A Cooperação de Nossa Senhora com seu Filho

Na seqüência de suas considerações sobre o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos convida a contemplar as “maravilhas de graça” operadas em Nossa Senhora, cujo claustro materno tornou-se, durante nove meses, a paradisíaca habitação de Deus.

 

Escreve São Luís no tópico 16 do Tratado:

Deus Filho desceu ao seu seio virginal qual novo Adão no paraíso terrestre, para ai ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça.

Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação de Deus Filho em Nossa Senhora. Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe sua carne e seu sangue, e assim foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d’Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, sua carne e seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar uma maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o seu consentimento, para depois dar sua carne, seu sangue e, portanto, algo de seu próprio ser.

Maria criou, governou e ofereceu Jesus em holocausto

…Encontrou sua liberdade em ser aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou sua força em se deixar levar por esta Virgem santa…

Foi vontade de Deus Pai que Nosso Senhor ficasse contido n’Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graças só por Ela conhecidas. E foi dentro d’Ela, como no interior de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Pai Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus Pai recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo o mais perfeito ato de amor que jamais se deu na Terra. Ninguém nunca prestou-Lhe um ato de amor tão excelso quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O Santo mostra ainda como Jesus, que era Senhor onipotente, contido em Nossa Senhora, deixou-se transportar por Ela, não só pelas montanhas da Judeia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Maria o quis.

…Achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo. Para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até a morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão á vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.

Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus!… Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em sua infância, durante a qual Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança; e quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como menino, do qual Ela cuidava como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de sua vida junto d’Ela, e consagrando aos homens somente três.

Por fim, Ela O levou até o alto da cruz e, ali, ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou, criou, acariciou e finalmente acompanhou a vítima ao altar do sacrifício, onde Ela mesma o imolou, como diz o Santo autor. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela aceitou que Ele sofresse tudo o que padeceu, e morresse da maneira como expirou.

Dediquemos mais tempo a Nossa Senhora, a exemplo de seu Divino Filho

Há aplicações maravilhosas para nossa espiritualidade a tirar desse fato: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com a Virgem Santíssima e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que este é muito mais importante que a nossa união com a Mãe de Deus, de tal modo que dedicamos nosso quarto de hora de oração a Ela, e, o restante do tempo a nosso “enorme” apostolado?

Nosso Senhor nos dá exemplo do contrário. Tempo dado à união como Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem — “homenagem” de um Deus, a palavra parece até absurda —, de glória para a Virgem, o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d’Ela, dedicando apenas três à realização de sua missão. E entender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a uma imagem de Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que, amiúde, interrompamos nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria Santíssima com esta intenção: imitar Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de fazê-lo, embora seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que sempre tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, para que possamos utilizá-los quando as ocasiões se apresentarem.

Convicção e resolução em nosso amor, não mera sensibilidade…

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, a bazófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Importa, sim, ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso recorremos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão anipula, isso sim é verdadeirasi um tabernáculo admirável, “como Adão no Paraíso”. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção Ambientes, Costumes, Civilizações, que nós escrevemos, sobre a importância da beleza e a propriedade dos ambientes. Estando no seio virginal de Nossa Senhora, Jesus encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais: havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe eram perfeitos, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante este período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, neste período, Nossa Senhora vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse tempo, havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade enmente a seriedade na vida espiritual. O que desejamos é produzir convicções profundas, construir uma estrutura de espírito útil à vida de piedade, e não apenas fabricar uma faísca passageira de emoção mariana.

União inexprimível entre Mãe e Filho

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de sua gestação, enclausurou-se no ventre puríssimo de Nossa Senhora, e aí encontrou para tre Eles e o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de seu corpo, correspondia da parte d’Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica?

O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. E assim como, colocados diante do céu físico, contemplamos inúmeras pulcritudes que enriquecem nossa alma, no universo de verdades da Santa Igreja poucas maravilhas podemos considerar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana, como era a de Nossa Senhora, com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da sua Encarnação.

Assim, nos é dado ter uma ideia da intimidade que também nós podemos adquirir, pela nossa santificação, com Nosso Senhor; faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e faculta-nos a apetência de uma maior união com Jesus Cristo.

Essas considerações não podem ficar no vácuo. Na vida espiritual devemos propriamente desejar esses dons sobrenaturais, a união com Deus e os bens eternos!

 

 

Erguei-Vos, Senhor!

Já fizemos ver que nossos dias  se inserem no longo processo histórico iniciado com o humanismo, a renascença e o protestantismo, acentuado fundamente com o enciclopedismo e a Revolução Francesa, e por fim com a transformação dos povos cristãos em massas largamente trabalhadas pelos fermentos da imoralidade, do igualitarismo, do indiferentismo religioso ou do ceticismo total.

