Consorte da Sede da Sabedoria e pai do Leão de Judá

Para se ter alguma noção do semblante de São José seria preciso deduzir, à maneira de suposição, o caráter de um homem que esteve à altura de ser o pai d’Aquele cuja Sagrada Face está estampada no Santo Sudário de Turim. Quer dizer, o homem que foi o educador, o guia, o protetor do Senhor daquele rosto impresso no Sudário; um homem da mesma linhagem, parente e esposo da Mãe d’Ele.

Conceber algo menor do que isso é não ter ideia da extraordinária figura de São José, modelo de fisionomia sapiencial porque consorte da Sede da Sabedoria, do Espelho da Justiça, Maria Santíssima. Modelo de fortaleza, porque pai do Leão de Judá, Nosso Senhor Jesus Cristo.

A este verdadeiro São José devemos elevar nossas preces, rogando-lhe interceda por nós junto à Virgem Santíssima e a seu Divino Filho, e nos alcance a graça de o imitarmos nas suas excelsas virtudes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/3/1967)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

São José e a fecundidade da vida interior

Quando alguém se refere aos grandes vultos da história, imediatamente nos vem à memória a figura de um genial estadista, de um celebrado filósofo, de um brilhante general. Todavia, tudo isso não é nada em comparação com a sublimidade de ter colaborado na realização da Redenção. Eis a incomparável vocação de São José, destacada por Dr. Plinio, que no-lo apresenta como modelo a ser seguido por todos os católicos.

A ignorância religiosa em que vivemos tem produzido, entre outros efeitos nocivos, o desvirtuamento inteiro do significado real de algumas determinações da Igreja, que, quando mal  interpretadas, são inteiramente estéreis de frutos espirituais, e quando bem compreendidas, são férteis em graças e proveitos de toda ordem.

São José, modelo de todas as grandes virtudes

É o que se dá, por exemplo, em relação ao culto de São José que, proposto pela Igreja como modelo dos chefes de família e dos operários, é também, pelo imenso acervo de virtudes com que foi enriquecido pela graça, modelo ideal de todas as grandes virtudes católicas.

A maioria dos católicos, porém, não pensa seriamente em tomar São José como seu modelo. De um lado, a imensa santidade do pai [jurídico] de Jesus, a quem a Igreja cultua com a suprema dulia, parece um ideal absolutamente inatingível. De outro lado, a fraqueza humana de que nos sentimos repletos, solicitada por toda sorte de inclinações, nos afasta por tal forma de qualquer ideal espiritual, que julgamos muito já ter feito quando nos libertamos do jugo do pecado mortal e venial, e vivemos uma vida espiritual estacionária, relativamente suave, pois que se limita à conservação do terreno conquistado, mas inteiramente estéril para a Igreja e para a maior glória de Deus.

Em busca da perfeição espiritual

A Igreja certamente não pretende que seus filhos igualem em glória e em virtude aquele que, depois de Maria Santíssima, foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade.

Por outro lado, porém, ela não quer de modo algum que limitemos nossos horizontes espirituais a uma vida piedosa banal, amesquinhada pela errônea ilusão de que seria falta de humildade aspirar-se à santidade que brilhou no gênio de São Tomás, na combatividade de Santo Inácio, no recolhimento de Santa Teresa e na caridade de São Francisco.

A Igreja desmascara esta falsa humildade, apontando nela, ou um pretexto especioso da covardia espiritual, ou uma concepção orgulhosa da virtude, considerada mais como fruto do esforço humano do que da misericórdia de Deus. E, ao mesmo tempo, ela se serve do exemplo de seus grandes santos para “levantar ao alto” nossos corações, indicando-nos que a única preocupação real desta vida, o único problema verdadeiramente importante de nossa existência, é a aquisição daquela perfeição espiritual que será o único patrimônio que conservaremos, a despeito das crises financeiras, das comoções sociais e da fragilidade das coisas humanas, para, finalmente, transpormos com ele os próprios umbrais da eternidade.

É disto exemplo frisante o grande São José. Nascido de família ilustre, arrasta, no entanto, uma existência obscura que, contrastando com o brilho de seu nome, o colocou na mais baixa camada da sociedade de seu tempo. Escasseiam-lhe os dotes naturais com que os homens se fazem grandes. Não dispõe de exércitos nem de súditos, que levem ao longe a glória de seu nome. Não dispõe do dinheiro com que galgar às altas posições. Vive humilde e desprezado, à sombra do Templo majestoso, e no próprio país em que reinara a sabedoria de Salomão.

