ela odeia.

Como Ela odeia? Como nós podemos imaginar os ódios do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria?

Tenho a impressão de que com o pecado e com a virtude há quintessências. Alguns pecadores, por assim dizer, levaram tão longe o pecado quanto uma criatura humana pode levar a virtude. E, ao pé da letra, pecaram tanto quanto podiam, isto é, quanto estava na condição deles pecarem. Sendo criaturas muito elevadas, tiveram a possibilidade de pecar de modo muito abominável. Diz o ditado popular: quanto maior é a altura, tanto maior é a queda.

Assim, houve criaturas de uma natureza muito elevada chamadas por Deus a emitir um reflexo magnífico das três Pessoas Divinas. No momento em que pecaram e se fixaram irreversivelmente no pecado, essas criaturas tornaram-se odiosas. Ao ser criada, e tendo tomado conhecimento dessas criaturas e da hediondez do pecado por elas cometido, Nossa Senhora não foi em relação a elas senão ódio.

Maria Santíssima toma em consideração que o pecador forma um todo só com o pecado, assim como a pessoa virtuosa forma um todo só com a virtude. É mais ou menos como a pessoa feia e a feiura; como também a beleza constitui um todo com a pessoa bela. Tanto a beleza quanto a feiura são inerentes ao ser da pessoa.

Assim também o pecado, com a diferença de que este é livremente escolhido pelo pecador; e nisso a pessoa tem exatamente a nota mais humilhante, pois ela viu e aderiu àquilo por sua própria vontade.

O ódio se mede pelo amor

Então, pelo próprio amor insondável que Nossa Senhora tem a Deus, é impossível que Ela não odeie completamente aquele ser ao vê-lo como sendo o contrário do Criador. Para cada pecador a quem a Divina Justiça selou o destino e condenou ao Inferno, Maria Santíssima pode dizer as palavras da Escritura: “Eu te odiei com ódio perfeito!” (cf. Sl 138, 22). É um ódio ao qual não falta nada.

Esse ódio é feito de uma concepção retíssima e nobilíssima de como aquele ente deveria ser, pois Nossa Senhora conhece o modo único pelo qual aquela criatura deveria ser a imagem e semelhança de Deus, e ama muito aquilo. Ao ver que aquele ser rejeitou essa perfeição, transformando-se voluntariamente no contrário, Ela percebe que ele atingiu o requinte de sua própria maldade e o odeia completamente, por amor àquela mesma perfeição que Ela contempla em Deus.

É forçoso que, amando-se algo muito, se odeie igualmente o contrário. O ódio e o amor se acompanham como a figura e a sombra.

Os pés puríssimos de Nossa Senhora calcam os precitos com ódio

Poderíamos imaginar Nossa Senhora na presença de Deus e, diante d’Ela, uma alma que será julgada. Se for uma pessoa virtuosa, Ela a considera com amor e diz: “Filho meu, como te pareces comigo e com os dons que Deus pôs em Mim! Quero oscular-te, meu filho, dá-me tua fronte!”

De repente, aparece a alma de um pecador empedernido, trazendo o sinal do demônio na testa. Evidentemente, toda aquela força de atração se transforma em repulsa, e as palavras de carinho tornam-se increpação: “Eu desvio de ti minha face, tenho horror ao semblante que apresentas, ele causa-Me asco e indignação. Quero calcar aos pés a deformidade que por teu pecado assumiste, como calco a serpente eternamente!”

Poder-se-ia pintar um quadro representando a Santíssima Virgem calcando aos pés cada um dos réprobos que estão no Inferno porque, de fato, sobre eles pesa eternamente o ódio total e implacável d’Ela. E tendo Ela como uma de suas glórias pisar sobre os precitos, poderia dizer a Deus: “Faço-Vos este ato de reparação, meu Criador, que sois meu Pai, meu Filho e meu Esposo! Esses miseráveis quiseram ser o contrário de Vós, por isso meu pé puríssimo, elemento integrante e executivo da mais alta criatura que vossa Sabedoria e vosso Poder engendraram, calca-os com ódio, e Eu entoo o cântico de cólera e de triunfo de todos os justos no Céu e na Terra!”

Ela teve vontade de punir Salomão, que levou à perdição o povo eleito

Dos múltiplos exemplos que se poderiam apresentar, não há nenhum que me cause tanto arrepio quanto Salomão, o filho bem-amado, o rei que recebeu de Davi a coroa e a missão. Davi deixou prontos os materiais e os planos para a construção do Templo, mas foi Salomão quem teve a glória de construí-lo. Salomão, que é o autor do Livro da Sabedoria, entretanto prostituiu-se a ponto de adorar ídolos, transformar-se num devasso e morrer na libertinagem e na apostasia. Como era possível que uma alma de tal maneira decaísse daquele pináculo? Esse homem, que escreveu as palavras ditadas pelo Espírito Santo para serem comunicadas à humanidade, de repente transforma-se nesse vaso de abominação!

Ao ler no Livro da Sabedoria a narração da construção e inauguração do Templo, de que amor a alma santíssima de Maria deveria se sentir cheia! Era um perfeito reflexo do amor de Deus e quanta glória deveria dar a Ele!

Contudo, ao considerar a narrativa da queda de Salomão, como poderia não sentir um ódio tão grande quanto o amor por Salomão na sua justiça? Como não sentir náusea, asco, repulsa, vontade de rejeitar e de punir aquele que de tal maneira se tornou inimigo de Deus, levando à perdição o próprio povo eleito?!

Horror implacável a toda forma de pecado

Sabe-se que houve Santos que, ouvindo os penitentes em Confissão, sentiam o mau odor dos pecados cometidos por aquelas almas.

Quando o mau odor resulta simplesmente da negligência da pessoa no trato do próprio corpo, causa uma particular repulsa. Ninguém tem culpa pelo mau cheiro do corpo provocado por alguma doença, mas ser negligente e não ter horror ao mau odor de si mesmo já é uma forma de conivência que contagia de algum modo a alma com aquele mau odor físico.

Por exemplo, uma pessoa que por negligência nunca escove os dentes e tenha, por isso, um hálito abjeto. Ela sabe que, se escovasse os dentes, o mau hálito cessaria, mas não os escova porque não tem horror ao mau gosto e ao mau odor de sua boca. Somos levados a pensar que essa alma tem conaturalidade com certos defeitos morais, e ficamos com horror ao corpo que leva a um horror à alma, enquanto esta não tem aversão àquilo que para o corpo é horrível.

