Alta vocação dos Reis Magos

Todos os sacerdotes, reunidos no Templo, deveriam ter comunicado ao povo que os tempos haviam chegado à sua maturidade e, conforme as profecias, afinal o Messias iria nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos para anunciar em Jerusalém o seu nascimento. Isso mostra o cúmulo da degradação a que essa cidade, ainda não deicida, havia chegado.

Dom Guéranger faz os seguintes comentários a respeito  da vocação e dignidade dos Magos.

Os Reis Magos professam o desejo firme de adorar o Messias.

Tendo a estrela anunciada por Balaão se levantado sobre o Oriente, os três Magos, cujo coração se tinham aberto à espera do Messias Libertador, sentiram antes de tudo a impressão de amor que os levava a Ele. Eles receberam a nova da alegre vinda do Rei dos Judeus de um modo místico e silencioso, diferente dos pastores de Belém aos quais a voz de um Anjo convidou para irem ao Presépio. Mas a linguagem muda da estrela é explicada em seus corações pela ação do Pai Celeste que lhes revelava seu Filho.

Nisto sua vocação foi mais alta em dignidade do que a dos pastores, os quais, segundo as disposições divinas na antiga Lei, nada conheceram a não ser pelo ministério dos Anjos, mas se a graça divina se dirigiu imediatamente a todos os corações pode-se também dizer que ela os encontra fiéis.

Os Magos, falando a Herodes, exprimiram a simplicidade de sua empresa: “Nós vimos sua estrela e viemos para adorá-Lo”. Esses reis dóceis deixam, portanto, de um momento para outro, sua pátria, suas riquezas, seu repouso para caminharem em seguimento de uma estrela de que eles ignoravam o termo.

O poder de Deus que os tinha chamado os reunia em uma mesma viagem em uma mesma fé. Os perigos da viagem, os cansaços, o temor de se levantarem contra si as suspeitas do Império Romano, nada os fez recuar. Seu primeiro passo, seu primeiro repouso foi em Jerusalém. É, pois, nesta cidade sagrada que em pouco tempo será maldita que eles chegam, eles gentios, para anunciar Jesus Cristo e declarar que Cristo veio. Com toda a segurança, toda a calma dos apóstolos e dos mártires, eles professam seu desejo firme de adorar o Messias. Eles obrigam a Israel, depositária dos oráculos divinos, a confessar um dos principais caracteres do Messias: seu nascimento em Belém.

Herodes se agita em seu leito e medita o projeto de carnificina, mas é tempo para os Magos deixarem a cidade infiel, que já recebeu por sua  presença o anúncio de seu repúdio. A estrela aparece no céu e os reis decidem tomar novamente seu caminho. Mais alguns passos eles estarão em Belém, aos pés do Rei que eles vieram procurar.

A vocação dos Magos foi mais alta do que a dos pastores

Esses comentários são borbulhantes de ideias profundas, das quais cada uma mereceria verdadeiramente uma conferência.

A primeira ideia é uma comparação entre os Magos que foram procurar o Menino Jesus, guiados pela estrela, e os pastores. Mas é uma comparação que procura o valor de procedimento de uns e de outros perante o Natal, pelo modo através do qual foi noticiada a uns e outros o advento de Jesus Cristo.

Então ele diz que a chegada de Jesus Cristo foi anunciada aos pastores pelos Anjos. E aos Magos certamente por uma estrela que estava no céu, mas eles souberam que ela significava a vinda do Messias. Como? Em virtude de comunicações internas de caráter místico e silencioso operadas pela graça de Deus na alma de cada um, fazendo com que, quando a estrela chegasse, eles soubessem tratar-se do anúncio do Messias que vinha. Então, tocados por um movimento que era uma fidelidade à voz interna do Padre Eterno na alma deles, os Magos acreditaram na estrela, e como esta se movia  eles a seguiram.

Temos, assim, dois processos. Um é o anúncio de fora para dentro: os pastores, por um fato externo a eles, altamente miraculoso e extraordinário, ficam sabendo que o Messias nasceu. Pelo contrário, os Magos tomam conhecimento de que o Messias nasceu por meio de um fato interior, o qual a estrela apenas esclarece um pouco mais.

Voz interior provocada pela graça

O que tem mais mérito: seguir os Anjos ou a voz interior? Segundo a “heresia branca”

seria os Anjos porque, para esse tipo de mentalidade, a aparição de um Anjo é a prova da santidade; mais ainda, se uma pessoa tem a emoção santificante de ver o Anjo, naquela sensação ela fica santa de uma vez. É uma espécie de suspiro santificante. De maneira que o mais importante é ter recebido o anúncio de um Anjo e corresponder.

Além disso, é mais espetacular ver o Anjo, porque voz interior, quantos têm? Depois, sabe-se lá se é voz interior ou não? Pode haver dúvidas. Com um Anjo não, é uma coisa provada, garantida e, ademais, importante: Deus mandou um Anjo para falar com aquele; oh, não é pouca coisa! Voz interior é a vida de todos os dias, uma coisa apagada, sem graça, desbotada. Então, muito mais vale receber um anúncio pelos Anjos, e é mais fiel quem o segue.

Entretanto, Dom Guéranger, um grande teólogo e especialista na consideração destes temas, mostra que a operação interna da graça numa alma vale mais do que qualquer fato externo, e que a fidelidade à voz interior é mais  preciosa do que a fidelidade a um anúncio exterior; e por causa disto aqueles que não viram o Anjo, mas creram nessa voz interior, tiveram maior mérito. Evidentemente, a voz interior não é um cochicho, mas um jogo de espírito provocado pela graça, por onde a alma percebe, discerne, pondera e, iluminada pela graça, chega às conclusões impregnadas de espírito de fé.

Esse é diretamente um fruto do Espírito Santo, e a fidelidade a isso é mais árdua, mas ao mesmo tempo mais meritória, do que a fidelidade dos pastores ouvindo a voz dos Anjos.

Poder-se-ia objetar: “Mas essas vozes interiores às vezes enganam”.

É bem verdade, mas qual é a consequência?

É que Deus faz mal em nos falar por meio da voz interior? Quem ousaria censurar o Onipotente? E se Deus não faz mal, deveríamos não ouvir, como quem dissesse: “Deixa-O ir falando…”?

Há uma frase na Escritura que diz: “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Sl 94, 8). Portanto, não podemos fazer ouvido mouco à ação interna da graça na alma, mas devemos saber discernir, com o auxílio que o próprio Deus nos dá para isso.

Aqui se aplica bem a palavra de Nosso Senhor a São Tomé: “Tu creste porque me viste. Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

É fecundíssimo este pensamento.

Jesus no berço já estava dividindo, causando polêmica

Outro aspecto que o texto ressalta é a degradação do povo eleito. Nascido o Messias, esse povo deveria receber o aviso de seu nascimento.

Ora, esse aviso precisaria ser dado em Jerusalém e no Templo. O normal seria que todos os sacerdotes reunidos no Templo, num momento em que uma nuvem áurea entrasse no recinto sagrado e um cântico angélico se deixasse sentir, tivessem a confirmação daquilo do que suas almas já lhes estavam dizendo, ou seja, que os tempos haviam chegado à sua maturidade, que os fatos conferiam com a descrição das profecias e que, afinal, o Messias ia nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos – gentios, pagãos, alheios à nação, filhos, portanto, de povos reprovados e condenados – para anunciar em Jerusalém que o Messias tinha nascido.

Quer dizer, é o cúmulo da degradação para Jerusalém ainda não deicida, mas que nada faltava para ser deicida. É interessante notar a reação dos sacerdotes. Eles confirmaram que o Messias deveria nascer em Belém e, com isso, indicaram uma das características de que de fato aquele era o Messias. Portanto, sem quererem, prestaram um testemunho de que aquele nascimento se operava nas  condições previstas pelas profecias.

Assim, involuntariamente, eles serviram à causa de Jesus Cristo. O resto é só miséria. Herodes ordenou a matança, quis eliminar o Menino.

Não consta que ninguém na Sinagoga tenha se revoltado contra isto. Nem creio que a Sinagoga, já tão pacifista, se incomodasse com derramamento de sangue dos inocentes…

O resultado é que começou a luta da Sinagoga contra Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele encontrava-Se no berço e já estava dividindo, causando polêmica; não era a causa, mas o motivo de um morticínio. O primeiro sangue derramado por Ele foi vertido quando ainda era Menino.

Pedra de escândalo para que se revelassem as cogitações de muitas almas, para construção e edificação e para a perdição de muitos, como disse bem depois o Profeta Simeão (cf. Lc 2, 35).

Essas são as considerações que me parece a propósito fazer a respeito do dia de Reis.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/1/1966)

Contemplativo e guerreiro

São Bento Biscop fundou as manifestações artísticas do ambiente religioso na Inglaterra, mandando vir artistas com verdadeira inspiração católica e estabelecendo uma ordem nas festas litúrgicas.
Com isso, introduziu elementos de beleza dentro da vida religiosa que depois se difundiriam para a vida civil. Por esse meio ele foi o decorador da Inglaterra de seu tempo. Seus adornos não eram emolientes, tolos ou fúteis, mas tinham dois grandes elementos de inspiração: a profundidade de um contemplativo e as reminiscências do antigo guerreiro.
Os santos que meditam, contemplam profundamente e sabem ser guerreiros, esses estão na origem de todo surto artístico verdadeiro, presidem a aurora e a ascensão da arte.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1966)

São Lourenço Justiniano: força e astúcia

Devido a uma deformação da piedade católica, o demônio é sempre representado como sendo forte e astuto, e o Anjo da Guarda sorridente, amável, bonachão. Daí decorre a ideia errônea de que a pessoa boa é como o Anjo bom, sem força nem sagacidade, e a má, como o anjo mau, forte e astuto. Com base num trecho de São Lourenço, Dr. Plinio desfaz esse falseamento da realidade.

