O Sacerdote perfeito

Do amor indescritível pela Igreja Católica, derivava naturalmente, na alma de Dr. Plinio, um entusiasmo respeitoso e admirativo pela mais alta das missões que um homem possa ter neste mundo: ser ministro dessa Igreja, representante de Deus na terra. Numa conferência pronunciada em maio de 1973, ele analisa sob diversos prismas a excelsitude dessa vocação, para chegar ao arquétipo  do sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Após os cânticos de amor e de entusiasmo que acabo de ouvir nesta sessão jubilar, toca-me a mim fazer uma conferência, cabe-me apenas falar. Dura tarefa, malcompensada pelo que tem de realmente formoso o assunto, uma vez que devo entreter os vossos espíritos durante um tempo que terá o mérito de ser breve a respeito de um tema que, a ser bem analisado, contém em si todas as belezas da terra. Eu devo falar a respeito da plenitude do sacerdócio.

Adão no Paraíso, príncipe do mais belo dos reinos

E esta consideração me leva à noite dos tempos, a uma digressão histórica que pega o homem no período, talvez, mais crucial e mais duro de sua história. Nós imaginamos ho-

je que estamos aos bordos, talvez, de  uma  catástrofe sem precedente. Não nos lembramos de que uma catástrofe houve maior do que todas as catástrofes, uma catástrofe houve que marcou logo, desde o início, a história do gênero humano. Aquela catástrofe narrada pelo Gênesis, da desobediência do homem que, tentado pela mulher, tentada pela serpente, duvidou de Deus, revoltou-se contra Ele, não quis seguir os destinos que Deus lhe assinalara e por isso foi expulso do paraíso.

Príncipe do mais belo e mais encantador dos reinos, colocado como senhor de toda a natureza visível cujos segredos ele conhecia perfeitamente e sobre a qual exercia um misterioso império; confortado pelos dons preternaturais que lhe asseguravam, entre outros (benefícios), a imortalidade, Adão pecou, Eva pecou, saíram do paraíso, deixaram aquela terra de bênção e de eleição onde, segundo diz o Gênesis, Deus passeava com Adão, comentando todas as belezas que Ele havia criado.

Saíram daquela terra de eleição e entraram para a terra do exílio. Os dons preternaturais deles se retiraram. A natureza humana, desamparada diante de um ambiente sobre o qual não tinha mais governo, que não mais dominava, sentiu-se apoucada, diminuída, ameaçada pela justa cólera de um Deus que tinha sido ofendido. E com o homem, na terra do exílio penetraram a apreensão, a dor, o sofrimento, a incerteza, seguida, não tanto tempo depois, da imagem terrífica da morte.

O fratricídio de Caim

Adão e Eva que se sabiam, então, destinados à morte, antes de morrerem passaram por esta tragédia terrível de ver o filho da bênção, o filho da predileção, Abel, o doce Abel, o justo, o magnífico, prostrado no chão, morto! Eles nunca tinham visto um morto! Não tinham a idéia plena, talvez, do que fosse a morte, porque aquilo que não se vê, não se conhece inteiramente. E morto por quem? Morto por um outro filho. O fratricídio ignóbil derramando no solo o sangue do justo que, segundo diz a Bíblia, subia até o céu bradando a  Deus por vingança.

E nós podemos imaginar o trágico do primeiro funeral na terra: Eva soluçando, Adão batendo no peito, Caim desvairado sumindo ao longo dos caminhos, os outros filhos abrindo em qualquer lugar a esmo, na terra, uma cova. Fechase a sepultura, encerra-se a história de Abel…

Faz-se o vazio na terra imensa, e a humanidade começa a sua enorme peregrinação, com este sentimento duplo: de um lado, o da própria finitude, o homem vai morrer, morrerá como morreu Abel, será um cadáver como foi Abel, a terra o devorará como está sendo devorado o cadáver de Abel; de outro, o sentimento de precariedade, de incerteza, a natureza revoltada, os animais que agridem, as trovoadas que caem, o alimento difícil de extrair do chão. Tudo somado, dá ao homem uma dificuldade de se orientar na vida, que marca a fundo a existência da humanidade dos filhos de Adão ao longo dessa trajetória que nos conduziu de tragédia em esplendor, de esplendor em tragédia, de esperança em frustração, de frustração em vitória que se arrebenta em novas frustrações; conduziu-nos até este século XX, ápice, ele mesmo pelo menos a seu modo de esplendores, de frustrações e de tragédias.

