Vós fostes, Senhor

“Vós fostes, Senhor, um modelo de paciência. Vossa paciência não consistiu, entretanto, em morrer esmagado debaixo da Cruz, quando Vo-la deram.

Conta uma piedosa revelação que, quando recebestes das mãos dos verdugos vossa Cruz, Vós a beijastes amorosamente, e, tomando-a sobre os ombros, com invencível energia a levastes até o alto do Gólgota. Dai-nos, Senhor, essa  capacidade …. de sofrer heroicamente, não apenas suportando o sofrimento, mas indo ao encontro dele, procurando-o e carregando-o, até o dia em que tenhamos a coroa da vitória eterna.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Paixão – O mais doloroso adeus

Quando Maria Santíssima levou o Menino Jesus ao Templo a fim de apresentá-lo ao Senhor, Simeão, dirigindo-se a Ela, profetizou que um gládio de dor Lhe transpassaria a alma.
Ao meditar na Paixão de Cristo, Dr. Plinio contempla o cumprimento deste prenúncio e a extrema angústia de Maria ao ver o padecimento de seu Divino Filho.

 

A Lei do Antigo Testamento estabelecia que, completados quarenta dias do nascimento de um filho primogênito, este deveria ser levado ao Templo a fim de ser resgatado; também a mãe da criança deveria ser purificada na mesma ocasião.

Apesar de ser Mãe do Homem-Deus e concebida sem o pecado original — portanto, isenta de tal obrigação —, Nossa Senhora, por respeito à Lei e à tradição, desejou apresentar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade no Templo de Jerusalém.

A apresentação do Menino Jesus no Templo

Lá se deu o episódio mais marcante da história do Templo: o próprio Deus encarnado visita aquele ambiente de oração e recolhimento. Naquele instante, os anjos, cheios de alegria, pervadiram o edifício sagrado.

Porém, Nossa Senhora ali entrou sem que ninguém notasse tão grande presença.

Simeão, o Profeta escolhido por Deus para esta ocasião, recebendo o Menino nos braços, louvou a Deus, dizendo: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos”.

Maria Santíssima ouvia as palavras daquele ancião que, profetizando o futuro do Menino, acrescentou: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”.

Também Ana, a Profetisa, cantara as glórias do Divino-Menino. Por inspiração, ambos souberam o que somente São José e a Virgem Maria sabiam: o Menino era o Filho de Deus.

Coração de Maria, transpassado por um gládio de dor!

Pois bem, passaram-se os anos e o cumprimento da profecia de Simeão se aproximava — “uma espada transpassará a tua alma”…

Chegou, enfim, o momento em que Ele — já homem maduro, aos trinta anos de idade — despediu-se de sua Mãe e partiu para pregar a bondade, maravilhar os homens, e… por eles ser crucificado! Era o doloroso adeus!

Pode-se imaginar o que foi esse adeus: Nossa Senhora, indo à porta da casa e fitando-O; com o olhar, Ela acompanha seu Filho afastar-Se pela estrada.

A partir daquele instante Ela permaneceu sozinha. Para consolá-La, os anjos cantavam. Mas, de que valiam essas canções em comparação com um olhar ou uma manifestação do carinho de Jesus por sua Mãe? Ouvir o eco de seus pés divinos sobre o pobre assoalho da casa santa enchia a alma de Maria de contentamento mais do que qualquer concerto angélico!

Quem haveria de remediar essa ausência?

A criatura zelando pelo Criador

Outro episódio doloroso ainda se daria: o encontro de Maria com Jesus no caminho do Calvário. Apesar de não ser narrado pelos Evangelistas, creio ser o mais pungente que houve na Terra! A vocação de ser a Mãe do Verbo encarnado, pedia de Nossa Senhora uma perfeita aceitação das dores e angústias como as que Ela sofreu nesse doloroso encontro.

Maria Santíssima recebeu do Padre Eterno a missão de conceber o Verbo de Deus — o que Ela realizou esplendidamente. Porém, a missão de concebê-Lo compreendia também a de gestá-Lo. E grande foi o cuidado que Ela dispensou a seu Divino Filho, para que tudo se realizasse de forma adequada, conveniente e santa.

Pode-se imaginar o gáudio de Maria Santíssima ao sentir em Si mesma o Filho de Deus que se movimentava ainda antes de nascer; a santa comunicação existente entre ambos realizava-se através das inúmeras orações e meditações feitas por Ela, incessantemente. Nosso Senhor estava no interior d’Ela assim como está em alguém que O recebe condignamente no Santíssimo Sacramento.

O período iniciado pela primeira reflexão de Nossa Senhora a respeito do Salvador, chegou a seu termo no momento em que Ele nasceu e, pela primeira vez, os olhares d’Eles se cruzaram. O rosto d’Ele era ainda pequeno, cheio de inocência, mas já com semblante de Rei e Mestre. Tal era a intensidade de sobrenatural que se irradiava ao seu redor, que à sua proximidade qualquer enfermo de corpo ou de alma poderia sanar-se imediatamente.

Quando Adão e Eva pecaram, comendo o fruto proibido, seus olhos se abriram e Deus teve de confeccionar para eles os primeiros trajes. Entretanto, quando o Menino Jesus nasceu, Maria Santíssima vestiu o Criador: agora, era a criatura humana quem vestia o próprio Deus!

Por que me abandonaste?

Após o nascimento do Menino-Deus, Nossa Senhora tinha como missão educá-Lo e formá-Lo até que Ele chegasse à maturidade. Mas isto não bastava: quando Jesus atingiu a idade perfeita, Ela teve de acompanhá-Lo ao Calvário para, aos pés da Cruz, receber o último olhar d’Ele.

Ao cabo dos trinta e três anos de maravilhamento de Maria por seu Divino Filho, e de adoração cada vez mais ardorosa e incessante, tudo desfechou na paixão e morte d’Ele.

No momento em que Nosso Senhor rendeu seu espírito ao Padre Eterno, dizendo “meus Deus, meus Deus, por que me abandonaste?”, Maria, estando presente, certamente O ouviu. Qual não terá sido a repercussão desse sofrimento no coração de uma mãe? Sobretudo, d’Aquela Mãe para com Aquele Filho. Momentos depois, Ele inclinou a cabeça e rendeu seu espírito.

Nossa Senhora viu o Corpo de seu Filho repleto de feridas, já não mais trajando aquela túnica inocentíssima — que se diria feita de raios de luz — que Ela mesma confeccionara. Imaginemos a dor da Mãe contemplando o Filho que sofria tão grande despojamento!

Enquanto José de Arimateia e Nicodemos preparavam os bálsamos para cobrir as feridas do Divino Mestre, Maria Santíssima O sustentava em seus braços virginais.

Paz em meio à amargura

Ela viu a realização do desejo de Jesus de entregar a última gota de seu Sangue pela humanidade, quando a lança de Longinos penetrou o lado do Salvador. Nossa Senhora contemplou aquele flanco ferido e, certamente, rezou: “Coração de Jesus perfurado pela lança, tende piedade e nós!”

Como era costume entre os judeus, envolveram o Corpo Sagrado de Jesus num sudário. Finda a preparação do cadáver, aquele divino Corpo foi depositado na sepultura. Rolaram a lápide que fechava a sepultura; tudo estava acabado, a morte reinava!

Após esses momentos de extrema dor, Nossa Senhora voltou para casa acompanhada por seu novo filho, o Apóstolo virgem. As santas mulheres que A seguiam não se continham em prantos, e Ela, ao invés de ser consolada, precisava consolá-las.

Imagino que, acompanhados por Nossa Senhora, os Apóstolos e discípulos dirigiram-se para o cenáculo. Lá rezavam e choravam. Maria Santíssima deve ter permanecido em silêncio, pacífica e serenamente lembrando-se dos fatos ocorridos. Assim se cumpriam as palavras proféticas do livro de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amaríssima — Eis na paz a minha amargura enormemente amarga”.

Comparados com o tamanho da amargura de Maria, os oceanos são pequenos, o suficiente para caberem na concha de uma mão!