Ora, o pecador que poderia e deveria eliminar o seu pecado, mas se deixa ficar nesse estado, tem incomparavelmente mais culpa e é mais aderente ao mau cheiro de sua alma do que ao mau hálito de sua boca.

Imaginem Nossa Senhora sentindo o mau odor da alma de Salomão, por exemplo, que Ela, a posteriori, terá conhecido por completo. Salomão, cujas palavras deveriam ter o perfume do incenso ao ser queimado, o aroma dos frutos quando chegam à maturidade, após sua prevaricação ficou com o cheiro abjeto de todas as putrefações.

Se isso é assim, podemos compreender, então, o implacável horror de Nossa Senhora a toda forma de pecado.

Maria Santíssima conhece até mesmo o que é oculto

Assim também a Santíssima Virgem, a Quem nada era oculto, conhecia perfeitamente a abjeção a que tinha caído sua nação no tempo em que Ela nasceu. Ela sabia que o Messias estava por nascer naquela ocasião, mas via a que auge de degradação chegara o povo judeu. Nossa Senhora não podia deixar de ter, com muito mais lucidez do que o profeta, aquela visão de Ezequiel quando foi conduzido para dentro do Templo e viu em seus recintos ocultos os sacerdotes praticando idolatria, porém diante do povo fingiam adorar o Deus verdadeiro.

Ora, Maria Santíssima sabia que a classe sacerdotal se preparava para cair no abismo do deicídio, e seria a promotora mais ativa de todas as calúnias contra Nosso Senhor. O Sinédrio era propriamente a força deicida dentro de Israel.

Devemos imaginar a Virgem Maria menina entrando para o serviço do Templo, aos três anos de idade, e presenciando esta realidade bivalente: a casa de Deus, onde a glória d’Ele habita, os justos vão rezar, seu Divino Filho iria ensinar, ou seja, todo o Templo era uma espera ansiosa do Messias que deveria vir; e, ao mesmo tempo, Ela via, ao lado do culto verdadeiro, o culto secreto, disfarçado, abominável, e a prevaricação de toda a classe sacerdotal.

Alguém objetará:

— Mas Ela só tinha três anos!

Eu respondo:

— Ela era Nossa Senhora…

Não tem outra resposta a dar. Ela já conhecia tudo.

Com que enlevo Ela penetrou na casa de Deus! Qual não terá sido o cântico dos Anjos ao verem se aproximar Aquela de Quem nasceria o Salvador e que era a nova Arca da Aliança, da qual a arca guardada no Templo, com tanto respeito, era apenas uma prefiguração!

Reação das almas diante de Nossa Senhora menina

Podemos imaginar uma ou outra alma boa que havia por ali, quiçá a Profetisa Ana, o Profeta Simeão, e que, por premunições misteriosas, observando aquela criança diriam: “Que grande chamado tem essa menina!” Vendo-A passar no cortejo das outras meninas educadas para o serviço do Templo, talvez percebessem ser uma intercessora incomparável junto a Deus, e a Ela se dirigiam implorando os favores celestes. E a futura Mãe de Deus, por uma dessas correspondências internas da alma, dava a entender: “Eu tenho consonância contigo, tu és um comigo”. E aquela alma se banhava de alegria!

Provavelmente alguns faziam sua vida girar em torno d’Ela. Sabendo nas várias ocasiões do dia onde Nossa Senhora estava, olhavam para um quarto, por exemplo, para ver se Ela apareceria na janela; ou verificavam de que recinto a Menina saíra para poderem entrar lá logo depois, e por esta forma viver em Maria, com Maria e por Maria, que era uma forma antecipada de viver em Cristo, com Cristo e por Cristo.

Assim, deveria haver em torno da Santíssima Virgem almas fervorosas às quais Ela impulsionava ainda mais para o bem, elevando-as a um píncaro de santidade para elas inimaginável. Outras que eram boas, mas postas na mediocridade, a quem Ela convidava a um voo possante rumo à perfeição que deveriam ter atingido, mas não atingiram. A cada uma dessas a presença d’Ela dizia: “Ou tu Me amas, ou te atolas. Tua hora chegou! Vem, minha filha!”

Por fim, havia também os filhos de satanás, abominando qualquer forma de verdade, de bem ou de beleza, e que, ao sentir a presença d’Ela, dentro deles o demônio grunhia, encobria-se, efervescia, tinha medo, sentia a necessidade de abandonar a presa e sair fugindo, mas armava a alma daqueles malditos contra Ela.

Teve ódio e foi odiada

Se um bom católico no mundo de hoje divide, como não supor que Nossa Senhora não dividisse? Não podia deixar de haver no Templo, além dos amigos da Virgem, os inimigos que desviassem d’Ela o olhar, sentissem mal-estar perto d’Ela, A odiassem, tentassem eventualmente caluniá-La ou difamá-La, procurassem de todos os modos ser-Lhe nocivos, invocassem demônios para tentá-La, prová-La, recusassem-Lhe alimentos, enfim, A sabotassem de todos os modos. Salvo por uma disposição especial da Providência, isso deve ter sido assim. E tanto as almas que eram a favor d’Ela quanto as contrárias acabavam se articulando. Portanto, Nossa Senhora, no Templo, fez a Contra-Revolução oposta à Revolução que se preparava contra o Filho d’Ela.

Estas são hipóteses que se constelam em torno da Santíssima Virgem Maria e nos fazem entender o que foi a vida d’Ela, o papel que o ódio representou em sua vida desde a primeira infância.

Levo minha suposição mais longe: creio que Nossa Senhora, quando estava no claustro maternal de Santa Ana, já causava mal-estar nos que eram de satanás. O demônio, a partir do momento em que Maria Santíssima foi concebida, começou a perseguir Santa Ana de um modo especial, surgiram antipatias, ódios, como também venerações e simpatias, antes mesmo de se perceber que ela concebera uma criança. De tal maneira Nossa Senhora é o contrário do demônio, que ele tinha que sentir a irradiação da pessoa d’Ela, instigando contra Ela o ódio daqueles em quem ele habitava. Não é possível que não fosse assim.

