Um inocente que irradia luz espiritual

São Domingos de Gusmão (cuja festa se celebra em agosto) e São Francisco de Assis, seu contemporâneo, foram dois luzeiros cujas vocações se interpenetram. Considera-se terem realizado o  famoso sonho de Inocêncio III, no qual esse Papa via a Basílica de São João de Latrão, que simbolizava a Cristandade, rachada e sendo sustentada, ora por São Domingos, ora por São Francisco. 

Dr. Plinio tinha por ambos profunda admiração, que se traduziu em numerosos comentários pervadidos de sentimentos de enlevo e veneração. Na conferência que transcrevemos a seguir, ele  analisa um afresco de Fra Angélico, no qual o insigne pintor dominicano procura retratar as perfeições morais de seu santo Fundador

 

Cristandade tendia já naquela época para a moleza, o relaxamento, a perda do senso do sacrifício, do sobrenatural, e se inundava dos bens materiais que o avanço da civilização proporcionava.

Foi neste contexto que, para barrar o progresso do mal, Deus suscitou as vocações de São Francisco e de São Domingos: o primeiro, pela caridade, e o segundo, pela lógica, lograram conjuntamente reerguer a Idade Média do século XIII. A Ordem dos Franciscanos devia praticar em grau exímio a humildade e a pobreza; a dos Dominicanos, combater num terreno mais intelectual o orgulho e a sensualidade.

Na conferência de hoje, pretendo voltar-me particularmente para São Domingos. Procuremos vê-lo pelos olhos de um de seus mais eminentes filhos espirituais, Fra Angélico.

Em um de seus célebres afrescos, ele representa São Domingos ainda muito moço, vestido de dominicano, numa atitude pensativa, meditando ao pé da Cruz. A pintura mostra um personagem muito sereno e calmo. Mas, ao mesmo tempo, dentro da serenidade e da calma dele, está se entregando a uma intensa atividade. Encontra-se numa pesquisa, numa interrogação. Sem tensões nem cansaços errados, a investigação de seu espírito se concentra num determinado ponto. De outro lado, nota-se nele uma atitude de enlevo e de amor.

No todo externo deste homem há algo de luminoso. Ele irradia uma luz que não é física, mas espiritual. Não se trata do viço da mocidade, também presente nele; é uma espécie de luz interior, mais ou menos indefinível, decorrente de uma extraordinária lucidez e de uma clara visão das coisas.

Singular discernimento das almas

Tem-se a impressão de que, se um de nós olhasse o mundo de dentro dos olhos dele, veria o universo com alguns matizes completamente diferentes. Sobretudo, no que diz respeito às almas.

Examinando-as, procurando conhecer caráteres, esse homem está tão distante do lamaçal das atividades comuns, tão longe das paixões que habitualmente os homens têm, que ele, por diferença, percebe muito mais essas desordens e, por conaturalidade, também discerne melhor o que há de bom nos homens. Ele tem uma visão muito mais penetrante do mundo das almas, do que uma pessoa comum.

Fortaleza, clareza de visão e equilíbrio

Uma objeção que se poderia fazer a esta figura é a seguinte: onde está presente dentro dela a combatividade de espírito? Parece uma pessoa feita para concordar com tudo, e capaz apenas desse sorrisinho que esboça. E, a esse título, é uma pessoa que deve ser rejeitada por uma verdadeira formação.

Na realidade, imaginemos este homem fechando o livro e presenciando alguma cena de despudor insolente ou alguma extravagância, que se tornaram tão comuns nas ruas de hoje. Ele ficaria ou não profundamente chocado, e quereria empunhar um látego como aquele com que Nosso Senhor expulsou os vendilhões do Templo? Certamente.

É na sua extrema inocência, na sua extrema candura que reside uma extrema clareza de visão, muita fortaleza e muito equilíbrio. Este homem é capaz de atitudes enérgicas, mas também, no intervalo das batalhas, de sorrir e meditar sobre o Natal. Sem violências, sem choques interiores, ele passa de um estado de alma para outro.

Ele é, entretanto, um homem transparente para cada um de nós compreendê-lo. Um homem que poderíamos sondar, no mais íntimo de sua alma, para perguntarmos qual é o ponto de partida de todo esse equilíbrio que ele demonstra.

O ponto de partida é, antes de tudo, uma noção primeira da ordem. Porque esta é uma pessoa que nunca perdeu a graça batismal. Isto está escrito na sua fisionomia. Não se poderia admitir, por exemplo, que lhe fizessem esta biografia: “Grande santo penitente. Viveu por muito tempo no meio de pessoas corrompidas e cometeu inúmeros assassinatos. Ei-lo depois de convertido”. A penitência tem aspectos mais sublimes, mas não tem o da inocência. Neste homem se discerne a graça batismal na sua candura originária, em sua beleza primaveril.

