Preparando a alma para a Semana Santa

Ao nos aproximarmos da Semana Santa, devemos ter uma compreensão clara de seu significado e do bem que a Igreja tem intenção de nos obter durante esses dias. Dr. Plinio, com entranhada piedade, nos aponta como participar das comemorações da Paixão de modo atento, devoto e esperançado.

 

Sem prestar atenção nas coisas, nada se faz bem feito. Por exemplo, um pintor que não presta atenção na pintura, não faz nada que preste. Fixar a atenção aonde deve e mantê-la ali durante o tempo necessário, é condição para que a pessoa faça qualquer coisa de bom.

Essa verdade se aplica, sobretudo, para aquilo que há de mais importante: os atos de piedade pelos quais a pessoa se volta para Deus, pede-Lhe graças e as recebe. É preciso saber recolher essas graças e aproveitá-las, agindo na linha em que elas indicam.

Tudo isso supõe muita seriedade. E para termos essa seriedade bem atenta durante o importantíssimo período do ano litúrgico onde os católicos comemoram a Paixão e Morte de Cristo, a Compaixão de Nossa Senhora e a Ressurreição de Nosso Senhor, apresentarei algumas noções a respeito dessas comemorações.

As consequências do pecado original

Quando Adão e Eva pecaram, como consequência, perderam os dons preternaturais: ficaram sujeitos à morte, a tormentos, a doenças, a dores, a indisposições, etc. Sua inteligência tornou-se mais limitada e perderam o domínio que tinham sobre os animais, desde o tigre ou leão mais feroz até o menor inseto. Qualquer mosquitinho pode nos perturbar; antes do pecado isso não sucedia com Adão.

O estudo e o trabalho, quer o manual, quer o intelectual, tornaram-se difíceis. Para a mulher, a gestação passou a ser frequentemente acompanhada de incômodos de saúde, e o dar à luz um filho, dolorido. E há uma série de outros castigos causados pelo pecado original.

Porém, isso não é nada em comparação com o seguinte. Como o pecado cometido tinha uma gravidade infinita, ficaram fechadas para o homem as portas do Céu. E, além de padecer nesta Terra, o homem corria grave risco de ir para o inferno.

Porque, depois do pecado, o homem ficou com tendências para o mal, com muita dificuldade em praticar o bem, como demonstra o episódio de Caim e Abel.

Caim e Abel

Adão e Eva tiveram muitos filhos; entre outros, Caim e Abel. Este era o predileto, bem apessoado, bom, dedicado e amava a Deus. Caim, pelo contrário, era um homem irascível, de mau gênio e invejoso.

O Gênesis não narra detalhes, mas eu imagino que a história de Caim e de Abel tenha se dado do seguinte modo:
Certa ocasião, Abel ofereceu um sacrifício a Deus: colocou frutos sobre um altar e ateou fogo a fim de consumi-los em louvor de Deus, tendo-se evolado bonita fumaça em direção ao céu.

Caim fizera também um altar, sobre o qual pusera frutas podres, e a fumaça que subira era feia. Vendo que o sacrifício de Abel era aceito por Deus e o dele rejeitado, ficou com inveja do irmão e, tomado de ódio, matou-o.

Podemos imaginar quanto Adão e Eva sofreram com isso. Nunca haviam visto uma pessoa morta, e estavam agora diante do cadáver do filho predileto. E dirigiram seus olhos para Caim, que estava com uma cara péssima, pois cometera um homicídio, um pecado que clama ao Céu e brada a Deus por vingança.

E era um homicídio com terrível agravante, pois se tratava de fratricídio.

Amaldiçoado por Deus, Caim começou a cumprir o castigo que o Criador lhe impôs: andar por toda parte sem poder parar. De tempos em tempos, Adão e Eva viam Caim meio desvairado passar, e talvez dizer-lhes: “Eu não posso parar, tenho que andar, andar, andar, porque matei meu irmão…” E novamente se afundava pelo mato.

Para salvar o gênero humano, a própria Segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio à Terra

Mas Deus queria salvar o gênero humano, e para isso era preciso que alguém resgatasse o pecado de nossos primeiros pais. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade deveria encarnar-Se e sofrer tudo quanto Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu, para que até o fim do mundo ficassem abertas as portas da graça e do Céu para o homem.

E os fiéis à comunicação de que viria um Salvador, um Messias, ficaram esperando e, em cada nova geração, eles se perguntavam: “Virá o Messias? Será o filho de um de nós?” E passaram-se milhares de anos quando, afinal, numa manhã, uma Virgem estava rezando e o Anjo Gabriel Lhe aparece, dizendo-Lhe que Ela era cheia de graça, perfeita aos olhos de Deus.

O Messias nasceria d’Ela e, em última análise, perguntava-Lhe se concordava com isso. Sua resposta foi um assentimento sublime:
“Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.”

Naquele momento, o Divino Espírito Santo interveio em Nossa Senhora e o Verbo se encarnou e habitou entre nós.

Previsão do atroz sofrimento

Em todo presépio bem feito, o Menino Jesus aparece sorrindo, afável, como uma criança que está encantada em ver sua Mãe — que Mãe! Pode-se imaginar o encantamento d’Ela em ver seu Filho, com “F” maiúsculo; que coisa incomparável! —, mas com os braços abertos, em forma da Cruz.

Quer dizer, Ele vinha à Terra ciente de que era para padecer o sofrimento da Cruz. Jesus sabia tudo que iria sofrer em todos os dias de sua vida, para salvar os homens. Ele foi o ápice dos profetas, o Profeta perfeito; não só previa o que acontecia, mas fazia o que previa.

Há composições muito bonitas — São José era carpinteiro — que representam Jesus, já adolescentezinho, trabalhando com o pai. Em certo momento, Ele apanha dois pedaços de madeira formando uma cruz e fica, sozinho, contemplando-a.

Outras mostram Nossa Senhora, na casa de Nazaré, olhando, por uma porta entreaberta, Nosso Senhor Jesus Cristo, que está numa sala vizinha rezando com os braços abertos em cruz, compreendendo e pré-sofrendo o que viria.

Início da vida pública

Ele passou trinta anos de vida particular na oração, no recolhimento, junto com São José e Nossa Senhora. E nesse período faleceu São José, que é o Patrono da boa morte, porque morreu tendo Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora alentando-o. Portanto, não se pode ter melhor morte do que a dele.

Certo dia, Jesus se despede de Maria Santíssima, a qual compreende que Ele vai para a sua vida pública. Não será mais a vida do lar, mas a do mundo; Ele vai começar a pregar, fazer milagres, converter pessoas, bem como suscitar um entusiasmo e uma veneração indizíveis, que se manifestarão no Domingo de Ramos.

Mas também vai despertar a inveja, o ódio. Muitos viram-No chorar pela morte de Lázaro e depois, chegando diante de seu sepulcro, dar a ordem: “Lázaro, venha para fora!” Lázaro levantou-se, provavelmente ainda todo enfaixado com as tiras com que os judeus envolviam os mortos, e desfez-se daquilo.

Coisa fantástica, pois afirma a Escritura que Lázaro estava havia quatro dias na sepultura e, conforme disse Marta, já devia estar cheirando mal. Nosso Senhor mandou-o sair da sepultura, e ele assim o fez em condições de perfeita saúde.

Podemos calcular a alegria de suas irmãs e o entusiasmo dos que seguiam a Nosso Senhor! Mas houve também ódio a Nosso Senhor, porque Ele era santo e pregava a virtude. Os maus odeiam o bem, a virtude, e a quem faz milagres para propagar o bem e a virtude.

Movidos por esse ódio, os maus combinaram entre si de matar Jesus.

Nosso Senhor celebra a Páscoa e chora sobre Jerusalém

Afinal, chega o momento. Era Páscoa, e Nosso Senhor vai com os seus ao Cenáculo, a fim de celebrá-la. Ele institui a Sagrada Eucaristia e depois, com os Apóstolos, se dirige cantando, como era costume entre os judeus, para um lugar onde pudessem fazer oração.

Chegam assim ao Horto das Oliveiras, depois de ter passado por um local do qual viam de longe o templo e a cidade de Jerusalém, sobre a qual Jesus havia chorado. Ele sabia perfeitamente que aquele templo seria destruído, e também a cidade, a respeito da qual fez uma linda comparação: quantas vezes procurou reunir sua população em torno d’Ele, como a galinha faz com os pintainhos. Entretanto, eles não quiseram e veio o castigo.

O lance mais pungente da Paixão

Começou, depois, a Paixão de Nosso Senhor, com sofrimentos inenarráveis. A meu ver, o mais doloroso ocorreu quando Ele se encontrou com Nossa Senhora, porque A viu sofrer tudo quanto um coração de mãe pode padecer naquela situação, no meio daquela canalha vil. Ela sabia que Jesus estava sendo conduzido para a morte e seguiu-O, fidelíssima, até o cimo do Calvário, onde ficou aos pés da Cruz até o momento de Ele morrer.

No alto da Cruz, quando os estertores das piores dores O atormentavam, Nosso Senhor fez ainda um ato boníssimo, convertendo o bom ladrão, que se chamava Dimas, e dizendo-lhe: “Hodie eris mecum in paradiso — Tu estarás comigo hoje no Paraíso”. Foi a primeira canonização, e a Igreja o saúda como São Dimas. Ele havia sido um ladrão, um bandido, mas abria-se agora a era da misericórdia.

Os últimos sofrimentos

Recentemente, médicos estudaram o que Nosso Senhor deve ter sofrido na Cruz. Cada um de seus pulsos foi transpassado por um cravo, e não havia um suporte embaixo dos pés, como em geral os crucifixos apresentam. Seus pés também estavam atravessados por um cravo, que os prendia diretamente no madeiro da Cruz.

Antes de ser crucificado, Nosso Senhor havia perdido bastante sangue, mas no alto da Cruz perdia muito mais. Quando sentia falta de ar, a fim de respirar melhor, Ele se elevava apoiado nos cravos das mãos e dos pés, sofrendo com isso dores atrozes.

Nesse terrível tormento Jesus ainda disse: “Mulher, eis aí teu filho!”, “Filho, eis aí tua Mãe.” Essas palavras indicavam um grande perdão, porque São João Evangelista havia dormido no Horto das Oliveiras.

O fato é que São João, a partir daquele momento, passou a ser especialmente filho de Nossa Senhora. Ele era parente muito chegado de Maria Santíssima, porque a mãe dele era prima d’Ela. Mas não era filho. Filho ele se tornou quando Nosso Senhor disse-lhe: “Filho, eis aí tua mãe.” Aquele que horas antes fugira, recebia agora a maior graça que se pode imaginar.

E no auge das dores, Jesus exclamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Ele sabia que não estava abandonado; era um clamor, pois seu sofrimento havia chegado ao auge. Depois inclinou a cabeça e expirou.

No alto da Cruz, Nosso Senhor tinha presente cada ato que praticamos

Nosso Senhor tinha ciência de tudo, do presente, passado e futuro, porque era o Homem-Deus. Conhecia todas as pessoas e, portanto, cada um de nós individualmente. No alto da Cruz, Ele teve em vista todos os pecados por nós cometidos, todos os nossos atos de virtude, minhas palavras neste auditório e os que estão me ouvindo. E ofereceu seus sofrimentos e sua vida por cada um de nós individualmente.

Jesus abriu o Céu para nossas almas. Continuamente nos concede graças, sua misericórdia desce sobre nós. Ele vem ao nosso coração por meio da Sagrada Comunhão. Sua Mãe está rezando o tempo inteiro no Céu por nós, como nossa Advogada.

O problema central de nossa vida…

Caso pequemos, arrependemo-nos imediatamente e, por meio de Maria Santíssima, peçamos a Ele que nos perdoe. Se for um pecado mortal, precisamos ir logo nos confessar para que essa mancha repugnante e horrível se apague de nossas almas, a fim de voltarmos à graça de Deus.

E devemos nos compenetrar de que o problema central de nossa vida consiste em praticarmos cada vez mais atos de virtude e sermos imitadores de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela intercessão de Maria. E, por outro lado, calcarmos aos pés o demônio, recusando as solicitações para o pecado que ele nos faz para o pecado. E, confiando em Nossa Senhora, poderemos dizer: “Non peccabo in aeternum – Não pecarei eternamente”.