A descristianização é o signo sob o qual estão colocados todos os fatos dominantes ocorridos no Ocidente, do século XV a nossos dias. Cessada aquela por um movimento inverso, teremos passado de um conjunto de séculos para outro.

Era precisamente um fato desta amplitude, um corte no processo descristianizante e um surto da religião sem precedentes, que São Luís Maria Grignion de Montfort — autor do “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem” — implorava, esperava e, disto estamos certo, obteve.

O meio para se chegar a este triunfo será uma congregação toda consagrada, unida e vivificada por Maria Santíssima. O que seja propriamente essa congregação, na mente do Santo, não se pode afirmar com certeza absoluta.

Em certo sentido, parece uma família religiosa. Mas há também aspectos por onde se poderia pensar diversamente. De qualquer forma, essa congregação será o instrumento humano para implantar o Reino de Maria.

Essa misteriosa congregação, que será uma “assembléia, seleção, escolha de predestinados feita no mundo e do mundo; rebanho de pacíficos cordeiros a serem reunidos entre lobos; companhia de castas pombas e águias reais entre tantos corvos; batalhão de leões destemidos entre tantas lebres tímidas” [palavras de São Luís Grignion no “Tratado…”], essa congregação só pode ser  constituída por uma ação fecunda da graça nas almas dos que devem compô-la. Mas para Deus nada é impossível: “Ó grande Deus, que podeis fazer das pedras brutas outros tantos filhos de Abraão, dizei uma só palavra como Deus, e virão logo bons obreiros para a vossa seara, bons missionários para a vossa Igreja. Lembrai- Vos de dar a vossa Mãe uma nova Companhia, a fim de por Ela renovar todas as coisas, e terminar por Maria Santíssima os anos da graça, assim como por Ela os começastes”. Como se sabe, companhia significava, no tempo de São Luís, regimento ou batalhão.

Foi neste espírito que Santo Inácio chamou Companhia de Jesus seu Instituto. São Luís Maria concebia a sua Companhia como essencialmente militante. Ela será como que um prolongamento de Nossa Senhora, em luta permanente e gigantesca com o Demônio e seus sequazes: “É verdade que há de haver grandes inimizades entre essa bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça maldita de Satanás; mas é essa uma inimizade toda divina, a única de que sejais autor. Porém esses combates e perseguições dos filhos da raça de Belial contra a nação de vossa Mãe Santíssima só servirão para melhor fazer resplandecer o poder de vossa graça, a coragem da virtude de vossos servos e a autoridade de vossa Mãe, pois que Lhe destes desde o começo do mundo a missão de esmagar esse soberbo, pela humildade de seu Coração”.

Este tópico é dos mais importantes, de vez que mostra a modernidade da Companhia, de seu apostolado militante, de seu espírito profundamente — quase diríamos sumamente — marial.

Esses apóstolos, “por seu abandono à Providência e pela devoção a Maria Santíssima terão as asas prateadas da pomba, isto é, a pureza da doutrina e dos costumes; e douradas as costas, isto é, uma perfeita caridade para com o próximo, para suportar-lhe os defeitos; e um grande amor a Jesus Cristo, para levar sua cruz”.

Mas essa devoção marial e essa caridade se realizarão numa pugnacidade extrema, decorrência da própria devoção marial. Com efeito, serão eles “verdadeiros servos da Santíssima Virgem, que, como outros tantos São Domingos, vão por toda parte com o facho lúcido e ardente do Santo Evangelho na boca, e na mão o Santo Rosário, a ladrar como cães fiéis contra os lobos que só buscam estraçalhar o rebanho de Jesus Cristo; que vão ardendo como fogos e iluminando como sóis as trevas do mundo”. E por isto São Luís Maria multiplica as metáforas e adjetivos alusivos à  combatividade dos membros da congregação: “águias reais”, “batalhão de leões destemidos”, terão “a coragem do leão por sua santa cólera e seu ardente e prudente zelo contra os demônios e filhos de Babilônia”.

E é essa falange de leões que ele pede a Deus no tópico final de sua oração: “Erguei-Vos, Senhor: por que pareceis dormir? Erguei-Vos em todo o vosso poder, em toda a vossa misericórdia e  justiça, para formar-Vos uma companhia seleta de guardas que velem a vossa casa, defendam vossa glória e salvem tantas almas que custam todo o vosso sangue, para que só haja um aprisco e um  Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na “Última Hora”, Rio de Janeiro, 10/9/84)