Diante da infinitude e do mistério, a noção de sacerdócio

Essa posição de finitude e de incerteza do homem diante da sua vida terrena acendeu duas concepções distintas de sacerdócio. Concepções estas que nós encontramos em duas famílias diversas de religiões pagãs.

Em primeiro lugar, as religiões ditas religiões sem mistérios, que correspondem, quiçá, a uma família de almas do gênero humano: as almas mais voltadas para esta terra, que não negam diretamente a existência de uma outra vida, e nem dela se desinteressam, mas que de tal maneira se deixam impressionar pelo dia de amanhã, que o centro de suas preocupações se volta para os afazeres terrenos.

Então os senhores têm, talvez correspondendo a essa família de almas, o aparecimento das religiões ditas sem mistérios. Religiões em que o sacerdote aparece como um mediador entre os deuses e o homem é esta, sempre, a nota característica da noção de sacerdote: é um intermediário entre Deus e os homens -, mas de um mediador que, embora com os olhos voltados para o céu, tem missões caracteristicamente terrenas.

Quais são as missões do sacerdote nas religiões pagãs sem mistérios?

O sacerdote é revestido de poderes mágicos por onde faz crer que ele tem o poder de curar, de matar; tem o poder de, por meio de encantamentos e de sortilégios, governar os trovões, aplacar as feras, etc.

O sacerdote resolve, portanto, problemas humanos: ele executa curas, ele pratica mortes, sendo instrumento de vingança, ele governa os elementos.

Vemos aí uma vaga saudade que o gênero humano tem, nesta decadência, daquele domínio que ele exercia sobre a natureza, quando Adão ainda não havia caído. A nossa natureza pede esse domínio. E os sacerdotes do paganismo, da gentilidade, para satisfazer a esta necessidade de domínio, assim se apresentavam aos homens.

E daí o tipo de sacerdotes exorcistas que enxotam os espíritos malignos capazes de atrapalhar o homem na sua faina diária, de arruinar as colheitas, de espalhar doenças, de fazer fugir o gado, etc.

É também o sacerdote sacrificador, o sacerdote que imola, o sacerdote que diante da vista do homem pecador toma uma vítima um animal, uma fruta, que sei eu? infelizmente, muitas vezes uma vítima humana e a imola para assim aplacar a cólera de um deus que o homem sente irado, brigado com ele, do qual ele tem medo, e por isso deseja de algum modo tornar-lhe propício.

Aqui aparece, então, a figura do sacerdote antigo, segundo o tipo dessa mentalidade mais voltada para os bens terrenos.

O sacerdócio comunicador da vida divina

Mas há uma outra família de almas, talvez mais rara, certamente mais elevada. É a dos homens que vivem compreendendo que, por mais importantes que sejam os problemas terrenos, eles não passam de logística; por mais importantes que eles sejam, não é para resolvê-los que o homem está na terra. São os homens que compreendem não ser a fome o problema central da vida; são os homens que sabem pensar, que param para refletir, e que, abrindo um intervalo nas justas atividades da faina diária, de vez em quando se perguntam:

Que sentido tem isto? Que sentido tem esta vida? Por que nasci? Para onde vou? Depois que eu morrer, o que será feito de mim? Não sei! Preciso indagar.

Essas questões supereminentes dominam a vida humana a qual, sem elas, é inexpressiva.