Dom Guéranger, em sua obra “L’Année Liturgique”, apresenta os seguintes traços biográficos de São Lourenço Justiniano(1):

Considerado o segundo Fundador de sua Ordem religiosa

Lourenço nasceu em Veneza, em 1380, da família dos Giustiniani. Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que surpreendia e impunha aos seus próximos respeito e admiração. Aos dezenove anos ele teve uma visão da Sabedoria Eterna, que o convidava a entregar-se inteiramente a Ela.

Persuadido de que a vida religiosa lhe permitiria responder plenamente ao chamado divino, ele entrou na Ordem dos Cônegos Regulares de São Jorge, na ilha de Alga, perto de Veneza. Lá ele se distinguiu por seu amor das austeridades e das humilhações; gostava de ir pedir esmolas na cidade e de encontrar, à guisa de esmola, os sarcasmos e o desprezo dos outros.

Pouco depois de sua ordenação sacerdotal, foi eleito Geral de sua Ordem. Aplicou-se tão bem a reformar a Ordem que ele é considerado, a justo título, como seu segundo Fundador.

Em 1433, nomeado Bispo de Veneza, tentou afastar de si esta dignidade. Mas o Papa Eugênio IV foi inflexível. Lourenço nada quis modificar no seu modo de viver, nas suas austeridades e na extensão de suas orações. Aplicou-se em pacificar as dissensões intestinas que agitavam o Estado, fundou quinze mosteiros, erigiu dez novas paróquias em sua cidade episcopal e velou pelo esplendor do culto divino.

Em 1450, teve que aceitar a dignidade de Patriarca, mas não viu nisto senão uma indicação para seguir mais de perto os traços de Jesus, em sua pobreza e em seu zelo pela salvação das almas. Por isso mesmo ele é considerado justamente como o precursor da reforma eclesiástica que mais tarde São Carlos Borromeu empreenderá em Milão, depois do Concílio de Trento.

Seus sermões, como seus livros de perfeição, respiram uma terna devoção para com os mistérios do Senhor, especialmente sua sagrada Paixão.

Morreu no dia 9 de Janeiro de 1455; foi beatificado em 1524, por Clemente VII, e canonizado em 1690, por Alexandre VIII.

Sua piedade impunha respeito e admiração

Notem esta formulação apresentada a respeito da piedade do santo:

Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que causava surpresa e impunha aos seus próximos respeito e admiração.

Em nossos dias se diria que o efeito psicológico produzido por um jovem muito piedoso é: “Eu fiquei tão comovido vendo esse moço tão piedoso…” Ou então: “Esse rapaz é tão piedoso! Ah, como ele deve ser misericordioso e amável!” E outras reações desse gênero. Por quê? Porque só se concebe a piedade enquanto causando ternura. Não nego que a piedade também possa causar ternura, mas colocar este sentimento como nota preponderante, parece-me um absurdo.

Segundo Dom Guéranger, a piedade de São Lourenço incutia admiração e respeito. Este é um fruto essencial da verdadeira piedade. Ela pode inspirar aos outros a ternura, o embevecimento, o enlevo, mas nada vale e não será verdadeira piedade se não causar estes dois sentimentos, estas duas impressões de alma, que tudo quanto vem de Deus deve produzir: admiração e respeito.

Quer dizer, incutir veneração, comunicar admiração são elementos indispensáveis à verdadeira vida espiritual. Porque Deus, sendo infinitamente santo, poderoso, grande, incute respeito e admiração.

A unilateralidade com que são escritas algumas vidas dos santos deforma as almas. Imaginem uma pintura representando um santo jovem da nobreza de Veneza, rezando. Apresenta-se este jovem numa atitude capaz de incutir admiração e respeito. Para ele temos vontade de rezar.

Entretanto, pinta-se um jovem com fisionomia de bobo, que não incute admiração nem respeito. Como se pode ter entusiasmo por ele? Não é possível, porque representa a imagem da falsa piedade. A verdadeira piedade incute muitos sentimentos, mas entre eles estão, necessariamente, a admiração e o respeito. Eis um ponto do qual não podemos abrir mão, nas nossas considerações hagiográficas.

Reforma sua Ordem e se torna Arcebispo e Patriarca de Veneza

Sem dúvida, São Lourenço Justiniano é um homem completamente entregue à vida religiosa, e ao serviço da Igreja nas instituições eclesiásticas. Sua vida é bastante rica porque, muito moço, entra para uma Ordem decadente, da qual é eleito Geral, e a reforma, a ponto de ser considerado seu segundo Fundador.

Essa Ordem estava tão decadente que precisou de uma reforma geral, e reconhece, de si mesma, ter renascido das mãos de um santo. Mas a decadência dessa Ordem não era tal que impedisse eleger um santo para seu Geral, e deixar-se reformar por ele.

Aqui vemos a diferença dos tempos: Qual é o santo que hoje conseguiria fazer-se admitir em certas Ordens religiosas decadentes? E que, admitido, conseguiria ficar? E, permanecendo, far-se-ia eleger como Geral? E, eleito Geral, lograria reformar os outros?

Chegamos a 1433. Faltam menos de cem anos para a grande explosão do protestantismo. Portanto, a Revolução, de modo tendencioso, já está lavrando na Cristandade o orgulho e a sensualidade. Isto faz com que, como uma vaga imensa, o Humanismo esteja começando a invadir até os ambientes eclesiásticos. Contudo, esse homem reforma sua Ordem e, em vez de tornar-se execrado, é nomeado Arcebispo de Veneza. Ele vai, intervém em tudo, reconcilia facções, combate a imoralidade. Quando se poderia esperar que fosse expulso, é elevado a Patriarca. Eram outros tempos…
O repouso enfraquece as virtudes e a luta as fortifica.

Passemos agora à leitura de uma ficha tirada dos escritos de São Lourenço Justiniano(2).

É próprio às grandes almas e aos generosos combatentes de Jesus Cristo desejar o tempo da guerra mais que o da paz, e os trabalhos mais penosos a uma perigosa ociosidade.

Eles aprenderam, com efeito, que o repouso enfraquece muito as virtudes, e que a guerra as fortifica. Eles consideram também vergonhoso retirar-se quando o combate se apresenta; fugir ao choque dos atacantes, enquanto os outros enfrentam o inimigo; deixar-se vencer por uma vergonhosa pusilanimidade.

Eis porque, cheios de magnanimidade, cobertos com suas armas poderosas, eles se lançam, os primeiros, ante o inimigo, e o obrigam a combater, estimando mais morrer com glória e honra do que fugir covardemente.

E entre esses que combatem no estádio temporal, uns procuram vencer o inimigo pela força, outros pela astúcia. Seria enganar-se muito na arte da guerra, usar somente um desses meios. E eu penso que essa regra do combate temporal deve ser aplicada ao combate espiritual. Aquele que quer combater e destruir os inimigos de sua salvação deve ter força e fineza de espírito. Se lhe faltar uma ou outra, será facilmente vencido, porque os inimigos contra os quais lutamos possuem as duas.

O Leão de Judá venceu o leão do Inferno

Sobre a força do demônio diz o livro de Jó que “nada há sobre a Terra que se lhe possa comparar, porque ele foi feito para nada temer”. Por isso São Pedro o compara a um leão. Sobre sua esperteza, diz o Gênesis que a serpente era o mais astuto dos animais, e que seduziu Eva por sua fineza e artifício.

Vejam, então, como a coragem é necessária e como a força é indispensável. Se quiserdes combater somente com a força, sem a prudência, vosso adversário vos enganará por seus artifícios. Se empregardes só a astúcia, a força do leão vos esmagará. Buscai, pois, uma e outra. Sede fortes contra os rugidos do leão, sede sutis e prudentes contra a malícia oculta da serpente. Quem não temerá sua força, se foi capaz de arrancar do Céu a terceira parte das estrelas? Quem não terá cuidado com sua esperteza, que expulsou nossos pais do Paraíso? Confiai, então, em pedir o socorro desse Leão saído da tribo de Judá, segundo a carne, e que venceu o leão do Inferno com sua morte e d’Ele triunfou com sua ressurreição. É Ele somente que dará a graça da força e a sagacidade da serpente, dando aos combatentes a ciência para que obtenham a vitória.

O combate físico e o espiritual

Esta ficha evoca vários pensamentos que se cruzam e se multiplicam. São Lourenço fala, exatamente, do perigo de que a pessoa se deixe relaxar, distender pelo repouso, e pelas glórias dentro da tranquilidade sucessiva ao combate. E dá algumas regras para o combatente nesta vida.

