Apóstolo da santa violência

Ao Apóstolo São Paulo, para quem a palavra de Deus era como um gládio de dois gumes que atinge até a juntura da alma com o espírito (cf. Hb 4, 12), a Providência concedeu a graça de fazer violência às almas e ser capaz de operar conversões extraordinárias, ou pela qualidade ou pela quantidade das pessoas por ele convertidas, de maneira que abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica se desenvolveu.

Foi Nossa Senhora quem obteve para São Paulo esse dom, porque ele tinha muitos obstáculos a vencer naquela época de luta, em que era preciso derrubar o paganismo.

Nós devemos pedir também essa santa violência para derrubar a Revolução que é hoje muito mais poderosa do que foi o paganismo no tempo do Império Romano. Compreende-se, portanto, que os Apóstolos dos Últimos Tempos tenham uma violência como a de São Paulo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1965)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

São Pedro e São Paulo – Arautos de Nosso Senhor Jesus Cristo

As figuras dos grandes Apóstolos Pedro e Paulo, como as retrata a iconografia católica, sugere a Dr. Plinio os comentários transcritos a seguir, pontuados de devoção e enlevo por esses baluartes da Igreja, os quais — juntos — confessaram com seu martírio a fé inabalável no Filho de Deus.

 

Certa feita, mostraram-me a fotografia de uma iluminura que representava o enterro de Nossa Senhora. Em linguagem piedosa, dá-se o nome de “dormição” (dormitio em latim) ao passamento de Maria Santíssima, a fim de significar que sua provável morte foi como um doce e aprazível sono. Seja como for, a ilustração apresenta o sepultamento da Mãe de Deus, cujo caixão é conduzido pelos Apóstolos, de modo saliente por São Pedro e São Paulo. E sobre estes cabe um comentário.

Vigor e venerabilidade próprios ao chefe da Igreja

São Pedro aparece como um ancião venerável, resoluto, de barba branca, abundante, caudalosa, voltada para a frente, indicando vigor e mais hombridade do que se fosse direcionada para baixo. O pintor o imaginou calvo, com uma moldura de cabelos formando tufos copiosos nas laterais do rosto. Tudo nele indica vitalidade, não possuindo as características rugas da velhice. Sua face é quase corada, rósea. É o grande São Pedro que ainda deverá lutar tanto pela Igreja Católica. Assim, à robustez da juventude ele alia a venerabilidade da idade madura, cujo aspecto respeitável é bem expresso pelo artista, dando-lhe o tônus conveniente ao primeiro Papa, chefe da Igreja.

Resolução e força de São Paulo

São Paulo, por sua vez, parece ser bem mais moço que São Pedro. Forte, sua fisionomia transpira resolução: o que ele deseja fazer, executa. Percebe-se nele o homem que percorrerá as regiões em torno do Mediterrâneo, enfrentando imensos perigos. Por exemplo, certa vez, para fugir dos que o perseguiam, ele desceu de um sobrado por uma cesta amarrada a uma corda, e se afastou correndo a fim de não ser capturado e morto. Noutra circunstância, estando num navio, sobreveio uma tempestade que fustigou a embarcação e os tripulantes durante vários dias, até naufragarem perto de uma ilha à qual todos chegaram sãos e salvos.

No martírio de São Pedro, a homenagem ao Papado

Os dois Apóstolos são vistos inundados de glória, participando do triunfo da Santíssima Virgem e, sobretudo, empenhados em exaltá-La. Sabe-se que esses dois atletas, arautos de Nosso Senhor Jesus Cristo, padecerão juntos o martírio e morrerão no mesmo dia.

Presos pelos romanos pagãos, sofreram diversos suplícios. São Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, o que devia significar um doloroso processo de morte, pois o sangue, atraído pela lei da gravidade, aflui ao cérebro e não tarda em produzir derrame ou apoplexia. A crucifixão poderia ser feita por meio de cordas que amarravam o corpo à cruz, ou por cravos que pregavam no madeiro as mãos e os pés dos condenados, como sucedeu com Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os que crucificavam o Príncipe dos Apóstolos não tinham ideia de quanto, procedendo daquele modo, prestavam homenagem ao Papado. Disse o Divino Mestre ao primeiro Papa: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18).

Para São Paulo, a celeste coroa de justiça

De outro lado, sendo cidadão romano, São Paulo pereceria pela espada. Prestes a ser decapitado, talvez tenha se lembrado de suas magníficas palavras, as quais me comprazo em recordar por muito admirá-las: “Bonum certamen certavi, cursum consummavi” (2Tm 4, 7) — “combati o bom combate, completei o circuito da carreira inteira que eu deveria percorrer”. Era uma alusão aos que disputavam corridas no circo romano. E acrescenta: “Guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa de justiça que o Senhor justo juiz, me dará” (2Tm 4, 7-8).

Vale notar a extrema beleza do modo pelo qual a Providência guia as almas. São Paulo revela aqui a certeza de que ele não tem perdão a pedir, porque já está perdoado de tudo, tendo levado uma vida ilibada após a sua conversão. Nisto ele demonstra uma extraordinária segurança. Em linguagem contemporânea, dir-se-ia que São Paulo lança um “cheque” para o Céu: Resta-me agora receber a coroa da justiça. Senhor, Vós prometestes vossa glória a quem combatesse o bom combate e percorresse a carreira inteira que deveria percorrer. Eu o fiz. Agora, dai-me o vosso prêmio!”