Para que tudo isto não se apague das almas dos meus ouvintes — recordem-se de como o beneficiado tende a se esquecer do benefício recebido —, é preciso rezar a Nossa Senhora, pedindo-Lhe que isso não aconteça. E que Ela lhes dê as graças necessárias e superabundantes a fim de não pecarem mais. Desse modo, suas vidas transcorrerão na contínua amizade de Deus e de Nossa Senhora, até o momento bem-aventurado em que entregarem suas almas a Deus e subirem para o Céu.

Esta é uma introdução para esses dias de meditação.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído  de conferência  de 2/3/1991)

Como devemos carregar a nossa cruz

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo nos serve de lição para a vida: devemos, também nós, carregar nossa cruz todos os dias! Ao meditar o sofrimento do Redentor, Dr. Plinio haure valiosos princípios para nossa vida espiritual.

Sendo hoje Quinta-feira Santa, pareceu-me conveniente comentar alguns trechos da “Concordância dos Santos Evangelhos”(1), a fim de nos prepararmos para a grande comemoração que amanhã se dará: a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz e a Redenção do gênero humano.

Acontecimentos trágicos que viriam depois

“Depois dessas palavras, tendo recitado o hino de ação de graças, saiu Jesus com os discípulos para além da corrente do Cedrão. Dirigindo-se para o Monte das Oliveiras segundo costumava, chegara a um lugar chamado Getsêmani, onde havia um jardim em que entrou com seus ­discípulos.

“Chegando a esse lugar, disse-lhes Jesus: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.’”

Vemos que há uma delimitação clara entre a festa de instituição da Eucaristia, da primeira Missa, e a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Santa Ceia tem um caráter festivo, sobre o qual já se projetam as sombras e as tristezas dos acontecimentos trágicos que virão depois. Concluída a ação de graças, a festa cessou, e Ele começa então a enfrentar a dor, o drama, a grande luta. Sua vida já fora de lutas, mas nesse momento ela chega ao auge, ao apogeu.

Para bem saborear os acontecimentos que o Evangelho narra, nessa linguagem tão simples, devemos imaginar o estado de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, as disposições do Sagrado Coração de Jesus ao longo desses fatos.

A Santa Ceia para Ele foi triste por dois motivos: em primeiro lugar porque o Redentor via a Paixão que começaria logo após, pois, evidentemente, Ele tinha o conhecimento de tudo.

E também por causa da situação tristíssima dos Apóstolos. Na narração da Santa Ceia aparecem manifestações da insuficiência e da mediocridade dos Apóstolos. E o que deveria cortar o Sagrado Coração de Jesus, transpassá-Lo mais do que a lança de Longinos, era a infidelidade dos Apóstolos, o insucesso da obra que Nosso Senhor havia começado com eles.

O Redentor, dando-lhes a maior manifestação de seu amor até aquele momento, instituindo a Sagrada a Eucaristia e oferecendo-Se a Si próprio em comunhão a eles, vê aquelas almas receberem esse dom incomparável com frieza: São Pedro, grandiloquente; Judas, nas condições abomináveis que não vale a pena referir; os outros Apóstolos se preparando para a fuga.

Há aquele episódio tão bonito de São João Evangelista, discípulo amado, que reclina a cabeça sobre o peito de Jesus e pergunta-Lhe quem seria o traidor; e Nosso Senhor, então, disse quem era. Ora, esse discípulo “a quem Jesus amava”, ia fugir como os outros.

Quer dizer, tudo são sombras que vão baixando e ao mesmo tempo os clarões da Missa se vão acendendo. E Nosso Senhor Jesus Cristo, que conhecia todos os tempos e tudo quanto haveria de acontecer, se deleitava com a ideia de toda a glória que a Sagrada Eucaristia e a Missa dão ao Padre Eterno, com as adorações que Ele receberia dos Santos e das almas eleitas, até o fim do mundo. Todos esses sentimentos penetraram no Coração d’Ele e constituíram um claro-obscuro de tristeza e alegria; em certo momento o clarão se retira e Nosso Senhor vai entrando cada vez mais nas sombras de sua dor e de sua morte. Cada passo que se aproxima é mais trágico do que o outro.

Ele caminha, mas caminha seguramente, sem um minuto de distensão, de alívio — a não ser quando recebeu o Anjo que o consolou, e na hora em que viu Nossa Senhora e teve a presença d’Ela ao longo da via sacra —, tendo no alto do Calvário, no auge da dor, exclamado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”(2)

E até o “consummatum est”, ou seja, tudo quanto era para sofrer está sofrido, as coisas vão se tornando mais densas para Ele.

A Paixão, uma luta travada na solidão

Então, podemos imaginá-Lo triste após a Ceia, andando pelas ruas de Jerusalém com os Apóstolos, até o Getsêmani, onde começa sua agonia — agonia, em grego, quer dizer luta; os atletas eram chamados agonistas, porque lutavam na arena —, ou seja, a grande luta que Ele vai travar sozinho. E a solidão é uma das tragédias d’Ele durante a Paixão, até o momento em que Nossa Senhora aparece.

Ele se isola, porque sente que ninguém é digno de estar perto d’Ele nesta hora, e diz aos Apóstolos sonolentos e indiferentes:
“Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.”
Quando Ele se afasta, em vez de algum Apóstolo perguntar-Lhe “Senhor, por que Vos isolais?” ou “Senhor, não precisais de mim?”, eles nesse lance começam a vacilar, e a tragédia de alma de Jesus já se faz sentir.

“Depois, tomando consigo a Pedro e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João, começou a sentir pavor e angústia, e caiu em tristeza e abatimento. — Minha alma está triste até a morte, lhes disse Ele. Ficai aqui e velai comigo.”

Esses Apóstolos, Ele quis ter consigo — os outros, deixou para trás —, e numa maior intimidade lhes explica: “Minha alma está triste até a morte.” E pede-lhes: “Velai”, ou seja, “Ficai acordados comigo. Eu quero ter o reconforto de vossa presença e de vossa compaixão, enquanto estiver passando por esta dor tão grande.”

“Adiantando-se um pouco, afastou-se deles à distância de um tiro de pedra, prostrou-se com a face no chão e começou a orar para que, se fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora.”

Tenhamos em mente o Santo Sudário de Turim: aquele olhar, aquela majestade de Nosso Senhor. O que significaria, para quem tivesse um pouco de alma, ver aquela fronte na qual estava resumida toda a glória do universo, aquele olhar que sintetizava, em grau excelso, de superação inimaginável, a santidade possível em todas as almas em todos os tempos, a inteligência, a força, a bondade, enfim todas as qualidades; contemplar aquela face, o mais perfeito espelho de Deus, que jamais tinha sido criado!

“Faça-se a vossa vontade e não a minha”

Podemos imaginar Nosso Senhor — que era um varão alto —, com uma túnica branca, numa noite que talvez tivesse a claridade da lua, com as sombras do arvoredo produzindo um claro-obscuro. O que teria de pungente, ver esse varão majestoso, inteiramente só… De repente, uma grande forma branca que se inclina e põe sua face em terra! Então, o Rei de toda glória rezava prostrado, acabrunhado por uma tristeza que O tomava até a morte.

E Ele dizia na sua oração, que os Apóstolos ouviram para depois poder contar, e assim ficasse constando para todo o sempre, estas palavras memoriais:

“Meu Pai, se é possível, afaste-se de Mim este cálice. Todavia, faça-se a vossa vontade e não a minha.”

É a oração mais doce, mais forte e mais contrarrevolucionária que talvez se tenha feito em toda a Terra.

Mais doce porque, vendo que o Padre Eterno quer o tormento, o martírio d’Ele, e vai tomá-Lo como vítima, Jesus Se apresenta cheio de amor e O trata “Meu Pai”, as palavras mais suaves que uma pessoa possa dizer a outra.

“Meu Pai”, diz Ele como quem geme! Sabe que vai sofrer aquele tormento, necessário segundo os desígnios de Deus, para sua glória. E Jesus, na sua humildade Santíssima, como que abandonado, seccionado de sua divindade, fica naquelas trevas. Sua natureza humana pede: “Se for possível evitar esse tormento, afastai-o”. Como quem diz: “É tão grande o peso da dor, que sou levado a Vos perguntar: Por misericórdia, não existe um modo de afastá-lo?”

Mas, logo depois Nosso Senhor acrescenta: “Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha.” Vemos, então, além do afeto, a força: “Não sendo possível, embora não aguente, não tenha recursos, Eu começarei; porque nada existe que Eu não esteja disposto a empreender para fazer a vossa vontade. Sou o Varão forte por excelência, esmagado, quebrado, aniquilado. Estou, entretanto, disposto a lutar até o fim. Mandai-me a vossa força, que farei a vossa vontade”.

É, portanto, uma submissão completa, uma obediência total, um ato amoroso sem nenhuma revolta, nem a sensação de que Deus não vai ser misericordioso para com Ele; vê a misericórdia até no momento em que ela pareceria ­impossível.

Há aqui um mistério. Poder-se-ia perguntar: Deus Pai não poderia ter aceitado uma gota de Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e assim redimir os homens?

Realmente, uma gota de Sangue de Cristo tem valor infinito. E os teólogos dizem que simplesmente o Sangue que Ele derramou na circuncisão teria sido não só suficiente, mas superabundante, para resgatar o gênero humano. Porém, havia um desígnio de Deus, para nós misterioso, segundo o qual era preciso aquela enormidade de tormentos.

O colóquio entre Ele e o Padre Eterno, tão trágico, mas ao mesmo tempo tão íntimo, nos desvenda algo que podemos sondar nas relações entre o Homem-Deus e Deus Pai. Vê-se que, por algo, o Padre Eterno e Ele mesmo, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não quiseram tornar isto possível. Um pouco disso se soube e esse pouco é de uma sublimidade ­extraordinária.

Cada homem deve carregar sua cruz

Jesus quis que os homens vissem todo o sofrimento d’Ele, para que cada um de nós tivesse a coragem de carregar o seu próprio sofrimento. Se o Homem-Deus passasse pela Terra e sofresse um pouquinho, derramando uma gotinha de sangue, remidos estávamos. Mas faltaria a lição de conformidade com a dor, de aceitação do sofrimento como sendo a mais alta coisa da vida — não um desastre, um trambolho, algo que não se compreende e não deveria ter sucedido —, o caminho necessário para que o homem chegue até onde deve chegar, a estrada para a qual ele se dirige como sendo a realização de seu próprio destino.

Quer dizer, cada um de nós nasceu para carregar uma cruz, passar por um horto das oliveiras, beber um cálice, ter as suas horas de agonia e em que diz a Deus Nosso Senhor: “Meu Pai, se possível, afastai de mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.

A idéia de que o homem nasceu para dar glória a Deus, antes de tudo sofrendo, esta ideia retriz, fundamental na formação do verdadeiro católico, não a teríamos se não fosse apresentada pelo mais sublime e arrebatador dos exemplos, que é Nosso Senhor Jesus Cristo morrendo na Cruz.

Vemos aqui um contraste com o espírito moderno, segundo o qual a finalidade do homem na Terra é ter êxito, saúde, enriquecer, gozar a vida e morrer bem tarde, quando não mais houver remédio. E, durante toda a existência, ter a maior quota possível de segurança, de maneira tal que, não digo o sofrimento, mas o medo do sofrimento, não o assalte. Tal visualização é pagã por essência. Calcular a vida assim é calculá-la à maneira de um pagão. A formação católica prepara as pessoas para o sofrimento, pois está fundamentada em Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja vida foi centrada nesta hora suprema da dor.

Como consideramos os sofrimentos de nossa vida?

Isto nos leva a perguntar como consideramos os sofrimentos de nossa vida, dos quais o maior, sem dúvida nenhuma, é a nossa própria santificação. Toda santificação séria faz sofrer, e sofrer muito. E se alguém me disser que não sofre, eu teria vontade de perguntar-lhe, de imediato: “Então tu não te santificas?” Porque não há santificação que não venha acompanhada de dor.

Visando nossa santificação, devemos fazer perguntas como as seguintes:
Combatemos os maus impulsos que, em consequência do pecado original e das nossas más ações, existem dentro de nós? Como fazemos, não só para reprimir os maus impulsos, mas para praticar as virtudes que lhes são opostas?

Aceitamos as nossas limitações de inteligência, físicas de toda ordem, sociais, tais como: falta de posição, de fortuna, de atrativos? Há pessoas sem graça, com as quais os outros não gostam de ter relações; passam diante delas e, quando muito, as cumprimentam. Existem também as muito engraçadas, procuradas por todo o mundo para se divertirem com elas, e que nos solicitam à palhaçada. Como aceitamos a necessidade de resistir a essa solicitação?