Vemos, portanto, que, desde o primeiro instante de seu ser, Ela teve ódio e foi odiada. Essa compressão e descompressão do ódio e do amor representaram a própria trama da existência d’Ela.    v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/7/1980)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

Maternidade Divina, essência da devoção marial

Por ser o homem composto de espírito e matéria, todo o cosmos se dignifica pelo fato de a união hipostática ter sido feita com a natureza humana.

Estabelece-se, assim, uma hierarquia admirável, toda semeada de contrafortes: acima de tudo Deus, infinito, incomparável a qualquer criatura; em seguida, Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de quem se constituiria naturalmente um abismo se não fosse colocada uma criatura humana, píncaro de tudo quanto pode ser a mera Criação: Maria Santíssima, sua Mãe.

Ela é o espelho mais perfeito que de Deus possa ser uma simples criatura. Nossa Senhora é a Rainha dos Anjos, dos homens, do Céu e da Terra, revestida de todos os outros títulos, qualidades e graças, inclusive a mediação universal, pelo fato de ser Mãe de Deus. A Maternidade de Maria, de algum modo, é a própria raiz e essência da devoção marial.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/8/1965)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

Por vossa bondade, salvai-me!

Ó clemente, ó piedosa, ó doce e sempre Virgem Maria! Vós fostes concebida sem pecado original, e nunca tivestes a menor falta nem deixastes de progredir tanto quanto Deus quis que progredísseis ao longo de vossa vida.

Sois a Virgem por respeito de cuja virgindade Deus operou o milagre estupendo: quis que fôsseis a Mãe de seu Divino Filho, mas por onipotência d’Ele, fostes preservada virgem antes, durante e depois do parto; de tal maneira a vossa virgindade é insondavelmente valiosa!

Mãe de Deus, Vós sois a Filha do Pai Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo, que em Vós gerou o Menino Jesus. Tendes, pois, tudo para ser atendida e, inclusive, sois cheia de misericórdia para com os pecadores.

Ora, um pecador sou eu. Venho aqui, de joelhos, Vos pedir: perdoai-me, não olheis para os meus pecados, mas para a vossa bondade. Olhai para o Sangue que vosso Divino Filho derramou para me salvar, e pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes por minha salvação.

Minha Mãe, não por meus méritos, mas por vossa bondade: salvai-me!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 29/11/1992)

O Menino-Deus e sua Mãe

Quais seriam os pensamentos do Menino Jesus recém-nascido, reclinado no presépio?

Evidentemente, Ele pensava nos esplendores da Santíssima Trindade, dos quais a Segunda Pessoa participa em estado de união hipostática com a sua Humanidade. E deveria cogitar também em Nossa Senhora, a obra-prima de toda a criação, sua Mãe, a qual Ele tanto amava e se extasiava em considerar e acariciar.

Naturalmente, o Divino Infante se deleitava em ver a Santíssima Virgem conhecendo-O sensivelmente e adorando-O. Ela guardava em seu Coração todas essas coisas e as meditava, procurando pelos traços fisionômicos d’Ele fazer a ligação de tudo quanto sabia por sabedoria, interpretação da Escritura e revelação a respeito do Redentor.

E o Menino Jesus recebia essa adoração com verdadeiro encanto e prazer, ao mesmo tempo em que amava intensamente Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1974)

Nossa Senhora de Guadalupe Padroeira da América Latina

No mundo inteiro fala-se da América Latina como um todo, tendo-se muito clara a noção de que ela constitui uma imensa família de nações, no sentido verdadeiramente católico das palavras.

Esse todo ainda está para ser esculpido pela Providência, a fim de tornar-se uma obra-prima da História. O fato de a América Latina ter uma Padroeira, mostra ser a unidade desse conjunto tão real que, nos domínios de Nossa Senhora, constitui um bloco à parte. E que a Santíssima Virgem tem sobre esse conjunto um desígnio supremo, de glória para Ela, vinculando ainda mais entre si os elementos que o constituem.

Tem-se a impressão de que a América Latina está reservada pela Mãe de Deus para ser a terra da glória do seu Reino. Assim, devemos pedir a Nossa Senhora de Guadalupe que realize o quanto antes em nós este desígnio, para que venha logo o Reino de Maria.

O luminoso caminho dos “flashes”

Evocando marcantes momentos de sua infância, Dr. Plinio prossegue na descrição das graças especiais que, como verdadeiros “flashes”, foram-lhe concedidas para discernir e amar as perfeições de Deus, de Maria Santíssima e da Igreja. Esses dons divinos, insistirá Dr. Plinio, longe de serem um privilégio, estão ao alcance de todos nós: basta que tenhamos o espírito atento para as belezas celestiais e seguirmos a radiosa trajetória que elas nos traçam.

 

Em anterior ocasião, narrei aqui alguns flashes que tive em menino, os quais me levaram a compreender a santidade e a divindade da Igreja.

“Flashes” com a pureza de Nossa Senhora

Também na infância, outras graças dessa natureza me foram concedidas, ao contemplar as imagens de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, e de Nossa Senhora do Bom Conselho, no Colégio São Luís.

Em ambos os casos não houve milagre, como se as imagens se movessem e se manifestassem a mim de modo extraordinário. Porém, elas me foram ocasião de graças sensíveis, à maneira das que recebemos, por exemplo, diante da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima( 1), cuja maravilhosa expressividade nos faz ter a sensação de que ela muda de fisionomia, como se quisesse nos dizer algo.

Assim, de modo análogo, junto àquelas imagens tive uma dupla noção, da realeza e da misericórdia de Nossa Senhora.

Poder-se-ia afirmar tratar-se da realeza da castidade. Maria Santíssima é a Soberana de todo esse setor do universo chamado pureza, de tudo capaz de ser considerado casto, com primazia para a alma humana. Nossa Senhora possui a castidade em grau tão supereminente, que todas as purezas abaixo da d’Ela não são senão pálida figura da sua virgindade.

E a pureza tem em si algo que é oposto, não contraditório, com a misericórdia. Porque a castidade é profundamente exclusiva. A pessoa pura constitui em torno dela uma espécie de halo que se chama pudor, uma distância de tudo que não seja casto. Ela é inquebrantável quanto à impureza, mostra-se altaneira em relação a esta e a afasta para longe. Donde entre o puro e o impuro se estabelecer uma situação parecida com a que se poderia imaginar numa cena da Revolução Francesa, entre a Rainha Maria Antonieta e um daqueles ferozes revolucionários. Ela representaria de algum modo a pureza, a ordem, e ele, a revolta, o partidário de toda feiura, sordície e más maneiras.