No entanto, brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade, e este homem humilde é chamado a co-participar de modo direto em acontecimentos dos quais decorreriam os mais notáveis fatos da história do mundo.

A Religião católica, coluna da civilização

A Redenção do mundo, que é o fato central de toda a nossa história, determinou a queda do paganismo, o aparecimento e o triunfo da Igreja Católica, a implantação de uma civilização baseada em concepções inteiramente novas da família, do Estado, do indivíduo e da Religião, que foram os fatos iniciais e a causa do grande progresso que hoje admiramos.

A família pagã, transformada e sobrenaturalizada pelo contato com os Sacramentos da Igreja, transformou-se em foco admirável de perfeição espiritual e em escola austera da disciplina dos instintos inferiores.

O Estado pagão, transformado em sua base pelo Catolicismo, deixou de ser privilégio de plutocratas ou demagogos, para ser antes de tudo um admirável meio de distribuição equitativa da justiça e proteção a todos os indivíduos.

O indivíduo, que no paganismo era presa de suas paixões, viu abrir-se diante de si o admirável ideal de perfeição espiritual pregado pelo Homem-Deus; e o homem medieval, descendente dos sibaritas da Antiguidade, se transformou no cruzado, no asceta ou no filósofo cristão.

A Religião, enfim, conseguiu trazer ao mundo, com seus Sacramentos, com a graça de que é veículo, e com o admirável apostolado hierárquico da Igreja, uma continuidade de ação santificadora que tem sido a coluna da civilização.

Todos esses acontecimentos gloriosos tiveram sua origem na Redenção. São José, pela admirável correspondência à graça com que se distinguiu, colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção. E, como tal, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Inestimável valor de uma vida espiritual intensa

Vemos, pois, a admirável fecundidade de uma vida que todas as circunstâncias naturais tendiam a tornar estéril. Vemos a prodigiosa capacidade de ação da santidade que, no recolhimento e na humildade, colaborou diretamente em acontecimentos muito mais importantes e teve uma participação incalculavelmente mais notável em toda a história da humanidade do que Alexandre com seus exércitos, Kant com seu saber arrogante, ou Maquiavel com sua diplomacia astuta e amoral.

Vida interior, portanto. Vida interior intensa, constante, ilimitadamente ambiciosa, no sentido espiritual da palavra, eis a grande lição que (o exemplo) de São José nos deixa.

Intimamente unidos a Nossa Senhora como o foi São José, não nos deve desanimar, ante a grandeza dessa lição, a escassez de nossas forças, pois que devemos exclamar como encorajamento: “Omnia possum in eo qui me confortat — Tudo posso n’Aquele que me conforta”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 116, de 26/3/1933. Título e subtítulos nossos.)

Majestade e sofrimento

Com a alma pervadida de enlevo, veneração e ternura, Dr. Plinio imagina como seria o convívio diário na Sagrada Família, abordando desde os assuntos mais comezinhos até os mais sublimes. E compõe uma oração própria de uma pessoa que não foi maculada pela Revolução.

Encontramos diversas estampas pitorescas, várias delas muito respeitáveis, decorosas, apropriadas e dignas, representando a santa casa onde residiu a Sagrada Família.

Simplicidade sublime

Em geral essas ilustrações se empenham em representar a casa de Nazaré com uma pureza diáfana, uma luz que não era apenas a de um dia lindamente luminoso, mas uma luminosidade persistentemente matinal, ao lado de uma grande simplicidade e uma limpeza absoluta.

O que dizer da limpeza dessa casa?

É difícil imaginar, porque talvez nem sequer os Anjos tinham o privilégio de limpá-la. Era Nossa Senhora, a Rainha dos Anjos, São José, o castíssimo esposo d’Ela, e às vezes, quando estavam cansados, o próprio Menino que, diante de todos os coros angélicos extasiados, limpava a casa para que seus pais descansassem.

Num canto, um jarro simples do qual se levanta uma açucena, muito ereta, como a virgindade, como a pureza, perpendicular, da qual brota o cálice de uma flor maravilhosa; é a única coisa que fala de arte, de gosto; o resto é muito simples.

Mas olhando para qualquer madeira tosca, para o ponto em que um pé de cadeira encosta no chão, o ponto em que uma prateleira suporta três ou quatro pequenos objetos indispensáveis para viver, fica-se extasiado, sem saber o que dizer diante dessas sublimes bagatelas, tão comuns na vida de qualquer um, mas que por estarem postas naquela luz tomam um caráter maravilhoso! 