Para tudo isto, cada um tem a sua cruz. E Nosso Senhor Jesus Cristo nos mostra o papel fundamental do sofrimento. Uma das razões pelas quais não foi possível ao Padre Eterno atender à oração de Jesus foi que os homens tivessem esse exemplo.

Quando Napoleão estava na fase ascensional de sua carreira, antes ainda de se tornar imperador, um bajulador disse-lhe: “General Bonaparte, por que vós não vos fazeis proclamar deus?” Os antigos heróis romanos, e os da Antiguidade em geral, quando “megalavam”(3) muito, acabavam sendo divinizados. Ele olhou para o sujeito de frente e deu esta resposta esmagadora: “Depois de Jesus Cristo, só há um jeito de alguém ser tomado a sério como deus: subir no alto do Calvário fazendo-se crucificar. Eu não estou disposto a isto.”

O exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo calou tão fundo que nunca mais nenhum candidato à divindade foi tomado a sério, porque só a cruz é séria, e apenas são verdadeiramente sérios os homens que querem carregar sua cruz. Portanto, devemos amar a nossa cruz e meditar sobre os pontos acima referidos.

Ele sofreu para que, por exemplo, no dia 30 de março de 1972, neste pequeno auditório, pudéssemos meditar isto juntos, e cada um sair daqui mais resolvido a combater o seu bom combate. Quer dizer, a carregar sua cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1972)

1) “Concordância dos Santos Evangelhos” ou “Os quatro Evangelhos reunidos em um só”, de autoria do Arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva. São Paulo: Ave Maria, 3ª ed., 1940, p. 365-368.
2) Mt 27,46.
3) “Megalar”, termo criado por Dr. Plinio, derivado de magalomania (mania de grandeza). Usado no sentido de “exagerar as próprias qualidades”, “envaidecer-se”, etc.

Oração para pedir almas que amem a Cruz

Senhor Jesus, Varão das dores, em vossa Alma e em vosso Corpo sofrestes tudo quanto é dado a um homem sofrer. Contemplo vosso cadáver descido do patíbulo, vossa humanidade como que aniquilada, e vosso Sangue infinitamente precioso vertido até a última gota ao longo da Paixão. 

Por todos os séculos dos séculos, representareis a dor no horizonte interior de nossas almas. A dor, com tudo quanto ela tem de nobre, de forte, de grave, de doce e de sublime. A dor elevada do simples âmbito das considerações filosóficas para o firmamento infinito da Fé. A dor compreendida em sua significação teológica, como expiação necessária, e como meio indispensável de santificação. 

Pelo mérito infinito de vosso preciosíssimo Sangue, dai à nossa inteligência a clareza necessária para compreender o papel da dor, e à nossa vontade a força para amá-la com todas as veras de nossas almas.

É só pela compreensão do papel da dor e do mistério da Cruz que a humanidade pode salvar-se da crise tremenda em que está afundando, e das penas eternas que aguardam os que até o último momento permanecerem fechados ao vosso convite para trilhar convosco a via dolorosa.

Maria Santíssima, Mãe das Dores, por vossas preces obtende que Deus multiplique sobre a Terra as almas que amam a Cruz. É a graça de valor incalculável, que Vos pedimos, no crepúsculo desta nossa pobre e estropiada civilização.

 

Provações e glória do Cireneu

Dr. Plinio imagina as reações de alma de Simão Cireneu ao presenciar a Paixão e ser obrigado a ajudar Nosso Senhor a carregar a Cruz. Essas explicitações mostram não apenas seu requintado senso psicológico, mas sobretudo sua ardente, elevada e nobre piedade.

 

Ao lermos no Evangelho o episódio a respeito de Simão Cireneu, devemos imaginá-lo como um homem miúdo, pobretão, que levava a sua vida com uma felicidade própria aos pobres. Os pobres são mais despreocupados que os ricos Em geral, tem-se a impressão de que o pobre vive preocupado porque lhe falta dinheiro, e que o rico passa a vida despreocupado porque lhe sobra dinheiro.

Mas não é assim. Neste nosso século todas as fortunas estão continuamente abaladas, no risco de serem perdidas. Se um homem tem uma pequena indústria, de um momento para outro pode vir uma greve e jogar a sua fábrica no chão.

Se possui um consultório médico ou um escritório de advocacia, de repente pode surgir uma calúnia e acabar com a reputação dele. Todas as profissões trazem hoje preocupações muito grandes.

Uma das vezes em que estive em Roma, visitei um seminário dos Jesuítas. O padre que me mostrava o colégio disse-me:
– Aqui morou e morreu o nosso Padre Fulano.
Perguntei:
– Quem é o Padre Fulano?
– Não ouviu falar?! Antes de ser padre, ele fora engenheiro e construiu uma ponte célebre aqui no Tibre.
– Ah!… está bem.

O Tibre está cheio de pontes, uma a mais, uma a menos não faz diferença; eu não vi a considerada especialmente  “célebre”. Mas, em todo caso, celebrei um pouco a coisa. São as gentilezas e as banalidades da amabilidade.

Então ele contou uma coisa que achei interessante:
– O senhor não imagina que antes de ser padre ele foi um engenheiro de mão cheia. E, por coincidência, deram-lhe um quarto aqui, donde se  via a ponte que ele havia construído. 

Quando ele estava à beira da morte e já não podia se mover, de vez em quando pedia ao irmão jesuíta que tomava conta dele para levá-lo até à janela, a fim de ver se a ponte não tinha caído. Não tinha razão nenhuma, coitadinho. Mas levava essa preocupação até o fim da vida.

O pobre é menos preocupado porque não tem a aflição do que fazer com o seu dinheiro. Ele vai tocando a vida. Quando olhamos para as pessoas pobres na rua, notamos terem a fisionomia mais  despreocupada do que as ricas. Um dos Santos mais alegres que houve na Igreja foi São Francisco de Assis. Ele escreveu até uma famosa reflexão a respeito da perfeita alegria. 

Certa vez, meu pai foi apresentado a um rapaz riquíssimo, uma das maiores fortunas de São Paulo. Estavam também outras pessoas da família. Começaram a conversar e meu pai, já bem idoso, começou a dormir. Mas eu percebi, pelo jeito dele, que estava meio dormindo, meio prestando atenção na prosa. Então o rapaz começou a contar que ele precisava ir para tal fábrica, etc.

Meu pai abriu ligeiramente os olhos e disse: 

– Olhe rapaz, o dinheiro é bom escravo e mau senhor. Se você tem essa fortuna toda para aproveitar, aproveite, mas para carregar o seu dinheiro como você carrega, isso não é vida.

Lembro-me ainda da surpresa do rapaz, mas ele percebeu que ali tinha qualquer coisa de verdadeiro. 

A tragédia irrompe na vida do Cireneu 

Então o Cireneu deveria andar despreocupadamente, pensando nas pequenas coisas da vidinha dele: a sandália estava meio desgastada, como ele iria fazer para mandar consertar, ou arrumava ele  mesmo… Ou, então: “Qual é a espécie daquele passarinho que está piando lá; será que serve para comer? Se servir, posso levá-lo a fim de alimentar meu filho; se não, para minha mulher pôr numa gaiola e ficar nos divertindo em casa.” E coisinhas assim… Podemos imaginar até que ele ia alegre, cantarolando. É a despreocupação da vida do pobre.

De repente depara-se com uma turbamulta gritando: “Pega! Mata! Crucifica!” Ao longe, o Cireneu ouvia uns gemidos. A tragédia irrompera na sua vida. Ele nunca escutou ninguém gemer assim. 

Que dor lancinante!

Quem seria o homem que gemia? Talvez pensasse ele: “Mas eram gemidos ou um cântico? Que voz harmoniosa, que timbre bonito, que vontade eu teria de ajudar esse homem, o qual geme de um modo tão celeste! Quem será esse homem?” Pela primeira vez sentiu-se meio atraído por algo que nunca o atraíra na vida. Quando ele via alguém sofrer, tinha vontade de fugir. A dor era precisamente o que a sua alegria despreocupada não queria ter; ele queria fugir de todos os sofrimentos, de todos os que sofrem, porque de repente aquela dor poderia contagiá-lo.

Alguém roga ajuda, um apoio, ele está com pena, mas pode acabar entrando na tragédia; isso ele não quer, é um securitário. Por isso tem vontade de sair, de afastar-se daquele caminho.

Mas ao mesmo tempo a voz vinha chegando mais perto, o vozerio dos algozes também ficava mais alto.

Simão pensava: “Que contraste! Quando esse homem geme é uma música; mas esses que gritam contra  ele, o perseguem, que barulho medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem harmonia, que gente  má! Eu estou com vontade de tomar partido”.

Era uma graça que, sem ele saber, batia em sua alma, penetrava nela e o Cireneu ficava inclinado a fazer o bem.

Mas de outro lado vinha a sugestão do demônio: “Cuidado! Fuja! Olhe, entre por aquela porta, isto aqui dá encrenca! De repente misturam você com isso e o levam para a dor junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova!” Ele pondera: “Olhe que é verdade, hein! Se eu desse uma volta por lá, pela outra porta, seria um pouco mais longe, porém eu ficaria longe desse barulho”.

O Sangue de Cristo brilha como um rubi Nesse momento ele ouve os gemidos novamente. 

Com o coração rachado de compaixão, a graça pousando nele, contudo com o egoísmo soprado pelo demônio dizendo-lhe o contrário: “Pense em si, não se incomode com esse homem! Se ele estivesse no seu lugar, fugiria; fuja você também, bobo!” Na indecisão, o Cireneu continua a caminhar. Em certo momento dá-se o encontro: ele vê um Homem de trinta e três anos com os longos  cabelos desalinhados, gotejando sangue, o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num ponto e noutro, com o nariz naturalmente arqueado, quebrado por uma pancada brutal, com a cabeça coroada de espinhos, com uma Cruz pesadíssima às costas e que Ele arrastava penosamente.

Simão ficou horrorizado e pensou: “Mas na vida, há tanta dor assim? Nunca pensei que isso pudesse  acontecer a alguém, e de repente sucedeu a ele. E não pode, de repente, acontecer a mim?” O demônio sussurra: “Fuja! Fuja!” 

Um Anjo dizia: “Fique aqui, tem alguma coisa para você!” Um dos soldados romanos viu-o nessa indecisão e lhe ordenou brutalmente: – Pegue a ponta da cruz! Os romanos dominavam a Terra Santa, eram os senhores e a nação judaica fora conquistada por eles; por isso, mandavam em tudo. Quem estivesse com aquele capacete romano, com aquela armadura, com as armas de César, esse tinha que ser obedecido. 

“Como – pensava Simão –, é essa cruz ensopada de sangue que ele me mandou pegar? Vejo o sangue que escorre e goteja no chão, e eu vou me molhar com ele…” Enquanto cogitava nisso, o Sol incide no Sangue e brilha uma cor rubi. 

Algo lhe diz: “Esse Sangue é a salvação, agarre-O.” “Mas – pensa Simão – e a dor, o peso dessa cruz?” – Pegue já – insiste o soldado –, porque ele não está aguentando e tem que subir até o alto daquela montanha. 

O Cireneu cogita: “Eu então tenho que levar essa cruz até o cimo da montanha. Subir uma montanha com uma cruz, atrás desse pobre coitado gemendo assim?! Não tenho coragem, é muito esforço, e não gosto de fazer esforço.”

– Pegue! Se não, você apanha. Simão pensa: “Agora a coisa complicou, porque então vai escorrer o meu sangue. Dessa não fujo… Já devia ter escapado, agora tenho que pegar a cruz.” Ele, então, decide carregar a Cruz.

A bondade de Jesus dedilha sua alma

Quem leva a Cruz olha para ele. E Simão percebe que aquele olhar o penetrou completamente, e ele sente uma coisa que nunca sentiu na vida. O Cireneu é um homem casado, possui filhos, alguns deles pequeninos, teve bons pais e relações de família comuns, como havia naquele tempo. Mas ele se sente objeto de um olhar como nunca ninguém o olhou assim. Ele sentia que esse olhar lhe penetrava no fundo da alma, e era de Alguém que o conhecia antes mesmo de ele nascer, sabia quem era e quem havia de ser. Um olhar extraordinário, que o envolvia de um afeto como nunca ninguém tinha tido.