Tal cena exprimiria de maneira tênue a ideia de que realeza e pureza se casam com toda a intransigência inerente aos conceitos de ambas. Isto de um lado.

De outro, porém, Nossa Senhora possui insondável misericórdia, inclusive e principalmente para com o impuro. Embora faltoso, este continua sendo seu filho, e Ela o considera com seu ilimitado desvelo de Mãe, com sua incansável bondade, desejando perdoá-lo a todo momento, reerguê-lo e tirá-lo da charneca.

Ora, a conjunção de todas essas qualidades da Santíssima Virgem me falou na alma de forma inenarrável. E vi naquelas imagens d’Ela essas várias expressões. Marcou para minha vida inteira a devoção a Nossa Senhora, com a ideia de que Ela é um modelo a ser imitado custe o que custar, um auxílio no qual se deve confiar a todo preço, por pior que seja a situação. A bem dizer, ­duas incondicionalidades: na vontade de imitar, no propósito de esperar o perdão e a clemência.

Um muro de horror ao pecado

A graça de compreender e admirar a realeza da pureza de Nossa Senhora, cuja noção adquiri através desses flashes, veio trazendo dentro de si um verdadeiro muro de horror contra a impureza.

Para se entender essa afirmação, imagine-se uma pérola absolutamente branca. Qualquer grão de poeira que se deposite sobre ela a deprecia, porque macula em algum ponto aquela alvura, quebra sua homogeneidade. Assim, a virtude da pureza imaculada, ilibada, traz consigo o padrão do muro de horror contra a impureza e, por extensão, também contra tudo quanto é erro e mal. Por exemplo, entre o deplorável defeito da inveja e a virtude contrária (isto é, a admiração e a alegria pelos dons concedidos por Deus a outros), há um muro de horror semelhante àquele da relação pureza-impureza.

Essa parede de aversão se repete ao longo de toda a muralha das virtudes, sobretudo no tocante à principal delas, a Fé, face ao pecado que a ela se opõe: a heresia.

Por definição, a Fé é tão casta que, muitas vezes, quando a Escri­tura se refere a alguém que pecou contra essa virtude, afirma ter ele ­caído na impureza. E quando o Antigo Testamento nos apresenta os judeus praticando atos impuros no alto das montanhas, alude com isso ao pecado de apostasia que eles cometiam ao adorar ídolos postos naqueles locais. Ou seja, entregar-se à idolatria é cometer atos impuros, é pecar contra a Fé.

Em contrapartida, a Santa Igreja, guardiã da verdadeira Fé, é a Mãe casta, virgem e reta, a santa, a ilibada, que nos leva à pratica da virtude e à repulsa ao vício.

Certo estou, portanto, de que naqueles momentos dos meus flashes com Ela, Nossa Senhora me concedeu a graça de edificar em minha alma esse muro de horror ao pecado. Muro este que todos devemos procurar desenvolver em nosso interior, em relação a qualquer defeito e pecado que nos afastam do caminho da santidade.

“Flashes” que se desdobram em princípios

A esse propósito, alguém poderia me indagar: “Para se criar esse muro de horror, importa ter tido antes um flash?”

O flash produz necessariamente o muro do horror. Porém, com freqüência este último é obtido através do estudo da boa doutrina, feito de modo sério por uma alma honesta que deteste o vício e o mal, embora não tenha recebido a graça sensível que chamamos de flash. Entretanto, a meu ver, na vida espiritual de uma pessoa é indispensável haver certo número de flashes, a fim de que ela construa de maneira profunda essa muralha de repulsa ao pecado. E para minha cara “geração nova”(2), o flash é uma graça particularmente valiosa, devido à própria contextura de seu espírito.

Agora, os flashes devem se desdobrar em princípios, os quais cumprem ser, não analisados como coisa geométrica, mas amados. Quer dizer, compreendendo uma verdade a partir do flash, é necessário amá-la e detestar o erro oposto. Nesse sentido, lembra-me um Salmo que diz: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso Deus me ungiu com seu óleo santo”. Na linguagem da Escritura, a justiça é o símbolo de todas as virtudes, e a iniquidade representa o conjunto dos erros. A unção da qual fala o Salmo seria, pois, o flash que torna a alma articulada, leve, aromatizada, azeitada para a prática do bem.

Trilhando o caminho dos “flashes”

Para concluir essas considerações, é oportuno dizer que cada um, com a peculiaridade de seu espírito e a riqueza de sua personalidade, em relação aos flashes deve ir apalpando e tateando suas impressões, a fim de procurar seguir um caminho análogo ao que trilhei. Esforçar-se em lembrar dessas graças recebidas, explicitar as sensações que causaram, de maneira a saber dizer qual foi sua substância e, posteriormente, estabelecer correlações e princípios.

Assim foi como procedi: recordei meus flashes de menino, explicitei-os, compus com eles um quadro de impressões, de correlações e conceitos: a santidade da Igreja, a realeza da virgindade de Maria Santíssima, etc.

Naturalmente, cada alma realiza essa operação num movimento que lhe é próprio. Não pretendo que façam como eu, mas acredito ser este um bom método para, efetuando as necessárias adaptações, seguir esse luminoso “caminho dos flashes”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Essa imagem verteu lágrimas em Nova Orléans (EUA), em 1972. Em suas peregrinações através do mundo, passou diversas vezes pelo Brasil, sendo aqui venerada por Dr. Plinio e seus discípulos.

2 ) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”.

Vitoriosa sobre os demônios

O demônio foi vencido por Maria uma primeira vez quando Deus anunciou que esta mulher esmagaria sua cabeça. Foi vencido quando Ela foi concebida imaculada. Foi vencido quando esta santíssima e augustíssima Virgem deu à luz o Filho de Deus feito homem, Aquele que vinha sobre a terra para destruir, por sua própria morte, o império da morte de satanás.

Ele foi vencido durante séculos, e o será até o fim dos tempos, por Maria, que não cessa de lhe arrebatar suas vítimas, desfazer suas ciladas, e de pôr freio às suas violências. Somente o nome de Maria basta para fazê-lo tremer; uma invocação a esta Rainha toda poderosa, a esta Mãe misericordiosa, basta para obrigá-lo a fugir.