Para que se faça a vossa Vontade

Em meio a tantas dores pelas quais Ela passava, havia uma consolação: Quem obteve a redenção para o gênero humano senão o Filho que Ela concebeu? Ele — o Redentor e fonte de toda Graça — caso não tivesse morrido na Cruz, não redimiria a pobre humanidade pecadora.

Essa torrente de Graças que jorra sobre a humanidade abriu-se para os homens a partir do momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!”; e abundou sobre o mundo quando Maria deu seu consentimento a fim de que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Revista Dr Plinio (Março de 2010)

 

MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTES?

Causa-me assombro como essa fisionomia expressa uma forma de sofrimento de Nosso Senhor que não me lembro de ter visto representado, de modo tão preciso e extremo, em nenhum outro crucifixo.

Olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço dão a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal estar.

Um mal-estar terrível, pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no alto da Cruz. Dir-se-ia que, nessa posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estava distante de dar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Tudo n’Ele está  prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima.

Sofrimento indizível, cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades  aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

 

Comentários de Dr. Plinio sobre o milagroso crucifixo que se encontra no altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rey, MG (foto acima).

 

O caminho da dor – I

A trajetória de um homem que ao longo de sua vida procura santificar-se é repleta de sofrimentos. Quem, à semelhança de Nosso Senhor, abraça com amor e resignação as cruzes que lhe advêm adquire têmpera moral, corrige-se de seus defeitos e chega à glória eterna.

 

Quais são as dores que uma pessoa precisa sofrer ao longo da vida?

A Providência permite que alguém, em determinado momento, sofra dores extraordinárias. Por exemplo, ser caluniado injustamente e, por causa disso, passar anos mal visto por todos aqueles a quem mais se admira.

Sacerdote caluniado por jansenistas

São Luís Grignion de Montfort, em uma de suas obras, menciona um padre, grande devoto de Nossa Senhora — para mim isso tem um luzimento parecido com o de uma canonização; ser elogiado por São Luís Grignion, enquanto grande devoto de Maria, é o auge dos auges.

Esse homem, que era muito bom padre, estava certo dia na sacristia para atender o público, quando lá entrou um dos meninos que serviam à igreja, o qual mexeu numa coisa qualquer, saiu correndo e dirigiu-se a uma rua ou praça, situada junto ao templo, gritando uma calúnia medonha, dizendo que o sacerdote tinha querido atentar contra a pureza dele.

Bastou esse menino, sem outras testemunhas, gritar na via pública tal calúnia, que se produziu na cidade uma emoção extraordinária. Embora esse padre fosse de vida muito digna, todos acreditaram na calúnia. O Bispo o privou dos cargos eclesiásticos, e o sacerdote, que possuía alguma coisinha para subsistir, durante dez anos viveu no horror e na rejeição de todo mundo. Dez anos se passaram, mas podia-se temer que isso durasse uma vida inteira…

Determinado dia, o Bispo se apresenta e lhe diz amavelmente: “Meu padre, faz favor, venha cá.” Ele se aproximou para beijar o anel do Bispo, o qual o abraçou. Vieram também outras pessoas as quais contaram que aquele menino, que se tornara moço, havia morrido. E, antes de falecer, diante de testemunhas, declarou que ele tinha feito aquela calúnia, pago por uma corrente teológica, na aparência católica, chamada jansenista, existente naquele local e que, aliás, tinha se espalhado como uma lepra por toda a Europa. Para difamar esse padre, que criticava muito aquela corrente, um dos seus chefes deu dinheiro ao menino.

Creio que a corrente interessada nisso — é opinião minha — mandou colocar gente próximo à igreja naquela hora, para acreditar imediatamente: “Oh! que horror! Mas imagine…”, e assim dar corpo à calúnia, a qual se difundiu como um mar sobre a cidade. E somente quando a Providência dispôs que esse menino, depois moço, mal à morte, dissesse a verdade — ele sabia que não podia ir para o Céu se não se retificasse, morreria em estado de pecado mortal e, com o inferno diante de si, acabou confessando —, o padre foi reabilitado. Mas foram dez anos terríveis.

Então, sobre um homem que levava sua vida normal de padre, com os sacrifícios inerentes à vida de sacerdote, de repente caiu como que um raio e estraçalhou-o durante algum tempo.

Madre Mariana de Jesus Torres padeceu tormentos do inferno

Creio que já narrei aqui a história da Madre Mariana de Jesus Torres, religiosa diante da qual se deu o milagre primeiro de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Quito, no Equador. Tendo sido eleita abadessa do seu convento, ela começou a governar com muita bondade — era uma pessoa de virtudes eminentes; espero que seja canonizada. Havia ali algumas freiras novas, que eram descendentes de índios. Como manda a Igreja, com toda a sabedoria e razão, não fazer segregação racial, essas filhas ou netas de índios foram recebidas no convento.

Entretanto, uma delas, que tinha vontade de ser abadessa, tramou a destituição de Madre Mariana de Jesus Torres e a substituição por ela mesma, criando um choque entre as freiras índias e as freiras espanholas ou descendentes de espanhóis. Houve então uma divisão entre as religiosas, e afinal de contas tornou-se abadessa essa revoltosa, ou uma freira dependente da revoltosa. E a primeira coisa que fez foi mandar prender Madre Mariana de Jesus Torres na prisão do convento, porque naquele tempo os conventos tinham cárceres. E Madre Mariana ficou muito tempo presa, injustamente.

Durante esse período, vivendo a pão e água, com toda a serenidade, ela rezava pela alma de sua perseguidora. E a Providência deu-lhe a entender que essa freira era tão ruim, estava tão comprometida que só havia um jeito de salvá-la: Madre Mariana de Jesus Torres deveria oferecer-se para, em espírito, passar cinco anos sofrendo, inclusive fisicamente, as chamas infernais. Uma coisa horrorosa!

Ela contou depois que, às vezes, durante esse tempo, pensava estar condenada de fato; mas ao mesmo tempo tinha a ideia um tanto contraditória de que ela sofria isto para salvar a alma da outra.

Ela então dizia: “Se eu estou condenada, que minha condenação sirva pelo menos para salvar minha inimiga. Considero meu sofrimento por bem empregado”. É belíssimo!

Durante esses cinco anos, Madre Mariana sofreu barbaramente. Terminado o prazo, foi libertada, saiu do inferno, voltou a paz para sua alma e ela foi reeleita abadessa.

A freira revoltosa adoeceu, e Madre Mariana tratou-a com a maior bondade possível, de maneira que aquela freira acabou reconhecendo que tinha andado mal, pediu perdão e faleceu. E Madre Mariana de Jesus Torres recebeu a revelação de que a alma dessa freira foi para o purgatório, onde deveria ficar por um prazo longuíssimo, se não me engano, até o fim do mundo. Uma coisa de assustar! Assim ela salvou essa alma.

Foi um sofrimento que a Providência pediu a Madre Mariana e ela aguentou.

Médico famoso que ficou cego repentinamente

Lembro-me de um médico de São Paulo, que era famoso e rico. Ele estava assistindo a corridas de cavalos; pôs o binóculo e começou a acompanhar o percurso dos equinos na pista. Em certo momento, não viu mais nada. Achou esquisito, tirou o binóculo e nada enxergava. Ficou cego de repente, devido a um deslocamento de retina.

Como era muito rico, ele contratou o melhor oculista de São Paulo para ir com ele à Europa — os grandes centros médicos, naquele tempo, eram exclusivamente os europeus; a América do Norte ainda tinha se destacado muito menos –, a fim de consultar os maiores oculistas. Para abreviar, não tinha mais solução; ele continuou cego e morreu vinte anos depois.

A vida de um verdadeiro católico é repleta de sofrimentos

Mas não é propriamente desses sofrimentos que vou tratar. Isso é fácil compreender; são episódios que ocorrem na vida de uma pessoa.