Ele se sentiu compreendido nas suas peculiaridades e percebeu que aquele olhar conhecia a sua vida inteira, todas as suas dores, e que tinha pena dele. O Cireneu sentiu-se atraidíssimo mais do que nunca; tendo tomado a Cruz, o Sangue quente que escorria lhe tocou nas mãos, ele sentia-se meio envolvido naquela tragédia, e cada vez mais atraído por esta. 

Mas o medo procede por solavancos e, em determinado momento, ele diz para o romano: – Eu não quero continuar! – Se não carregar, apanha! Ele, então, mal-humorado toma a Cruz e  prossegue. 

Um diálogo mudo se estabelece entre os dois homens. O Homem-Deus e o Cireneu. O Homem-Deus dizia a ele:

– Meu filho, é por você que Eu sofro. Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último ponto do desprezo dos homens, mas olhe para Mim, note que misteriosa grandeza há em Mim.

Que bondade envolvente, a qual dedilha a sua alma como um bom médico toma uma chaga para nela pôr um unguento. Você não percebe que está sofrendo fisicamente com o peso da minha Cruz, mas que a sua alma está sentindo uma leveza como nunca sentiu? Não está percebendo que um horizonte novo se põe para você? Encontram-se ao pé do Calvário, é preciso continuar a subir  e a Cruz para Simão se torna cada vez mais pesada. Ele pensa: “É terrível  isso, entretanto mais terrível seria se eu largasse a cruz e Ele caísse sob o peso dela e esfolasse as palmas das  suas mãos nas pedras deste solo. Eu não suportaria isso, agora vou até em cima.” 

E ajudou a carregar a Cruz até o cume do Calvário. Os carrascos dizem a Jesus: – Põe a cruz no solo! Ele, humilde e bondosamente, coloca a Cruz no chão e ao Cireneu que O ajudava fitou com um olhar de reconhecimento. Foi o último olhar que Ele deu para Simão. O Cireneu afastou-se e percebeu que os romanos já não estavam pensando nele, estava fora da tragédia. 

Disseram a Nosso Senhor:
– Abra os braços, estenda bem as pernas, nós vamos cravar estes pregos nas suas mãos e nos seus pés! 

E Ele, como quem queria sofrer aquilo, fez o que mandavam e a pancadaria começou. “Transpassaram as minhas mãos e os meus pés, posso contar todos os meus ossos” (Sl 21, 17-18). Este Salmo se referia ao Messias. De fato, puseram cravos um em cada mão e depois nos pés. Segundo uma tradição, não foi um prego em cada pé, mas um grande cravo que atravessou os dois pés, prendendo-os na Cruz.

Apavorado e ao mesmo tempo fascinado

Quando isso estava feito, levantaram a Cruz e Ele ficou pendente daqueles pregos de maneira tal que, quando Se apoiava nos braços, os cravos começavam a rasgar as mãos; quando Se sustentava nos pés, para evitar que se rasgassem as mãos, o prego iniciava a dilacerar os pés, e tudo não era senão aumento de dor. O Cireneu, de longe, olhava apavorado e ao mesmo tempo fascinado, não falava com ninguém, ele tinha voltado a ser um anônimo na multidão.

Em determinado momento, ele percebeu que do alto da Cruz Nosso Senhor conversava com os dois ladrões, os quais estavam de um lado e de outro. Ele notou que um ladrão blasfemava e Nosso Senhor fingia não ouvir. E o outro olhava com tristeza e tomava a defesa de Jesus, dizendo: 

– Por que você blasfema dessa maneira? Estamos aqui porque somos criminosos; o destino de um criminoso é morrer como nós. Ele é o inocente, Ele é o justo, Ele é o Santo, e morre assim…
E Simão ouviu Nosso Senhor responder:
– Tu hoje estarás comigo no Paraíso. 

Perdoou todos os seus pecados e profetizou que Ele iria para o Céu e levaria consigo o bom ladrão. O povinho passava de um lado para o outro, alguns apedrejavam, outros vaiavam, outros se calavam, alguns choravam. O céu foi se escurecendo cada vez mais. Em certo momento fez-se noite sobre Jerusalém e, entretanto, eram três horas da tarde.

E nessa “noite” se ouviu o brado d’Ele: “Eli, Eli, lamá sabactâni? – Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E, em seguida: “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30). E morreu.

Nossa Senhora lhe dá um sorriso machucado, mas florido

Um grupo de mulheres estava lá, das quais uma exercia sobre Simão uma atração parecida com a produzida por aquele Homem. O Cireneu perguntou: 

– Quem é aquela?
– É a Mãe d’Ele – respondem.
– A mãe dele? Mas isso para mim vale mais que uma rainha, uma imperatriz, mais do que todo o mundo. 

Que honra ser mãe desse homem fracassado, tão inábil que sendo inocente não evitou a própria morte. Que sabedoria desse homem derrotado, e que vitória essa cena! Jesus morreu e o céu todo se toldou, escureceu, e quando ele pensava nisso um tremor começou a sacudir a terra.

O Cireneu continuou olhando aquilo, teve medo, sobretudo, quando viu figuras andando de olhos fechados, todas envoltas em tiras de panos brancos, que era como naquele tempo se envolviam os cadáveres quando sepultados e, com a boca fechada, diziam terríveis censuras ao povo. E com os olhos cerrados pareciam que olhavam e radiografavam o corpo e a alma daqueles bandidos. Eram os justos da Antiga Lei que saíam das sepulturas para increpar o povo que acabava de matar o Filho de Deus. Ao longe, ele viu o Templo todo tremer Ele quis falar com aquela Senhora, mas não ousou, tal a pureza que via naquela Dama. 

Tiraram da Cruz o Corpo sagrado de Jesus, ungiram-No sobre o colo d’Ela e levaram-No para a sepultura. Organizou-se, então, o cortejo de umas dez ou quinze pessoas: São João Evangelista, as mulheres, Nicodemos, José de Arimateia. 

Simão não teve coragem de acompanhar. Ele pensou: “O que vai me acontecer? Vejo-me tão cheio de ideias, de preocupações, que já estou perdendo a esperança, porque, afinal de contas, sou um miserável, um medroso, um homem carregado de pecados. Nunca estarei à altura de tudo quanto eu vi.”

O cortejo aproxima-se e aquela Senhora faz pousar sobre o Cireneu um olhar de bondade e lhe diz apenas duas palavras: “Meu filho!” “Ganhei o dia – pensa ele –, ganhei a vida, estou perdoado, vou para casa.”

Em sua residência a mulher e as crianças dormiam, tudo estava tranquilo. O primeiro cuidado que ele teve foi de trocar de túnica, pegar a usada e osculá-la com reverência; era o seu primeiro ato de adoração. Ele terá pensado: “Esse Homem é Deus”. Foi o primeiro ato de Fé, de adoração. Dobrou a túnica considerando-a o maior tesouro do mundo, osculou as manchas de Sangue como se fossem a coisa mais preciosa que há na Terra – e era mesmo –, guardou-a num lugar onde ninguém podia mexer; pôs outra túnica e sentou-se do lado de fora do jardim.

O tempo corria… De repente, ele percebe que aquele cortejo estava se dispersando. O Cireneu saiu de novo atrás deles e viu a casa para onde se dirigiam. Abriram a porta e, pouco antes de entrar, aquela Senhora olha para trás e, do fundo de sua dor, dá-lhe um sorriso, machucado, mas florido. 

Ele entendeu, era um convite. O Cireneu começou a frequentar os Apóstolos e tudo leva a crer que se santificou, talvez tenha morrido mártir. O silêncio paira sobre esta vida que começa no silêncio. Era um homem adulto que de repente saía da banalidade, da vulgaridade, e entrava nesse arco de dor e de glória. Acabou cumprindo o seu dever depois de mil dificuldades e sumiu de novo no anonimato, mas a alma dele, assim podemos esperar, foi recebida no Céu quando ele morreu. O Cireneu tinha tido a honra, a vocação única de, sozinho, carregar a Cruz do Cordeiro de Deus. 

O Cireneu não era um combatente e nós o somos

Nós podemos carregar a Cruz de Nosso Senhor?

Da Cruz resta apenas um pedaço em Roma, mas dele, de vez em quando, obtém-se algum minúsculo  fragmento com um valor moral e religioso inapreciável: é o Santo Lenho. Figura na cruz peitoral de alguns bispos, nos relicários de algumas igrejas, etc. 

Há mil modos de carregar a Cruz. Nós A levamos quando sofremos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo. Por exemplo, há muita gente que nos odeia porque amamos a Nosso Senhor, somos puros, castos, acreditamos na Santa Igreja Católica Apostólica  Romana como ela deve ser, sem embustes e falsificações. Por isso todos quantos se entregaram ao paganismo contemporâneo nos odeiam. Sempre que esse ódio bater em nosso peito, acompanhado desta ameaça: “Você vai ser vaiado e isolado por todos. Bobo, deixe isso!”, lembremo-nos de que estamos carregando a Cruz do Redentor, e de que temos um prêmio demasiadamente grande diante de nós. Quem é perseguido, odiado e desprezado por amor à virtude, à Fé, a Nosso Senhor Jesus Cristo, esse tem um prêmio
enorme no Céu. 

No sermão das bem-aventuranças Nosso Senhor disse expressamente que uma delas era para aqueles que sofrem perseguição por amor à virtude, ao bem. O bem e a virtude naquele tempo eram designados pela palavra “justiça”, que dava o nome a todas as outras virtudes. Esses bem-aventurados receberão recompensa nesta vida e no Céu. 

Mas o Cireneu não era um combatente e nós o somos. Nós não devemos nos limitar a levar a pancada,  temos que tomar o trabalho de dar a pancada também.

Quer dizer, quando caçoam de nós, não devemos fazer uma cara de bobo que apanha; isso é ridículo, não digno do nome de Nosso Senhor. Precisamos levantar a cabeça e responder taco a taco:

“Eu menosprezo o seu desprezo e me orgulho d’Aquele de Quem você fala mal. Você está falando mal de Nosso Senhor Jesus Cristo e eu me ufano de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu O adoro como Homem-Deus, ria quanto quiser, que debocho de sua risada.”

“Está vendo aquele jovem lá? Você vai corrompê-lo com maus conselhos. Eu vou junto com você defendê- lo contra suas más palavras, porque quero retê-lo junto à Cruz de Cristo. Terei batalhas por isso, mas responderei a uma ofensa com uma defesa, a um argumento com outro argumento, serei denodado como um batalhador, e levarei muitos atrás de mim; são centenas de derrotas que você encontrará no seu caminho, as quais são as vitórias de Nosso Senhor Jesus Cristo.” 

O Homem-Deus conhecia o passado, o presente e o futuro. E quando Flávio Lourenço carregava a Cruz, teve ciência de cada  um daqueles que ajudariam a Igreja e a Civilização Cristã nas lutas contra seus adversários. Ele via todos os ataques, todas as defesas. Observava, numa cidade chamada São Paulo, um auditório cheio de jovens chamados pela graça para O ajudarem a carregar a Cruz. Via essas almas se abrindo para a beleza da vocação do Cireneu e para a glória de carregar, combativamente, a Santa Cruz do Redentor. E isso O consolava na sua dor. De maneira que hoje nós consolamos a Nosso Senhor Jesus Cristo carregando a sua Cruz. 

Fomos, portanto, Cireneus. Resta-nos pedir a Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia, que nos faça Cireneus cada vez mais autênticos, mais amigos da Cruz e mais batalhadores pela Igreja e pela Civilização Cristã.

Paixão de Cristo, Senhor nosso: dai-me forças!

Sexta-feira Santa de 1991. Aos pés do Crucifixo diante do qual sua mãe costumava recordar, nesse dia, a Paixão e Morte do Redentor, Dr. Plinio, reunido com alguns de seus discípulos, medita na indizível misericórdia do Filho de Deus em se imolar pela salvação dos homens, e na necessária reforma de vida com que devemos retribuir esse resgate de valor infinito.

 

O sacrifício da Vítima Divina no alto do Calvário nos propõe diversos e importantes pontos para nossa reflexão. Tomemos em consideração alguns deles.

Nosso Senhor Jesus Cristo consumou seu holocausto e acabou de morrer por nós. Como narra o Evangelho, após o brado lancinante de “Eli, Eli, lamma sabactani — meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes” — Ele entregou seu espírito nas mãos do Padre Eterno e, em seguida, tendo inclinado a cabeça, expirou. Tudo estava terminado.