Para atender às perguntas desse gênero de espírito, a própria gentilidade, embora nos seus desvarios e nos seus erros, levada por um misto de bom senso e de tradição que ela nunca chegou a perder completamente, elabora o tipo de sacerdote de religiões de mistérios. São religiões que praticam em geral às ocultas e em geral para um número relativamente pequeno de crentes ritos que devem operar este efeito extraordinário: algo da vida da divindade passa para o sacerdote, e algo do sacerdote deflui para o público, de maneira que uma certa vida divina circula entre os que praticam e os que presenciam o rito. Vida divina esta que lhes dá mais força nas agruras desta existência, lhes dá mais luz à mente, lhes dá mais energia à vontade. Vida divina esta que se manifesta também pela magnífica promessa de que ela não terá fim. Ela veio do além, ela se insere no homem, ela criam eles não cessa com a morte do homem.

A promessa de uma outra vida, existente de modo menos categórico também nas outras religiões, afirma-se mais definidamente nessas religiões de mistérios. E as almas sequiosas de uma natureza melhor que esta, sequiosas de uma explicação mais alta para seus problemas, de uma orientação para a vida mais profunda do que simplesmente a preocupação de obter o ganho necessário para não morrer de fome, ou para satisfazer ambições e vaidades, esse tipo de almas se encaixa nessa série de religiões.

E assim, vagamente, confusamente, no meio de ritos idolátricos, por vezes abomináveis, e até satânicos, podemos discernir o filão de uma tradição preciosa, o filão do bom senso humano, como também o filão de uma esperança.

Numa noite em Nazaré, fazse a paz entre o Céu e a terra

Com efeito, todas, ou pelo menos muitas dessas religiões, eram animadas pela esperança de que um dia a paz se faria entre o Céu e a terra, um momento chegaria em que os tempos teriam a sua plenitude, e um eleito de Deus, perfeito, amado, haveria de vir ao mundo para restaurar a ordem que o pecado de nossos primeiros pais -lembrado em tantas religiões antigas nos tinha tirado.

Em determinado momento, numa meia-noite, no silêncio absoluto de uma cidade hebraica, uma Virgem tênue, delicada, cândida, trazendo nos olhos uma infinitude (de reflexos celestiais), rezava. Os tempos tinham maturado, o grau de sofrimento e de degradação da humanidade tinha chegado a um ponto tal, que a misericórdia de Deus criara esta Virgem para que Ela, imaculada, conseguisse o que nenhum homem pecador conseguiria: pedir e alcançar a vinda do Messias. E Ela pedia precisamente que viesse o Salvador e que regenerasse todos os povos. O Messias previsto pela raça judaica, que deveria nascer de alguém da estirpe de David, da estirpe de que Ela mesmo nascera, e a que pertencia o seu casto esposo José. Ela rezava na calada da noite, pedindo que esse Messias viesse, e pedia segun-

do piedosas tradições que fosse Ela a escrava, a servidora da mulher bem-aventurada de que esse Messias haveria de nascer.

De súbito, se produz pelos ares um movimento misterioso; algo como um bater de asas, como uma movimentação, como uma vibração diáfana, como uma cintilação da lua marca o ambiente. Ela olha e ouve as palavras tão conhecidas: “Ave, cheia de graça”…

Nasce o Sacerdote perfeito: Nosso Senhor Jesus Cristo

Apenas nós sabemos que depois de Ela ter dito: “Faça-se em mim segundo a palavra do Senhor, sou a servidora d’Ele”, o Verbo se encarnou e habitou entre nós. E veio à terra Aquele que, por excelência, no sentido mais pleno da palavra, no sentido arquetípico da palavra, seria o sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sacerdote no sentido pleno da palavra, porque se é verdade que é inerente ao sacerdócio ser um vínculo, ser uma ligação entre os homens e Deus, ninguém o poderia ser de modo mais perfeito, mais magnífico, do que Aquele que era ao mesmo tempo homem e Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, que ligava a natureza humana à natureza divina. Nosso Senhor Jesus Cristo é sacerdotal por sua própria natureza, porque Ele é o elo, Ele é o vínculo, Ele fundou o sacerdócio verdadeiro, o sacerdócio pleno, o sacerdócio cristão, o sacerdócio católico!