O problema é diferente: todo homem, mesmo que não lhe aconteçam coisas dessas, deve sofrer muito na vida. O curso comum da existência de um homem verdadeiramente católico, apostólico, romano, praticante, é cheio de sofrimento, primeiro ponto.

Segundo ponto: com esse sofrimento o homem atinge a têmpera moral que deve possuir. Terceiro: ele se corrige dos seus defeitos. Quarto: com isto pode chegar até a santidade.

De maneira que essas grandes tragédias, esses grandes sofrimentos, com frequência acontecem na vida dos santos. Um teólogo do século XIX fazia uma afirmação interessante: “Dai-me um frade que cumpre simplesmente a regra de sua Ordem e eu vos darei um santo”. Como? Sofrendo coisas extraordinárias? Não. Aguentando o duro da vida, como Deus quer.

Como é esse duro da vida? Como os presentes neste auditório estão mais próximos do começo da vida do que do fim, e as suas memórias só versam sobre esse início, falemos dele.

Uma criança desobedece a seus pais…

Desde pequena, a criança começa a ser partilhada entre dois impulsos contrários. Por um lado, ela quer muito bem a seus pais, gosta de ser acariciada por eles, etc. Mas, de outro lado, os progenitores lhe dão ordens: não faça tal coisa, faça tal outra.

No momento em que os pais lhe dão uma ordem, põe-se para ela um problema: “Se você quer realmente bem a seu pai e sua mãe, não fará o que eles estão proibindo; se fizer, vão ficar tristes. Mas ninguém proíbe uma pessoa de fazer algo que não seja gostoso. Porque, se não é gostoso, ela não faz, e se faz é porque acha gostoso. Você recebeu uma proibição… Como é isso?” É um não gostoso que se põe no caminho da criança. Então vem a questão da escolha.

Imaginemos o seguinte:
O pai ou a mãe diz à criança: “Somente suba na cadeira, para pegar o brinquedo que está em cima do armário, se houver uma pessoa mais velha para ajudá-la. Do contrário, não dou licença”. É-lhe explicada a razão evidente: se subir sozinha, terá que fazer certo esforço para alcançar o objeto, digamos um boneco, poderá cair e se machucar. A criança mais ou menos entende isso.

Seus pais saem de casa, a criança fica só e sente o desejo de apanhar o boneco para brincar com ele. Surge, então, em sua cabeça uma porção de pensamentos: “Meus pais não estão aqui; quando voltarem vão me ver brincar com o boneco… Mas eles não mais se lembrarão se o boneco estava em cima ou embaixo. Subo na cadeira, pego o boneco e depois coloco a cadeira no lugar em que estava; posso passar um bom tempo brincando com o boneco, porque eles me disseram que eu ficaria trancado neste quarto umas duas horas, até que voltassem”.

Em certo momento, a vontade de brincar com o boneco é tão grande que a criança empurra a cadeira, sobe e pega o boneco; e na hora de descer da cadeira, com o boneco nas mãos, a cadeira cambaleia, a criança tem um susto enorme, quase cai, mas dá um jeito e se equilibra.

…e vêm à sua mente algumas questões…

Ela começa a brincar e, depois do primeiro momento, vem à sua mente uma questão: “Eu deveria ter feito o que fiz?”

E uma reflexão desagradável: “Mamãe, chegando, ao ver que estou com o boneco aqui, é capaz de lembrar-se que ele estava em cima do armário, e notará minha desobediência. Quem sabe se seria melhor, para evitar o castigo, eu desobedecer uma segunda vez, subir na cadeira novamente e pôr o boneco lá em cima? Já andei mal uma vez… Quando faltar mais ou menos meia hora para meus pais voltarem, colocarei o boneco no lugar em que estava”.

Mas o pensamento continua: “Agora que você andou mal, aguente. Brinque com o boneco e quando eles chegarem você dirá: ‘Olha, me perdoem, eu peguei o boneco’. Eles vão se zangar com você, será uma coisa desagradável”.

A criança cessa de brincar e diz a si mesma: “Por que pensar nisso tudo? Falta uma hora e meia para eles voltarem. Quando faltar quinze minutos, vou resolver esse problema. Agora vou brincar”.

Ficam, então, na cabeça da criança três convites. Primeiro: agir bem, quer dizer, contar para os pais o que ela fez; segundo: agir mal, desobedecer mais uma vez e colocar o boneco em cima do armário; terceiro: não pensar no problema, a não ser no último momento, e brincar, ou seja, gozar a vida.

É possível que, conforme a psicologia da criança, esse problema do boneco estrague a tarde dela. Ela pode ainda pensar: “Seria melhor eu não ter desobedecido. Nunca mais vou desobedecer”, Mas depois lhe ocorre esta ideia: “Mas a vida fica tão cacete se eu nunca mais desobedecer que, de vez em quando, desobedecerei”.

…cuja solução significa um programa para sua vida

Conforme a decisão dessa criança, que pode ter quatro ou cinco anos de idade, ela traçou um programa para sua própria vida: Ela escolheu o prazer ou a dor.

Digamos que a criança desobedeça e coloque o boneco novamente em cima do armário; os pais regressam, nada percebem e encontram a criança alegre, a mãe trouxe-lhe um docinho, e o pai, uma revista para ela ver. Agradam a criança e a vida continua.

Mais tarde a criança pensa: “Valeu bem a pena enganá-los. Fiz o que eu não devia, ganhei presentes e passei uma tarde gostosa. Em alguns casos, talvez minha atitude dê errado, mas tantas vezes dará certo que vou fazer assim.”

E pode começar a existir uma dobra no espírito da criança, devido à qual vai ficando cada vez mais difícil para ela andar direito, e mais fácil andar mal. Ela vai inventando jeitos, habilidades para desobedecer, ideias novas, outras travessuras para fazer coisas mais gostosas; quer dizer, desobediências ainda maiores, por onde, praticando uma falta venial, pecado de criança, ela compra um prazer. E essa dobra vai se marcando cada vez mais.

A grande batalha pela castidade

Imaginemos dois tipos de crianças. Uma, que sempre pratica o bem e nunca desobedece aos pais. Outra, fazendo sempre o mal e desobedecendo de duas maneiras: ou pensando: “Eu quero fazer o mal”, ou não pensando, mas no fundo praticando o mal.

Elas chegam aos dez anos de idade, mais ou menos, quando começa a crise da puberdade e se apresenta a primeira tentação contra a pureza. Qual das duas crianças está preparada para travar a grande batalha pela castidade? A criança da travessura, que seguiu a escola do prazer? Ou a séria, que pensa nas coisas retamente, ama a verdade? Esta última, quando se lhe apresenta a tentação da impureza, diz: “Isso não pode ser!” Ela reage e não peca.

Mas quanto à outra criança, há noventa e nove probabilidades sobre cem de que, se lhe apresentando o prazer da impureza, ela peque. Ela está habituada a não se recusar nenhum prazer. No momento em que aparece um prazer que seduz os homens muito mais do que brinquedos de criança, ela está muito menos preparada para resistir àquela pressão. Resultado: ela cai. E vai ser um homem impuro, porque foi uma criança que não quis a dor.

Essa criança deveria ter sido séria e não ter levado as coisas na brincadeira; precisaria ter raciocinado: “Eu não quero o mal, mas o bem. Percebo que estou indo por uma via ruim que vai me conduzir para o inferno; não quero isso. Amo aos meus pais, mas sobretudo amo a Deus, a Nossa Senhora, não quero ofendê-los. E, por causa disso, não vou fazer uma ação má”. Então, ela começa uma luta.

Lutando contra si, ela se torna forte. Se a criança vence a crise da pureza, ao cabo de ter feito a batalha da castidade, ela se torna um herói. O homem que nunca pecou contra a pureza pode dizer: “Graças a Nossa Senhora, pelo favor que Ela me obteve de Deus, sou um herói”.

Se ela pecou contra a pureza, mas se arrepende, poderá dizer: “Sou um pecador regenerado e a graça de Deus pousou sobre mim, arrancou-me do charco imundo onde eu estava, levantou-me; minha alma hoje é pura, graças a Deus. Nossa Senhora, Virgem Puríssima, rogai por mim!”