E para muito adequadamente realçar a humildade de personagens tão puros, apresentam dentro deste décor, a Sagrada Família: São José que, sentado, está torneando algum móvel; Nossa Senhora fazendo uma costurinha; o Menino em pé, tão pequeno ainda que se apoia, não na mesa, mas em uma cadeira vazia, sobre a qual brinca com dois ou três objetos, como se aquilo fosse uma mesa.

Atentos aos gestos, à voz, ao olhar do Menino Jesus

Um silêncio no qual ninguém diz nada, mas todos se entendem superlativamente. Ao mesmo tempo, juntando a vidinha de todos os dias de uma pobre família operária e o encanto de considerações metafísicas, sobrenaturais, de Nossa Senhora e de São José que viviam inundados pela presença do Menino, com tudo quanto essa presença significava e era.

O Menino, nascido da Virgem-Mãe, da raça de Davi e, portanto, da mesma estirpe de São José — que possuía sobre Ele um autêntico direito de pai, por ser a criança o fruto das entranhas de sua esposa —, mas que era o Filho gerado pelo Espírito Santo no seio virginal de Maria.

O que dizer disso? Não há palavras que bastem!

A Santíssima Trindade, por assim dizer, “Se movia” ao menor movimento do Menino, brincando com algumas pedrinhas ou mexendo com uma coisa qualquer, enquanto sua infância ia se desenvolvendo segundo a ordenação posta por Deus na natureza humana, mesmo sendo esta tão elevada e tão distante do pecado original, como era a do Menino-Deus, Filho de Maria Virgem, concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser.

Poderíamos, assim, imaginar as cenas mais comuns na vida de uma criança, como procurar algum objeto, hesitando sobre se estaria aqui ou lá, e não encontrando onde procurou, para depois buscar no lugar certo porque Nossa Senhora ou São José tinha mudado de lugar o objeto, ou o vento soprou e tocou para longe o paninho que Ele tinha separado…

Que repercussão episódios tão simples teriam nas relações das três Pessoas da Santíssima Trindade?

Por outro lado, São José e Maria Santíssima também cuidando dos afazeres domésticos, mas, tanto quanto possível, procurando não perder um gesto, um movimento, atentos à mínima emissão de voz d’Ele como a uma música inefável. O menor olhar d’Ele era um tesouro sem conta, o menor movimento tinha uma majestade e uma graça inexprimíveis! E eles sabiam que era o Homem-Deus que estava ali, hesitava, Se movia, falava… Podemos imaginar o enlevo sem fim que os inundava!

Como seria o convívio diário na Sagrada Família?

Deveria acontecer também que, pelas contingências da vida concreta, pela necessidade de prestar atenção nos afazeres, às vezes eles desviavam a atenção do Menino. De repente, tinham uma surpresa com alguma atitude e comentavam-na entre si, cochichando baixinho.

Em outras ocasiões, um dos dois esposos tinha estado fora e, quando voltava, recebia encantado o “jornal falado”.

Outras vezes era o próprio Menino Jesus que tinha saído para brincar com outra criança no jardim, enquanto São José e Nossa Senhora ficavam dentro de casa, confabulando: “O que estará fazendo Ele?”, sabendo não se tratar apenas da satisfação de um desejo infantil de ter um companheiro, mas considerando como tudo quanto Ele fazia tinha um significado muito profundo.

Como seria o relacionamento entre os três, na casa de Nazaré? Teriam entre Si um contato, uma interlocução tal que a todo o momento fizessem referência à natureza divina de Jesus? E o Menino, à virgindade fecunda de sua Mãe e à virgindade milagrosa, florindo num casamento casto, de São José? Ou esses eram temas que eles sabiam, veneravam, mas sobre os quais falavam pouco, deixando-os implícitos e conversando sobre eles apenas nas grandes ocasiões, quando baixavam do Céu luzes extraordinárias e, contemplando o Menino, o santo casal tinha êxtases místicos?
Com exceção desses momentos, talvez o resto do tempo transcorresse em uma vida comum, com os assuntos cotidianos:

— José, meu esposo, fostes vós que abristes aquela porta? Quereis porventura sair levando um banco que acabastes de fazer, ou quereis ainda ficar aqui?

— Senhora, eu ainda preciso ficar aqui, exceto se vossa vontade for outra…

Algum tempo depois, diria São José:

— Senhora, Vós vos distraístes — ele bem sabia que Ela tinha estado conversando com os Anjos! — e o almoço já vai longe no nosso pequeno fogareiro; vede um pouco como está… Enfim, poder-se-ia imaginar tudo.