Difícil não apreciar este modo varonil de se exprimir, próprio de um homem de fé que crê em Nosso Senhor Jesus Cristo, na Santa Igreja, e por isso não tem dúvida alguma de que será recompensado.

O carrasco cortou-lhe a cabeça e esta — segundo uma bonita lenda — ao cair no chão saltou três vezes. Em cada lugar do solo tocado pela venerável cabeça do Apóstolo teria nascido uma fonte. Donde o local em que houve este milagre ser chamado de “tre fontane”: as três fontes.

Objetos de inimaginável perdão

Frisamos o que há de imensamente belo no trato da Providência com os homens. Tal sobressai quando uma pessoa possui grande vocação e, apesar de suas infidelidades, a graça continua a lhe fazer insistências extraordinárias. Pode a alma se encontrar numa lamentável situação, mas o chamado de Deus conserva todo o frescor primitivo. Disso constitui a vida dos dois Apóstolos excelente exemplo.

O olhar de Jesus para São Pedro, durante a Paixão, é característica manifestação desse misericordioso procedimento divino. O Redentor teve pena dele, fitou-o e São Pedro, então receoso e pusilânime, passou a ser outro.

São Paulo, o Apóstolo das Gentes, confessa ter entrado para o colégio apostólico como um ente abortivo, depois de ter perseguido brutalmente a Igreja. Chegou a ser cúmplice do martírio de Santo Estevão, tendo vigiado as vestes daqueles que apedrejaram o primeiro mártir do cristianismo (AT 7, 58; 8, 1). Ora, em determinado momento este homem é convertido de modo extraordinário e levado por Nosso Senhor ao deserto, onde recebe graças que não foram concedidas a nenhum outro apóstolo. Quer dizer, Jesus o chamou do fundo da ignomínia e lhe deu aquele dom incomparável.

É uma tão sublime lição em meio a tantos perdões, e um tal perdão ao lado de tantas lições, que nossa pobre cogitação não alcança medi-los…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  em 20/7/1988 e 22/11/1991)

Gravidade ao sabor brasileiro

Desde pequeno agradou-me considerar o elegante prédio da Estação da Luz, próximo ao parque onde os meninos de minha família, sob o vigilante olhar de suas governantas, se distraíam aos domingos.

Simpático, atraente, encanta-nos o estilo inglês com que o edifício foi concebido: correto, distinto, garboso, cheio de si (no bom sentido da palavra), ordenado, com uma noção do dever, não sufocante, mas feito com métodos, tempo e pontualidade, de maneira a tudo sair de acordo com o planejado.

Para os padrões da São Paulo do tempo em que foi construída, a estação apresentava proporções monumentais, oferecendo aos passageiros um ótimo restaurante e toda uma ala destinada a hóspedes que ali quisessem residir por um período mais prolongado, até encontrarem outra acomodação na cidade. Tranqüilidade e segurança de outras épocas…

A torre imponente se destaca como símbolo da elevação e da gravidade do prédio, ao mesmo tempo que indica a hora certa dos embarques. Gravidade e elevação, sim, porém ornadas com um misto de bondade e de “laisser-faire” distinto, sabendo ser do feitio do nosso povo, não a coisa ultra-arranjada, mas com um toque de negligência de “grand-seigneur”. Além disso, uma nota de melancolia, uma espécie de sorriso prateado muito afim com o habitat interior comum do brasileiro.

Impossível para mim, ao contemplar a Estação da Luz, não recordar os velhos e bons sabores do meu tempo de criança, e, sobretudo, não me lembrar das graças que a Providência concedeu à minha alma de menino, a propósito do meu encanto com esse prédio que se erguia ao fundo do Jardim da Luz onde brincávamos.

Dessas graças, a mais marcante terá sido o meu “encontro” com a figura do imperador Carlos Magno, desenhada num livro de história para criança que estava à venda num quiosque dentro da estação. Antes de embarcar para uma viagem ao interior de São Paulo com minha família, pedi ao meu pai que me comprasse aquele livro.

Nunca ouvira falar de Carlos Magno, mas aquela gravura que o representava no seu trono de majestade, revestido de coroa e com o cetro imperial à mão, me tocou profundamente. À medida que folheava a publicação, crescia meu entusiasmo pela pessoa do imperador, e algo me dizia na alma: “O futuro está com esse homem!”.

Hoje posso afirmar que naquele momento me foi dado discernir o ideal de grandeza que Carlos Magno simbolizava, bem como se formou em mim a convicção de que esse ideal possui um conteúdo de universalidade pelo qual beneficia a todos os povos, sem exceção, e algum dia ele ainda ressuscitará. Essa convicção permanece intacta no meu espírito.

Portanto, não há nisso apenas uma pertinaz reminiscência de infância que insiste em se manter, mas também uma ação da graça que toca a todos que admiram Carlos Magno, e os leva a compreender que o grande imperador não é um caminho interrompido, nem uma glória do passado fixada e estagnada num monumento de pedra. Ele é uma luz que desceu do Céu para indicar aos homens uma trajetória que deve alcançar sua plena realização.

E um lampejo dessa graça refulgiu aos meus olhos ali, naquela bela Estação da Luz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 20/2/1993 e 16/2/1994)