Um osso partido, quando se consolida, fica mais forte no local da fratura do que nos outros pontos. Assim também, a pessoa que caiu em matéria de pureza, arrependeu-se e depois praticou a castidade, torna-se mais forte.

Dizer não para si mesmo e sim à voz da graça

Ao fim de uma longa existência, oitenta, noventa anos, se a pessoa viveu sempre assim, ao morrer, os braços de Deus estão abertos para ela. Nosso Senhor Jesus Cristo lhe sorri, ela vê no peito do Redentor o Sagrado Coração que pulsa de amor por ela. Nossa Senhora a afaga e a conduz junto ao Divino Salvador. Seu Anjo da guarda canta, há uma alegria em toda a corte celeste por uma alma que entra para o Céu. O objeto dessa alegria é ela, porque no fundo compreendeu que toda a prática da virtude é um dizer não para si mesmo, e sim à voz da graça, a qual nos convida a cumprir o dever.

A graça diz no interior da criança: “Obedeça a seu pai, a sua mãe; obedeça a Deus que ordenou honrar pai e mãe.” Sendo fiel à graça, ela vai se fortificando e resistindo a outras tentações. Por exemplo, uma criança que aprende a não brincar com os brinquedos não permitidos, aprende também a estudar nas horas em que deve. É claro, porque uma coisa é reversível na outra.

Aprendendo a estudar nas horas em que precisa estudar, ela vence a preguiça de pensa, a preguiça do trabalho mental, e se torna uma pessoa que gosta de ler um livro, estudar uma doutrina, e pode ser um homem inteligente e até célebre. Pode tornar-se um defensor da Fé.

Se a criança não estuda, fica com preguiça de estudar. No tempo de minha infância, conheci um menino que às vezes batia na testa e dizia: “Eu sou burro! Mas não tenho culpa de ser burro.” E pedia aos colegas para fazerem redação para ele, a fim de ele copiar com a letra dele e passar no exame. Os colegas o atendiam, mas eu, que o conhecia bem, sabia que ele era burro de preguiça, mas se fizesse esforço poderia tornar-se uma pessoa razoável. Entretanto, devido à preguiça, ficou fadado a ser burro a vida inteira.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1986)

As dores de Nossa Senhora

Depois de descrever a fisionomia moral da Mãe de Deus, Dr. Plinio considera os sofrimentos pelos quais passou a “Mulier dolorum” ao longo de toda a sua existência, em união com seu Unigênito. Tais considerações nos convidam a um exame de consciência feito com paz e inteira confiança na misericórdia divina.

 

Hoje é um dia muito significativo para nós, pois é a Festa das Sete Dores de Nossa Senhora.

Parece-me que não podemos deixar passar a ocasião sem dizer uma palavra a respeito.

”Mulier dolorum”

O que nós podemos considerar a respeito de Nossa Senhora e de suas dores, fundamentalmente, é o seguinte:
Enganam-se aqueles que julgam que a Virgem Maria teve em sua vida uma única ocasião de dor correspondente à Paixão e Morte de seu divino Filho. Esse momento foi realmente de uma dor suprema, a maior que jamais se tenha sentido no universo, abaixo da dor insondável de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua humanidade santíssima.

Foi uma dor tão grande que recapitulou todas as dores do universo. Tudo quanto os homens sofreram desde a queda de Adão e sofrerão até o último instante em que houver homens vivos na Terra, vai ser incomparavelmente menor do que a dor que Nossa Senhora sofreu.

Contudo, erraria quem pensasse que Ela padeceu essas dores durante a Paixão, mas fora daquele período não teria sofrido mais. E, portanto, sua vida viria transcorrendo calma, satisfeita, inundada pelo contentamento de ser Mãe do Salvador quando, de repente, chegou aquela dor lancinante que durou até a Ressurreição de Nosso Senhor, mas depois passou o sofrimento e Ela teve novamente uma vida alegre.

Na realidade isso não se deu e é um modo completamente equivocado de considerar as dores de Nossa Senhora.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi chamado por um dos profetas — se não me engano, o profeta Isaías(1) — de “Vir dolorum”: o Varão das dores; o homem ao qual era próprio sofrer, que está cheio de dores e que trazia essas dores na sua alma santíssima durante toda a sua existência.

De maneira que a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo não foi um fato isolado na sua vida, mas o ápice de uma sequência enorme de dores que começaram desde o primeiro instante de seu ser e foram até o momento em que Ele exalou, num dilúvio de dores, o terrível “Consummatum est”(2). Durante todo esse tempo Ele continuamente sofreu.

Ora, como Nossa Senhora é o espelho da sabedoria, é espelho da justiça e Ela reflete em Si tudo o que é de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve-se dizer de Nossa Senhora que Ela foi a “Mulier dolorum”, a Mulher, a Dama das dores e que também Ela teve a sua vida inteira pervadida pela dor, pelo sofrimento.

É certo que essa dor teve proporção com as forças incalculáveis que a graça Lhe dava. Sem dúvida, foi uma dor imposta pela Providência e, portanto, por mais lancinante que tenha sido, não era dessas dores que produzem turbulência e provações que devastam e sujam a alma.

Eram dores imensas, mas muito arquitetônicas, muito sábias, recebidas com uma serenidade de alma admirável! De maneira que, assim como se atribui a Nosso Senhor essas palavras de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amarissima”(3) — “Eis na paz a minha amargura muito amarga” —, também de Nossa Senhora se pode dizer: “Eis na paz a minha amargura amaríssima”. No meio de um oceano de dor, aquilo tudo equilibrado, raciocinado, refletido e suportado com amor e com estabilidade de alma incomparável, sem emoções exageradas.

Entrelaçamento das mais tremendas dores com as mais excelsas alegrias

Portanto, com uma quase infinidade de sofrimentos padecidos sem torcida, sem pânicos, mas com muito medo, com muita angústia e, em certas circunstâncias, até com um peso de dor que chegava quase a estraçalhar, a Santíssima Virgem foi durante a vida inteira uma grande sofredora. Entretanto, uma sofredora que teve momentos de alegria e, mais do que isso, Ela teve uma grande felicidade ao longo de toda a sua existência.

Ela também teve gáudios como nunca pessoa alguma teve. E todas as alegrias do mundo, desde o primeiro instante em que o homem foi criado no Paraíso, até o último momento em que haja homens na Terra, todas somadas não darão as grandes alegrias de Nossa Senhora.

Mas essas dores e alegrias se entrelaçavam continuamente e Ela vivia suportando o fardo dos mais tremendos padecimentos e, ao mesmo tempo, aliviada pelo bálsamo das mais excelsas alegrias. Assim vista a fisionomia moral insondavelmente santa de Maria, convém nos atermos especialmente às suas dores. Quais foram as dores de Nossa Senhora?

O tormento ao considerar os pecados dos homens

Antes mesmo de saber que seria a Mãe de Deus, Ela começou a sofrer uma dor que para uma alma zelosa é imensa e que atormentou incontáveis santos — creio ter afligido todos os santos ao longo da história — e que Nossa Senhora, naturalmente, teve em grau superlativo.

Concebida sem o pecado original, desde o primeiro instante do uso da razão, a Santíssima Virgem já iniciou sua vida mística. E teve conhecimento do pecado e de toda a infelicidade dos homens. Nutrindo pela glória de Deus tal zelo que daria mil vidas para evitar um pecado mortal, Ela passava por essa dor tremenda de ver a humanidade inteira imersa em pecados. Sofria ao considerar aquelas pessoas que morriam e cujas almas, em número enorme, caíam no inferno, ou então, quando não se condenavam, iam para a triste morada do “Sheol”, onde muitas já se encontravam há dezenas de séculos à espera de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além disso, Nossa Senhora viu os pecados cometidos por ocasião da vinda do Messias, e os que viriam depois do Salvador até o fim do mundo. E isso causava a Ela um tormento do qual não podemos ter ideia.