O eloquente silêncio da noite de Natal

Qual diamante incrustado nos Alpes, entre a Baviera e a Áustria, encontra-se a célebre cidade de Salzburg, em cujas cercanias surgiu a melodia celebrada pelo mundo inteiro como a música de Natal por excelência: o Stille Nacht.

Em sua versão original alemã, a primeira estrofe do Stille Nacht refere-se à “noite santa e silenciosa, onde tudo dormia, com exceção do venerável e altamente santo casal”. De fato, com inspirada perfeição, sua melodia reflete o imenso e recolhido silêncio de uma noite sagrada.

Nessa noite, onde parece não haver lugar senão para o silêncio, terá Nossa Senhora pronunciado alguma frase, além das manifestações, plenas de amor e afeto, com que as mães costumam se dirigir aos seus filhos recém-nascidos? E São José? Terá ele dito alguma palavra Àquele que era o seu Criador e Redentor? Ou preferiu não quebrar a sacralidade do momento nem mesmo dirigindo-se à sua Santíssima Esposa? Não consta nos Evangelhos ter havido qualquer diálogo ou palavra nessa hora: diante da manjedoura, seja da parte de Maria ou de seu Castíssimo Esposo, não havia outra atitude senão o respeitoso silêncio da adoração (Cf. Lc 2,16).

É verdade que, algumas horas depois, chegaram os pastores e narraram o que lhes havia dito o Anjo do Senhor (Lc 2,17); mas, com que tom de voz eles contaram a Maria a aparição da milícia celestial? Tudo leva a crer que contiveram o jorro de sua vivacidade pastoril e que contaram baixinho o que havia acontecido, a fim de não despertar o adorável Menino ou impedir o recolhimento de sua Mãe, que “conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19).

Na gruta de Belém havia, sobretudo, o eloquente silêncio do Menino-Deus: seu recolhimento dizia mais do que todos os sábios e doutores diriam ao longo da História. Jesus nada falou, mas disse tudo. Em seu silêncio não havia qualquer forma de omissão, mas sim uma mensagem cujo conteúdo, dotado de potência (Mc 1,27), remediaria todas as indigências do mundo antigo: era Deus que se revelava aos homens, com atitudes de menino e grandezas de Criador.

Com efeito, Jesus-Menino não necessitava falar, pois era a própria Palavra Divina, o “Verbo que se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Poderia haver silêncio mais eloquente?

Ainda hoje, como na gruta de Belém, para Ele falar às almas, basta seu divino silêncio. Ele nos fala com o palpitar de seu coraçãozinho, num tom harmônico e constante, pacífico e acolhedor que só pode ser escutado com o ouvido do coração.

O silêncio eloquente de seu Natal nos convida a imergir na verdadeira alegria da noite silenciosa, nos chama para o recolhimento, para a interiorização, para perceber a voz da graça dentro de nossa alma batizada e inabitada pelo Deus que se fez menino.

Que silêncio e que doçura da noite mais eloquente da História! Silêncio que transcende às leis físicas e ecoa por mais de dois mil anos, não pelas vastidões do Universo, mas de coração a coração em todas as santas e silenciosas noites de Natal.

Santo Filogonio – Fundador de uma luta santa

É uma glória especial dar começo a qualquer boa obra. Por isso costumamos homenagear o fundador de uma cidade, de uma dinastia, de uma diocese, o primeiro povoador de um país.

Portanto, a “fortiori”, devemos homenagear também aqueles que levantem uma luta santa. Neste caso, são os fundadores da reação. Eles possuem o mérito e a glória de terem sido os primeiros a combater quando estavam isolados e não sabiam com quem haveriam de contar. Tendo corrido o risco da aventura de levantar o estandarte, tornaram-se os pais espirituais de toda a luta que veio depois.