Refulgindo como no Tabor

Eu seria propenso a achar que, na maravilha desse convívio interno, as coisas mais diferentes se davam simultaneamente. Entretanto, tudo se juntava em uma fórmula maravilhosa que não sabemos qual é, mas podemos intuir.

Seria uma fórmula que comportaria momentos de uma seriedade extraordinária, de uma gravidade maravilhosa, em que a Santíssima Trindade se manifestasse ao santo casal? Ou que o Menino — que quando adulto reluziu no Tabor entre Moisés e Elias, de um modo tão esplendoroso — de repente aparecesse a eles com um brilho cada vez mais intenso, num momento inopinado em que Ele viesse pedir licença para brincar um pouco no jardim. E ambos passassem um tempo sem conseguirem responder ao Menino que, entretanto, esperava reluzente a resposta; e eles completamente transportados para outra esfera, pois estavam diante de Deus!

Poderia ser que, depois de terem visto esse esplendor, não comentassem. E Maria dissesse a José:

— Está ficando tarde, não é? Vou recolher a roupa que está lá fora.

E ele diria:

— Senhora, preciso acabar este objeto que me encomendaram para hoje à tarde.

Enquanto Ela ia pegar a roupa e ele trabalhava no objeto, este tomava rapidamente a forma que ele queria. Nossa Senhora, entrava, via o objeto pronto e dizia:

— Senhor, já está pronto o objeto? — suspeitando ter sido concluído pelos Anjos.

E ele, discreto, responderia:

— Senhora, às vezes as coisas correm depressa…

Há um matiz nesse convívio da Sagrada Família que eu não vejo reproduzido na iconografia, e compreendo, porque não é fácil reproduzir. Isso tudo estava impregnado de uma respeitabilidade, de uma majestade, de uma seriedade augusta, de uma determinação forte, para dizer tudo em uma palavra só, de uma seriedade e de uma dor desconcertantes.

Prefiguras da Agonia no Horto, do levar a Cruz ou da coroação como Rei

Em certos momentos, o santo casal deveria ver que o Menino brincava e Lhes aparecia, de repente, chagado dos pés à cabeça, esmagado de dor, e brincando com dois pauzinhos que Ele carregava às costas. E era o precônio da Cruz.

Eles ficavam com o coração partido, e viam o Menino andar de um lado para outro, determinadamente, fazendo um gesto ao Padre Eterno. E era um primeiro, um segundo, um quinto lance prefigurativos da Agonia no Horto. Que dor, que nobreza, que grandeza, que majestade!

Outros dias Ele aparecia como Rei, em comparação com o qual os Césares não eram senão moleques.

Poderíamos, assim, imaginar formas de venerabilidade as mais augustas.

Acredito que os que quisessem habitar na dor seriam pouco numerosos. Mais raros ainda seriam os que não se cansassem da majestade.

Escudo e espada para defender o Menino-Deus

Contudo, quem, considerando a grandeza dessas cenas, não tivesse nenhuma nódoa de Revolução na alma, diante dessa majestade se ajoelharia e diria:

“Ó Majestade divina, dentro desse mar imundo de vulgaridade que é hoje a Terra dominada pela Revolução, quanto Vos procurei sem saber que era a Vós que eu procurava! Quanto Vos desejei, quanto me comprouve em pegar os menores fiapos de majestade que encontrei pelo meu caminho e me deter diante deles conscientemente, pensando em Vós que eu não conhecia!

“Mas afinal, ó Majestade, eu Vos encontro! Majestade, eu Vos compreendo! Vós tendes todo o império dos Anjos, sois tudo quanto há de grande!

“Quando apareceis a mim, ó Majestade, penso no estrondo das cataratas mais caudalosas que, entretanto, são minúsculas torneiras abertas diante de Vós. O oceano parece um dedal de água em vossa presença, e todas as grandezas da Terra não são nada em comparação convosco.

“Ó Majestade, quanto eu Vos procurei, ó pátria de minha alma! Afinal Vos encontro!

“Quando eu fitava a Igreja e renovava enlevado o meu ato de Fé, não sabia que um dos nomes dela era “Majestade”. Agora compreendo. A Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, receptáculo da Majestade, vaso de honorificência!

“Se eu visse Maria, que majestade! Se eu visse José, o modesto carpinteiro, que majestade! Se eu visse o Menino, minha alma procuraria rimas para celebrar-vos, ó Majestade!

“Meus braços ansiariam por um escudo e por uma espada para Vos defender! Meu corpo inteiro se retesaria diante da possibilidade de Vos proclamar diante dos homens, ó Majestade!