Houve um santo — eu não sei se foi Santo Inácio de Loyola — que disse o seguinte: se ele tivesse de viver a vida inteira simplesmente para evitar um pecado mortal de uma pessoa que depois fosse para o inferno, ele daria por bem empregados todos os sofrimentos de sua existência. Portanto, não para salvar aquela alma, mas para impedir de ser feita a Deus uma ofensa grave, de tal maneira o pecado mortal é um mal insondável.

Mas se era esse o pensamento de um santo, o que pensava Nossa Senhora, perto da Qual o maior santo é menos do que uma gota d’água comparada a todos os mares do mundo, menor que um grão de poeira em comparação a todos os universos? A santidade da Virgem Maria não tem proporção com nada. Nós não podemos fazer o cômputo da desproporção entre a santidade d’Ela e a de todos os anjos e santos reunidos. Assim, que tormento os pecados dos homens constituíam para Ela!

Dor diante da perspectiva e da realização da Paixão

A Santíssima Virgem recebeu, depois, a magnífica notícia de que seria a Mãe do Verbo encarnado. Podemos imaginar sua alegria ao adorar Jesus no primeiro momento em que Ela O concebeu por obra do Espírito Santo! Mas também sua dor ao pensar ser esse Messias o homem sofredor de que falara o profeta Isaías…

Segundo a opinião de alguns, antes dos trágicos acontecimentos da Paixão a Santíssima Virgem não tinha conhecimento da morte de Nosso Senhor na Cruz, e soube apenas no momento em que esta se deu. Eu não discuto a questão. É fora de dúvida que Ela, pelo profeta Isaías, sabia que seu Filho deveria sofrer dores inenarráveis.

Maria de Ágreda(4) conta que havia na casa de Nazaré um oratório onde, várias vezes, Nossa Senhora encontrou Jesus ajoelhado e suando sangue, na previsão de sua Paixão e da ingratidão com que os homens a receberiam.

Diante disso, que é tão verossímil, podemos imaginar a dor de Nossa Senhora vendo uma criança de cinco anos, depois de dez, mais tarde de quinze, depois um moço de vinte e, por fim, um homem já feito de vinte e cinco, e de trinta anos, ajoelhado frequentemente, a sofrer e a transpirar sangue face à perspectiva dos tormentos que viriam? Tanto mais Ela que amava Jesus, não apenas como uma mãe ama seu filho, mas como uma mãe ama seu Filho que é Deus!

Com certeza, Ela se prostrava perto de Nosso Senhor e sofria das dores d’Ele. E não é de admirar que Ela tenha suado sangue como Ele.

Ao iniciar-se a vida pública de Jesus, Nossa Senhora passa pela dor da separação. Começam os milagres, vêm as vitórias, é o momento da alegria. Mas, pouco depois, surge a ingratidão e prepara-se a tempestade de injustiças que desfechou na Paixão. Com tudo isso Ela sofria de um modo inenarrável! Se houve santos que desmaiaram ao receberem a revelação dos padecimentos do Salvador, podemos imaginar o que representava para Nossa Senhora o mínimo episódio da Paixão.

Por amor a nós, quis sacrificar o seu Filho Unigênito

Afinal, chega o momento da crucifixão, e as dores de Nosso Senhor atingem o seu paroxismo. E Maria Santíssima fica nessa alternativa: de um lado, desejar que Ele morra logo para diminuir as dores; de outro, que sua vida ainda se prolongue, em primeiro lugar porque toda mãe anseia por prolongar a vida de seu filho e, em segundo lugar, pela ideia de que assim Ele sofreria mais e os pobres pecadores seriam mais favorecidos.

Ela, então, concorda com o prolongamento desse sofrimento e firma o propósito de aceitar que Nosso Senhor seja imolado apenas naquela hora extrema, com todas as dores que Ele tivesse de sofrer.

Ela, Rainha do Céu e da Terra, com uma palavra poderia encerrar todos os sofrimentos expulsando os demônios e toda aquela gente que estava lá. Mas, para a salvação das nossas almas, Ela quis deixar aqueles algozes ali.

Apenas uma ou outra situação extrema Ela evitou. Conta Maria de Ágreda que o demônio havia arquitetado o seguinte projeto: quando Nosso Senhor fosse erguido no alto da Cruz e começasse a sua agonia, em determinado momento, derrubar a Cruz no chão, de maneira que a Sagrada Face batesse na terra e se despedaçasse. Mas Nossa Senhora, diante do excesso de ignominia de uma intenção como essa, proibiu o demônio de realizá-la.

Agora, por que Ela deixou o demônio fazer todo o resto? Porque amava tanto a salvação de nossas almas — mas da alma de cada um de nós — a ponto de querer que o Filho d’Ela passasse por tudo aquilo para, por exemplo, eu não ir para o inferno. E Ela ama de tal maneira a minha alma e a de cada um dos senhores que, ainda que houvesse um só dos senhores para ser salvo naquele dilúvio de dores, Ela quereria que seu divino Filho sofresse aqueles tormentos para salvar essa alma.

Imaginem, por exemplo, Nossa Senhora vendo a coroa de espinhos penetrar na fronte sagrada de Nosso Senhor e produzir lesões nervosas que faziam o seu Corpo estremecer em meio a todas aquelas dores que Ele já padecia. Contemplar o Sangue escorrendo de todos os lados, a sede tremenda, a febre altíssima, os estertores de todo o Corpo.

A Santíssima Virgem conhecia e media tudo isso. Entretanto, queria que fosse assim. Ela era como um sacerdote que imolava a Vítima divina no alto do Calvário. E se era esse o preço de uma alma, Ela desejava que o Filho d’Ela sofresse o que estava sofrendo para conquistar uma alma.

A grandeza de Nossa Senhora não está tanto na enormidade das dores padecidas, quanto no fato de ter Ela querido sofrer o que sofreu. Ela quis que o Filho d’Ela realizasse esse sacrifício tremendo e admirável, e fez isso por amor a nós. Porque Deus nos amou a ponto de querer sacrificar o seu Unigênito, Ela nos amou tanto que aderiu a essa função sacrifical, e quis sacrificar por cada um de nós o seu Filho Unigênito.

Um exame de consciência

A Semana Santa está se aproximando e é o momento de cada um de nós fazer, individualmente, uma meditação a esse respeito. Por mais que o homem pense, ele não pode deixar de se nutrir dessa reflexão que nunca deve bastar para a alma católica.

Colocar-se, portanto, sozinho frente a um Crucifixo ou diante de uma imagem de Nossa Senhora das Dores, e esquecer o restante do mundo. Porque diante de Deus, o mundo inteiro para mim não existe. E então fazer-me esta pergunta: Eu, Plinio, tenho consciência do preço da minha salvação? Todas as graças que eu tenho recebido, eu faço ideia dos gemidos e das dores que elas custaram e do que causaram no Coração Imaculado de Maria?

Eu tenho ideia de que tudo quanto se passou no Gólgota de tal maneira visava a minha salvação que se teria realizado ainda que eu fosse o único beneficiado?

Eu estou compenetrado de que no alto da Cruz Nosso Senhor Jesus Cristo pensou nominalmente em cada homem, desde o começo do mundo até aqui? E que, portanto, passou pela mente divina d’Ele, com pensamento de misericórdia, de bondade e de salvação, o nome de Plinio Corrêa de Oliveira? E que Ele teve em vista não apenas meu nome, mas viu minha alma, minha pessoa, o meu ser, e amou o meu ser por Ele criado e, num ato de amor a meu ser, fez aquele sacrifício para eu ir para o Céu?

Dou-me conta de que a minha salvação custou tudo isso?!

E como tenho eu correspondido a tantos benefícios? Qual tem sido minha ingratidão? Quantas faltas cometidas, muitas vezes por imprudência! Simplesmente por não querer evitar uma ocasião, por não fazer uma pequena mortificação, eu peguei o Sangue de Cristo e o joguei na sarjeta! Apesar desse Sangue derramado em meu favor, eu me pus em condição de perdição.