Pináculo da tristeza, aurora de uma imensa alegria

Até esse augusto e trágico momento, reinavam no mundo a desolação, o pecado e a miséria. Porém, sobre tudo isso derrama-se agora o preciosíssimo Sangue de Cristo. A Redenção acaba de se operar, o gênero humano é resgatado, e o caminho para o Céu novamente aberto para ele. Assim, o pináculo da tristeza, da tragédia e do horror vizinha a mais radiosa aurora da mais intensa das alegrias.

Aos pés da Cruz encontra-se Nossa Senhora, cujo Coração Imaculado e Sacratíssimo está rachado de dor. Ao mesmo tempo, Ela preliba todas as alegrias da salvação das almas. Maria tudo compreende, vê e mede, não só a regeneração do mundo nesta vida, mas, sobretudo, o esplendor eterno que todas as almas justas receberão para maior glória de Deus.

Diante dessa atitude da Santíssima Virgem, peçamos-Lhe que interceda por nós junto ao seu Divino Filho, e nos obtenha um inflamado zelo por nossa própria santificação. Desse modo, saberemos aproveitar tanto sangue vertido e tantas lágrimas, tanta dor e tanta tragédia, para igualmente sabermos participar da glória da Ressurreição de nosso Salvador.

As almas dos fiéis defuntos à espera da Redenção

Noutra consideração, pensemos como, há milhares de anos, as almas de Adão e Eva, juntamente com as de todos os seus descendentes justos, que cumpriram a Lei nesta vida, esperavam o momento bendito da Redenção. Aguardavam, naquela misteriosa mansão dos mortos à qual a própria alma de Cristo haveria de descer para libertá-las. Aguardam: espera longa, espera indefinida quase até à aflição, durante a qual a alma se torna cada vez mais sedenta de fazer cessar esse estado provisório em que se encontra, e de entrar na sua condição definitiva de bem-aventurada, repleta de glória e de grandeza!

Em seus insondáveis desígnios, quis a Providência que essas almas padecessem esse sofrimento da espera. Contudo, podemos imaginar também, após uma tão longa expectativa, a alegria inenarrável e ilimitada quando viram aparecer diante delas a luminosíssima e santíssima alma de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pensemos nessas almas justas. Antes de tudo, nas de nossos primeiros pais, Adão e Eva, cujas figuras devemos recordar nesse instante, com sumo amor e respeito. Lembremo-nos, no extremo oposto da perspectiva histórica, de São José, esposo castíssimo de Nossa Senhora e pai legal do Verbo Encarnado. Durante muitos anos esteve ele com a Santíssima Virgem e Jesus. Privado, pela morte, desse convívio que tanto o maravilhava e cumulava de contentamento, São José não terá se contido de felicidade, ao perceber ali, junto dele, o Redentor radioso e glorioso, trazendo-lhe a boa nova do término da longa espera e da sua passagem para o Céu.

Lá já estava, recém-chegada, a alma do bom ladrão, justificado pelos próprios lábios do Salvador: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Esperar com paciência nossa salvação

Pensemos, então, nessa libertação depois da prolongada espera. Comparemos a situação daquelas almas justas com a nossa, peregrinos neste mundo incerto, na esperança de alcançarmos o porto da bem-aventurança eterna. E peçamos a Nossa Senhora que nos auxilie e ampare a cada momento dessa nossa caminhada, a fim de que, salvando-nos, nossa libertação seja igualmente gloriosa — não para nós, mas para a honra d’Ela e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, à maneira da glória dos fâmulos que se associam ao triunfo dos mestres.

Que a Santíssima Virgem nos alcance a graça de esperarmos com paciência, não de uma espera negligente e indolente, mas sofrida e semeada de santas ansiedades. Espera sem nenhuma revolta; espera de almas que compreendem ter o Divino Senhor seu tempo para tudo, e, por isso, amam as horas de Deus.

“Sangue de Cristo, inebriai-me”

Num passo seguinte, consideremos que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo nos redimido e aberto para nós as portas do Céu, é o momento de olharmos para nossas almas pecadoras. Pensemos em todo o sangue vertido por ele para limpar e purificar nossas almas, e para inebriá-las com suas graças. E digamos: “Sanguis Christi, inebria me; acqua lateris Christi, lava me; passio Christi, conforta me”. Sangue de Cristo, inebriai-me; água do lado de Cristo, lavai-me; Paixão de Cristo Senhor nosso, dai‑me forças.

Que Nosso Senhor nos dê, pelos rogos de Maria, a graça de olharmos para nossas almas, com todos os seus defeitos, contorções e misérias, com tudo o que nos desvia do que deveríamos ser, que nos afasta do caminho da santidade para a qual somos todos chamados. Peçamos perdão por nós, por nossos próximos e por nossos irmãos de vocação, a fim de que, encarando cada um seus próprios defeitos, tenhamos coragem e força, alcançadas para nós pelo Sangue de Cristo, para empreender uma séria e honesta reforma de nossas almas.

Senhor Jesus, Maria Santíssima, Mãe dos pecadores, tende pena de nós. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído da meditação feita em 13/4/90)

Os Impropérios cântico de dor e esperança

Na liturgia da Sexta-feira Santa, enquanto os fiéis se aproximam para adorar a Cruz do Salvador, ecoa pelo recinto sagrado o cântico dos Impropérios: dolorosas e compassivas admoestações postas nos lábios de Nosso Senhor em relação aos homens que Lhe retribuem com ofensas e pecados, o benefício infinito da Redenção.
Como assevera Dr. Plinio, essas estrofes nos devem incitar ao arrependimento e à conversão, bem como alimentar em nossa alma uma firme esperança na misericórdia divina.

 

Um dos mais belos modos de se fazer a meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo consiste em analisar os Impropérios, texto inspirado nos profetas do Antigo Testamento e cantado na liturgia da Sexta-feira Santa.

Em certo sentido, exprime o que há de mais dilacerante na Paixão do Redentor, tornando patente aos nossos olhos a suprema injustiça perpetrada contra o Filho de Deus. Por outro lado, como Nosso Senhor sofreu devido aos pecados dos homens de todos os tempos, os Impropérios se aplicam a cada um de nós.

Colher sentimentos de contrição

Assim, num ato de piedade, devemos imaginar Jesus — e também Nossa Senhora, presente espiritual ou corporalmente nos vários passos da Paixão — na agonia do Horto e, mais tarde, sendo flagelado, oprimido com a cruz às costas, crucificado e morto por nosso amor. Ao rezarmos a Via Sacra, convém considerarmos que Nosso Senhor nos dirige perguntas semelhantes às dos Impropérios, e cada estação nos reserva graças especiais de compunção e arrependimento.

Desse modo, podemos tomar as diversas estrofes desse texto e aplicá-las à nossa alma, colhendo ditos sentimentos de contrição. Aos pés do Bom Jesus, nosso remorso deve ser repleto de confiança, tranqüilo, suave, e ao mesmo tempo amargo como o de São Pedro. Não agitado, perturbado e horrendo como o de Judas. Será útil um exame de consciência para nos lembrarmos de nossos pecados da vida passada, das graças recebidas e o uso que delas fizemos, pois esses dons celestiais custaram pedaços da carne e gotas do sangue de Nosso Senhor, bem como lágrimas da Santíssima Virgem.

Cabe a nós, no momento em que recebemos tantas dádivas do alto, nos perguntarmos: “Ó Deus, não haverá um recanto de minha alma que eu poderia entregar e não o fiz? Não devo pedir a Nosso Senhor que me o faça conhecer? Se conheço, preciso rogar-Lhe — pelas suas chagas, pelo seu pranto dulcíssimo, pelos seus gemidos amargos, pelo “consummatum est” da última agonia — que tenha pena de mim e me conceda coragem para entregar tudo a Ele”.

Portanto, ao meditarmos na Paixão do Salvador, supliquemos graças superabundantes, pois essa é a hora da misericórdia, na qual até o bom ladrão foi perdoado, e de malfeitor que era tornou-se santo. Peçamos e confiemos: em toda Sexta-feira Santa, Nosso Senhor nos reserva dons semelhantes e até maiores aos por Ele concedidos no dia de sua morte.

Interpelação sem resposta

Analisemos, agora, os Impropérios 1.
Povo meu, que te fiz Eu, ou em que te contristei? Responde-me!

Nosso Senhor é perfeito, não contristou nem fez mal algum a ninguém. Conhecendo o silêncio da pessoa a quem se dirige, Ele diz: “responde-me”. Ou seja, “pelo mutismo de teus lábios, note até que ponto deves te arrepender de teu pecado”.

Porque Eu te tirei da terra do Egito, preparaste uma cruz para o teu Salvador?

A migração do povo judaico — que vivia como escravo no Egito — para a Terra Prometida é um símbolo da libertação do estado de pecado original, no qual nascemos, para a ordem da graça obtida pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Simboliza, também, nossas conversões ao longo da vida.

Quando alguém comete pecado mortal, perde a vida da graça, sua alma fica como que morta. Se ele falecesse neste estado, seria condenado ao inferno. Entretanto, pelo Sacramento da Penitência, Deus se compadece dele e o tira da “terra do Egito”. Ou seja, da “sepultura” do pecado, onde sua alma como que “jazia” morta, restitui-lhe a vida da graça. Porém, se o mesmo indivíduo recai no pecado, caberia a ele a pergunta feita por Nosso Senhor aos hebreus: “Eu tirei tua alma da lepra do pecado mortal, livremente contraído por ti; por causa disto tu agora me odeias?”

É uma indagação pungente, cujo significado mais profundo é este: “Meu filho, veja o estado de tua alma, converte-te!”

A única solução: mudar de vida

Porque Eu te conduzi quarenta anos pelo deserto, te alimentei com o maná e te introduzi na terra esplêndida: preparaste uma cruz para o teu Salvador?

O maná é um símbolo da Eucaristia, O Redentor pergunta a cada um de nós: “Eu me fiz hóstia no Santíssimo Sacramento para habitar no meio dos homens e ser alimento de suas almas, e tu me persegues? Eu te introduzi numa terra esplêndida (isto é, na Santa Igreja Católica Apostólica e Romana, a instituição perfeita, a pátria de nossas almas), te concedi a maior honra e felicidade que o homem possa ter no mundo, a de ser filho da Igreja: por causa disso tu me persegues?”

Nota-se que, ponto por ponto, ao mesmo tempo a recriminação é doce e repassada de uma lógica irretorquível. A possibilidade de uma justificação de nossa parte desaparece completamente.

A única solução para cada um de nós é mudar de vida, ajoelhar-se diante de Nosso Senhor e dizer: “Pequei, tende piedade de mim! Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, lavai minha alma, extirpai minhas faltas.”

Que mais devia ter feito por ti, e não fiz?

Tudo que é para nosso bem, Jesus realizou. Entre outras coisas inapreciáveis, deu-nos como Mãe a própria Mãe d’Ele. Que mais Ele deveria ter feito? Não há resposta…

Insisto, a única atitude conveniente de nossa parte é o pranto ou a batida do nosso punho no peito. O som dessa batida é o cântico no qual o Redentor pede nossa contrição, num misto de força e doçura que exprime bem a infinita santidade de Jesus.

Não ser como uvas amargas

Eu te plantei como vinha escolhida e preciosa: e tu te tornaste excessivamente amarga para Mim; vinagre me deste a beber na minha sede, e com uma lança atravessaste o lado do teu Salvador.

Quer dizer, o povo eleito foi colocado na Terra Prometida como uma vinha de grande qualidade a qual, ao invés de produzir uvas doces, deu frutos de excessivo amargor. Quando Jesus teve sede, deram-Lhe vinagre no lugar de água e, pela lança do centurião, transpassaram o flanco de Nosso Senhor. Fato pungente: foi ferido o coração, símbolo do amor, e dele jorraram as últimas gotas de sangue. A crueldade não poderia ter ido além.

Como nas estrofes anteriores, essas palavras são figurativas e se aplicam às nossas almas. Cada um de nós é uma vinha plantada pelo Divino Salvador no solo precioso da Igreja Católica, mais valioso que dez mil terras prometidas. A Igreja é a habitação de nossa alma, e cada um de nós poderia dizer a si mesmo: “Eu deveria produzir frutos de doçura para Nosso Senhor, amá-Lo, cumprir os Mandamentos, obedecê-Lo em tudo e não praticar ato algum que me afastasse d’Ele. Porém, não foi essa minha vida; cometi ações contrárias a meu Salvador, pequei e me transformei na uva amarga que depõe contra o agricultor cuidadoso. Pior. Quando Nosso Senhor, no auge de seus tormentos, tinha sede e me pedia Lhe desse ao menos água para beber, ou seja, reparação límpida, eu pequei…”

Ou seja, em todos os momentos, devo procurar consolar Nosso Senhor pregado na cruz. Do contrário, sou tíbio, imperfeito… E se cometi algum pecado mortal, fiz como o centurião romano, ferindo o Coração de Jesus. Preciso, então, bater no peito, pedir perdão. Não é apenas a ofensa grave, mas também o ensabugamento”2″, o ficar estacionado e não progredir na vida espiritual.