“E precisamente porque Vos compreendo, ó Majestade, compreendo também que na vossa imensidade cabem todas as outras coisas: não há amor paterno nem materno, nem carinho fraterno, nem amizade, nem socorro, nem proteção, nem nada do que o coração humano possa produzir de mais suave e de mais terno, que não more em Vós, ó Majestade! Vós sois todas as grandezas, todas as magnificências, até mesmo das coisas pequenas.

“Vós sois o meu repouso quando estou cansado; a tranquilidade e a harmonia do meu sono; a alegria do meu despertar.”

Morar no santuário da majestade

Quem compreende que no santuário incomensurável da majestade há um altar, bem no centro, colocado para o sofrimento? Portanto, também para esta forma de dor de espírito, que é a ascese, por onde o homem abandona o que é frívolo, superficial, fútil, e se volta para o que é profundo, sério, para o esforço da mente na procura da verdade, para o esforço do corpo inteiro na procura do bem e do belo; holocausto mil vezes feito de todos os modos pela alma à procura da verdade, do bem, e da beleza.

Sem essa dor, para nós, concebidos no pecado original, não teria sentido o santuário infinito da majestade. Essa é a verdade.

Há a dor, há a cruz. A Cruz sacrossanta de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quem ama a dor? Quem ama a cruz? É tal a ligação entre a cruz e a majestade que, a partir de certo momento da História cristã, nenhuma coroa houve que não fosse encimada pela cruz. O píncaro da majestade, a cruz pequena sobre a coroa, como se a cruz estivesse numa altura tal que mesmo sobre a coroa ela fosse difícil de ver. Tal é a majestade da cruz!

Quem amará esses pensamentos? Quem se habituará a conviver com eles? Quem quererá morar no santuário da majestade, ajoelhado aos pés da cruz?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1982)

A inebriante alegria do Natal

Com o intuito de avivar a confiança de que a atmosfera sacral dos Natais de outrora deverá reflorescer sobre a Terra, Dr. Plinio narra alguns fatos de sua infância.

Após um ano de lutas, sofrimentos e dificuldades, aproxima-se o Natal. As festas do Santo Natal, bem como as da Páscoa, a meu ver, têm a característica de interromperem o tempo. E ainda que se esteja na situação mais aflitiva, o Natal ergue uma muralha, deixando de um lado as desgraças e as lágrimas, e, do outro, os sinos que anunciam as alegrias natalinas.

Não se trata de uma alegria vulgar, mas uma alegria muito mais profunda e leve, que parece ser feita de luz. Feita da luz que é o “lumen Christi”, a qual passou a brilhar sobre a Terra na noite de Natal, e que a cada ano de alguma forma volta a brilhar, trazendo com ela a verdadeira alegria e a verdadeira paz de alma até para os mais atormentados.

Alegria por cima das aflições

Imaginemos, por exemplo, o que se dava nas catacumbas. O que deveria ser uma noite nas catacumbas? Lembro-me da Catacumba de São Calixto, em Roma, que me causou profunda impressão. Seus corredores são estreitos e altos — talvez a altura sirva para assegurar certa ventilação, pois se sente que nela circula certo vento. Mas as paredes se afunilam para cima, causando a impressão de que no alto vão se encontrar; isto ao menos para mim dava sensação de asfixia. E por todos os lados terra e sepulturas. Em certo ponto vê-se uma clareira, da qual filtra um pouco de luz, permitindo ver uma sala quadrangular com pinturas, muito antigas, feitas, por alguma técnica, diretamente sobre a terra; estas representam de modo ingênuo cenas do Evangelho. Ali se encontra um altarzinho, pois se trata de uma capela onde se celebrava a Missa, junto aos restos de novos mártires, mortos de modo cruel. O corpo do mártir ficava, muitas vezes, jogado na arena, todo estraçalhado. Terminado o martírio, o povo se retirava. Ao anoitecer, católicos heroicos, eles mesmos candidatos ao martírio, pois caso fossem pegos seriam também martirizados, em meio às trevas se arrastavam até o Circo Máximo ou até o Coliseu para pegar aqueles restos, os quais traziam em panos, embebidos em perfume, até as catacumbas onde entravam por um orifício oculto feito no chão.

Quando os que lá esperavam rezando recebem a notícia de que ali estão os restos de um de seus irmãos na Fé, imediatamente do fundo da terra ouve-se um cântico de triunfo. Pois aquele companheiro que na véspera tinham visto e com quem tinham conversado — até que devido a uma vistoria policial na catacumba fosse capturado e, cheio de aflição, levado para ser martirizado — após tantos sofrimentos ele está no Céu. Por isso todos cantavam de alegria.