Entretanto, Deus me tolerou nessa vida, me suportou e me esperou com outras graças ainda maiores do que aquelas já recebidas.

A Semana Santa é uma ocasião de graças para cada um de nós. O flanco de Nosso Senhor Jesus Cristo está aberto, jorrando misericórdia para todos nós e nos chamando à contrição, à penitência, à reconciliação magnífica com Ele. Há uma efusão de bondades e de carinho para conosco como jamais poderíamos imaginar!

Portanto, minha primeira preocupação na Semana Santa deve ser a de pensar em minha alma. Pensar sem temor, sem pânico, porque Deus é Pai de misericórdia e Nossa Senhora é a Mãe e o canal de todas as misericórdias. Mas pensar com seriedade, a fundo, colocar-me diante desse Sangue de Cristo que corre e perguntar-me: O que fiz eu desse Sangue?

Junto à Cruz como São João Evangelista

Nosso Senhor pensou em tantas almas que haviam de desprezar o Sangue d’Ele levianamente, estupidamente, a propósito de uma ninharia, de uma bagatela: pela risada de uma criada, como São Pedro, por trinta dinheiros como Judas, por preguiça e vontade de dormir como os outros Apóstolos, por medo, por oportunismo, por sensualidade, enfim, por quantas coisas as almas haveriam de rejeitá-Lo!

Mas isso ainda é pouco. Nosso Senhor teve em vista, e Nossa Senhora também, todas as traições, todos os abandonos, tudo quanto almas sacerdotais O fariam sofrer.

Davi tem essa queixa em relação a um amigo que fez mal a ele: “Se outrem me fizesse isso eu não me queixaria. Mas tu, um outro eu mesmo, que comigo comias doces alimentos?!”(5)

Tudo isso foi visto. Mas também foram considerados com amor aqueles que, por uma graça especial conquistada por esse Sangue infinitamente precioso, seriam fiéis e estariam junto à Cruz como São João Evangelista.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1967)

1) Is 53, 3.
2) Jo 19, 30.
3) Is 38, 17 (Vulgata).
4) Maria de Jesus de Ágreda (1602-1665). Religiosa e mística espanhola da Ordem da Imaculada Conceição. Em uma de suas principais obras, “Mística ciudad de Dios”, narra as revelações recebidas da Virgem Santíssima.
5) Cf. Sl 54, 13-15 (Vulgata).

Nosso Senhor Crucificado

Nosso Senhor, indubitavelmente, é muito ultrajado em nossos dias. Sejamos nós algumas daquelas almas reparadoras, que, se não pelo brilho de nossa virtude, ao menos pela sinceridade de nossa humildade — humildade inteligente, razoável, sólida, e não apenas humildade de palavrório sonoro e pescoço torto — reparemos nestes dias santos, junto ao trono de Deus, tantos ultrajes que, incessantemente, Lhe são feitos.

Pela dor do santo Encontro…

Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria perguntar por que chorais? Nem a terra, nem o mar, nem todo o firmamento poderiam servir de termo de comparação à Vossa dor. Dai-me, minha Mãe, um pouco, pelo menos, dessa dor. Dai-me a graça de chorar a Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda:

“Ó minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado, precisamente como O vistes neste passo da Paixão.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Da Via-Sacra composta por Dr. Plinio em 1951).

 

“Carregou nossos pecados e suportou nossas dores”

Os comovedores acentos de um cântico que recorda as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua Paixão, oferece a Dr. Plinio a oportunidade de meditar na infinita misericórdia do Divino Redentor ao abraçar a cruz e se entregar à morte para redimir os homens e lhes abrir as portas do Céu.

Entre os belos e tocantes cânticos que a piedade católica engendrou para honrar a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo está o “Ecce vidimus”, que evoca os atrozes desfiguramentos que as injúrias físicas provocaram na pessoa do Divino Redentor.

“Eis que O vimos sem formosura”

O texto dessa música, retirado do Profeta Isaías (53, 4-5), nos sugere a ideia desses padecimentos, e assim diz: Eis que O vimos disforme e sem formosura. Ele está irreconhecível. Carregou nossos pecados e sofreu por nós. Está ferido por causa de nossas iniquidades. Somos curados em virtude de suas chagas. Na verdade, Ele carregou nossas fraquezas e suportou nossas dores.

Trecho em extremo significativo, pois é uma apóstrofe ao ilogismo e à contradição do que se abateu sobre Nosso Senhor.

De fato, não podemos sequer imaginar a extraordinária formosura do Filho de Deus, toda a beleza do seu corpo e de sua face sagrada. Sem dúvida, o conjunto dos princípios da estética do universo estavam condensados no semblante de Jesus. E quem fala da face, deve pensar no olhar. O olhar divino d’Ele, espelho da alma, certamente ainda mais esplendorosa que o corpo. Só esse olhar seria suficiente para encantar os anjos por toda a eternidade.

Além disso, devemos pensar em Nosso Senhor caminhando, com movimentos repassados de graciosidade, nobreza no andar, distinção no porte, sobriedade de maneiras, e sua infinita bondade se irradiando a todo momento de modo incomparável.

Que dizer então da voz do Divino Mestre dirigindo-se ao povo que O seguia? Quem pode conceber a variação dos timbres, a capacidade de expressão e de santa sedução que Ele imprimia em suas frases? Terá sido o som mais cativante que foi dado ao homem ouvir, desde o começo até o fim do mundo.

Ora, diz o cântico, este que reunia em si toda a beleza do universo foi visto passar carregando a cruz, palmilhando a via dos tormentos, disforme e sem formosura. Todo aquele esplendor fenecera; seus traços maravilhosos perderam a forma. Tudo desaparecera por força dos maus tratos, dos flagelos, dos açoites que Lhe arrancaram pedaços da carne e espalharam seu sangue por todos os lados. Na aparência externa de Nosso Senhor, tudo deixara de ser atraente. Ele não era senão uma imensa chaga sanguinolenta que passava, levando a cruz às costas.

O mais formoso dos homens com uma aparência de feiúra: que insondável paradoxo!

Irreconhecível porque carregou nossos pecados

À vista desse fato inaudito, a letra acrescenta, com acentos de profunda ternura: Ele está irreconhecível. Carregou nossos pecados e sofreu por nós.

Ou seja, nada mais lembra a figura do suave Jesus, Filho de Maria. Ele todo é sangue, ferida, irreconhecível porque pagou pelos nossos pecados.

Não carregava os pecados d’Ele, nem sofria por suas faltas. Verbo Encarnado, Jesus era a própria virtude, não tinha pecados a expiar. Essa grande vítima, acabrunhada sob o peso de tantos castigos, era a inocência infinita. E Ele padeceu nessa proporção desmesurada por causa da enormidade dos nossos pecados. Pecamos tanto e de tal maneira, que o Filho de Deus aceitou de oferecer ao Pai Eterno essa incalculável reparação: transformar-se nessa chaga trágica e pavorosa, acumulando outros sofrimentos até chegar ao alto do Calvário e ali, crucificado, pronunciar o “consummatum est”.

Cumpre a cada um de nós, redimidos por este holocausto, lembrar-se de que foi o pecado a causa de todo esse horror padecido por Jesus. Foram minhas fraquezas e minha maldade que Ele carregou vinte séculos antes de eu nascer. Naqueles dolorosos momentos de sua Paixão, Nosso Senhor pensou em mim, conheceu minha iniquidade, os lados miseráveis de meu caráter, e quis sofrer para me resgatar, pagar o preço de minhas culpas e abrir para mim as portas do Céu.

Essa verdade deve me tanger de gratidão. Deve, sobretudo, varar-me de lado a lado de compunção e de tristeza o pensar que Quem carregou os meus pecados era a pureza, a santidade, o sacrossanto por excelência, o Filho de Deus e de Maria Santíssima.

Não há, na capacidade humana, compunção nem intensidade de adoração, de reconhecimento e de reparação suficientes para agradecer o infinito benefício que recebemos do nosso Salvador.