São Filogônio deve ser extraordinariamente digno de nossa veneração, porque foi dos que suscitaram a luta contra um precursor de Lutero, chamado Ario.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/12/1965)

Stille Nacht

O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX, passou a ser a canção de Natal por excelência. Ao ouvi-la, tem-se a impressão de que o coro está na gruta de Belém e canta emocionado, mas canta baixinho para não acordar o Menino…

 

O comentário, evidentemente, abrange uma interpretação do Natal, visto com uma categoria extraordinária pelo povo alemão.

Há vários descendentes de alemães aqui, que poderiam falar a esse respeito com mais autoridade do que eu… Existe uma característica não muito própria ao latino, mas sim ao alemão: conceber as coisas de tal maneira que tudo quanto é altamente sacral vem acompanhado de muita calma e muito recolhimento.

A concepção italiana da noite de Natal

Um presépio elaborado, por exemplo, em certas regiões da Itália tem as figuras tomando atitudes muito enfáticas, tais como: o Menino Jesus, deitado na manjedoura, estendendo os braços a Nossa Senhora, a qual está debruçada sobre o Divino Infante, numa atitude de ternura profunda, mas borbulhante, que tende a se manifestar em gestos, e só falta falar.

Se o artista conseguir dar a Nossa Senhora e ao Menino Jesus uma impressão por onde alguém diga “Só falta falarem!”, ele fica encantado, porque o falar, se manifestar, é o auge da realização da cena. E São José — ao qual cabe, no diálogo entre Maria Santíssima e o Divino Infante, um papel mais modesto porque ele é apenas o pai jurídico do Menino Jesus — tem também uma atitude, que se não falta apenas falar, falta somente chorar ou sorrir, conforme a interpretação. Mas ele está se exprimindo.

É a ideia de que a emoção religiosa deve exprimir-se por meio de grande vivacidade. E, como é próprio a toda vivacidade, esta, por sua vez, precisa manifestar-se por pensamentos e palavras; os pensamentos devem ser vivos e as palavras enfáticas, calorosas.

A concepção alemã

É exatamente o contrário a concepção alemã da noite de Natal. Em todos os povos, a comemoração do Natal, para ser sacral, tem que produzir nas almas uma impressão profunda. Em certas partes da Itália se entende que essa sensação profunda deve manifestar-se, exteriorizando-se.

Mas para a mentalidade alemã, porque é profunda, tal impressão não deve expandir-se; estando no fundo da alma, o melhor modo de exprimi-la é o silêncio, o recolhimento e a calma.

 Quer dizer, enquanto para uns o auge da expressão é a palavra e os gestos, para outros, pelo contrário, esse auge está numa forma de silêncio e de inação, que dão a conhecer profundidades insuspeitadas da alma humana; e o próprio silêncio indica a importância que a pessoa dá ao assunto, para exprimir tudo quanto ela pensa. Trata-se de uma posição de alma menos exclamativa do que meditativa, elucubrante — eu diria quase filosófica ou teológica —, recolhida.

E a calma não é, entretanto, meramente científica, mas profundamente enternecida. Uma ternura indicando um afeto tão grande que prefere calar-se, a falar.

Então, se alguns têm a eloquência da palavra e do gesto, outros possuem a eloquência do silêncio e do recolhimento. São duas posições diferentes. Muitas vezes as coisas grandiosas, para o alemão começam na imparcialidade, na serenidade, piano, pianino, devagar, para acabar, em certas ocasiões, na barulheira wagneriana. Enquanto que no temperamento latino, do qual, sob alguns aspectos, o italiano — pelo menos de certas partes da Itália — é a expressão mais característica, tudo já se inicia no grande estilo.

Qual das duas posições é melhor? Compreendo que os italianos achem uma coisa, os alemães outra.

E a posição brasileira qual é? Entender perfeitamente ambas as posições e degustar tão bem uma quanto outra. É o que sinto em mim. Eu, como brasileiro — ainda mais tendo a loquacidade do nordestino nas minhas veias —, certamente falaria mais do que o alemão, e estaria um pouco aquém do italiano.