Quando alguém recebe graças especiais, até nessa situação ela pode sentir alegria, a tal ponto que havia mártires que apesar de triturados pelas feras morriam alegres.

Inebriados pelo Sangue de Cristo

Agrada-me ouvir cantar o Anima Christi, no qual há uma jaculatória que diz: Sanguis Christi, inebria me! Sangue de Cristo, inebrie-me! O que isso quer dizer? O que é esta embriaguez do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo? Um exemplo é o do mártir que tendo comungado do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, embriagado da alegria, fruto da graça do Espírito Santo, procede como um ébrio, não tendo medo diante do perigo e da dor. Pelo contrário, de tal modo o inunda a alegria sobrenatural que se lhe dissessem que a fera não vem, ele era capaz de ficar desapontado, pois para ele a boca do tigre era a porta do Céu, e as presas que ele vê enquanto a fera uiva são para ele os instrumentos benfazejos que vão romper os laços que o prendem à Terra, permitindo que sua alma possa voar junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A graça pode produzir esse efeito, e não é tão raro que o faça.

Em algo sentimos este efeito da graça quando, em meio a aflições, tormentos e lutas, vemos nossas almas encherem-se das santas alegrias do Natal, que vencem até as maiores angústias. Ao menos para os que não rejeitam essa graça.

A noite de Natal de outrora

Para que se sinta um pouco o que é esta graça, creio não ser descabido narrar algumas recordações, na tentativa de fazer reviver aqui aquilo que na pobre São Paulo de hoje, embora tão rica, quase não se nota mais: as alegrias e vivas impressões que outrora se sentiam nas noites de Natal.

Como era um Natal no ano de 1920? Portanto, Natal dos últimos anos de minha infância?

Havia qualquer coisa que alguém poderia dizer tratar-se de imaginação, mas digo que tenho a convicção interna de não se tratar de imaginação, mas da graça, que era dada a mim, como a todas as crianças de meu tempo, ao menos as que eu via e conhecia.

Era uma graça geral. As crianças, já alguns dias antes do Natal, viam-se invadidas por uma expectativa e por uma alegria na esperança das festas que iam se realizar. A perspectiva da festa, no que ela tem de terrena, desempenhava um papel na alegria das crianças. Elas sabiam que São Nicolau, o santo Bispo afável, viria de noite enquanto todos dormiam e colocaria presentes junto a elas: nos lares abastados, grandes caixas; nos lares mais pobres, com menos condições financeiras, caixinhas de presentes pequenas, mas cheias de afeto. Mas em todo lugar onde houvesse uma mãe, digna realmente de assim ser chamada, um pai solícito e merecedor deste título, alguma coisa punham junto à cama do filho. O que para o filho consistia uma maravilha, que ele esperava com alguns dias de antecedência.

Inundadas pelas alegrias de Natal, as crianças ficavam melhores

Esta alegria se fazia sentir dois ou três dias antes do Natal. Ao andar um pouco, correr pelo jardim, brincar, tudo se fazia cheio de um bem-estar próprio à inocência da infância, à espera do Natal. Esta alegria em boa medida era motivada por alguma coisa mais alta e que já era um prenúncio da alegria estrita e definidamente religiosa do Natal que estava por vir. Algo de especial começava a nos encher as almas.

Nesses dias, todas as crianças ficavam melhores: as que mentiam, passavam a mentir menos; as que não mentiam censuravam alguma que mentisse; as que eram pouco observantes dos horários de casa tornavam-se mais pontuais. Sentia-se em todos mais limpeza de alma. E esta alegria de ter a alma limpa não se compara a nenhuma outra ao longo da vida. O que pode se comparar ao bem-estar, por exemplo, de alguém que se confessa e sai do confessionário com a certeza de ter sido perdoado?

Quem não se lembra com saudades de alguma vez ter se aproximado do confessionário com um problema de consciência e de lá ter saído transbordante de alegria pela certeza de haver sido perdoado? Essa alegria faz em algo lembrar aquela que se sentia nos dias que antecipavam o Natal, ainda sem ter se confessado.