Vitoriosa sobre os demônios, Maria o é, pela mesma razão, sobre todos os inimigos de Deus, porque destes é chefe o demônio, cuja vontade eles executam.

Pe. Zéphyr-Clément Jourdain

Os ódios sapienciais do Imaculado Coração de Maria – I

Maria Santíssima é toda cristalina, feita de suavidade e de pureza, dir-se-ia ser uma alma incapaz de odiar. Entretanto, pelo próprio amor insondável que Ela tem a Deus, é impossível que não odeie o que é contrário a Ele.

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e o ponto de referência de todos os elogios feitos a Deus. Não podemos conceber um louvor de Deus perfeito que não tenha a Ela como ponto de referência.

O caminhar do espírito humano

O espírito humano caminha para a cognição de “proche en proche” – de próximo em próximo, mas nesse caminhar, qual é o próximo d’Aquele que é eterno, absoluto, perfeito, infinito, transcendente em relação a qualquer criatura? Deus mora, a um título muito especial, no interior das criaturas por Ele amadas. Então, como Ele habita em Nossa Senhora, que é tão especialmente objeto de seu amor?

N’Ela temos o modo de nos tornarmos mais próximos de Deus. Embora Ele seja inacessível, fica ao alcance de nossa mão, porque habita em nossa Medianeira. Sendo Ela o Palácio da Trindade, o Paraíso do Homem-Deus, por meio d’Ela podemos ter com Ele aquele contato sem o qual nada somos.

Por essa razão, para exaltar qualquer perfeição divina, até mesmo a sagrada cólera d’Ele, não podemos tratar disso sem falar a respeito d’Ela.

Quando um indivíduo peca e se fixa irreversivelmente no pecado, torna-se odioso

Como medir a cólera do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria? Como podemos sequer conceber o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria em cólera? Parece que as expressões são contraditórias, antitéticas. N’Ela não pode haver cólera, Ela é toda cristalina, toda feita de suavidade, de pureza. A cólera parece uma vibração de indignação, do amor de si mesmo contrariado, do egoísmo vilipendiado. Como se pode conceber disposições de alma tão baixas n’Aquela criatura que é toda Ela elevação?

A quem e como Nossa Senhora odiou? Costuma-se dizer que Ela odiou o pecado. É verdade. Mas o pecado só existe na pessoa do pecador. Não há um pecado tomado em abstrato. Antes de Adão e Eva pecarem, não havia pecado, pois não havia pecadores. Existia uma possibilidade de alguém pecar. Então, poder-se-ia odiar essa possibilidade, mas o ódio não teria como objeto um ser existente. Se Adão e Eva tivessem esse ódio ao pecado, enquanto sendo uma eventualidade, teriam encontrado mais recursos de alma para não pecarem.

Maria Santíssima odeia em todos os pecadores aquilo que é pecado e ama os pecadores, pois ama neles a possibilidade que, por disposição divina, têm de se arrepender. Mas a situação atual do pecador, enquanto permanecendo no estado de pecado, Ela odeia.

Como Ela odeia? Como nós podemos imaginar os ódios do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria?

Tenho a impressão de que com o pecado e com a virtude há quintessências. Alguns pecadores, por assim dizer, levaram tão longe o pecado quanto uma criatura humana pode levar a virtude. E, ao pé da letra, pecaram tanto quanto podiam, isto é, quanto estava na condição deles pecarem. Sendo criaturas muito elevadas, tiveram a possibilidade de pecar de modo muito abominável. Diz o ditado popular: quanto maior é a altura, tanto maior é a queda.

Assim, houve criaturas de uma natureza muito elevada chamadas por Deus a emitir um reflexo magnífico das três Pessoas Divinas. No momento em que pecaram e se fixaram irreversivelmente no pecado, essas criaturas tornaram-se odiosas. Ao ser criada, e tendo tomado conhecimento dessas criaturas e da hediondez do pecado por elas cometido, Nossa Senhora não foi em relação a elas senão ódio.

Maria Santíssima toma em consideração que o pecador forma um todo só com o pecado, assim como a pessoa virtuosa forma um todo só com a virtude. É mais ou menos como a pessoa feia e a feiura; como também a beleza constitui um todo com a pessoa bela. Tanto a beleza quanto a feiura são inerentes ao ser da pessoa.

Assim também o pecado, com a diferença de que este é livremente escolhido pelo pecador; e nisso a pessoa tem exatamente a nota mais humilhante, pois ela viu e aderiu àquilo por sua própria vontade.

O ódio se mede pelo amor

Então, pelo próprio amor insondável que Nossa Senhora tem a Deus, é impossível que Ela não odeie completamente aquele ser ao vê-lo como sendo o contrário do Criador. Para cada pecador a quem a Divina Justiça selou o destino e condenou ao Inferno, Maria Santíssima pode dizer as palavras da Escritura: “Eu te odiei com ódio perfeito!” (cf. Sl 138, 22). É um ódio ao qual não falta nada.

Esse ódio é feito de uma concepção retíssima e nobilíssima de como aquele ente deveria ser, pois Nossa Senhora conhece o modo único pelo qual aquela criatura deveria ser a imagem e semelhança de Deus, e ama muito aquilo. Ao ver que aquele ser rejeitou essa perfeição, transformando-se voluntariamente no contrário, Ela percebe que ele atingiu o requinte de sua própria maldade e o odeia completamente, por amor àquela mesma perfeição que Ela contempla em Deus.

É forçoso que, amando-se algo muito, se odeie igualmente o contrário. O ódio e o amor se acompanham como a figura e a sombra.

Os pés puríssimos de Nossa Senhora calcam os precitos com ódio

Poderíamos imaginar Nossa Senhora na presença de Deus e, diante d’Ela, uma alma que será julgada. Se for uma pessoa virtuosa, Ela a considera com amor e diz: “Filho meu, como te pareces comigo e com os dons que Deus pôs em Mim! Quero oscular-te, meu filho, dá-me tua fronte!”

