A expansiva piedade de São Crispim de Viterbo

Hino de exaltação à virtude da humildade, a vida deste santo italiano constitui uma iluminura na qual se retrata a inocência medieval aliada à santidade franciscana. Comentários de Dr.Plinio.

 

Alguns episódios da vida de São Crispim de Viterbo [ver quadro anexo], irmão leigo capuchinho, despertam nossa admiração pela extrema piedade que neles se revela.

Fez da cozinha conventual um lugar de devoção mariana

Nascido em 1668, foi consagrado desde a idade de 5 anos a Nossa Senhora, por quem teve especial devoção durante toda a sua existência. Tendo ingressado na Ordem dos capuchinhos, quis ficar entre os irmãos leigos, tomando como modelo São Félix de Cantalício.

No mosteiro, trabalhava nos jardins, fazia compras, cuidava dos doentes, passando as noites em oração e nas práticas de penitência. Ao ser encarregado da cozinha, nesta erigiu um altar à Santíssima Virgem. Aí era visitado por grandes senhores, cardeais e pelo próprio Papa Clemente XI que, certa vez, ali foi venerar a imagem da Mãe de Deus.

Chamo a atenção para a piedade contagiosa de um autêntico irmão leigo capuchinho. Era tão comunicativa que os grandes da época, tanto os da Igreja quanto os da sociedade temporal, dirigiam-se a esse altar erguido na cozinha do mosteiro, atraídos que eram pela devoção do santo.

Nossa Senhora concedeu-lhe o dom dos milagres. Certa vez, tendo curado uma pessoa chegada ao Sumo Pontífice, o médico afirmou: “Vossos remédios têm mais virtude que os nossos”. E o santo respondeu: “Senhor, sois um médico sábio e a cidade de Roma vos reconhece como tal. Mas, a Santíssima Virgem é muito mais sábia do que vós todos, médicos do mundo!”

O bom odor de Jesus Cristo, em Orvieto

Como irmão encarregado da despensa do convento, logo tornou-se estimado na cidade de Orvieto. O governador conversava com ele, e o Cardeal-Bispo da sua diocese detinha a carruagem em que ia para se entreter com o pobre frade na rua.

Imagine-se tais cenas encantadoras! Orvieto, já então cidade de certa importância na Itália, com sua linda catedral gótica, cuja fachada reluz ornada de lindos mosaicos coloridos. Fim de tarde, os trabalhos de todas as corporações encerrados, o movimento da cidade vai diminuindo, os sinos começam a tilintar, convidando os fiéis para a bênção do Santíssimo Sacramento ou para as Vésperas. Envolto numa penumbra azulada, ergue-se o palácio do Governo. Ali, também desobrigado de seus afazeres diários, o governador descansa e se entretém, sem empáfia, sem petulância, mas com naturalidade, com o humilde frade capuchinho. Embevecido, o magistrado dá graças a Deus por receber a visita do santo religioso.

Percebe-se, nesse contato, a beleza da lei dos contrários harmônicos; regozija-nos ver um grande personagem enlevado na conversa com um pequeno, embora, do ponto de vista sobrenatural, este último seria talvez maior que aquele.

O frade sai do palácio e segue seu caminho pelas ­ruas tortuosas da cidade. De repente, um ruído de ferros e de ferraduras, e uma carruagem se detém ao lado dele. A carruagem do Cardeal. Distinguindo-a, o frade mantém os olhos baixos, em atitude de respeito e reverência. Porém, o Príncipe da Igreja abre a porta do carro e diz:

— Entre, Frei Crispim, vamos conversar um pouco…

— Oh! Eminência!

— Que notícias o senhor me conta?

O frade narra-lhe alguns fatos da vida do convento, ou então, com toda a naturalidade, comenta:

— Tive uma visão assim…

O Cardeal é todo ouvidos, imerso em admiração.

Creio não ser difícil compreender como nos aproveita à alma recompormos cenas como essas, pois constituem o sabor de um passado no qual, segundo expressão de São Paulo, sentia-se o “bom odor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Cor 2, 15), tão diferente dos cheiros perniciosos que vão se espraiando no mundo hodierno.

Na hora da morte, não quis “atrapalhar” a festa de seu padroeiro

O resultado dessa expansiva piedade foi que os habitantes de Orvieto não o deixavam ir-se embora. Nas vezes em que o transferiram de convento, o povo negou-se a dar esmolas para os religiosos. Quer dizer, era preciso fazer voltar Frei Crispim, senão os frades passariam fome…

Durante anos seguidos foi insultado por uma religiosa à porta da qual vinha bater. Dela, dizia sempre o santo: “Deus seja louvado, pois há em Orvieto uma pessoa que me conhece e me trata como mereço!”

Não vem a ser uma atitude “heresia branca”(1), mas um genuíno fioretti(2). Pois o justo cai sete vezes (Pr 24, 16) e, portanto, não se deve considerar isento de ouvir  rabugices e desaforos.

Frei Crispim ficou gravemente enfermo poucos dias antes da festa de São Félix de Cantalício, seu padroeiro. Como os frades lhe dissessem que logo compareceria diante de Deus, respondeu-lhes que isso só ocorreria após a comemoração de São Félix, pois sua morte atrapalharia a festa do santo.

Outro fioretti!

O santo irmão leigo capuchinho faleceu em Roma, em maio de 1750.

Contrastes que formam a beleza da Civilização Cristã

Sem dúvida, uma existência admirável, que nos proporciona não apenas um motivo de enlevo, um exemplo a ser imitado, mas também um ensinamento que merece ser ressaltado.

Com efeito, no ambiente em que ele viveu, houve toda uma floração de irmãos leigos capuchinhos, talvez não tão eminentes na virtude, mas todos daquela escola que engendrou São Félix de Cantalício e o nosso próprio santo, constituindo uma nota de exaltação da humildade.

Dir-se-ia que esses religiosos eram ecos da paz, da serenidade de alma, da bondade características da cristandade medieval, dessa Idade Média entretanto tão gloriosa pela sua pompa e por suas batalhas. E é justamente nesse encontro harmônico de contrastes que reside a quintessência da beleza. Se quisermos compreender o esplendor da Idade Média combativa, consideremos a serenidade de um São Crispim de Viterbo ou de um São Félix de Cantalício. Se desejarmos entender a bondade desses dois santos, contemplemos a pugnacidade peculiar àquela época histórica.

Desse conjunto de contrastes harmônicos depreende-se a grandiosa beleza da Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/5/1967)

 

1 ) Expressão empregada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental e adocicada que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc.

2 ) “Florzinhas”, em português. Significam pequenos propósitos a praticar, ou a descrição de algum fato edificante da vida de alguém. Célebres são os fioretti de São Francisco de Assis. Vale notar que em italiano o singular é fioretto. Dr. Plinio, porém, costumava usar o plural, atendo-se ao título da mencionada coletânea franciscana.