O remédio das misérias humanas

Com efeito, prossegue o cântico: somos curados em virtude de suas chagas. Ou seja, todo esse sacrifício não foi em vão. Em cada chaga, em cada gota de sangue vertida por Nosso Senhor, estava a cura de nossos males e de nossas misérias morais. Contemplemos o corpo desfigurado e machucado do Divino Mestre: esta ferida, aquela outra, curaram minha alma. Se nesta existe algo de bom, é por causa daqueles ferimentos sagrados que vejo passar diante de mim.

Na verdade, Ele carregou nossas fraquezas e suportou nossas dores.

Quer dizer, o peso daquela cruz é o fardo das minhas fraquezas. Jesus as carregou. As dores que eu, por justiça, deveria sofrer, Ele, o inocente, padeceu-as por mim.

Mais uma vez, deve resultar dessa consideração um sentimento de gratidão indizível a Nosso Senhor, de reconhecimento a Nossa Senhora porque Ela consentiu no holocausto de seu Divino Filho por nós. Além disso, uma atitude de completa confiança em relação a Eles: pois quem foi resgatado por preço tão imenso, por pouco que confie no valor desse preço, por menos que peça seja aquele sangue derramado sobre nós para nos regenerar, este pode esperar sua salvação. Pode ter a certeza de que, mais dia menos dia, uma moção da graça, um movimento interior o reconduzirá ao caminho da virtude e do Céu.

Súplicas em nome das santas chagas de Jesus

Há, nesse sentido, duas lindas súplicas que exprimem as verdades acima consideradas. Uma: “Perdão e misericórdia meu Jesus, pelos méritos de vossas santas chagas”.

Quer dizer, “não mereço perdão nem misericórdia, mas vossas chagas, Redentor Divino, têm mérito infinito e foram oferecidas ao Altíssimo em meu favor. Constituem meu tesouro infinitamente grande. Peço-vos, pelos méritos de vossas santas chagas, perdão e misericórdia para mim”.

É uma súplica que dificilmente não tocará a bondade infinita de Nosso Senhor, pois invoca as próprias chagas com as quais Ele curou nossas almas, alcançou-nos graças para corrigirmos nossos defeitos e crescer no amor que devemos ter a Ele.

Outra jaculatória muito substanciosa e bela, despertada pela consideração das chagas de Nosso Senhor, é esta: “Padre Eterno, eu vos ofereço as santas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo para curar a minha alma”.

Ou seja, eu, diante do Padre Eterno, posso ter defeitos e pecados, mas apresento a Ele as santas feridas de Nosso Senhor Jesus Cristo a fim de obter de sua infinita misericórdia o remédio para as minhas doenças de alma.

Pedir por meio de Nossa Senhora, “dona” das chagas de seu Filho

A essas considerações devemos acrescentar um ponto muito importante: não convém e nem será próprio do devoto de Maria Santíssima, meditar nos lances da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, abstraindo da figura co-redentora de sua Mãe.

E ao invocarmos as chagas do Salvador como a cura de nossos pecados, é preciso lembrar que tal impetração passa pelos rogos da Medianeira de todas as graças. Dispensadora, por vontade divina, de todos os dons celestiais, os méritos dessas chagas como que foram todos entregues a Ela, para deles dispor em benefício dos homens. Em certo sentido, Ela é, pois, a dona dessas chagas. Aliás, as imagens de Nossa Senhora da Piedade — inclusive a famosa Pietà de Michelangelo —, que representam Jesus morto no colo de Maria, exprimem muito bem a ideia desse augusto senhorio: a Mãe é a dona daquele cadáver e, portanto, de todos os méritos infinitos que aquele Homem inanimado em seus braços conquistou para nós. Tudo nos vem através d’Ela, e por mais extraordinário que seja o valor dessas chagas, sem a intercessão de Maria nada obteremos.

Peçamos, então, o patrocínio de Nossa Senhora das Dores, a invocação propícia para essas súplicas. É a figura da Santíssima Virgem que traz seu próprio coração chagado e ferido pela consideração dos padecimentos do Filho. Nunca a alma de uma mãe carregou chaga semelhante à que feriu o coração de Maria, tomado por imensurável tristeza durante a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Esse Imaculado Coração transpassado pela espada da dor é a porta por onde atingimos as chagas de Jesus. Rezemos a Nossa Senhora, do fundo de nossa alma, confiantes e humildes, na certeza de que Ela alcançará em nosso favor a aplicação dos méritos infinitos dos sofrimentos redentores de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/3/1967)

A CENA DO HORTO SE REPETE…

Sempre causou profunda impressão em Dr. Plinio o paralelo entre o odioso tratamento recebido por nosso Redentor, durante a Paixão, e as ofensas e ingratidões de que é alvo a Igreja Católica.  Reproduzimos aqui algumas reflexões a esse respeito, escritas em 1947.

 

A verdadeira piedade deve impregnar toda a alma humana, e, portanto, também deve despertar e estimular a emoção. Mas a piedade não é só emoção, e nem mesmo é principalmente emoção. A  piedade brota da inteligência, seriamente formada por um estudo catequético cuidadoso, por um conhecimento exato de nossa Fé, e, portanto, das verdades que devem reger nossa vida interior. A  piedade reside ainda na vontade.

Devemos querer seriamente o bem que conhecemos. Não nos basta, por exemplo, saber que Deus é perfeito. Precisamos amar a perfeição de Deus, e, portanto, devemos desejar para nós algo dessa perfeição: é o anseio para a santidade. “Desejar” não significa apenas sentir veleidades vagas e estéreis. Só queremos seriamente algo, quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para conseguir  o que queremos. Assim, só queremos seriamente nossa santificação e o amor de Deus, quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para alcançar esta meta suprema. Sem esta disposição, todo  o “querer” não é senão ilusão e mentira.

Podemos ter a maior ternura na contemplação das verdades e mistérios da Religião: se daí não tirarmos resoluções sérias, eficazes, de nada valerá nossa piedade. É o que se deve dizer  especialmente nos dias da Paixão de Nosso Senhor. Não nos adianta apenas o acompanhar com ternura os vários episódios da Paixão: isto seria excelente, não porém suficiente. Devemos dar a  Nosso Senhor, nestes dias, provas sinceras de nossa devoção e amor.

Estas provas, nós as damos pelo propósito de emendar nossa vida, e de lutar com todas as forças pela Santa Igreja Católica. A  Igreja é o Corpo Místico de Cristo. Quando Nosso Senhor interpelou São Paulo, no caminho da Damasco, perguntou-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues? ” Saulo perseguia a Igreja. Nosso  Senhor lhe dizia que era a Ele mesmo que Saulo perseguia. Se perseguir a Igreja é perseguir a Jesus Cristo, e se hoje também a Igreja é perseguida, hoje Cristo é perseguido.

A Paixão de Cristo se repete de algum modo também em nossos dias. Como se persegue a Igreja? Atentando contra os seus  direitos ou trabalhando para dela afastar as almas. Todo ato pelo qual  se afasta da Igreja uma alma, é um ato de perseguição a Cristo. Toda alma é, na Igreja, um membro vivo. Arrancar uma alma à Igreja é arrancar um membro ao Corpo Místico de Cristo. Arrancar  uma alma à Igreja é  fazer a Nosso Senhor, em certo sentido, o mesmo que a nós nos fariam se nos arrancassem a menina dos olhos.

Se queremos, pois, condoer-nos com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, meditemos sobre o que Ele sofreu nas mãos de seus algozes, mas não nos esqueçamos de tudo quanto ainda hoje se faz  ara ferir o Divino Coração. E isto tanto mais quanto Nosso Senhor, durante sua Paixão, previu tudo quanto se passaria depois. Previu, pois, todos os pecados de todos os tempos, e também os  pecados de nossos dias. Ele previu os nossos pecados, e por eles sofreu antecipadamente. Estivemos presentes no Horto como algozes, e como algozes seguimos passo a passo a Paixão até o alto do Gólgota.