Um princípio de pureza, de limpidez, de honestidade, de bondade e de candura parecia se fazer sentir sobre a Terra, atuando nas almas de todos os homens. As pessoas começavam a ser mais benévolas entre si, oferecendo-se favores. As crianças egoístas de bom grado emprestavam seus brinquedos, as birrentas faziam pequenos favores. E os mais velhos, por mais que não sentissem a mesma alegria que as crianças, por lembrarem-se dos Natais em suas infâncias, esforçavam-se por causar a impressão de estarem participando do mesmo contentamento, tornando-se especialmente solícitos e afáveis.

Bem-estar natural e sobrenatural

Os pais, ao menos os meus, levavam as crianças para ver os brinquedos de Natal. Em geral as melhores lojas de brinquedos eram alemãs e inglesas. Lembro-me de várias: Casa Fux, Casa Grümbach, Casa Lebre e outras. Entre elas havia uma onde minha mãe e a Fräulein costumavam levar minha irmã, uma prima que morava em nossa casa e eu. Esta ficava na Rua XV de Novembro; chamava-se Casa Mappin. Como o Natal vinha se aproximando, as crianças ao saírem de casa iam com roupa de gala, todas enfeitadas. Assim íamos também nós ver os presentes, os quais muito nos encantavam. Mamãe ficava prestando atenção para ver qual deles mais nos agradava. Por coincidência e para nossa maravilha e surpresa, São Nicolau trazia justamente aquele…

Uma das partes culminantes da preparação do Natal, para mim, sensível à gastronomia desde muito cedo, era quando íamos tomar um lanche na Casa de Chá do Mappin. O fundo desta Casa dava para um barranco profundo, embaixo do qual começava o Brás; era um descampado por onde entrava muito vento; nós ficávamos sentados lá, pois a Fräulein e eu éramos grandes apreciadores de vento. Este, mais o chá, os sanduíches, as torradas e o chocolate, me regalavam. Eu tinha a impressão de que o bem-estar de meu corpo em contato com aquele vento era análogo à alegria de minha alma em contato com as graças de Natal que se aproximavam, o que me cumulava ainda mais de desejo de que o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo chegasse o quanto antes.

Notava-se esta alegria natalina até nas mães que levavam as crianças pelas ruas do Centro, o qual se enchia especialmente; as crianças, todas alegres e satisfeitas, algumas já levando presentes, dando risadas e conversando. Quando passava uma criança assim mais vistosa, mais engraçada, as mães piscavam para a mãe daquela como que a dizer: “Mas que engraçadinha…” E a mãe ficava toda satisfeita. E assim era uma alegria geral.

De alegria em alegria até o ápice do Natal

Voltando para casa começavam os mistérios… Numa determinada sala não se podia entrar, pois a árvore de Natal estava sendo preparada, como em todo ano, com alguma novidade, uma estrela enorme, um anjo novo ou outros enfeites.

Quando uma criança conseguia ver algo da surpresa, corria para contar às outras, que tomavam a notícia com ar de grande importância. Em meio a essas alegrias passava-se o tempo até a noite de Natal, hora em que se ia à Missa do Galo. Aí o ambiente era completamente diferente.

Nós, morando perto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, para lá íamos a pé. Todas as casas estavam abertas e as luzes acesas. Andando pelas ruas percebia-se, em casas modestas como nas ótimas, que eram quase palácios, uma árvore de Natal acesa e ouvia-se lá de dentro um gramofone, dos mais antigos, tocando músicas de Natal. Percebia-se em cada família a alegria de Natal, todos estavam acabando de se aprontar para sair, deixando apenas um criado a tomar conta da casa. Logo os sinos começavam a tocar, avisando que a Missa ia começar.

Chegando-se à igreja, esta se encontrava feericamente iluminada, o altar se encontrava todo cheio de flores. Numa manjedoura via-se o Menino Jesus deitado. Quando soava meia-noite, o padre entrava e começava a Missa, durante a qual se sentia algo aparentemente contraditório, um misto de recolhimento e de explosão de contentamento.

Quando já se tinha idade, comungava-se. A Comunhão era o ápice! Encantava-me a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, que tinha nascido em Belém, numa daquelas noites, estava realmente presente em mim; era a hora dos pedidos, mas, sobretudo, tinha-se uma indescritível sensação de intimidade. Eu tinha uma estampa do Sagrado Coração de Jesus que representava Nosso Senhor segurando um menino, de cabelos cacheados pretos, e Ele com a mão em volta de seus ombros, apertando o menino para junto do peito. Em baixo desta havia uma jaculatória que dizia mais ou menos assim: “Ó Bom Jesus, tende piedade de mim!” Eu a rezava pensando: Nosso Senhor nesta hora está fazendo isso comigo…