Ele se refere a duas espécies de combate: em primeiro lugar, ao combate físico — aludindo aos antigos gladiadores que desciam à arena para lutar ––, e às regras que o presidem; depois, por analogia, o santo deduz normas que dirigem o combate espiritual, aquele que o homem deve travar contra os seus inimigos internos, ou seja, suas paixões desordenadas e a ação do demônio dentro de sua própria alma.

Assim como na pugna física é necessário que o guerreiro, ora pela astúcia, ora pela força, saiba vencer as batalhas, também no terreno espiritual devemos ser astutos e fortes contra nossos adversários. E se nos faltar qualquer uma dessas duas qualidades — fortaleza ou astúcia—, perdemos nossa batalha na vida espiritual.

Por outro lado, São Lourenço explica como o demônio foi altamente forte quando, com sua cauda, levou uma terça parte das estrelas do céu para o abismo, isto é, promoveu uma revolta possante na qual arrastou muitos atrás de si.

Entretanto, com Adão e Eva o demônio não manifestou força, mas astúcia, arquitetando uma tentação toda cheia de lábia, de artimanhas para induzir os nossos primeiros pais ao pecado.

Falseamento da espiritualidade católica

Eu gostaria de fazer uma reflexão para compreendermos o rumo que certas coisas tomaram dentro do falseamento da espiritualidade católica. O demônio é forte e astuto, não por ser ruim, mas por aquilo que ele tinha de bom, por sua natureza. Portanto, antes de cair ele já possuía essa força e essa astúcia.

É claro que essa astúcia adquiriu um caráter pecaminoso, mau. O demônio passou a recorrer à falsidade, tornou-se o pai da mentira. Mas sua capacidade de agir astuciosamente não aumentou com o pecado; ela lhe vem de sua natureza angélica e foi conservada, mesmo após sua queda. Contudo, ele começou a lançar mão de meios ilegítimos, os quais não teria usado se tivesse continuado um Anjo na graça de Deus.

Mas daí também se tira a conclusão de que os Anjos bons, que estão na graça de Deus no Céu, também são fortes e astuciosos.

Ora, as coisas tomaram um tal rumo que todas as pinturas do demônio apresentam-no como astucioso e forte. Habitualmente as representações dos Anjos não dão a ideia nem de astuciosos nem de fortes, mas apenas sorridentes, amáveis, bonachões. Dão, portanto, uma ideia deformada, porque unilateral, da natureza do Anjo.

A bondade e a afabilidade são sumamente convenientes à representação de um Anjo. Naturalmente, o Anjo é assim, por exemplo, o Anjo da Guarda, que protege. O Anjo é o veículo do amor de Deus para com os homens; ele os assiste, dirige-os. Mas não é só isso. Ele é forte também. Há um coro de Anjos, chamado Potestades, que, segundo São Tomás de Aquino, têm a missão especial de derrubar todos os obstáculos que se erguem contra a vontade de Deus no universo. E não são os Anjos mais fortes nem os mais altamente colocados.

O Anjo, por outro lado, é sumamente sagaz. E o nosso próprio Anjo da Guarda é sumamente diplomático. Quantas e quantas vezes ele nos dá bons conselhos, bons impulsos de alma ajustados exatamente ao nosso estado de espírito, com toda a inteligência e a diplomacia que se pode imaginar num espírito de uma capacidade imensamente superior à nossa!

Ora, essas representações poucas vezes aparecem. De onde decorre a ideia de que a pessoa boa é como o Anjo bom, e a má, como o anjo mau. Então, se se fala num homem forte ou sagaz já se pensa num homem ruim. Quando se fala num homem bom, se pensa num homem sem força nem sagacidade.

Houve tempo em que era uma ideia comum que o homem deve ser sagaz e forte. Para evitar o abuso dessa ideia, insistiu-se no outro lado: ele deve ser também bom, afável, cândido, muito leal, etc. E para fazer um contrapeso, começaram a apresentar os Anjos assim. Depois os homens começaram a amolecer e a representação dos Anjos não tomou o contrapeso dos homens.

Saltar em cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário

Outra ordem de ideias para a qual esse texto convida, e eu gostaria que tivéssemos a atenção voltada, é a seguinte:
Quem verdadeiramente é lutador não espera que o inimigo venha a si. Ele se lança contra o adversário, empreende a ofensiva para derrubá-lo. É por essa forma que a força se manifesta; isso é a luta propriamente dita. Há um ditado comum, em linguagem corriqueira, mas que diz uma grande verdade: “A melhor forma de defesa é o ataque”. Quando pegamos o inimigo desprevenido, no momento em que ele não desenvolveu ainda todas as suas forças, nós podemos vencê-lo, achatá-lo. Isso é verdade não só para a luta física, mas para os esforços que o homem tem que realizar sobre si mesmo.

Por exemplo, um trabalho. O melhor jeito de o realizarmos bem é não o adiar. Quando vemos que um trabalho é inevitável, devemos pular em cima dele e fazê-lo logo. Por quê? Porque não há coisa pior do que passar um dia inteiro arrastando a perspectiva de um trabalho que deve ser realizado. Não é muito melhor fazê-lo de manhã, e passar o restante do dia livre daquela assombração do trabalho?

Arrastar o trabalho com preguiça, deixá-lo para amanhã, para depois de amanhã, não significa uma fraqueza de alma que vai, após cada adiamento, tornando aquele trabalho mais difícil?

Quer dizer, diante das coisas difíceis dessa vida, nós quase que deveríamos fazer um calendário assim: fazer primeiro as mais desagradáveis e mais difíceis e depois as mais leves e menos desagradáveis. E deixar o prazer para o fim. Porque nada é mais agradável do que o deleite depois do dever cumprido. Nada é mais desagradável, nada inutiliza mais o prazer, do que a ideia de que, terminado aquele prazer, temos um dever árduo para cumprir.

De maneira que, por assim dizer, devemos saltar em cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário. Ninguém é bobo de fazer trabalho desagradável e inútil. Antes de fazer algo desagradável, devemos perguntar se é mesmo necessário. Mas se for, então devemos saltar em cima e executá-lo o mais cedo e o mais depressa possível, contanto que saia bem feito.

O nível da conversa está na razão inversa da vagabundagem

Entre nós, às vezes, surgem queixas a respeito de conversas vulgares. Prestem atenção: gente que tem conversação vulgar é gente preguiçosa; e o que abaixa o nível da conversa é a preguiça, a perspectiva do não cumprimento do dever, que dá o horror a qualquer conversação séria. Pelo contrário, considerem um homem varonil, sobrenatural, que acaba de fazer um trabalho cumprindo o seu dever; apresenta-se uma conversa de nível alto, ele tem vontade de participar. Porque, como ele fez uma coisa mais difícil, está pronto para a menos difícil.

Mas se um indivíduo está na babugem, na hora de conversar só quererá tratar de besteiras. O nível da conversa está na razão inversa da vagabundagem. Quem é aplicado e trabalha nas obras de apostolado, conversa bem, tem apetência de coisas sérias. Por isso também é bom ouvinte de reunião quem, durante o dia, trabalhou e rezou pela salvação das almas.

Eis a norma que São Lourenço Justiniano nos apresenta. Assim se edifica a cidade de Nossa Senhora, onde tudo se move por amor a Ela, e todo mundo é sequioso de sacrifício, da cruz, da luta. Então, aqui está o meu conselho: façam o melhor e o mais rapidamente possível as tarefas desagradáveis e inevitáveis, saltem em cima delas, deem graças a Nossa Senhora na hora que lhes pede sacrifícios, roguem o auxílio a Ela para realizarem esses sacrifícios, e toquem a vida para diante. É por essa forma que serão, ao mesmo tempo, fortes e astutos.

(Extraído de conferências de 5/9/1966 e 13/9/1969)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.
2) Cf. L’Arbre de vie ou les douze fruits de la foi. Paris: Ambroise Bray, Libraire-éditeur, 1858. p. 310 ss.

São Raimundo de Peñafort, símbolo de uma época…

Embora a ideia de uma civilização cristã, constituída por almas em estado de graça, possa parecer utopia para a mentalidade hodierna, Dr. Plinio demonstra, com base na biografia de São Raimundo de Peñafort, que uma época na qual a graça de Deus habite as almas é inteiramente realizável.

É possível ter passado pela cabeça de qualquer pessoa o seguinte problema: é muito difícil permanecer em estado de graça, e não se pode esperar que uma população inteira faça coisas muito difíceis. Então, a civilização católica é praticamente impossível, pois ela só pode ser concebida com pessoas na graça de Deus.

A refutação desse raciocínio suporia uma grande tese, mas através da vida de São Raimundo de Peñafort se pode chegar a uma convicção a esse respeito.

A civilização cristã é possível

Como se pode saber se numa civilização, um país ou uma cidade tem a maior parte de seus habitantes em estado de graça, o qual é um estado interno da alma? Vendo uma cidade, pode-se afirmar: a maior parte dos seus habitantes está em estado de graça? Existe para isso um teste?

Essas são dificuldades que parecem rochedos sem solução. Entretanto, elas se resolvem facilmente.

Quando os habitantes de uma cidade não estão em estado de graça, eles formam uma espécie de cone virado para baixo. Há alguns que são ruins porque não estão em estado de graça; abaixo dos que estão em estado de pecado mortal simplesmente, há alguns que têm grande apego ao pecado mortal no qual se encontram. Depois, mais embaixo, há alguns que antipatizam com os que estão em estado de graça. E, no fundo do cone, há os que têm ódio dos que permanecem em estado de graça.