Arrependamo-nos, pois, e choremos. A Igreja, sofredora, perseguida, vilipendiada, aí está a nossos olhos indiferentes ou cruéis. Ela está diante de nós como Cristo diante de Verônica. Condoamo-nos com os padecimentos  dela. Com nosso carinho, consolemos a Santa Igreja de tudo quanto ela sofre. Podemos estar certos de que, com isto, estaremos dando ao próprio Cristo uma consolação  idêntica à que Lhe deu Verônica.

Indiferença para com Deus

Comecemos pela Fé. Certas verdades referentes a Deus e a nosso destino eterno, podemos conhecê-las pela simples razão. Outras, conhecemo-las porque Deus no-las ensinou. Em sua infinita  bondade, Deus se revelou aos homens no Antigo e Novo Testamento, ensinando-nos não apenas o que nossa razão não poderia desvendar, mas ainda muitas verdades que poderíamos conhecer  racionalmente, mas que por culpa própria a humanidade já não conhecia de fato.

A virtude pela qual cremos na Revelação é a Fé. Ninguém pode praticar um ato de Fé, sem o auxílio sobrenatural da graça de Deus. Essa graça, Deus a dá a todas as criaturas e, em abundância  torrencial, aos membros da Igreja Católica. Essa graça é a condição da salvação deles. Ninguém chegará à eterna bem-aventurança, se rejeitar a Fé. Pela Fé, o Espírito Santo habita em nossos corações. Rejeitar a Fé é rejeitar o Espírito Santo, é expulsar de sua alma a Jesus Cristo.

Vejamos, agora, em torno de nós, quantos católicos rejeitam a Fé. Foram batizados, mas no curso do tempo perderam a Fé. Perderam-na por culpa própria, porque ninguém perde a Fé sem culpa,  e culpa mortal. Ei-los que, indiferentes ou hostis, pensam, sentem e vivem como pagãos.

São nossos parentes, nossos próximos, quiçá nossos amigos! Sua desgraça é imensa. Indelével, está neles o sinal do Batismo. Estão marcados para o Céu, e caminham para o inferno. Em sua alma  redimida, a aspersão do Sangue de Cristo está marcada. Ninguém a apagará. É de certo modo o próprio Sangue de Cristo que eles profanam quando nesta alma resgatada acolhem princípios,  máximas, normas contrárias à doutrina da Igreja. O católico apóstata tem qualquer coisa de análogo ao sacerdote apóstata.

Arrasta consigo os restos de sua grandeza, profana-os, degrada-os e se degrada com eles. Mas não os perde. E nós? Importamo-nos com isto? Sofremos com isto? Rezamos para que estas almas se  convertam? Fazemos penitências? Fazemos apostolado? Onde nosso conselho? Onde nossa argumentação? Onde nossa caridade? Onde nossa altiva e enérgica defesa das verdades que eles negam  ou injuriam? O Sagrado Coração sangra com isto. Sangra pela apostasia deles, e por nossa indiferença. Indiferença duplamente censurável, porque é indiferença para com nosso próximo e  sobretudo indiferença para com Deus.

Coincidência ou conspiração? Quantas almas, no mundo inteiro, vão perdendo a Fé? Pensemos no incalculável número de jornais ímpios, rádio-emissões ímpias, de que diariamente se enche o  orbe. Pensemos nos inúmeros obreiros de Satanás que, nas cátedras, no recesso da família, nos lugares de reunião ou diversão, propagam idéias ímpias. De todo este esforço, quem há de admitir que nada resulte? Os efeitos de tudo isto estão diante de nós. Diariamente, as instituições, os costumes, a arte se vão descristianizando, indício insofismável de que o próprio mundo se vai perdendo para Deus.

Não haverá em tudo isto uma grande conjuração? Tantos esforços, harmônicos entre si, uniformes em seus mé- todos, em seus objetivos, em seu desenvolvimento, serão mera obra de  coincidências? Onde e quando, intuitos desarticulados produziram articuladamente a mais formidável ofensiva ideológica que a história conhece, a mais completa, a mais ordenada, a mais  extensa, a mais engenhosa, a mais uniforme em sua essência, em seus fins, em seu evoluir?

Não pensamos nisto. Nem percebemos isto. Dormimos na modorra de nossa vida de todos os dias. Por que não somos mais vigilantes? A Igreja sofre todos os tormentos, mas está só. Longe, bem  longe dela, cochilamos. É a cena do Horto que se repete. (…) Incontável falange de almas tíbias E entre nós? Esta Fé que tantos combatem, perseguem, atraiçoam, graças a Deus nós a possuímos. Que uso fazemos dela? Amamo-la? Compreendemos que nossa maior ventura na vida consiste em sermos membros da Santa Igreja, que nossa maior glória é o título de cristão? Em caso  afirmativo — e quão raros são os que poderiam em sã consciência responder afirmativamente — estamos dispostos a todos os sacrifícios para conservar a Fé?

Não digamos num assomo de romantismo, que sim. Sejamos positivos. Vejamos friamente os fatos. Não está junto de nós o algoz que nos vai colocar na alternativa da cruz ou da apostasia. Mas  todos os dias, a conservação da Fé exige de nós sacrifícios. Fazemo-los? Será bem exato que, para conservar a Fé, evitamos tudo que a pode pôr em risco? Evitamos as leituras que a podem  ofender? Evitamos as companhias nas quais ela está exposta a risco? Procuramos os ambientes nos quais a Fé floresce e cria raízes? Ou, em troca de prazeres mundanos e passageiros, vivemos em  ambientes em que a Fé se estiola e ameaça cair  em ruínas?

Todo homem, pelo próprio fato do instinto de sociabilidade, tende a aceitar as opiniões dos outros. Em geral, hoje em dia, as opiniões dominantes são anticristãs. Pensa- se contrariamente à Igreja em matéria de filosofia, de sociologia, de história, de ciências positivas, de arte, de tudo enfim. Os nossos amigos, seguem a corrente. Temos nós a coragem de divergir? Resguardamos nosso  espírito de qualquer infiltração de idéias erradas? Pensamos com a Igreja em tudo e por tudo? Ou contentamo-nos negligentemente em ir vivendo, aceitando tudo quanto o espírito do século nos inculca, e simplesmente porque ele no-lo inculca?

É possível que não tenhamos enxotado Nosso Senhor de nossa alma. Mas como tratamos este Divino Hóspede? É Ele o objeto de todas as atenções, o centro de nossa vida intelectual, moral e  afetiva? É Ele o Rei? Ou, simplesmente, há para Ele um pequeno espaço onde se O tolera, como hóspede secundário, desinteressante, algum tanto importuno? Quando o Divino Mestre gemeu,  chorou, suou sangue durante a Paixão, não O atormentavam apenas as dores físicas, nem sequer os sofrimentos ocasionados pelo ódio dos que no momento O perseguiam. Atormentava-O ainda tudo quanto contra Ele e a Igreja faríamos nos séculos vindouros. Ele chorou pelo ódio de todos os maus, de todos os Arios, Nestórios, Luteros mas chorou também porque via diante de si o cortejo interminável das almas tíbias, das almas indiferentes que, sem O perseguir, não O amavam como deviam.

É a falange incontável dos que passaram a vida sem ódio e sem amor, os quais, segundo Dante, ficavam de fora do inferno porque nem no inferno havia para eles lugar adequado. Estamos nós  neste cortejo? Eis a grande pergunta a que, com a graça de Deus, devemos dar resposta nos dias de recolhimento, de piedade e de expiação em que vamos entrar agora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do Legionário, nº 764, de 30/3/1947. Título e subtítulos nossos.)

Semana Santa

Sob o peso da Cruz, o Divino Redentor suportava o fardo das nossas fraquezas, padecendo por nós todas as suas dores. Que esta verdade incite a profunda gratidão de nossa alma e nos seja motivo de ilimitada confiança. Pois quem se viu resgatado por preço tão imenso, embora pouco mereça, deve esperar que esse Sangue preciosíssimo se derrame sobre ele para regenerá-lo e salvá-lo, despertando em seu coração o movimento que o reconduza ao caminho da virtude e o leve, finalmente, ao Céu.