De repente, aparece a alma de um pecador empedernido, trazendo o sinal do demônio na testa. Evidentemente, toda aquela força de atração se transforma em repulsa, e as palavras de carinho tornam-se increpação: “Eu desvio de ti minha face, tenho horror ao semblante que apresentas, ele causa-Me asco e indignação. Quero calcar aos pés a deformidade que por teu pecado assumiste, como calco a serpente eternamente!”

Poder-se-ia pintar um quadro representando a Santíssima Virgem calcando aos pés cada um dos réprobos que estão no Inferno porque, de fato, sobre eles pesa eternamente o ódio total e implacável d’Ela. E tendo Ela como uma de suas glórias pisar sobre os precitos, poderia dizer a Deus: “Faço-Vos este ato de reparação, meu Criador, que sois meu Pai, meu Filho e meu Esposo! Esses miseráveis quiseram ser o contrário de Vós, por isso meu pé puríssimo, elemento integrante e executivo da mais alta criatura que vossa Sabedoria e vosso Poder engendraram, calca-os com ódio, e Eu entoo o cântico de cólera e de triunfo de todos os justos no Céu e na Terra!”

Ela teve vontade de punir Salomão, que levou à perdição o povo eleito

Dos múltiplos exemplos que se poderiam apresentar, não há nenhum que me cause tanto arrepio quanto Salomão, o filho bem-amado, o rei que recebeu de Davi a coroa e a missão. Davi deixou prontos os materiais e os planos para a construção do Templo, mas foi Salomão quem teve a glória de construí-lo. Salomão, que é o autor do Livro da Sabedoria, entretanto prostituiu-se a ponto de adorar ídolos, transformar-se num devasso e morrer na libertinagem e na apostasia. Como era possível que uma alma de tal maneira decaísse daquele pináculo? Esse homem, que escreveu as palavras ditadas pelo Espírito Santo para serem comunicadas à humanidade, de repente transforma-se nesse vaso de abominação!

Ao ler no Livro da Sabedoria a narração da construção e inauguração do Templo, de que amor a alma santíssima de Maria deveria se sentir cheia! Era um perfeito reflexo do amor de Deus e quanta glória deveria dar a Ele!

Contudo, ao considerar a narrativa da queda de Salomão, como poderia não sentir um ódio tão grande quanto o amor por Salomão na sua justiça? Como não sentir náusea, asco, repulsa, vontade de rejeitar e de punir aquele que de tal maneira se tornou inimigo de Deus, levando à perdição o próprio povo eleito?!

Horror implacável a toda forma de pecado

Sabe-se que houve Santos que, ouvindo os penitentes em Confissão, sentiam o mau odor dos pecados cometidos por aquelas almas.

Quando o mau odor resulta simplesmente da negligência da pessoa no trato do próprio corpo, causa uma particular repulsa. Ninguém tem culpa pelo mau cheiro do corpo provocado por alguma doença, mas ser negligente e não ter horror ao mau odor de si mesmo já é uma forma de conivência que contagia de algum modo a alma com aquele mau odor físico.

Por exemplo, uma pessoa que por negligência nunca escove os dentes e tenha, por isso, um hálito abjeto. Ela sabe que, se escovasse os dentes, o mau hálito cessaria, mas não os escova porque não tem horror ao mau gosto e ao mau odor de sua boca. Somos levados a pensar que essa alma tem conaturalidade com certos defeitos morais, e ficamos com horror ao corpo que leva a um horror à alma, enquanto esta não tem aversão àquilo que para o corpo é horrível.

Ora, o pecador que poderia e deveria eliminar o seu pecado, mas se deixa ficar nesse estado, tem incomparavelmente mais culpa e é mais aderente ao mau cheiro de sua alma do que ao mau hálito de sua boca.

Imaginem Nossa Senhora sentindo o mau odor da alma de Salomão, por exemplo, que Ela, a posteriori, terá conhecido por completo. Salomão, cujas palavras deveriam ter o perfume do incenso ao ser queimado, o aroma dos frutos quando chegam à maturidade, após sua prevaricação ficou com o cheiro abjeto de todas as putrefações.

Se isso é assim, podemos compreender, então, o implacável horror de Nossa Senhora a toda forma de pecado.

Maria Santíssima conhece até mesmo o que é oculto

Assim também a Santíssima Virgem, a Quem nada era oculto, conhecia perfeitamente a abjeção a que tinha caído sua nação no tempo em que Ela nasceu. Ela sabia que o Messias estava por nascer naquela ocasião, mas via a que auge de degradação chegara o povo judeu. Nossa Senhora não podia deixar de ter, com muito mais lucidez do que o profeta, aquela visão de Ezequiel quando foi conduzido para dentro do Templo e viu em seus recintos ocultos os sacerdotes praticando idolatria, porém diante do povo fingiam adorar o Deus verdadeiro.

Ora, Maria Santíssima sabia que a classe sacerdotal se preparava para cair no abismo do deicídio, e seria a promotora mais ativa de todas as calúnias contra Nosso Senhor. O Sinédrio era propriamente a força deicida dentro de Israel.

Devemos imaginar a Virgem Maria menina entrando para o serviço do Templo, aos três anos de idade, e presenciando esta realidade bivalente: a casa de Deus, onde a glória d’Ele habita, os justos vão rezar, seu Divino Filho iria ensinar, ou seja, todo o Templo era uma espera ansiosa do Messias que deveria vir; e, ao mesmo tempo, Ela via, ao lado do culto verdadeiro, o culto secreto, disfarçado, abominável, e a prevaricação de toda a classe sacerdotal.

Alguém objetará:

— Mas Ela só tinha três anos!

Eu respondo:

— Ela era Nossa Senhora…

Não tem outra resposta a dar. Ela já conhecia tudo.

Com que enlevo Ela penetrou na casa de Deus! Qual não terá sido o cântico dos Anjos ao verem se aproximar Aquela de Quem nasceria o Salvador e que era a nova Arca da Aliança, da qual a arca guardada no Templo, com tanto respeito, era apenas uma prefiguração!

Reação das almas diante de Nossa Senhora menina

Podemos imaginar uma ou outra alma boa que havia por ali, quiçá a Profetisa Ana, o Profeta Simeão, e que, por premunições misteriosas, observando aquela criança diriam: “Que grande chamado tem essa menina!” Vendo-A passar no cortejo das outras meninas educadas para o serviço do Templo, talvez percebessem ser uma intercessora incomparável junto a Deus, e a Ela se dirigiam implorando os favores celestes. E a futura Mãe de Deus, por uma dessas correspondências internas da alma, dava a entender: “Eu tenho consonância contigo, tu és um comigo”. E aquela alma se banhava de alegria!