Mas há uma coisa curiosa: todos os que são ruins têm uma espécie de conaturalidade, de afinidade entre si, de maneira que constituem facilmente uma frente contra os bons. E o resultado é que, na cidade em que muitos não estão em estado de graça, os bons são impopulares.

Pelo contrário, numa cidade onde muita gente está em estado de graça, os bons são populares. Nas épocas em que os santos são objeto de entusiasmo geral, pode-se dizer que a maioria da população vive na graça de Deus. E se os santos não são objeto de simpatia geral, é prova de que a maior parte do povo vive fora da graça divina. Portanto, o modo pelo qual uma época trata um santo, mostra como ela trata Deus, ou seja, como está a maioria dos habitantes em face do Criador.

Para resumir, o santo é uma imagem de Deus; quem o odeia, odeia também a Deus.

Então, quando estudamos a vida dos santos, que formam um longo cortejo de luz, de sangue e de lágrimas dentro da História, podemos ir vendo como foram tratados nas épocas em que viveram. Se uma época os tratou bem, nesta a maior parte dos homens estava em estado de graça; se os tratou mal, não estavam em estado de graça.

Assim, através da vida de São Raimundo de Peñafort podemos fazer o balanço de uma época e constatar como é possível uma civilização católica, em que milhões de pessoas vivam em estado de graça.

Nesse espírito analisemos a biografia.

Aos vinte anos de idade, professor de Filosofia

Terceiro Geral de sua Ordem — Ordem de São Domingos —, São Raimundo de Peñafort nasceu na Catalunha, no castelo de Peñafort, de pais ricos e nobres, descendentes da família real de Aragão — portanto, era de uma alta nobreza. Quando jovem, percorreu com tão grande brilho o curso de seus primeiros estudos, que com vinte anos foi encarregado de ensinar Filosofia em sua cidade natal.

Era um sucesso extraordinário, pois naquela época, século XIII, os estudos eram muito apertados; e Filosofia era uma matéria que despertava enorme atenção, apaixonava, porque as pessoas tinham elevação de alma, espírito metafísico. Aos vinte anos, lecionar Filosofia representava o auge do prestígio intelectual.

A formação de sua mentalidade o preocupava muito mais do que a de sua mera inteligência. Daí o zelo que tinha em inspirar uma sólida piedade a todos os seus discípulos.

Pode‑se então imaginar o quadro: a universidade, com o misto de vivacidade um tanto turbulenta e de solenidade das universidades medievais, uma alta cátedra, um jovem, ainda não religioso, não seminarista, mas leigo, que leciona Filosofia, causando admiração nos alunos, às vezes, mais velhos do que ele. Mas, ao mesmo tempo em que lecionava Filosofia, ele estava mais preocupado em que seus alunos tivessem uma mentalidade certa, portanto, uma verdadeira formação espiritual, do que fossem bons filósofos.

Hoje em dia isso causaria raiva, inveja e protesto. Naquele tempo dava o resultado que estamos vendo.

Apaziguar as discórdias

O tempo que ele podia subtrair às suas ocupações, o santo empregava em socorrer os infelizes e eliminar as discórdias na cidade.

Em si, apaziguar as discórdias é uma das obras da Igreja, e na Idade Média especialmente necessária. Porque nessa época os homens descendiam proximamente dos bárbaros, e a agressividade de uns contra os outros era muito grande. Tornava-se necessário estar continuamente tentando reconciliar uns com os outros, para ir aos poucos pacificando o temperamento daquela gente exageradamente agressiva. Isso tinha um enorme alcance, pois, ao mesmo tempo em que lutavam entre si, os homens tendiam a combater os inimigos da Igreja. Esses últimos tiravam proveito dessa divisão. Então, reconciliar os católicos entre si era fazer uma frente única contra o adversário.

A compaixão para com os pobres é inviscerada na alma do católico. Mas naquele tempo era muito mais necessária. Porque não havia grandes hospitais como atualmente; obras assim estavam apenas começando a se formar; eram muito menos numerosas do que hoje. Então, atender os pobres em casa era uma coisa necessária para a sobrevivência deles.

Podemos imaginar a alegria de um pobre velho chagado, estendido num catre, quando vê entrar em sua casa, para conversar com ele, um rapaz na flor de sua idade, o qual é um dos jovens mais célebres da cidade, e que se senta à beira do leito, conversa consigo, dá-lhe um bom conselho e deixa um auxílio. É uma esmola mais para a alma do que para o corpo. Podemos imaginar a edificação que isso trazia.

A virtude e o talento conduziam à glória

Resolvido a fazer um curso de Direito Civil e Canônico, aos trinta anos deixou sua pátria e foi para Bolonha, na Itália, para as famosas lições dos célebres professores daquela cidade. Em muito pouco tempo ele se tornou doutor.

Notem que se tornou doutor em Direito, e já era professor de Filosofia. Matérias diversas; ele voava de matéria em matéria.

Para se tornar doutor, era necessário defender uma tese com todos os catedráticos e alunos presentes, trajando roupa de gala; o indivíduo ficava no centro da sala e era interrogado. Essa defesa de tese se fazia depois do curso de pós-graduação.

E a primeira cátedra de Direito Canônico lhe foi atribuída com aclamação de toda a Universidade.

Naquele tempo o Direito Canônico, que são as leis internas da Igreja, gozava de mais prestígio do que o Direito Civil, porque tudo quanto dizia respeito à Esposa de Cristo era considerado mais importante do que os temas relacionados à vida temporal.

O Senado de Bolonha, com a intenção de reter na cidade um jovem tão eminente, desejou dar-lhe retribuição, com o dinheiro público. Mas, de nada adiantou. Ele foi chamado para a Espanha, por ordem do Papa Honório III, para ser professor do jovem Rei Tiago I de Aragão.

É um jovem que voa de honra em honra, porque alia grande inteligência a uma Fé profunda.

Vemos que naquele tempo a virtude e o talento conduziam à glória, ao contrário de outros períodos, onde o vício é premiado.

As épocas muito ruins perdem os seus chefes naturais, pois os desviam, os adulam, os subornam e os levam para o mal, como condição para uma brilhante carreira. No século XIII vemos o contrário: a ambição e a virtude, como que, andavam juntas. Como era mais fácil o caminho do Céu!

Autor de livros sobre casos de consciência

Tendo recebido um canonicato e logo depois o título de arcediago, na igreja de Barcelona, tornou‑se o modelo dos sacerdotes do Senhor. A festa da Anunciação era então muito negligenciada nas igrejas da Espanha. Com piedosa insistência, conseguiu do Bispo de Barcelona que se celebrasse essa grande festa com Ofício Solene, e uma parte do dinheiro que ganhou destinava exatamente para isso.

São Raimundo de Peñafort conheceu São Domingos de Gusmão e se tornou testemunha de suas grandes virtudes. De tal maneira ele admirava a vida angélica dos primeiros dominicanos, que pediu o hábito e o recebeu, em abril de 1222. Seu exemplo atraiu para a Ordem muitos grandes personagens.

Bastou São Raimundo entrar na Ordem dominicana para pessoas importantes quererem abandonar tudo a fim de se tornar simples frades. Isso só é possível numa boa época.

Tendo pedido uma severa penitência a fim de expiar as vãs complacências que, segundo ele, tivera quando ensinava, ordenaram-lhe que compusesse um conjunto de livros sobre os casos de consciência mais difíceis, que costumavam aparecer para os confessores na Espanha.

Quer dizer, ele alegava que tinha tido alguma vaidade quando lecionava, e pediu para ser tratado com rijeza.

Essa obra foi elogiada pelo Papa Clemente VIII, como sendo igualmente útil aos penitentes e confessores; foi o primeiro trabalho no gênero existente na Igreja Católica.

Harmonia entre variadas virtudes

Em 1229, o Papa São Gregório IX enviou para a Espanha o Cardeal Sabino, a fim de exortar os príncipes da região a continuar valentemente a luta contra os mouros.

Era a guerra da Reconquista, para a expulsão dos mouros da Península Ibérica.

O Cardeal, que já conhecia São Raimundo, o tomou para seu primeiro-assistente. Iniciou-se, então, a pregação de São Raimundo para a Cruzada.

Notem o bonito contraste: é um santo de uma bondade angélica, que se senta junto ao catre de um doente e cuida dele com suma suavidade. Entretanto, convocado para defender a Fé católica, torna-se uma tocha ardente, estimulando todo mundo a lutar.

Um ato de virtude pode ser muito diferente de outro ato de virtude, mas não o contrário, pois as virtudes não são contrárias entre si.

Assim, um homem de ação por amor a Deus pode ser um guarda-doentes extraordinário; e um homem verdadeiramente caridoso pode tornar-se um guerreiro insigne.

Quando ouvimos falar que um santo era muito bom para com os enfermos, queria os pequeninos, devemos pensar: Que grande guerreiro! E de um santo que lutou contra hereges, numa guerra de religião, pensemos: Que esplêndido enfermeiro deveria dar! Assim é que se entende a verdadeira harmonia da alma católica, que é feita dessas riquezas, dessa fabulosa diversidade de todas as virtudes. Então, vemos São Raimundo, homem de inteligência, de estudo, e ao mesmo tempo de ação, que passa a ser homem de luta.