São variedades regionais, através das quais Deus quer ser adorado por cada povo. Não se trata aqui de escolher, mas de contemplar a beleza das variantes. Temos uma variante alemã. Não sei se existe alguma canção de Natal italiana. As francesas não possuem a beleza da alemã. Os Noëls franceses são muito bonitos, mas não como o Stille Nacht, que é propriamente a canção de Natal. A nós compete apreciar a música como vai ser apresentada aqui, característica de uma noite de Natal alemã.

O que o alemão sente na Noite Sagrada

O que o alemão sente na Weihnacht, na Noite Sagrada?

Uma grande calma, sobretudo numa cidadezinha da Alemanha onde foi composta a Stille Nacht. Houve uma dificuldade qualquer na paróquia, em razão da qual não puderam cantar a música sacra tradicional. Então, a pedido do vigário, solicitaram ao professorzinho secundário do lugar que compusesse uma musiquinha para a noite de Natal. E ele, sem julgar estar fazendo uma coisa genial, compôs uma canção que ficou a música de Natal do mundo.

Bem depois, pela difusão dessa canção, esse professor ficou célebre. Conserva-se a casa dele, que é visitada por turistas. Compreende-se muito bem o Stille Nacht, Heilige Nacht vendo fotografias da cidadezinha na neve, os tetos, em forma de cone, branquinhos, as casinhas marrons, tudo parecendo feito de pão de mel para se comer. E uma igrejinha como que feita de marzipã, um brinquedo de criança, como são as aldeias alemãs.

Imaginemos o caminho que conduz para a igreja, um pouco em zigue-zague, feito sobre a neve e bordejado de neve de ambos os lados, as casinhas todas com luzes acesas e suas janelinhas com renda e bem cuidadinhas, como os alemães fazem; o sininho que toca em certa hora e as famílias que aparecem todas agasalhadas — cada indivíduo parecendo uma bolota de lã —, criancinhas que vêm em fila, carregando lanternas — porque esses felizardos não têm iluminação pública. 

A neve, sem fazer barulho, cai em flocos ligeiros. Um imenso silêncio, recolhido, de uma noite sagrada, onde todo o mundo pensa no silêncio que cercava a gruta e a manjedoura. Meia-noite, Nossa Senhora e São José, sozinhos no estábulo. São José recolhido e Maria Santíssima num altíssimo êxtase; em determinado momento, não se sabe como, Nossa Senhora e São José ouvem um vagido: o Filho de Deus entrou no mundo, conservando intacta a Virgem, antes, durante e depois do parto. O maior fato da História, até então acontecido, se deu naquela manjedoura.

Nossa Senhora olha, pela primeira vez, a face de seu próprio Filho e se enternece extasiada; adora-O. São José não sabe o que dizer. Mas tudo é silêncio, eles não comentam nada, mas mil anjos ali estão em revoadas insensíveis. Sem que se ouça uma nota de música, mil músicas são entoadas dentro desse silêncio.

A união de alma da Virgem Maria com seu santo esposo atinge o auge em função do Menino, que nasceu d’Ela, mas sobre o qual São José tem um verdadeiro direito de pai, porque, como esposo, tem o direito ao fruto das entranhas da esposa. De maneira que sem ser o pai, ele tem o direito. Além disso, ele é da Casa de Davi e aquele Menino também o é.

Podemos imaginar o Divino Infante fazendo um gesto para São José, a adoração deste e a afabilidade com que Nossa Senhora lhe entrega o Menino Jesus, exercendo pela primeira vez a sua função de Medianeira.

Aquele silêncio só foi interrompido pela música dos anjos que, vindos do mais alto dos Céus, aparecem e comunicam aos pastores que nasceu o Menino-Deus. Essa música foi pastoril, quer dizer, com a tranquilidade, a candura, a inocência do ambiente pastoril.