Provavelmente alguns faziam sua vida girar em torno d’Ela. Sabendo nas várias ocasiões do dia onde Nossa Senhora estava, olhavam para um quarto, por exemplo, para ver se Ela apareceria na janela; ou verificavam de que recinto a Menina saíra para poderem entrar lá logo depois, e por esta forma viver em Maria, com Maria e por Maria, que era uma forma antecipada de viver em Cristo, com Cristo e por Cristo.

Assim, deveria haver em torno da Santíssima Virgem almas fervorosas às quais Ela impulsionava ainda mais para o bem, elevando-as a um píncaro de santidade para elas inimaginável. Outras que eram boas, mas postas na mediocridade, a quem Ela convidava a um voo possante rumo à perfeição que deveriam ter atingido, mas não atingiram. A cada uma dessas a presença d’Ela dizia: “Ou tu Me amas, ou te atolas. Tua hora chegou! Vem, minha filha!”

Por fim, havia também os filhos de satanás, abominando qualquer forma de verdade, de bem ou de beleza, e que, ao sentir a presença d’Ela, dentro deles o demônio grunhia, encobria-se, efervescia, tinha medo, sentia a necessidade de abandonar a presa e sair fugindo, mas armava a alma daqueles malditos contra Ela.

Teve ódio e foi odiada

Se um bom católico no mundo de hoje divide, como não supor que Nossa Senhora não dividisse? Não podia deixar de haver no Templo, além dos amigos da Virgem, os inimigos que desviassem d’Ela o olhar, sentissem mal-estar perto d’Ela, A odiassem, tentassem eventualmente caluniá-La ou difamá-La, procurassem de todos os modos ser-Lhe nocivos, invocassem demônios para tentá-La, prová-La, recusassem-Lhe alimentos, enfim, A sabotassem de todos os modos. Salvo por uma disposição especial da Providência, isso deve ter sido assim. E tanto as almas que eram a favor d’Ela quanto as contrárias acabavam se articulando. Portanto, Nossa Senhora, no Templo, fez a Contra-Revolução oposta à Revolução que se preparava contra o Filho d’Ela.

Estas são hipóteses que se constelam em torno da Santíssima Virgem Maria e nos fazem entender o que foi a vida d’Ela, o papel que o ódio representou em sua vida desde a primeira infância.

Levo minha suposição mais longe: creio que Nossa Senhora, quando estava no claustro maternal de Santa Ana, já causava mal-estar nos que eram de satanás. O demônio, a partir do momento em que Maria Santíssima foi concebida, começou a perseguir Santa Ana de um modo especial, surgiram antipatias, ódios, como também venerações e simpatias, antes mesmo de se perceber que ela concebera uma criança. De tal maneira Nossa Senhora é o contrário do demônio, que ele tinha que sentir a irradiação da pessoa d’Ela, instigando contra Ela o ódio daqueles em quem ele habitava. Não é possível que não fosse assim.

Vemos, portanto, que, desde o primeiro instante de seu ser, Ela teve ódio e foi odiada. Essa compressão e descompressão do ódio e do amor representaram a própria trama da existência d’Ela.    v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/7/1980)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

Sublimidade e pureza

O espírito revolucionário, essencialmente igualitário e impuro, execra tudo quanto é sublime e casto; tem amor ao banal, ao trivial, quando não ao degradado. Por isso grande foi o ódio suscitado nos revolucionários por ocasião da proclamação do dogma da Imaculada Conceição de Maria.

 

Temos um trecho de uma encíclica de São Pio X(1) onde, ao tratar a respeito do dogma da Imaculada Conceição, depois de discorrer sobre a atual negação do pecado original e suas consequências, o Santo Padre diz:

Anarquismo, a mais perniciosa doutrina…

Ora, creiam os povos e professem que a Virgem Maria foi preservada de toda mancha de pecado desde o primeiro instante de sua conceição: desde logo torna-se-lhes mister admitir o pecado original, a redenção da humanidade por Jesus Cristo, o Evangelho e a Igreja, enfim a lei do sofrimento. Em virtude disto, todo racionalismo e materialismo que campeiam pelo mundo são arrancados e destruídos em suas raízes, cabendo à sabedoria cristã a glória de ter guardado e defendido a verdade.

Além disto, é vezo perverso e comum a todos os inimigos da fé, sobretudo em nossa época, proclamar que se devem repudiar todo respeito e toda obediência à autoridade da Igreja, mesmo de todo poder humano, na crença de que logo lhes será mais fácil banir a fé dos corações.

Aqui está a origem do anarquismo, a mais nociva e perniciosa doutrina que possa existir, tanto na ordem natural quanto sobrenatural. Ora, tal peste, fatal tanto à sociedade como ao nome cristão, baqueia ante o dogma da Imaculada Conceição de Maria, pela obrigação que lhe impõe de atribuir à Igreja um poder em face do qual tem que se curvar não só a vontade, mas também a inteligência. Pois é em virtude de uma tal submissão que o povo cristão canta este louvor da Virgem: Toda bela és, Maria, e não há em Ti a mancha original.2 Daí se justifica uma vez mais o que a Igreja afirma da Virgem, dizendo que “só Ela extirpou todas as heresias do mundo inteiro”.

…e a extrema ponta da Revolução

Esse trecho é de uma riqueza de conteúdo de pensamento que merece ser explanado e resumido. São Pio X tem em vista mostrar como a aceitação do dogma da Imaculada Conceição, por parte dos fiéis, é um remédio para aquilo que, no ensaio Revolução e Contra-Revolução, nós chamamos a Revolução.

Nessa obra apontamos o anarquismo como a fórmula mais avançada da Revolução. Quer dizer, aquele estado de coisas para o qual o comunismo visa caminhar. Os comunistas dizem que deve haver passageiramente uma ditadura do proletariado. Mas, depois que essa ditadura tenha modelado os homens de acordo com as intenções comunistas, os homens estarão num tal grau de evolução, de “perfeição”, que eles não precisarão mais de leis, de cárceres, não cometerão mais crimes, não farão guerras e não haverá necessidade de governo. E então é uma anarquia. Não no sentido de um pandemônio, de uma desordem, mas de uma ordem sem lei onde todos os homens são reis de si próprios, nenhum obedece a outro e reina uma liberdade, uma fraternidade e uma igualdade completas.