Para dar aos homens a vontade de lutar, a técnica de São Raimundo de Peñafort consistia em incutir-lhes o desejo de se sacrificarem, porque a luta séria é um sacrifício. Para dar a vontade de sacrificar‑se era preciso provar que ele se sacrificava. E ele caminhava de um lugar para outro, percorrendo distâncias enormes, o tempo inteiro a pé, com um bordão e descalço.

O santo entrava nas cidades e anunciava que o Cardeal chegaria um ou dois dias depois, a fim de conceder a indulgência da Cruzada.

Era uma indulgência especial que a Santa Sé dava para os que lutavam contra os mouros.

Depois, ele ouvia as confissões e assim dispunha as almas para a chegada do Cardeal, que encontrava os espíritos dóceis aos mínimos desejos do Vigário de Jesus Cristo.

Ao regressar a Roma, o Legado não deixou de falar ao Papa a respeito dos méritos de São Raimundo de Peñafort. Impressionado com o relato, o Soberano Pontífice mandou que o santo viesse a Roma, e lhe pediu para ser seu capelão, penitenciário e confessor.

O homem de Deus impunha como penitência ao Papa despachar, com caridade e imediatamente, a causa dos pobres que não tinham protetor. O Sumo Pontífice pediu, então, ao santo que o ajudasse a despachar.

Roma era muito pequenina, e as viagens muito difíceis. O número de peregrinos que iam a Roma e, sobretudo, as complicações diplomáticas, eram muito menores do que em nossos dias. Um Papa tinha bastante tempo livre e o que ele podia fazer de melhor era dar a todo mundo o exemplo das virtudes. Daí o fato de São Raimundo ter dito ao Soberano Pontífice: “Dou a Vossa Santidade a penitência de não atender só aos poderosos, mas também aos humildes”; assim, o Papa passou a trabalhar intensamente.

Tratado a respeito da prática do comércio

O Arcebispado de Tarragona veio a vagar pela morte do Arcebispo Metropolitano da Coroa de Aragão.

Era a principal diocese da Coroa de Aragão.

O Papa conferiu tal Arcebispado a São Raimundo de Peñafort, ordenando que o aceitasse, embora este não o quisesse. Mas Raimundo ficou gravemente doente e Gregório IX, temendo que este morresse, dispensou-o do Arcebispado.

Extenuado por tanto trabalho, São Raimundo caiu novamente doente, num estado que inspirou sérias preocupações. Os médicos o aconselharam a voltar para a Espanha. Tendo regressado ao seu convento de Barcelona, ele observava todos os pontos da regra. A pedido de vários Bispos, São Raimundo redigiu um tratado a respeito da conduta que deveriam ter os comerciantes para não roubarem o público, e especificando os casos em que os comerciantes tinham que fazer restituição.

Aqui está o ponto dolorido em matéria de furto de dinheiro. Quem comete um pecado e pede perdão fica absolvido. Mas quem se apropria do dinheiro de outro, só será absolvido sob a condição de restituir o que roubou. E um comerciante que roubou, cobrou demais, não tem a consciência tranquila; não poderá receber a absolvição se ele não fizer a restituição. Então, esse é um ponto duríssimo, porque se trata de abandonar as riquezas. São Raimundo de Peñafort colocou esse ponto delicado em toda a evidência. Isso seria próprio para que ele fosse odiado. Pelo contrário, era cada vez mais estimado. Vemos assim a boa intenção com que aquele comércio era praticado.

Ordem religiosa para a redenção dos cativos

Todos os dias, salvo aos domingos, ele não tomava senão uma ligeira refeição. Nosso Senhor lhe tinha dado, como familiar, um de seus anjos, que conversava com ele.

O que comentar sobre uma coisa dessas?

Um pouco antes do sino do convento tocar para as Matinas, o anjo o acordava e o convidava para fazer oração.

Um dos mais brilhantes raios de sua glória foi ter tomado parte na instituição da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, para a redenção dos cativos, fundada pelo Rei Tiago I de Aragão, graças a uma revelação do alto; tal revelação foi feita simultaneamente, numa mesma noite, a esse monarca, a São Raimundo de Peñafort e a São Pedro Nolasco, um gentil-homem francês, que também fora preceptor do Rei.

Esse ponto merece uma explicação.

Uma das muito grandes dificuldades para um homem ser cruzado era exatamente a questão dos cativos. Nas batalhas, os mouros frequentemente aprisionavam muitos católicos, que eram transformados em escravos e iam viver para sempre em lugares onde não havia padres. Nessa circunstância, caso um deles cometesse um pecado, não havendo sacerdote para os absolver, corriam o risco de morrer fora do estado de graça.

De onde as pessoas mais católicas, ao mesmo tempo, queriam ser cruzadas, mas temiam perder suas almas. Assim, para que os melhores católicos fossem cruzados, era preciso resgatar os cativos; para isso tornava-se necessário arranjar dinheiro a fim de comprar dos mouros os que estes haviam escravizado nas batalhas. E muitas vezes os padres ficavam escravos para poder dar a absolvição aos outros homens. E resgatavam prisioneiros, que voltavam para o meio dos católicos. Eram, portanto, atos heroicos que esses sacerdotes faziam.

Então, Tiago I, São Raimundo de Peñafort e São Pedro Nolasco tiveram um sonho numa mesma noite, e logo depois foi fundada uma Ordem religiosa para tratar da redenção dos cativos, evitando em primeiro lugar que muitas almas se perdessem e também estimulando muitas Cruzadas.

O Rei, acompanhado de toda a corte e dos magistrados, foi para a igreja catedral, chamada da Santa Cruz de Jerusalém. O Bispo Berenger oficiou pontificalmente. São Raimundo subiu à cátedra e professou, diante de todo o povo, que tinha sido milagrosamente revelado a ele, ao Rei e a São Pedro Nolasco, a vontade de Deus sobre a Ordem. Por ocasião do Ofertório, o Rei e São Raimundo apresentaram São Pedro Nolasco ao Bispo, que o revestiu do hábito da Ordem. Terminada a Missa, o monarca conduziu São Pedro Nolasco e seus frades para seu próprio palácio, numa parte que ele tinha reservado para ser mosteiro.

Que coisa linda! Como se amava a virtude! Nada disso seria possível sem que muitíssima gente se encontrasse em estado de graça. Acrescenta a ficha que treze jovens fidalgos, ou seja, moços dos mais importantes da cidade, seguiram São Pedro Nolasco, isto é, deixaram tudo para se tornarem escravos.

Isso sim é verdadeiramente dedicação! Que heroísmo é maior: combater os mouros de espada na mão, ou ser mercedário, pertencer à Ordem das Mercês?

São Raimundo empregou, então, o resto de sua vida a propagar e favorecer a Ordem religiosa de São Pedro Nolasco.

Maravilhosa viagem marítima: o manto como vela e o bordão como mastro

A ficha descreve os benefícios que a Ordem das Mercês proporcionou: milhares de cativos soltos, inúmeros atos de heroísmo e abnegação; e narra o fato talvez o mais bonito da vida de São Raimundo de Peñafort.

Esses homens eram bons, mas no meio deles de vez em quando estalava o pecado, porque eram homens. Depois vinham as penitências. O número e os tipos de penitências que os padres impunham, durante a Idade Média, eram extraordinários. Por exemplo, a um homem que morava em Estocolmo ir a pé até Compostela.

Veremos agora um fato lamentável e o que se lhe seguiu.

Numa viagem à ilha de Maiorca, uma das Baleares, Tiago I fez-se acompanhar pelo bem-aventurado e, esquecendo o respeito que tinha para com o santo, embarcou clandestinamente uma mulher pública no mesmo navio.

Na ilha de Maiorca, São Raimundo, avisado do fato, fez pressão junto ao soberano para mandar embora essa mulher. O Rei prometeu, mas não cumpriu a promessa. O santo, descontente, pediu para voltar a Barcelona. O Rei lhe negou a licença e proibiu secretamente, sob pena de morte, a todos os marinheiros que permitissem que o santo saísse do porto da ilha de Maiorca.

São Raimundo não queria fazer parte de uma viagem onde estava uma mulher de má vida; mas estava preso numa ilha. Como poderia ele fugir? E quem lhe desse embarque seria morto, por ordem do Rei. O que fez ele? Saiu-se como um homem que conversava continuamente com um anjo.

O santo se apoderou do manto de um companheiro, chegou até a ponta de um pequeno promontório deserto e disse: “O Rei da Terra nos impede a passagem, o Rei do Céu suprirá.” Pronunciando essas palavras, estendeu o manto sobre as ondas, tomou seu bordão, fez o sinal da cruz e pisou solidamente sobre o manto. Pediu a seu companheiro que o seguisse, fazendo a mesma coisa. Mas esse não teve coragem, e ficou.

São os pequenos homens…

O santo suspendeu a metade do manto para servir de vela e prendeu-a no bordão, como mastro. Um vento favorável o levou em pleno mar, enquanto os marinheiros que estavam por ali se entreolhavam pasmados. Seis horas depois ele chegava a Barcelona, tendo percorrido 53 léguas marítimas.