Os pastores inocentes acordam e exclamam: “Que beleza!” E perguntam: “O que será?” Depois da explicação, eles começam a andar por extensões ligeiramente onduladas, numa daquelas noites brilhantes do Oriente Próximo, em que as estrelas aparecem num coruscamento quase excessivo para nossa sensibilidade de ocidentais. Uma maravilha! Um céu mais de Paraíso do que desta Terra. Chegam à manjedoura, e encontram Nossa Senhora e São José adorando o Menino Jesus. Tudo é silêncio, calma, harmonia, estabilidade. Temos a impressão de que, se lá estivéssemos, desejaríamos que aquela noite nunca mais terminasse, e por fim lá morrêssemos e fôssemos para o Céu.

O estado de espírito que Stille Nacht exprime

Foi esse estado de espírito — pastoril, angélico, sobrenatural, familiar, íntimo, de uma grande dignidade e um grande alcance metafísico — que a canção quis exprimir.

Vejamos alguns trechos dessa música.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!”: Noite silenciosa! Noite Santa!

“Alles schläft, einsam wacht”: Tudo dorme, só está acordado

“Nur das traute hoch heilige Paar”: O venerável e altamente santo casal

 

“Venerável e altamente santo casal” — a adjetivação é caracteristicamente alemã.

Nota-se na alegria do Natal uma ternura meio lírica, na qual existe certa compaixão. Dentro do festivo há uma tristeza, devido ao frio e à pobreza em que nasce o Menino Jesus. Mais do que isso: é uma tristeza prevendo a Cruz. Há algo da sombra da Cruz que se projeta sobre a noite de Natal. De onde uma ternura com compaixão para Aquele que veio, afinal de contas, para ser o Redentor, sofrer e morrer.

 

“Holder Knabe im lockigen Haar”: Um Menino com cabelos cacheados

“Schlaf in himmlischer Ruhe!”: Dorme numa tranquilidade celeste

 

A nota de tranquilidade está acentuada de todos os modos. Trata-se de uma serenidade do céu, onde se movem as estrelas; não é a modorra da Terra, do menino preguiçoso.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!” : Noite tranquila! Noite santa!

“Hirten erst Kundgemacht”: Pastores, aos quais foi feito o primeiro precônio

“Durch der Engel, Halleluja”: O Aleluia dos Anjos

“Tönt es laut von fern und nah”: Faz-se ouvir alto, longe e perto:

“Christ, der Retter, ist da!”: Cristo, o Salvador, está aqui!

 

Nota-se muito a impressão de um problema que se resolveu, pois uma salvação veio à Terra.

 

“Stille Nacht! Helige Nacht!”

“Gottes Sohn, o wie lacht”: Ó Filho de Deus, que sorriso cheio de amor

“Lieb’aus deinem göttlichen mund”: Sai de vossos lábios divinos

“Da uns schlägt die rettende Stund”: E bate para nós as pancadas da hora da Salvação

 

Quer dizer, os lábios se movimentam num sorriso, como se fosse um relógio que desse o timbre da hora da Salvação.

 

“Christ, in deiner Geburt!”: Ó Cristo, no dia de teu nascimento!

 

Vemos que é uma canção muito simples, popular, mas de um sentido profundo. Feliz o povo onde a cultura está tão entranhada em tudo, que um homenzinho do interior, de repente, abre a boca e sai tal música de seus lábios!

A cultura não consiste em ter somente gênios, mas em estar tão disseminada que floresçam coisas dessas inesperadamente, nos vários degraus da sociedade.

Uma magistral lição de vida interior

Tratar-se-ia de perguntar se os meridionais, sobretudo os de aquém-Atlântico, com sensibilidade borbulhante, têm algo a lucrar com isso. Eu responderia que bastante.

Os povos muito intuitivos são por demais extrovertidos e, por isso, se tornam facilmente agitados. Esta calma convida para o recolhimento, a interiorização, a fim de perceber a voz da graça dentro da alma e não estar a toda hora prestando atenção no outro, mas sim em Deus.

Uma magistral lição de vida interior nos é dada por essa música.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1973)

Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)