Ora, diz São Pio X – a formulação dele empregada aqui é muito interessante – que não se pode conceber um erro pior do que o anarquismo. Não é uma afirmação de caráter histórico – nunca apareceu um erro tão ruim quanto o anarquismo –, mas de caráter doutrinário. Quer dizer, se um homem mais do que perverso e corrompido procurasse o pior dos erros, na ordem do possível, ele não encontraria um pior do que o anarquismo. Portanto, ele é a extrema ponta da Revolução e, segundo este Papa santo, o pior dos erros concebíveis.

Indignação até em meios católicos

Afirma São Pio X que a admissão do dogma da Imaculada Conceição tem como resultado para os homens a aceitação da autoridade da Igreja, pois o modo pelo qual eles sabem que Nossa Senhora foi concebida sem o pecado original é o ensinamento da Igreja. Ela ensina porque se fundamenta no Evangelho. Logo, é a aceitação do Evangelho e, consequentemente, da Revelação e da ordem sobrenatural. É a submissão a um poder diante do qual se devem dobrar não só os atos externos do homem, mas os internos; não apenas os atos da vontade, mas os da inteligência. Portanto, a atitude mais contrária ao anarquismo que possa existir.

O Pontífice mostra como o ato de fé na Imaculada Conceição é soberanamente eficaz para extirpar da alma humana todas as raízes da Revolução, e aplica a Nossa Senhora aquela frase muito bonita que se encontra na Liturgia: “Tu só é que extirpaste todas as heresias do mundo inteiro”. Ou seja, a Santíssima Virgem, pela sua Imaculada Conceição, calcando aos pés a cabeça do dragão, pai das heresias, eliminou-as do mundo inteiro e luta, através de todos os séculos da vida da Igreja, para a extirpação de todos os erros. Eis a ideia contida nesse esplêndido trecho de São Pio X.

Quando o dogma da Imaculada Conceição foi definido por Pio IX, houve na Europa uma verdadeira tempestade de ódios, protestos, indignação que atingiu não só os não católicos, mas também os católicos. Em muitos meios católicos houve um furor porque esse dogma tinha sido definido. Como explicar essa atitude?

Ódio igualitário

Segundo esse dogma, a Virgem destinada a ser a Mãe de Deus foi concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser. Essa indignação contra a Santíssima Virgem, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e Mãe da Igreja, explica-se pelo ódio igualitário por vê-La colocada no ponto mais alto em que uma mera criatura possa estar. Ademais, por ser uma mulher, o arbítrio de Deus se apresenta de um modo muito mais forte, porque toma na ordem humana o elemento geralmente considerado secundário e o coloca no alto de toda a pirâmide da Criação. Isso contunde enormemente o espírito igualitário.

Entretanto, fere muito aos igualitários também o fato de que Maria Santíssima tenha sido objeto de uma exceção a uma regra, para a qual nunca houve exceções. A ideia de uma mulher sem pecado original, quebrando uma regra universal e colocada, portanto, numa altura enorme em relação a todos os seres humanos, dá aos revolucionários um verdadeiro furor.

Mas essa fúria tem também outra causa. Não é só por seu aspecto anti–igualitário que a Imaculada Conceição é odiada. Acrescenta-se a isso um ódio do vulgar em relação ao sublime.

Essas verdades – Nossa Senhora concebida sem pecado original, Virgem e Mãe de Deus –, consideradas no seu conjunto, correspondem à sublimidade de um ser de tal maneira puro, imaculado, elevado acima de tudo quanto se possa imaginar, tão virginal no mais recôndito de si mesmo – por não ter nenhum dos impulsos que, mesmo num santo, podem representar o aguilhão da carne.

Nem a isso o ser d’Ela está sujeito, é algo de tão transcendente em matéria de sublimidade, tão alto e requintado em questão de pureza, tão excelso como condição humana, e tão diferente da nossa própria condição, que fica apresentada à nossa admiração uma figura imensamente maior do que nós, pela qual temos uma ideia da sublimidade a que Deus pode elevar a criatura humana, mas à qual nós não fomos elevados.

O requinte da bem-aventurança

Daí decorre para todo o gênero humano uma espécie de honra e de glória que esbarra diretamente no espírito revolucionário, o qual odeia tudo quanto é sublime e elevado, não somente por ser ele igualitário, mas por uma outra expressão do igualitarismo que é o amor ao banal, ao trivial, quando não ao degradado. Por isso os revolucionários têm um verdadeiro ódio à Imaculada Conceição de Maria.

Esse furor contra a Imaculada Conceição encontra outra expressão no ódio que as pessoas, movidas pelo espírito das trevas, têm àqueles que, como nós, procuram praticar a virtude, particularmente no que tange à pureza, compostura e dignidade.

Tais pessoas são capazes de espalhar as piores calúnias a nosso respeito, só porque guardamos a castidade perfeita. A compostura, a nobreza, a distinção de trato, mesmo daqueles que são de uma condição mais modesta, chama a atenção de todos e atrai a simpatia dos bons. Contudo, aos maus causa um verdadeiro ódio à sublimidade da causa que defendemos. Aqueles que gostam da trivialidade nos detestam porque não somos vulgares e procuramos orientar os espíritos para o alto, comunicar às nossas pessoas a atitude e dignidade de filhos de Deus e de Nossa Senhora, no que se reflete algo da realeza da própria Santíssima Virgem. É precisamente isso que os indigna.

Razão para nós de alegria, porque uma das bem-aventuranças é ser perseguido por amor à justiça. Mas dentro desta bem-aventurança há uma especial, que é como o requinte da bem-aventurança: ser perseguido por amor a Nossa Senhora e pelas mesmíssimas razões pelas quais Ela é odiada.

Aproximando-nos da festa da Imaculada Conceição, peçamos a Maria Santíssima cada vez mais essa bem-aventurança de sermos tão unidos a Ela e trazermos em torno de nós de tal maneira a sua expressão, que se possa afirmar ser realmente por causa de nossa semelhança com Ela que somos odiados.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 2/12/1964 e 6/12/1965)
Revista Dr Plinio 237 – Dezembro de 2017