Não haverá aqui um impropério de Nosso Senhor para mim, em razão dos sofrimentos que Lhe causei? É-me necessário, pois, suplicar a Ele tenha pena de mim. E, repleto de esperança, lembrar-me do que nos diz a tradição a respeito de Longinos, o soldado de César cujo golpe de lança perfurou o coração do Redentor. Segundo escreveu alguém, parece que Longinos era catacego e foi milagrosamente curado das vistas quando o precioso Sangue de Cristo jorrou da ferida e respingou sobre a sua face. Converteu-se e tornou-se um santo. Quem sabe se, durante as cerimônias da Sexta-feira Santa, ao serem entoados os Impropérios, sou eu também curado de minha cegueira espiritual? Eis uma inestimável graça que devo pedir.

Como correspondemos aos favores divinos?

Por tua causa flagelei o Egito e os seus primogênitos; e tu aos açoites me entregastes.

Para que o povo hebreu finalmente pudesse sair do Egito, Deus feriu com uma praga todos os primogênitos da maior nação do mundo de então. E, durante sua Paixão, Nosso Senhor foi açoitado… Ora, quando cometo algum pecado, eu flagelo Nosso Senhor. Trata-se, aqui, de uma censura pungente, continuando sempre numa lógica inflexível.

Eu abri o mar à tua passagem; tu me abriste o lado com uma lança.

Há benefício mais esplêndido do que abrir o mar para um povo fugitivo passar? Existe forma mais ingrata de retribuir o autor de uma dádiva, que perfurar o seu coração com uma lança?

Caminhei diante de ti em uma coluna luminosa e tu me levaste ao pretório de Pilatos.

Deus, através de uma coluna luzente, orientou o povo de Israel pelo deserto. E Nosso Senhor foi conduzido ao pretório para ser julgado por Pôncio Pilatos…

Esta lamentação de Jesus também se aplica à minha vida. Deus iluminou meus caminhos à maneira de uma coluna de luz, constituindo a alegria de minha existência. E tive a desfaçatez de pecar contra Ele!

Alimentei-te com maná no deserto: e tu me feriste com bofetadas e açoites.

O maná era um alimento delicadíssimo, possuía toda espécie de gostos e caía do céu com abundância, para todos se fartarem. Ora, como acima mencionamos, a Sagrada Eucaristia é como um maná: abundante, contém para as almas todos os sabores, a fim de saciá-las. Quando pecamos, retribuímos esse dom divino com bofetadas! Note-se, mais uma vez, a contradição flagrante. Fiz brotar da pedra a água de salvação para te saciar; e tu me deste a beber fel e vinagre.

Em determinado momento de sua peregrinação pelo deserto, os judeus desfaleciam de sede. Então Moisés bateu com seu cajado numa pedra e desta começou a jorrar água suficiente para dessedentar todo o povo. Quando ofendo Nosso Senhor, pago-Lhe com vinagre e fel os refrigérios que Ele misericordiosamente me concede…

Por tua causa feri os reis de Canaã; e tu com uma cana feriste a minha cabeça.

Antes de tudo, vale observar que essa estrofe contém um interessante jogo de palavras: cana e Canaã. Pois bem, Deus feriu de morte os reis de Canaã — ou seja, da Terra Prometida — para esvaziá-la de povos impuros e entregá-la aos hebreus. Jesus, por sua vez, foi coroado de espinhos e golpeado na cabeça pelos esbirros com a vara da ignomínia, aumentando suas dores.

Da Cruz de Cristo nasce a verdadeira alegria

Senhor, nós adoramos a vossa Cruz, celebramos e glorificamos a vossa santa Ressurreição porque foi pelo madeiro da cruz que veio a alegria para todo o mundo.

Percebe-se aqui o belo contraste apontado na liturgia. Esta fala da tristeza, do sofrimento representados pela cruz, e também da esperança, da alegria que ela trouxe para o mundo. E quão autêntica é a alegria católica! Pensemos no júbilo do verdadeiro Natal, não o do comercializado de hoje, e compreenderemos a felicidade que a fé católica nos proporciona. Ora, foi do sofrimento de Nosso Senhor, das lágrimas de Nossa Senhora, que nasceu a alegria genuína, fruto da virtude e não do vício.

A esse propósito, lembro-me das alegrias da Páscoa no meu tempo de moço. As cidades ainda pouco ruidosas nos permitiam ouvir, próximo ao meio-dia de sábado, o bimbalhar dos sinos anunciando a Ressurreição de Cristo. Alguns meninos saíam pelas ruas espancando bonecos que representavam Judas, e por toda a parte se cantava o Aleluia.

Iniciavam-se, então, as festas: parentes e amigos se cumprimentavam, trocavam ovos de chocolate; algumas famílias faziam piquenique nos parques, para exprimir seu contentamento. As igrejas ficavam repletas, a liturgia se revestia de imensa pompa. Essa alegria, no fundo, originou-se no episódio mais trágico da Paixão, quando Nosso Senhor, ao morrer, disse aquelas palavras lancinantes, as quais podem até parecer de desespero: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Entretanto, são essas as primeiras palavras de um salmo que, ao final, contém manifestações de alegria (cf. Sl 21), porque de fato o abandono não foi real, e de toda aquela tristeza e dor nasceu o grande júbilo da Páscoa.

Uma vez mais, é a afirmação da alegria da cruz.

Manifestação da infinita misericórdia divina

Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça resplandecer sobre nós a luz de sua face e tenha piedade de nós. Senhor, nós adoramos a vossa cruz.

A beleza dessas frases está em que os Impropérios poderiam nos causar atitude de alma quase de liquidação, de prostração, porém a liturgia nos lembra o contrário. Deus é a fonte de todas as misericórdias. Daí o reiterado pedido: Tenha piedade de nós!

Nosso Senhor se compadece de nós, mas deseja receber a nossa súplica nesse sentido. O Redentor nos salvará se soubermos recorrer a Ele por meio das lágrimas e preces de Nossa Senhora, Medianeira Universal. Portanto, tenhamos coragem, confiança e ânimo.

Termina-se essa meditação compungido, mas repleto de esperança e com alegria de alma. Em determinado momento, receberei uma graça tão insigne que serei limpo de meus pecados e defeitos espirituais. Donde a beleza do pedido: “Deus faça resplandecer sobre nós a sua face”, exprimindo o fato de que Deus, ao se alegrar com os homens, volta sua face para eles e tudo se torna fácil, suave, brilhante. Pelo contrário, nas épocas de castigo, o Altíssimo desvia seu rosto e não olha para os homens, como se o sol desaparecesse…

Nosso Senhor Jesus Cristo volta para nós sua face divina — não mais com aquele aspecto sublime e sob certo ângulo um tanto terrificante do Santo Sudário — com semblante de misericórdia, com bondade e perdão, como fitou São Pedro. E neste momento, em que também o rosto de Nossa Senhora se dirige para nós, a graça nos ilumina, sentimos piedade, devoção, como que ressurgimos e nossa vida espiritual ganha novo impulso.

Com o auxílio da Virgem, abracemos nossa própria cruz

Quando dizemos a Deus que adoramos sua cruz, podemos acrescentar uma súplica.

Peçamos-Lhe amor à nossa própria cruz. Cada um de nós gostaria de ser algo que não é, ter algo que não tem, poder algo que não pode, realizar algo que não realiza. Precisamos, então, fazer uma renúncia e aceitar a realidade concreta. É a cruz que devemos carregar.

Se possuíssemos uma relíquia do Santo Lenho, a adoraríamos, como nos ensina a liturgia. Imaginemos que alguém nos desse um pedaço de madeira o qual simbolizasse aos olhos de Deus nosso próprio sofrimento. Deveríamos amá-lo, depositá-lo sobre nosso leito, portá-lo à maneira de relíquia, rogando a Nosso Senhor que abençoasse nossos dias e nossas noites.

Aquilo que Deus pede de nós, evidentemente nos dói mais, exige maior renúncia. Importa querermos fazê-la, pois Ele merece toda nossa dedicação. Contudo, essa atitude de espírito só se alcança por meio da graça. Assim, peçamos a Nosso Senhor que pela santidade da sua Cruz, O imitemos e abracemos a nossa: com lágrimas, com carinho, embora nos custe. E, à força de rezar, cada um poderá dizer: “É isto que eu quero; tomarei esta cruz e a levarei até o alto do meu calvário!”

Estejamos certos de que Nossa Senhora nos acompanhará, como seguiu Jesus pela Via Crucis, bendizendo nosso holocausto e martírio interior, porque Ela deseja que todos carreguem a própria cruz, a exemplo de seu adorável Filho.

1) Tradução do Missal Romano de 1967.
2) Processo pelo qual o indivíduo se torna “sabugo”, ou seja, estagnado na vida interior (cf. “Dr. Plinio” número 79).

As três quedas de Nosso Senhor

Ao discorrer sobre o profundo significado das três quedas de Nosso Senhor na Via Dolorosa, Dr. Plinio estabelece tocante paralelo entre elas e os graus de cansaço do homem na sua vida espiritual e em seu esforço para alcançar o reino dos Céus. A exemplo do Divino Salvador, com o auxílio da graça, devemos sempre recobrar alento, reerguermo-nos e seguir adiante, até atingirmos o almejado objetivo.

Conforme secular tradição da igreja, a piedosa prática da Via Sacra nos recorda os últimos momentos de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua dolorosíssima Paixão. Entre as meditações, contemplamos suas três quedas no caminho do Calvário, as quais nos fazem refletir acerca do cansaço do Homem-Deus naqueles angustiantes momentos.

Nós, que sofremos o peso do cansaço quotidiano, que proveito podemos obter ao considerarmos as três quedas de Nosso Senhor Jesus Cristo? E por que foram três? Esse número não é aleatório, fortuito, mas corresponde a altas cogitações a respeito da fadiga, do sofrimento, do simbolismo envolto nesses passos da Paixão, etc., aspectos estes que não se deve ignorar.

Procurarei tecer alguma resposta, não como a daria um exegeta, mas baseado nas observações da vida feita por um homem de bom senso.

Duas formas de cansaço

Podemos distinguir duas formas de cansaço. Um, ilegítimo, procede da falta de amor a Deus e de generosidade. Alguém, desfrutando de perfeita saúde mental e física, viciou-se por exemplo em dormir nove horas durante todas as noites, e acorda pela manhã cansado, sonolento, e assim passa o resto do seu dia: é o cansaço do preguiçoso. Em Nosso Senhor, pela razão óbvia de que é Ele a própria perfeição, tal forma de exaustão não poderia caber.

Mas, existe também o cansaço do homem ativo e dedicado. Demonstra-nos a experiência que há três graus de resistência humana para se fazer o esforço necessário e, provavelmente, têm eles relação com as três quedas do Divino Redentor.

Mobilização de energias latentes

O primeiro grau de cansaço se verifica quando a pessoa, carregando um fardo, sente seu vigor comum exaurido e cai sob o peso que a acabrunha. Porém, ao se deter no caminho, ela não só consegue se recompor um tanto, mas, devido ao admirável império da alma sobre o corpo, opera uma mobilização de todas as energias mais profundas, latentes dentro dela, as quais não se manifestam na vida habitual. Então faz este raciocínio: “Que peso imenso! Não consigo prosseguir; entretanto, é necessário e quero absolutamente levar esse fardo, esse esforço, esse ato de dedicação até o último ponto”. E se pergunta: “Analisando bem, encontrarei razões para um novo alento, um novo impulso, arrancando de dentro de mim insuspeitadas energias, a fim de chegar onde desejo?!”

Nesse momento, ele recobra ânimo, ergue-se e retoma seus passos, até cair novamente. É o segundo grau de cansaço.