Certezas extraordinárias

A partir da fidelidade à graça batismal, há uma certa retidão por onde ele vê muito claramente que a verdade é a verdade, e o erro é o erro. E os primeiros princípios universais da lógica e do entendimento não passaram pelo menor abalo, no espírito dele. De maneira que ele possui naturalmente certezas extraordinárias.

Prestemos atenção em sua fisionomia: não há o menor grau de dúvida a respeito de nada. Ele nunca duvidou. Consideremos com que tranqüilidade ele procura o seu caminho. Por quê? Porque ele anda a partir de certezas que nunca foram abaladas, e que lhe abrirão todas as portas.

De outro lado, com essa noção muito grande de todas as certezas, possui ele uma naturalidade e um modo categórico de condenar completamente o erro, e de se desfazer do mal de uma forma que não admite discussão: é, e está acabado!

Fé católica absoluta

Tomemos a fé católica deste homem, por exemplo. É uma fé total, absoluta! Ele acha evidente que a Igreja Católica seja verdadeira. Não há dúvidas para ele a esse respeito. É uma fé que nasce dessas certezas originárias, serenas e magníficas de quem nunca pecou contra a criteriologia, nunca pecou contra os próprios nervos, nunca pecou contra nada! E que progride na sua vida espiritual como o Rio Amazonas corre para o mar: caudaloso, enorme, tranqüilo, arrastando tudo, empurrando o mar longe para frente. Não é um rio wagneriano com cascatas, com quedas d’água nem coisas semelhantes. Ele se dirige para o oceano em linha reta, e chega ao mar. O mar, neste caso, é o Céu!…

Um profundo senso do divino

Outra coisa que há nele é o senso do divino, que se traduziria pouco mais ou menos num raciocínio da seguinte evidência:

“Eu existo. Contudo, é verdade também que antes de mim existiu uma quantidade enorme de seres. É verdade que, ao mesmo tempo em que eu existo, existe uma quantidade enorme de seres, e que depois de mim existirá outra quantidade enorme de seres. Há, portanto, um fluxo do existir dentro do qual, somando e subtraindo, eu sou uma gota, e não o centro dele.

“Por detrás desse fluxo de existência há uma ordenação, uma regra, uma concatenação de fatos, uma sucessão de coisas que constituem um universo coordenado e uno. Esse universo que assim existe me dá a ideia de um Ser ainda maior do que ele e, portanto, um Ser Absoluto, Divino, que também existe. É Ele o Criador de tudo.”

É a primeira impostação da alma diante de Deus.

Este é um homem sem interesses individuais. Ele não tem vaidades, nem complexos, nem ambições. Ele tem o hábito de, no seu pensamento, nas suas reflexões, não reportar as coisas a si, mas a este absoluto que é Deus, e que é o centro para onde ele está voltado.

Da inocência, o espírito apostólico

Então nós temos que, para este homem, rutila com clareza muito maior do que para o comum dos homens a noção de que a verdade é a verdade, o erro é o erro, o bem é o bem, e o mal é o mal. Vamos dizer que este homem, de repente, se encontrasse com Lutero. Ele se diferenciaria do heresiarca por vários abismos sucessivos. Ele iria notando as divergências, e diria: “Não! Errado!” E depois: “Vou pregar contra as idéias erradas de Lutero, pois não posso deixar que leve outros a seus erros! Nós não cabemos juntos no mundo!”

Donde nasceu o ímpeto desse espírito apostólico? Nasceu da candura originária, que é, em última análise, a boa ordem inicial de todo ser. Nasceu de todos os primeiros princípios da razão, de todos os primeiros impulsos dos nervos, de toda a graça do Batismo. Nasceu do senso do divino, e do respeito enorme por tudo o que existe, inclusive por si próprio, sentindo, por detrás, Deus que o envolve e que o transcende. Eis o ponto de partida desta alma inocente, que contém todo o resto.

“Paraíso originário” de todo batizado

Esse estado de alma é o “paraíso originário” que todo batizado tem, em grau maior ou menor do que São Domingos.

E aqui, ao término dos comentários sobre esta magnífica representação do Fundador dos dominicanos, parece-me apropriado ressaltar esta verdade: todos nós tivemos a inocência batismal. É ou não é verdade que todos nós, no fundo de nossas almas, sentimos saudades dos encantos do tempo em que éramos inocentes? Entretanto, como fomos feitos para viver dessa inocência, permanecem na alma mil cordas que ninguém vibrou, mil solicitações que não foram atendidas, mil possibilidades de expansão que de fato não foram aproveitadas, mil apetites feitos para a casa paterna que se vão saciar nas bolotas dos porcos. Resultado: mil remorsos indefinidos, não se está contente consigo mesmo, não se sente limpo diante de Deus.