Quer dizer, uma velocidade extraordinária. Eu acho esse quadro encantador; foi a mais maravilhosa viagem que se fez, depois daquela realizada por Nosso Senhor no lago de Tiberíades. Não pode haver coisa mais bonita do que, num mar agitado e convulso, aquele “barquinho” deslizando. Na história náutica não se realizou uma coisa tão bela! Era o prêmio da intransigência de São Raimundo de Peñafort: “Deus fará um milagre para mim, mas numa ilha onde há uma mulher de má vida não fico. Vou embora”.

Os homens de verdadeira Fé movem até montanhas. Imaginem a linda cena: na solidão do mar, os anjos contemplando São Raimundo de Peñafort singrando. Se eu fosse pintor, faria esse quadro. Ele desembarcou no porto, revestiu-se do seu manto, o qual estava seco, e tomando seu bordão dirigiu-se imediatamente para o convento. As portas do convento estavam fechadas, mas ele as atravessou e apareceu de repente no meio de seus irmãos e ajoelhou-se aos pés do Prior, para pedir-lhe a bênção. O Rei, informado do que se tinha passado, caiu em si mesmo e daí por diante seguiu mais fielmente as diretrizes de São Raimundo.

O fim da vida de um grande santo

São Raimundo chegou à extrema velhice, sem nenhuma outra doença a não ser a muita idade. Ele dormiu suavemente nos braços do Senhor no dia 6 de janeiro — festa da Epifania — de 1275. Nesse lindo dia, em que Deus foi revelado a todos os povos, inclusive pagãos, morreu São Raimundo de Peñafort, que tanto havia trabalhado pela conversão dos pagãos.

Nos seus últimos momentos, os Reis de Castela e Aragão o visitaram com suas cortes, e tiveram a alegria de receber a sua última bênção.

Aí temos um quadro bem medieval: dois Reis, com diadema de ouro na cabeça, cetro na mão, grande manto, outros emblemas da realeza, sendo conduzidos por lacaios, acompanhados por toda a corte, ajoelhados junto ao catre de um pobre frade — que nada possuía, dependia da vontade de um outro, e estava moribundo — para receberem sua última bênção. Era a última viagem de São Raimundo de Peñafort. Estava encerrada a vida de um grande santo e um grande homem.

O Reino de Maria não é uma quimera, mas uma promessa de Nossa Senhora de Fátima

Vemos que essa foi uma época na qual o estado de graça era geral. Constatamos, portanto, como a civilização cristã é realizável. Assim, nós, trabalhando pelo Reino de Maria, não vamos atrás de uma quimera nem de uma fantasia, mas de uma promessa. Qual é essa promessa?

É a de Nossa Senhora de Fátima, que disse: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará.” O que é o Coração de Maria? É um órgão do seu corpo imaculado, mas que simboliza a mentalidade de Nossa Senhora. Essa é a doutrina católica. E quando Ela afirma que seu Coração triunfará, quer dizer que sua mentalidade triunfará.

O triunfo da mentalidade da Mãe de Deus significa que virá uma época, na qual, muito mais do que na nossa, os santos vão dirigir a humanidade. Nossa Senhora a governará através de seus santos; porque eles vão influenciar os Reis, os Papas, os grandes e pequenos desta Terra, e levar a todos para Deus. Será o Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/10/1974)

Onde o Arcanjo um dia pousou…

O Tibre, o velho rio Tibre, corre suavemente por uma das mais pitorescas zonas da Cidade Eterna. Em suas águas tranquilas, deixa refletir os arcos de uma robusta ponte e a silhueta de uma construção monumental, conferindo particular beleza a esse cenário romano.

A ponte, de linhas fortes e traçado muito lógico, foi feita para resistir às vicissitudes e desgastes dos séculos. Nas margens onde ela toca cresce uma vegetação nascida ao léu, com um certo espontâneo e desordenado que a tornam ainda mais atraente. Ao longo de suas balaustradas se erguem, em intervalos regulares, imagens de santos e de anjos, diante das quais os fiéis costumam rezar, enquanto se dirigem para aquele grande edifício que se espelha no Tibre. Esses peregrinos vão visitar o Castelo Sant’Angelo.

Os antigos imperadores romanos, pagãos, tinham o hábito de preparar monumentos nos quais deveriam ser enterrados. Por suas características arquitetônicas, esses mausoléus procuravam imortalizar o César ali sepultado.

Mais que um túmulo, era uma glorificação à memória do homem que, por tempo maior ou menor, governara os destinos de Roma e de seus vastos domínios. Um desses perpetuados foi o imperador Adriano, cujos restos mortais descansariam para sempre no monumento que ele mandou construir, próximo às plácidas águas tiberinas.

Na época imperial chamava-se “Mole Adriana”, nome bastante adequado se considerarmos tratar-se de um edifício de grandes e sólidas proporções. De diâmetro colossal, ele impressiona pelo sério, pelo compacto, pelo imenso. É uma afirmação do poder quantitativo, qualitativo e ordenativo de Roma, bem como de seu incontestável domínio sobre extensa parcela do mundo.

Porém, com o passar dos séculos, os ossos desse Adriano se desfizeram e dele nada sobrou. A história não o celebra, apenas o registra, porque ainda permaneceu de pé seu imponente mausoléu.

E metida a cidade de Roma nas contínuas guerrilhas e guerras da Idade Média, esse túmulo começou a ser utilizado para finalidades diversas, transformando-se numa importante fortaleza. Seu papel defensivo pode ser notado até hoje, por quem visita a sede do Papado e a Basílica de São Pedro. Visto de fora o Palácio do Vaticano, nota-se em determinado ponto um corredor todo coberto, construído sobre arcadas que, mais adiante, atravessam o Tibre e se emendam na antiga Mole Adriana, agora Castelo Sant’Angelo. De maneira que, sentindo-se ameaçado, o Sumo Pontífice podia facilmente escapar por esse corredor e se refugiar entre os robustos muros do velho monumento. Era a suprema defesa do Vigário de Cristo.

Cessados os períodos de convulsões e saques a que se expunha a Cidade Eterna, o Castelo Sant’Angelo passou a ser outro lugar de descanso e recolhimento, à disposição do Papa.

E assim, como tantas outras construções de passadas eras, esse monumento de um imperador pagão foi incorporado às tradições e aos valores cristãos, tornando-se mais um símbolo das grandezas da Igreja.

No alto desse gigantesco castelo paira, sobranceira e protetora, a imagem de São Miguel Arcanjo. Ela é quem deu o novo nome ao antigo túmulo imperial.

Narram as crônicas que, durante a Idade Média, devastadora epidemia se alastrou por Roma, ceifando incontáveis vidas.

Compadecido e angustiado diante de tanta calamidade, o Soberano Pontífice ordenou que se fizessem procissões em toda a cidade, a fim de se alcançar dos Céus o fim daquele inclemente flagelo.

E suas preces foram atendidas. Pouco depois, como sinal da misericórdia divina, viu-se o gladífero Arcanjo pairar sobre a Mole Adriana, numa atitude de quem conjurava a peste.

Roma voltou à vida. E, desde então, a glória de um imperador em pó transformou-se em escabelo para o Príncipe da Milícia Celeste…

 

Santa Genoveva

Tendo apenas sete anos de idade, Santa Genoveva prometeu, na presença dos bispos São Germano e São Lupo, guardar a pureza de alma e de corpo. Tal promessa ela a cumpriu com toda fidelidade e teve a insigne glória de, em 451, impedir que os hunos comandados por Átila invadissem Paris, tornando-se a padroeira dessa cidade.

Em 3 de janeiro comemora-se Santa Genoveva, virgem. A respeito dela, vamos considerar a seguinte nota biográfica extraída da obra L’Année Liturgique, de Dom Guéranger: Em meio à multidão, São Germano discerne uma virtuosa menina…

Genoveva foi célebre no mundo inteiro. Ainda vivia ela nesta carne mortal, e o Oriente já conhecia seu nome e suas virtudes. Do alto de sua coluna, o estilita Simeão a saudava como sua irmã em perfeição no Cristianismo. A capital da França tinha-lhe sido confiada; uma simples pastora protegia os destinos de Paris, assim como um simples lavrador, Santo Isidro, vigiava a capital das Espanhas.

São Germano de Auxerre ia para a Grã-Bretanha para onde o Papa São Bonifácio I o estava enviando, a fim de combater a heresia pelagiana. Acompanhado de São Lupo, Bispo de Troyes, que devia partilhar sua missão, parou na aldeia de Nanterre. Enquanto os dois prelados se dirigiam à igreja onde queriam rezar pelo sucesso de sua viagem, o povo fiel os circundava com uma piedosa curiosidade.

Iluminado por uma luz divina, Germano discerniu em meio à multidão uma menina de sete anos, e foi advertido interiormente de que o Senhor a tinha escolhido. Perguntou aos presentes qual era o nome dessa criança e rogou que a trouxessem à sua presença. Assim, fizeram aproximarem-se os pais, Severo e Gerúntia. Ambos ficaram enternecidos com os sinais de ternura com que o bispo cumulava sua filha.