Ainda algo a imolar

Agora o homem pensa: “Fiz tudo quanto podia, e eis que me acho uma vez mais vergado sob o peso desta dor. Tirei de mim aquilo que não imaginava. Contudo, não quero parar, mas continuar para frente. Como é santo e nobre o que desejo! Como é digno de ser atingido o objetivo que tenho em vista! Mas, sinto um peso maior que o anterior me esmagando. É o fardo do desalento, da perplexidade. Não tenho mais energias e, por isso, rezo mais do que o fiz nas outras vezes e digo a Nossa Senhora: Minha Mãe, vedes que dei tudo quanto podia. Ou Vós me ajudais nesse instante, mais do que nas etapas anteriores, ou não serei capaz de fazer o que esperais de mim.

“Entretanto, observando-me melhor, e, por assim dizer, correndo honestamente a mão na sacola onde estão as reservas de minhas forças, encontro ainda algo a imolar.

Tenho energias por mim mesmo desconhecidas, que constituem uma suprema reserva para eu lutar. Tendo sido atendida minha oração, vejo-me também assistido por forças sobrenaturais capazes de me levar até onde desejo. Assim, levanto-me uma segunda vez e continuo, mais sustentado pelos anjos do que por meus próprios pés.

Arrasto-me mais do que ando; porém, resolvi prosseguir. Chegarei até o fim, realizarei meus anelos, mesmo que para tal seja preciso pedir a Deus um milagre completo.”

Confiança contra toda esperança

Quando o homem cai pela terceira vez, torna-se um molambo. Percebe que no farnel de energias disponíveis nada mais existe. Então ele espera contra toda esperança. Põe-se de pé e dá um passo. O resto é confiança cega, a noite escura, o despojamento total. Nesse momento, brota do seu interior algo que é realmente o último fôlego de sua alma, a mais lúcida visão de seu ideal, o ato mais completo de seu amor, sua entrega inteira. Dá mais alguns passos cambaleantes, é pregado na cruz e se deixa sacrificar.

Estes são os três graus de cansaço, correspondentes às etapas da dedicação humana. Na primeira, o homem despende as energias que sabe possuir e suplica o auxílio de Nossa Senhora dentro da assistência comum da graça.

Na segunda, emprega as forças que entrevia, mas não conhecia exatamente. Roga à Santíssima Virgem com maior instância que lhe conceda socorros especiais, pois pela economia normal da graça não conseguirá.

Na última, entrega uma capacidade de dedicação e de esforço que lhe era inteiramente ignorada. Caminha mais por milagre, pela fé absoluta em meio à escuridão, do que por qualquer outro motivo. E chega até o fim por um extraordinário socorro do Céu. Ou seja, ele está completamente unido ao sobrenatural.

Abnegação que atrai os outros para o bem

A alma humana, à medida que se levanta de cada prostração — não de uma queda moral — vai espargindo de si a incomparável beleza da abnegação. Para atrair os outros ao bem, cumpre que o homem seja desprendido, desapegado. Somente assim as pessoas o seguirão. Ele conquistará as almas para Deus, quando chegar no último ponto de seu desprendimento, quando tiver dado tudo quanto podia.

Embora, absolutamente falando, Nosso Senhor não precisasse se submeter a essa regra geral, quis entretanto nos deixar seu divino exemplo e, após as três quedas, estava pronto para ser mostrado do alto da cruz a todos os homens. O Redentor passara por essa imolação interior, em que tudo Lhe havia sido tirado. Por mais sublime que seja a crucifixão — não há palavras suficientes para exaltá-la — ela é um ato no qual o sacrifício já estava feito. Ele carregou a cruz até onde devia. E no alto do Calvário, com dores ainda maiores, se deixa crucificar. Sofre cada vez mais até o derradeiro momento do “consummatum est” (tudo está consumado), mas aquela imolação de levar sua própria cruz, cessa com a crucifixão. Jesus se deita sobre o madeiro; doravante, é a cruz que O carrega.

No último alento, a proclamação da vitória

Como frisamos, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo a própria perfeição, o Homem-Deus, n’Ele as coisas se passam de modo misterioso e não exatamente da maneira que se dá em relação a nós, meras criaturas. Contudo, em sua natureza humana, ter-se-á verificado algo de análogo. Assim, percorreu as três etapas do cansaço e os três graus de forças recobradas. Considerado na sua humanidade santíssima, teve Ele de desenvolver cada vez mais esforço à medida em que maior era o peso da cruz, devido ao depauperamento de seu organismo extenuado pela Paixão.

E no alto do Calvário, já pregado na cruz, o Salvador deixou registrado para todos os homens, até o fim dos tempos, que Ele sofrera tormentos inimagináveis, insondáveis até para Si próprio, ao bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. À primeira vista, tem-se a impressão de que tais palavras exprimem uma ideia de derrota.

Porém, logo depois, como verdadeiro Herói no seu último alento, Jesus acrescentou: “Tudo está consumado!”, como se dissesse: “Sofri quanto Eu devia sofrer; minha vontade não se alquebrou porque meu Pai Eterno me ajudou. Venci. A morte está aniquilada: para o homem, redimido do pecado original, abriram-se as portas do Céu. Sou o Rei da glória por todos os séculos!”

Noutros termos, quando tudo parecia perdido, Jesus proclamou sua vitória.

Aplicação à nossa vida espiritual

Ao concluirmos essas reflexões, importa considerarmos que, também nós, em nossa vida espiritual, temos de carregar a cruz, devemos passar por etapas de cansaço e de energias reavivadas. Nosso Senhor deseja que, por amor a Ele, ponhamos os sofrimentos sobre os ombros e tomemos a iniciativa de caminhar de encontro à dor, à renúncia, ao desagradável. Depois de caminharmos por nossas próprias forças, o Redentor nos socorre com o auxílio do alto, nos toma e nos crava na cruz, unindo-nos a Ele estreitamente.

Que essas considerações nos ajudem a nos dedicarmos cada vez mais ao nosso apostolado. E ao sentirmos o peso da fadiga nos vergar, lembremo-nos das três quedas de Nosso Senhor: supliquemos o amparo de Maria Santíssima e recobremos ânimo. Não há dúvida de que sairemos vitoriosos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/9/1970)

A hora do beijo

Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a semana em que se comemoram os 500 anos do descobrimento da Terra de Santa Cruz é também a semana da Cruz por excelência, a de nosso Divino Salvador. Que ela seja a luz a indicar os rumos da nação brasileira, são os nossos mais ardentes votos, ao transcrevermos alguns  comentários de Dr. Plinio sobre a Paixão e Morte de Jesus, redigidos há mais de meio século.

 

O Domingo de Ramos é o pórtico jubiloso que transpomos hoje, para entrar nas tristezas da Semana Santa. E, sempre que em terras cristãs se celebra a Paixão e Morte do Senhor, vem à lembrança dos fiéis a cena empolgante e ignominiosa, em que o filho da perdição mostra aos esbirros, com um beijo, Aquele a quem tinha vendido.

Nesta hora em que a malícia humana parecia ter atingido extremos incríveis, a misericórdia de Deus superabundava. Dizem os autores espirituais que ninguém pode calcular a intensidade da graça que Judas recebeu e rejeitou, quando ouviu da Vítima Divina o último apelo: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”? Hora de imensa  misericórdia para com o miserável vendilhão, sem dúvida. Mas hora, também, de imensa misericórdia para conosco. Os atos que o Divino Mestre praticou, nessa ocasião, são para nós ensinamentos de um valor sem limites. Paremos, para pensar neles um pouco.

Muito se tem falado sobre os trinta dinheiros, e sobre o beijo… Hoje em dia, a lembrança de tudo isto ainda é mais insistentemente aguçada porque vivemos na época da “quinta-coluna”, época em que todos os ideais espirituais e temporais têm seus “quintacolunistas”, seus “Papen” ou seus “Quislings”(1), e em que, portanto, não é possível não  lembrar o “Quinta-Colunista ” por excelência, aquele que por preço mais barato fez o serviço maior, com “êxito” mais completo. Mas, precisamente porque o tema já tem sido muito tratado, meditando a “hora do beijo” não é do beijo que vamos falar.

Quando foi preso, Nosso Senhor praticou duas ações aparentemente contraditórias, e é sobre esta contradição que queremos meditar.

Lição para nós: o Mesmo que aterroriza, consola

A contradição se resume em poucas palavras. De um lado, falou tão alto, atroou tanto os ouvidos, que os esbirros caíram por terra. De outro lado, abaixou-Se Ele mesmo até  o chão, para tomar uma orelha e a recolocar no lugar. O Mesmo que aterroriza, consola. O Mesmo que fala com voz insuportável para os tímpanos, reintegra uma orelha  cortada.

Não há nisto, para nós, algum ensinamento? Nosso Senhor é sempre infinitamente bom, e foi bom quando disse aos que O procuravam, que era Ele Jesus de Nazaré, a quem  queriam, como foi bom quando consertou a orelha de Malco. Se queremos ser bons, devemos imitar a bondade de Nosso Senhor, e aprender com Ele, que há momentos em que é preciso saber prostrar por terra com santa energia os inimigos da Fé, como há ocasiões em que é preciso saber curar os próprios males daqueles que nos fazem mal.

Por vezes, para curar é preciso gritar…

Por que falou Nosso Senhor tão alto, quando respondeu “Ego Sum”? Só para atordoar fisicamente os que O prendiam? Mas para quê, se Ele Se entregava voluntariamente à  prisão? É que Ele falou ainda mais alto a seus corações, do que a seus ouvidos, e se lhes falou alto aos ouvidos, não foi senão para lhes falar ainda mais alto aos corações. Não sabemos qual foi o proveito que aqueles homens fizeram da graça que receberam. Mas certamente o temor que tiveram, quando tombaram à voz do Mestre, lhes foi salutar como foi salutar a Saulo, quando a mesma Voz lhe gritou “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

Nosso Senhor lhes falou alto aos ouvidos. Prostrou-os por terra. Mas sua voz que abatia corpos e ensurdecia ouvidos, erguia almas que estavam prostradas, e lhes abria os  ouvidos dos espíritos, que estavam surdos. Às vezes, pois, para curar é preciso gritar.

“Senhor, que ouçamos!”

Com Malco, Nosso Senhor procedeu de outra maneira. Quando lhe restituiu a orelha cortada pela fogosidade de Pedro, Nosso Senhor certamente lhe queria fazer um bem  temporal. Mas curando-lhe o ouvido, Nosso Senhor lhe quis sobretudo abrir o ouvido da alma. E Ele que a uns curara da surdez espiritual com o estrondejar divino da sua  voz, Ele mesmo curou da mesma surdez espiritual a Malco, dizendo-lhe palavras de bondade, e restituindo-lhe a orelha que perdera.

Vivemos em um século afetado, por certo, pela mais terrível surdez espiritual. Se há época em que os homens ouvem a voz de Deus, é a nossa. Se há época em que contra ela  endurecem os corações, é por certo a nossa.

O Divino Mestre nos mostra que se queremos dissolver em nós e no próximo esta terrível surdez, é Ele só que o pode fazer, e os meios humanos em si mesmos de nada  valem.

Nesta ocasião, façamos nosso um pedido que se encontra nos Santos Evangelhos. Quando um cego viu certa vez a Nosso Senhor, lhe bradou: “Domine, ut videam” — Senhor, que eu veja! Hoje, aproveitemos as comemorações da Semana Santa para Lhe pedir que ouçamos: “Domine, ut audiam”. Não sabemos, na sabedoria de sua misericórdia, de que maneira Nosso Senhor curará nossa surdez espiritual.

Sangramos como Malco, e estamos surdos como os esbirros. Pouco nos importa que Ele queira curar-nos por este ou aquele meio: cumpra-se sua vontade divina. Fale-nos  Ele pela voz terrível das provações e dos castigos, fale-nos Ele pela voz branda das consolações, uma coisa sobretudo Lhe pedimos: Senhor, que ouçamos!

Nosso Senhor vencerá, e com Ele, a Igreja

Que pelo menos nós, católicos, ouçamos plenamente a voz de Nosso Senhor, e que, correspondendo em nossa santificação interior, de modo completo e irrestrito, às graças  que Ele nos dá, realizemos dentro de nós aquele pleno reinado de Nosso Senhor, de que os inimigos da Igreja parecem esperançados de arrancar os últimos vestígios sobre a face da terra.

Nosso Senhor prometeu indestrutibilidade à sua Igreja, e prometeu que se salvaria toda alma verdadeiramente fiel. Confortados nessa esperança, meditemos com serenidade  s tristezas destes dias de universal conturbação, como as agonias desta Semana da Paixão. Nosso Senhor é o grande Vencedor. Ele vencerá, e com Ele vencerá a  Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 659, 25/3/1945. A nota e os subtítulos são nossos.)