Depois da Missa, tinha-se a impressão de que as graças de Natal se difundiam por todas as casas. Quando chegávamos à nossa, parecia que esta já não era a mesma que tínhamos deixado. Havia nela algo de religioso, de sacral, de recolhido, que causava verdadeira maravilha. A par desta atmosfera recolhida, sentia-se habitar na casa uma alegria, como igual não se sentia o ano inteiro. Começavam os cumprimentos e as felicitações, ao que eu era muito sensível, sobretudo aos carinhos e felicitações vindos de mamãe, com os quais eu já vinha contando como um complemento da noite de Natal. É impossível descrever o que é o ósculo de uma mãe católica a um filho que ela deseja que seja católico também! Depois das saudações, começava a festa de Natal, a qual já tive oportunidade de descrever outras vezes.

Delícias que se sentiam até dormindo

Terminada a festa de Natal, chegava a hora das delícias do sono, o qual era melhor na noite de 25 para 26. Porque como se sabia na noite anterior que São Nicolau viria entregar o presente, queríamos surpreendê-lo, mas sendo ele muito hábil, isto nunca acontecia. Porém, mantinha-se esta esperança. Até que, mais ou menos às quatro horas da manhã, sentia-se sobre os pés o peso da enorme caixa de presentes, e logo vinha a curiosidade de saber se São Nicolau tinha acertado, mas eu pensava: “Não posso acender o abajur porque meus pais, notando, me censurarão. De outro lado, como é gostoso sentir o peso desse presente, pelo qual posso avaliar o valor e o prazer que o presente me dará!” Pouco depois o sono infantil tomava domínio da situação e a criança dormia. Acordando de novo pouco depois, na sofreguidão de que o momento de se levantar tivesse chegado, para poder ver o presente, não sendo ainda hora, voltava a dormir.

Até que antes da hora de acordar, a criança já estava de pé, rompendo as fitas, os laços e os barbantes, para ver o presente, o qual era sempre um muito bonito, um dos quais se tinha gostado em alguma casa de presentes.

Por isso, o sono da noite de 25 para 26 era um sono pesado e gostoso, pela sensação da consciência tranquila, pelas influências do Natal Sagrado, sob cujo perfume se dormia, sabendo que no dia seguinte ainda se teria a recordação do Natal. Ainda tinha um feriado, para comer os últimos doces, beber os últimos ponches, brincar mais uma vez com os brinquedos, até se familiarizar com eles. Não se olhava com pesar para o implacável dia 26 que vinha. A noite de Natal era, portanto, um hiato luminoso, cheio de algo que não se consegue descrever, mas que todos sentiram, cada um em sua época.

Dia virá em que os verdadeiros Natais reflorescerão na Terra

Até que ponto os que são mais jovens sentiram isso? Receio que, quando muito, tenham visto apenas ligeiros fins disso.

Televisões ligadas o dia inteiro, rádios vociferando canções de Natal comercializadas, lâmpadas fluorescentes e laicas penduradas em torno de árvores, em jardins de prédios e em apartamentos, igrejas vazias. Eis o Natal moderno!

Põe-se a pergunta: O que resta de tudo o que descrevi? Será que de tudo isto só ficou a recordação? Muito mais do que isto, resta uma esperança! E no intuito de avivar essa esperança é que narrei estes fatos. Mas, de tudo isso só resta uma esperança? Não! Temos uma certeza! graças à promessa divina: “…as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16-18).

Esta certeza nos diz que um dia, após lutas, provações e batalhas, os verdadeiros Natais reflorescerão na Terra. E quando se assistirem a esses Natais, talvez alguém se lembre desta descrição que acabo de fazer, e tenha a convicção viva de que não é algo que está nascendo, mas é uma longa concatenação histórica que sai do fundo das águas da provação e volta à luz. Trata-se da verdadeira alegria do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Natais mais belos do que os de outrora

Apesar de toda a decadência que se nota nas festas de Natal atualmente, se comparadas com as de meu tempo, não hesito em afirmar que o Natal dos que, hoje em dia, lutam para permanecer fiéis ao verdadeiro espírito católico é ainda mais bonito do que os de outrora. E se eu, quando menino, pudesse ver como seriam os Natais que eu deveria passar nestes dias, sem dúvida exclamaria: “É para isso que eu nasci!”

Devemos, pois, lembrar que essas alegrias de Natal, sob o sorriso de Nossa Senhora, descerão sobre nós, ainda que estejamos na mais terrível aflição. Também nos deve animar a confiança de ver realizada a promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” Quando isto se der, que suavidade, harmonia e doçura terão as festas do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)