…que faz a promessa de manter a pureza de alma e de corpo

— Esta criança é sua? — perguntou-lhes Germano.
— Sim, senhor — responderam eles.
— Felizes pais com uma tal filha — acrescentou o bispo. Por ocasião do nascimento desta criança, saibam-no, os Anjos deram grande festa no Céu. Esta menina será grande diante do Senhor; e, pela santidade de sua vida, arrancará muitas almas do jugo do pecado.

Depois, dirigindo-se à criança, disse:
— Genoveva, minha filha…
— Padre santo — respondeu ela — vossa serva escuta.

Então, disse Germano:
— Fala-me sem temor: gostarias de ser consagrada a Cristo numa pureza sem mancha, como sua esposa?
— Bendito sejais, meu Pai — exclamou a criança —, o que me pedis é o maior desejo de meu coração. É tudo o que quero. Dignai-vos rogar ao Senhor que mo conceda.
— Tem confiança, minha filha — retomou Germano —, sê firme em tua resolução. Que tuas obras sejam conformes à tua Fé, e o Senhor acrescentará sua força à tua beleza.

Os dois bispos entraram na igreja e foi cantado o Ofício de Noa, seguido das Vésperas. Germano tinha mandado trazer Genoveva junto a si, e durante a salmodia manteve suas mãos postas sobre a cabeça da criança.

No início do dia seguinte, antes de partir, mandou o pai trazer-lhe Genoveva.

— Salve, Genoveva, minha filha — disse-lhe Germano. Lembras-te de tua promessa de ontem?
— Ó Padre santo — retorquiu a criança —, lembro-me do que prometi a vós e a Deus. Meu desejo é de manter para sempre, com o socorro celeste, a pureza de minha alma e de meu corpo.

Neste momento, Germano percebeu no chão uma medalha de cobre marcada com a imagem da Cruz. Tomou-a e dando-a a Genoveva disse-lhe:
— Faze-lhe um furo, põe-na no pescoço e guarda-a em lembrança de mim. Não leves nunca colar, nem anel de ouro ou de prata, nem pedra preciosa; pois se a atração das belezas terrenas vier a dominar teu coração, perderias logo teu ornamento celeste, que deve ser eterno.

Depois destas palavras, Germano recomendou à criança que pensasse nele frequentemente, em Cristo e, tendo-a recomendado a Severo como um depósito duas vezes precioso, tomou a estrada para a Grã-Bretanha, junto com seu piedoso companheiro.

Florilégio de Santos

Nesse episódio, podemos notar algo que explica o admirável florescimento de almas santas na Idade Média. Vejamos os homens que figuram nesta história.

Em primeiro lugar, o Papa São Bonifácio. Este envia São Germano de Auxerre para defender a Inglaterra contra os pelagianos, e São Germano tem como companheiro de viagem outro Santo, que é São Lupo, Bispo de Troyes. Quer dizer, são dois bispos santos mandados por um Papa santo para defender um país que está ameaçado pela heresia.

Compreende-se o calor da santidade, a intensidade da vida espiritual, o que era, afinal de contas, este florilégio enorme de Santos sobre os quais a Idade Média, ponto por ponto, vinha se construindo.

Ao longo da viagem, passam por uma cidadezinha chamada Nanterre, onde a primeira providência não é se dirigirem para o hotel ou para a hospedaria, nem para um lugar onde possam se divertir. A primeira atitude que tomam, depois de uma viagem fatigante, é ir para a igreja a fim de rezar.

Tal é a iluminação desses personagens, tal o seu prestígio, a atração exercida por eles, que entram na igreja, o povo os rodeia e começa a olhá-los rezar. É o povinho fiel, os camponesinhos com o jeito, naturalmente, do que seriam os camponeses no tempo de Santa Joana d’Arc, alguns séculos depois, rodeando os dois bispos que, recolhidíssimos diante do Santíssimo Sacramento, numa pequena capela, estão fazendo uma oração intensa. E o povo olhando, maravilhado!

De repente, nesse ambiente de fervor, uma graça se faz notar por todos: aqueles dois Santos, enviados por um terceiro Santo, distinguem, entre os fiéis que os rodeiam, uma grande Santa, uma menina de sete anos. Eles a chamam e, diante de todo o povo, um deles faz a profecia a respeito do que a menina haveria de ser. E começa por dizer assim: “Fiquem sabendo que no Céu houve uma grande alegria quando esta menina nasceu.”

Quando Genoveva nasceu, houve grande alegria no Céu

Imaginem o maravilhamento de toda a aldeiazinha! Um lugarejo onde tudo é notícia, tudo é novidade, em que até a chegada de dois bispos é um grande acontecimento… De repente, esses bispos falam da “fulaninha” que eles veem correr descalça de um lado para outro, pelas ruas da cidade. Em relação a essa menina, quando ela nasceu, houve alegria no Céu!

Ninguém duvidou, ninguém pediu provas, todos acreditaram, inclusive a menina e seu pai. Porque essas pessoas são os tais bem-aventurados, dos quais nos fala o Evangelho, que creem sem ter visto.

Pensam elas: é tão natural ter havido alegria no Céu por uma menina santa que nasceu! Os Santos são tão frequentes e tão numerosos, eles estão em um contato tão contínuo com o Céu, que conhecem o que se passa lá. Portanto, é natural que eles saibam. É uma comunicação normal.

Como isto é diferente da distância que nos separa do sobrenatural em nossos dias! Antes de admitir que uma coisa vem do Céu, o homem contemporâneo se mune de todas as armas do racionalismo para ver se consegue negar. Não havendo meios de recusar, só então ele se resigna, sem grande entusiasmo a, de quando em vez, admitir a procedência celeste de algo.

Pelo contrário, naquele ambiente cheio de Fé a situação se resolveu imediatamente.

São Germano pergunta à menina:
— Você quer se consagrar a Deus?
— Meu pai — responde ela —, é o mais caro desejo do meu coração!

Está tudo resolvido. Fica um sulco de luz naquela cidade que, a partir de então, começa a ter história. A cidadezinha nasce para a História porque um grande fato sobrenatural se passou nela.

Arco voltaico de santidade

Ela, provavelmente, foi dali mesmo levada pelos pais para um convento onde a prioresa ou a abadessa seria uma Santa também, com um daqueles nomes cuja sonoridade é estranha para nós, mas uma Santa de verdade. Chegam lá e dizem:
— Viemos trazer esta menina, nossa filha.

Certamente a resposta da santa abadessa não seria: “Ah! como ela é engraçadinha”, mas sim:
— Esta menina parece ter o espírito de Deus!

E é possível que Santa Genoveva tivesse dito, com toda inocência, sem qualquer pretensão:
— Tenho mesmo.

E a abadessa perguntasse para a mãe:
— Mas por que trazes a menina?
— Ah! porque São Germano de Auxerre e São Lupo de Troyes disseram dela tais e tais coisas…
— Ah, que bonito!

A abadessa não iria perguntar se tinham um atestado timbrado da Cúria, nem nada disso. Ela acredita também, acolhe no convento a menina que já começa a santificar-se, elevando-se na vida espiritual, a partir daí, como um cedro do Líbano.

Ela cresce, enche o panorama com a sua presença e floresce como uma flor no centro do jardim do Ocidente. Não havia imprensa, rádio ou televisão; entretanto, a fama de Santa Genoveva se espalhou até o Oriente, a ponto de São Simeão Estilita, na Ásia Menor, ouvir falar dela.

Era o famoso Santo que vivia no alto de uma coluna, de onde nunca descia, rezando o tempo inteiro. Era uma forma de verdadeiro eremita. Ele então ouve falar das virtudes de Santa Genoveva e, por esses “radares” que os Santos têm para se sentirem uns aos outros, compreende que ela era irmã espiritual dele e saudou de longe, do alto de sua coluna, esta flor que nascia no “doux pays de France”.

Vemos os contatos passando por sobre os mares, as ilhas, as cordilheiras, as vastidões desertas e povoadas, e estes dois Santos formando uma espécie de arco voltaico de santidade naquela época.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/1/1966)
Revista Dr Plinio 202 – Janeiro de 2015

Os sacratíssimos Nomes de Jesus e de Maria

O Nome de Jesus é um símbolo sacratíssimo que tem o poder de atrair sobre nós todas as graças e de causar o terror nos demônios. Intimamente relacionado com ele está o Nome de Maria.

A Igreja comemora em janeiro o Santíssimo Nome de Jesus, a respeito do qual diz a Sagrada Escritura: “Que ao Nome de Jesus se dobre todo joelho no Céu, na Terra e no Inferno” (Fil 2,10).

O nome de algo deve designar sua natureza

Qual a razão pela qual se festeja o Santíssimo Nome de Jesus? Naturalmente, tudo quanto se refere a Nosso Senhor Jesus Cristo merece nossas homenagens, nossa veneração e, portanto, deve ser comemorado.

Mas por que essa insistência especial no que diz respeito ao Nome de Jesus? Por que grandes santos da Igreja afugentavam os demônios com o Nome de Jesus? O que é o nome aqui? Não dizemos também “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”? Quando fazemos algo de muito importante, por exemplo, no início da Missa o padre se persigna; na redação de um testamento, diz-se:

“Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, eu, Fulano de tal, faço meu testamento.”