1) Von Papen, embaixador alemão, e Quisling, dirigente norueguês: personagens da II Guerra Mundial, cujos nomes se transformaram em sinônimo de “traidor”, por terem  favorecido, nos seus respectivos cargos, as ações criminosas do nazismo.

PASSIO CHRISTI, CONFORTA ME

Em outubro de 1944, Dr. Plinio começou a comentar, em sua coluna do “Legionário”, o plano pastoral do novo Arcebispo de São Paulo, destacando como dos mais  importantes o tópico sobre a caridade.

“Atrair todos os elementos supracitados do Clero e da Ação Católica para a obra social e multifária da caridade cristã, em socorro de todas as necessidades físicas ou morais do nosso próximo, sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade ou de classes”. É este um dos itens mais importantes do plano de ação do novo Arcebispo de São Paulo.

Humildade e altivez cristãs

“Socorro das necessidades físicas ou espirituais”: é bem este o conceito das obras de misericórdia que Nosso Senhor ensinou ao mundo, e que a Santa Igreja vem realizando  ininterruptamente através dos séculos. Todo o espírito da Igreja é feito de contrastes fecundos que se resolvem em uma divina harmonia. Durante a Idade Média, viajava  pela Europa um potentado muçulmano, feito prisioneiro pelos guerreiros feudais, defensores da Fé. Encontraram-no um dia muito pensativo, e aos que lhe indagaram o  motivo, respondeu: “Não posso  compreender como constroem monumentos tão altivos, esses homens tão humildes”.

Almas humildes, construtoras de obras divinamente altivas, eis bem genuinamente representadas nesse traço as almas resgatadas pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor  Jesus Cristo. Aparentemente, entre a humildade e a altivez, há uma contradição. O mundo pagão não compreendia essa contradição, e uma das acusações que os romanos  faziam aos mártires era precisamente que sua Religião glorificava a baixeza. Eles não sabiam que admirável sementeira de almas altivas eram aquelas escuras e misteriosas  catacumbas, em que patrícios e escravos, grandes e pequenos, se confundiam em torno dos altares, aprendendo de Jesus Cristo o segredo da humildade e da altivez de que Ele nos deu em sua vida terrena tão adoráveis exemplos.

“Christianus alter Christus” (o cristão é um outro Cristo), e a humildade do cristão, ou a altivez do cristão, não é senão um reflexo da altivez e da humildade de Nosso Senhor  Jesus Cristo.

Doçura e combatividade

Outro contraste que o mundo não compreende, e que entretanto é tão harmônico e fecundo quanto o da altivez e da humildade do verdadeiro cristão, é o da doçura e da combatividade. Se o árabe de que falamos  observasse a vida dos Santos, esbarraria por certo neste mistério, e diria deles: “Não posso     compreender como almas tão pacíficas são tão belicosas, como almas tão belicosas podem ser tão pacíficas”. É que no catolicismo tudo é amor, e mesmo quando, por  necessidade, e imitando a Nosso Senhor, alguém empunha o látego que há de fustigar os erros do século, fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fá-lo com amor.

A combatividade  cristã tem o sentido exclusivo de legítima defesa. Não há para ela outra possibilidade de ser legítima. É sempre o   amor de alguma coisa ofendida que move o cristão ao  combate. Todo combate é tanto mais vigoroso quanto mais alto for o amor com que se combate.

E, por isso mesmo, não há, no católico, combatividade maior do que aquela com que ele luta pela defesa da Igreja ultrajada, negada, calcada aos pés. Por que combate ele?  Para defender os direitos das almas que se quer arrancar à Igreja. Para manter livres e desobstruídas as portas de acesso que devem permitir aos eleitos de Deus a    aproximação de sua Igreja. Para abater a insolência da impiedade, e para exaltar a Santa Madre Igreja.

Para essas coisas é que se deve bater o católico. E, quando esgotados um a um, pacientemente, irremediavelmente, todos os meios pacíficos, o católico se ergue com o valor de um novo Macabeu, incendido em zelo pela Esposa de Cristo, ele bem pode dizer que em toda a sua combatividade só há uma coisa: amor.

Abandonemos esse quadro e, em vez de olharmos para o guerreiro cristão, olhemos para a irmã de caridade. Ela que docemente se aproxima do leito em que agoniza um doente repugnante. É para ela um desconhecido, em que ela vê, entretanto, um membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica.

E, por isso, aproxima-se dele cheia de sobrenatural ternura, desata os panos que ocultam a hediondez de suas chagas e recebe em pleno rosto, mais forte do que nunca, o  odor terrível das carnes em putrefação. No rosto da irmã de caridade a impassibilidade é completa. Ela olha para as chagas como se fossem pérolas, respira o odor da  podridão como se fosse um perfume.

Sabe Deus que terríveis repugnâncias ela está esmagando em seu interior, e que luta tenaz, violenta, titânica ela tem de desenvolver para não abandonar o lugar de sacrifício em que Nosso Senhor Jesus Cristo a quer! Quanto amor! dirão os que atentarem apenas para a placidez de seu semblante e de seus gestos. Quanta combatividade! dirão os que forem mais penetrantes e desvendarem o tumulto da luta interior diante da qual a Religião não cede. Quanto amor nessa combatividade! Quanta combatividade nesse amor!

Combatividade e amor, se o mundo contemporâneo pudesse compreender como se harmonizam essas virtudes, como é preciso amar até o que se combate… e combater com as duas mãos até o que, por vezes, se ama ternamente por mais de um título justo, como estaria diversa a face da terra!

É para as santas pugnas da caridade cristã, pugnas interiores que aumentem em nós os mananciais de amor, pugnas exteriores, vitórias tanto mais jubilosas quanto mais  pacíficas, porque Cristo é o Rei da Paz, mas em todo caso vitórias que não desdouram com a energia e não perdem seu lustre se a luta aberta tiver sido o único meio para as  conseguir — é para as santas pugnas da caridade cristã que nosso Arcebispo nos conclama.

Olhando de longe para seu rebanho espiritual, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota tem palavras de ternura e compaixão que são um eco da exclamação divina:  “Misereor  super turbam” — tenho pena desta multidão. E com que razão! Pio XII, na alocução magistral que recentemente publicamos, diz que é preciso ter um heroísmo   comparável ao dos mártires, para praticar com fidelidade e esmero a Religião em nossos dias. Assim, pois, as grandes cidades modernas são verdadeiros lugares de luta e  tormenta para os “christifideles” (fiéis cristãos) de nossos dias.

No luxo dos salões aristocráticos, no conforto dos ambientes burgueses, na calma das classes pequeno-burguesas, na simplicidade das camadas operárias, na crua indigência  das classes pobres, em tudo isso se ocultam hoje terríveis tentações, cuja vitória custa e custa muito, custa sofrimento espiritual que é o sangue de alma. É preciso correr,  voar em auxílio dessas almas que sofrem para se manterem fiéis a Nosso Senhor ou para se aproximarem d’Ele. Toda demora é uma derrota, nesta tarefa, e toda negligência um crime. Por isso, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota conclama uma verdadeira cruzada para a salvação de tantas almas aflitas em nossos dias.

Socorrer sobretudo os inocentes que sofrem

Mas isso não basta. Não basta fazer aceitar às almas o jugo duro e suave da moral cristã. É preciso ainda consolar os que sofrem  misérias físicas de toda a ordem.

Para que relembrar o quadro doloroso que temos sempre diante dos olhos, os hospitais repletos que rejeitam doentes por falta de espaço, as pessoas doentes que definham por falta de dinheiro para a aquisição de remédios caríssimos, as pessoas sãs que vão imergindo lentamente no estado de doença por excesso de trabalho, necessário para a manutenção da família, ou por falta de alimentação?

Por que relembrar com terror as inúmeras pessoas que, sem Fé nem horizontes  espirituais, arrastam na sombra de suas casas ou premidas nas paredes dos hospitais uma vida de desespero e de revolta? Tudo isso corta por demais o coração, e tudo isso ainda não é tudo. Existe o problema da infância, da infância inocente, da infância promissora, da infância que o ambiente deletério das grandes cidades torna tão cedo miserável e pecadora.

Como bem acentua nosso novo Arcebispo, muito já se tem feito entre nós nesse sentido. A Cidade dos Menores da Liga das Senhoras Católicas é simplesmente uma  maravilha. Mas… quanto ainda há por fazer! E se de todos temos pena, que especialíssimo lugar ocupa em nosso coração a infância, que Jesus Cristo tão entranhadamente  amou!

É necessária a caridade cristã

É preciso muita caridade. Mas as palavras de nosso Arcebispo são muito  nítidas: do que precisamos é de  caridade cristã, e não simplesmente e uma filantropia qualquer. Por quê? Simplesmente porque sem a Igreja de Jesus Cristo não há caridade verdadeira. Não negamos que possa haver almas que vivem fora da Igreja, em nossa civilização  atual, e que fazem bem ao próximo.

Elas possuíram a Fé, e essa Fé que perderam deixou nelas um vago perfume, como o que fica no vaso de que retiramos as rosas. São  essas as palavras do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade ou é cristã ou não existe. […] E, no catolicismo, qual o maior foco da caridade? A contemplação da Paixão de  Nosso Senhor Jesus Cristo.

É na meditação minuciosa do que sofreu o “Homem das Dores”, é na rememoração afetuosa e constante daquele em quem “do alto da cabeça até a planta dos pés não havia  um só lugar que fosse são”, é tendo diante dos nossos olhos dia e noite aquele que, sob a mão violenta de seus adversários, foi desfigurado a ponto de ser “um verme e não  um homem, o opróbrio dos homens e o escárnio do povo”, que nosso coração se dilata para a comiseração para com os próximos.

Revendo em todo o sofrimento um sofrimento do próprio Cristo, em toda a chaga, uma chaga de Cristo, remediando todo sofrimento, curando toda chaga como se  debruçássemos nossa alma amorosa sobre tanta dor, como se aplicássemos com nossos próprios dedos à chaga de Cristo o bálsamo confortador, é com este meio que  verdadeiramente teremos a virtude da caridade.

Narra a História que antes de Cristo não havia hospitais nem instituições de caridade. Foi uma católica, Fabíola, quem fundou o primeiro hospital. De lá para cá, quantas  obras de caridade se têm fundado! De onde nasceram? Das chagas santíssimas de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na cruz. Foi da Paixão de Cristo que nasceu o  reconforto de tantas criaturas sofredoras.

Mas não é só. O melhor bálsamo para as dores humanas não é o remédio, é a compaixão. Compaixão, “com paixão”, é o sofrimento em união com o próximo, só porque o  próximo sofre. É o reflexo dos sofrimentos alheios em nossa própria alma. Como fazer brotar do coração humano, tão frio, tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão?

Pela meditação da Paixão de Cristo. As almas saturadas dessa meditação sabem verdadeiramente condoer-se do próximo. Só elas têm em seus gestos bastante ternura, em  sua voz bastante sinceridade, em seu procedimento bastante discrição, para instilar na alma sofredora do próximo o remédio inigualável da compaixão.

Se, da Paixão de Cristo, brota a misericórdia, brotam as obras de misericórdia, brota a consolação, que jaculatória mais adequada para todos os que se aprestam a atender à grande mobilização da misericórdia cristã que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota promoverá, senão esta: “Passio Christi, conforta me” (Paixão de Cristo, confortai- me)?

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, 22/10/1944. Subtítulos nossos.)

Oração para a Semana Santa

Jesus é depositado no sepulcro. Na aparência, é o fim, tudo está acabado… Na realidade, em breve tudo começará a renascer.

Junto a Vós, ó Refúgio dos Pecadores, os Apóstolos começam a chorar seus pecados. Logo virão a Ressurreição, a Ascensão e Pentecostes!

Quanto mais vitorioso parece o demônio, mais próxima está a vossa vitória.

Nestes dias em que, pelo atrativo de uma liberdade mal compreendida, está-se chegando a um assombroso desregramento dos costumes, ao caos na cultura e à anarquia nos países, dai-me, ó Mãe, uma fé firme nas promessas que fizestes em Fátima, uma esperança abrasada de que elas não tardam em se cumprir, uma certeza da derrota da Revolução e da instauração de vosso Reino. Amém.

 

Plinio Corrêa de Oliveira