De acordo com a ordem profunda das coisas, que foi truncada pelo pecado original, a linguagem humana era capaz de exprimir adequadamente os seres, dando-lhes um nome. E esse nome era ma palavra que definia aquilo que havia de mais interno, mais substancial, mais característico no ser para o qual ele era aplicado.

O nome de uma coisa deve designar sua natureza mais íntima, e os orientais têm uma certa ideia disso — quando não dão às pessoas nomes como os nossos; por exemplo, alguém pode chamar-se Plinio, que para ele não quer dizer nada. Mas os orientais dão nomes com um sentido próprio. Como por exemplo, lembro de ter tomado conhecimento de que um nome oriental, do qual não me recordo, significava “Chuva de Primavera”. São nomes poéticos para indicar algo da nota dominante daquela alma. Depois do pecado original e da torre de Babel essas coisas se perderam e a linguagem humana não tem mais essa precisão. Entretanto, ficou-nos essa vaga ideia de que entre o nome e a natureza da coisa há uma relação.

Conta o Gênesis que quando os animais passaram diante de Adão, ele foi dando um nome a cada um. Ou seja, dava uma definição para, por meio de uma palavra, exprimir adequadamente — por uma relação natural entre o vocábulo e a coisa, e não apenas algo convencional — aquilo que era o ser.

Tomemos, por exemplo, a águia. Nós a chamamos com esse nome, mas não há uma relação necessária entre a palavra “águia” e o conteúdo dessa ave, aquilo que é o típico dela. É uma coisa convencional. Mas na linguagem usada por Adão, não. Entre os sons, a música, a estrutura da palavra “águia” e a realidade da águia, havia uma relação verdadeira e profunda.

A Igreja quer uma ordem sacral e hierárquica

Então o Santíssimo Nome de Jesus é, de um modo misterioso, a própria definição daquilo que na Pessoa adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo existe de mais definitivo, de mais capaz de mencionar aquilo que Ele é. E, relacionado a Ele, o Nome imaculado de Nossa Senhora. Ambos trazem consigo bênçãos, graças especiais, porque são o símbolo, a expressão misteriosa e inefável da realidade santíssima que n’Eles existe. Então podemos compreender por que Deus concede tantas graças aos que usam com frequência os Nomes de Jesus e Maria.

E, nesse sentido, o nome é uma imagem, um símbolo da pessoa, e o Nome de Jesus — do qual, aliás, o Evangelho fala com muito cuidado — é um símbolo sacratíssimo que, enquanto símbolo, tem o poder de atrair sobre nós todas as graças e de causar o terror dos demônios. E o Nome de Jesus se resume naquelas três iniciais “IHS — Iesus, hominum Salvator”, Jesus, Salvador dos homens — que se coloca abaixo da cruz, nos documentos e em certos papéis. A cruz e o Nome de Jesus são os dois símbolos perfeitos.

Um estandarte com esses Nomes — por exemplo, o de Santa Joana D’Arc — é um meio de afugentar os demônios, de atrair as graças de Deus, de conquistar a boa vontade dos anjos.

Isto tem alguma relação especial conosco? Tem, naturalmente. O Nome de Jesus, sendo a palavra que indica sua glória, é a manifestação desta. E nós queremos a glorificação dos Nomes de Jesus e de Maria. Um dos estandartes que serão lançados na alvorada do Reino de Maria, com certeza vai ser gloriosamente pintado com o Nome de Jesus, e outro com o Nome de Maria.

O que deseja a Igreja quando glorifica o Nome de Jesus? Ela quer que se dê honra a Jesus, que o Nome de Jesus esteja por cima de todas as coisas e que tudo Lhe esteja sujeito; quer uma ordem sacral baseada na única Fé verdadeira, que é a Católica, Apostólica e Romana; uma ordem que nada tenha de laicista nem de igualitário. E a festa do Nome de Jesus é uma das numerosas solenidades da sacralidade, da hierarquia e da civilização cristã.

A saudação ”Salve Maria!”

Nós temos essa prática de nos saudar, dizendo “Salve Maria!” É uma saudação na qual se repete, a todo o momento, o Nome de Nossa Senhora. Ao invés de dizermos ao outro “Bom dia”, afirmamos: “Que a Santíssima Virgem seja glorificada!” O “Salve Maria!” é uma honra, uma glorificação, um ato de amor a Nossa Senhora. Ao conscientizar o valor dessa saudação, podemos adquirir mais méritos. O “Salve Maria!” não deve ser pronunciado às pressas, nem de forma atrapalhada, mas como uma oração que lucraria em ser dita com mais piedade, mais unção, mais propósito, porque, às vezes, nos esquecemos de Nossa Senhora e o transformamos num “Bom dia”.

O “Salve Maria!” tem um alto valor próprio, que devemos ter em mente. Daí minha insistência para um máximo de piedade ao pronunciar essa saudação, em vista do valor do Nome de Nossa Senhora ou do valor infinitamente maior do Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Esses são os pensamentos que nos devem animar e é adequado pedirmos que o Nome de Jesus seja cercado de toda a glória. Que Jesus seja conhecido e adorado por todos os homens, sendo reverenciadas as coisas que são conformes a Ele. Que a Revolução seja derrotada e que a Contra-Revolução vença, porque esta é a própria vitória do Nome de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 1/1/1965 e 1/1/1966)

Nome acima de todos os nomes

Por isso Deus O exaltou soberanamente e Lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no Céu, na Terra e nos infernos. E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é o Senhor” (Fil 2, 9-11).

Fazendo suas essas ardorosas palavras do Apóstolo, o Martirológio Romano recorda, no dia 3 de janeiro, a Festa do Santíssimo Nome de Jesus. Para Dr. Plinio, tal comemoração encerra um especial significado, assim descrito por ele:

“Por que razão se exalta o Santíssimo Nome de Jesus?

“Naturalmente, tudo quanto se refere ao Verbo Encarnado merece nossas homenagens, nossa veneração e é digno, portanto, de uma festa. Porém, poder-se-ia perguntar qual o motivo dessa particular insistência no que diz respeito ao Nome do Filho de Deus. Por que grandes santos da Igreja expulsavam e afugentavam os demônios, invocando o Nome de Jesus? E por quê, ao realizarmos alguns atos comuns ou importantes de nosso quotidiano, nos persignamos e fazemos uma pequena oração que sempre se inicia com o Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo? 

“Que valor possui, afinal, um nome, e o Nome de Jesus?

“De acordo com a ordem profunda das coisas que foi truncada pelo pecado original, a linguagem humana era capaz de distinguir de modo conveniente os seres criados, dando-lhes um nome adequado, um vocábulo que definisse o que havia de mais interno, substancial e característico na criatura nomeada.

“Assim, segundo a narração do Gênesis (2, 19-20), cada animal recebeu de Adão um nome que os caracterizava e que era a definição mais apropriada de seus respectivos predicados.

“Nesse sentido, pois, o nome é uma imagem da pessoa que o porta. E mais que todos, o Nome de Jesus é um símbolo d’Ele e uma representação sacratíssima que, como tal, tem o poder de atrair sobre nós todas as graças e o poder de causar terror nos demônios. É interessante notar que, na iconografia católica, o Nome de Jesus se resume nas três iniciais — “IHS (isto é, Iesus Hominum Salvator”, Jesus Salvador dos Homens — colocadas em alguns documentos eclesiásticos, com uma Cruz sobre o “H”. Juntos, o Nome e a Cruz, os dois símbolos perfeitos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Ao celebrar, portanto, de forma especial o Nome do Divino Redentor, pretende a Igreja salientar a obrigação dos fiéis de honrar a Jesus, de glorificar o seu Nome, para que este se situe acima de todas as coisas e que tudo lhe esteja sujeito. Quer a Igreja, com essa solenidade, frisar seu anseio por uma ordem sacral, baseada numa fé católica, apostólica e romana autêntica, uma ordem na qual a festa do Nome de Jesus seja uma das grandiosas comemorações da Civilização Cristã.

“Tais são os pensamentos que nos devem animar na recordação dessa luminosa data do calendário litúrgico, e inspirar em nossas almas o pedido de que o Nome de Jesus seja de fato cercado de toda a glória. Que Nosso Senhor seja conhecido, adorado, reverenciado por todos os homens, sendo reverenciadas as coisas que são conformes a Ele. Que a Revolução seja esmagada e a Contra-Revolução vença, pois a vitória dela é a própria vitória do Nome de Jesus.”

Santíssimo nome de Jesus

Há uma misteriosa e insondável relação entre o nome de Jesus e o Verbo feito carne, de tal maneira que não se concebe outro que lhe fosse mais apropriado. É o mais suave e santo dos nomes que  jamais um homem tenha usado.

Nome que, de modo maravilhoso, é a própria manifestação da glória d’Ele. Nome que é um símbolo sacratíssimo do Filho de Deus e, enquanto tal, tem o poder de atrair sobre nós todas as graças e favores celestiais.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Gregório Nazianzeno

Bispo, Doutor, monge e poeta, São ­Gregório Nazianzeno foi um ­varão de grande clareza de princípios, de uma sólida firmeza no proceder e que triunfou ­magnificamente na ­batalha mais importante e difícil que o ­homem tem na vida:

a batalha contra si mesmo. Por isso, foi um pastor de almas amado por sua bondade e respeitado ­pela austeridade de seus ­sábios conselhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/5/1971)