Achamos que nossa existência é dura. É verdade. Porém, não agravamos nosso exílio, fechando as janelas que davam para o Céu? Há na Escritura uma lamentação de Deus, dirigida ao povo hebraico: “Vós transformastes o meu templo numa barraca para guardar frutas”. Não somos nós um templo do Espírito Santo, que transformamos em barraca para guardar frutas?

Olhando de frente nossa situação atual, lembremo-nos que tudo aquilo pode ser restaurado, desde que rezemos com confiança nesse sentido. Peçamos, pois, a Deus Nosso Senhor, por meio de Maria Santíssima, que nos limpe de nossos pecados e imperfeições, e restaure em nós aquela bondade derivada das graças que o Batismo infundiu em nossas almas.

 

São Caetano do Tiene

A respeito de São Caetano de Tiene e do significado de sua obra, convém fixar o seguinte: uma das causas da decadência da Idade Média foi o apego às riquezas e à vida de fausto e de grandeza.

Infelizmente, o clero também não foi isento desta culpa… Em vez de conduzir por amor de Deus a magnificência que lhes era devida, muitos dignatários eclesiásticos faziam dela um título de grandeza pessoal; e o que deveria ser um elemento de edificação para os outros se transformou em ocasião de mau exemplo.

Diante dessa situação, entrou um espírito de relaxamento no clero diante do orgulho e da sensualidade, que são as duas principais causas da Revolução. Nós podemos, portanto, localizar esse problema na origem da Revolução.

E, como sempre acontece na Igreja, quando o espírito do mal nela introduz algo de ruim, o Divino Espírito Santo suscita um bem muito maior do que o mal produzido.

Em virtude dessa regra, houve um santo que levou o espírito de pobreza até onde, sob certo aspecto, nem São Francisco de Assis tinha levado: São Caetano de Tiene, fundador dos Teatinos.

A fim de levar o espírito de pobreza a um limite quase inimaginável, São Caetano proibiu seus religiosos inclusive de pedir esmolas: quando precisavam de alguma coisa, deviam ficar parados em algum lugar à espera de que alguém viesse lhes atender…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/8/1965)

Admiração transformante

A experiência da vida nos confirma o princípio segundo o qual aquilo que admiramos penetra em nossa alma e nos transforma. Exemplo arquetípico dessa verdade encontramos em Nosso Senhor.

Percorramos as páginas do Evangelho sob este ângulo e veremos como Ele, durante todo o tempo de sua passagem pelo mundo, procurou despertar admiração. O povo que O ouvia não cabia em si de tanto admirá-Lo. E como se tal não bastasse, o Divino Mestre ainda se transfigurou no Tabor. Para quê? Para transformá-los, para obter o amor daquela gente, pois o autêntico amor começa pela admiração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/9/1969)

O inestimável tesouro da oração

o dia 1º de agosto a liturgia católica festeja Santo Afonso Maria de Ligório, Fundador dos Padres Redentoristas, Doutor da Igreja e autor de renomadas obras sobre moral, muitas voltadas  especialmente para a orientação de Confessores. Entre as que dedicou ao comum dos fiéis, há uma admirável — “A Oração, o grande meio da salvação” —, apreciada de modo particular por Dr.  Plinio, que, nos idos de 1957, acerca dela teceu diversos e luminosos comentários.

 

Ao tratar da oração, Santo Afonso de Ligório não o faz à maneira de um teólogo que ensinará a respeito dela tudo quanto é possível. Ele escreve como diretor de consciências, mostrando o precioso proveito a se tirar da oração na vida espiritual.

Acompanhando seu ensinamento, vemo-lo constantemente em face de uma determinada situação espiritual, não enunciada, mas que devemos conhecer com toda a clareza. É o que poderíamos  chamar o encalhe.

Com efeito, na vida de piedade existe o encalhe e, depois, o desencalhe. Sabe-se bem o que significa encalhar. Por exemplo, um automóvel encalha quando encontra qualquer obstáculo que o  impede de andar, ou  quando sofre algum tipo de avaria interna, falta de combustível, etc.

A idolatria na Antiguidade, um “encalhe”

Inúmeras almas encalham na vida espiritual, em qualquer estágio dela, às vezes de um modo completo, e até aparentemente irremediável. O mais prodigioso exemplo de encalhe espiritual  verificou-se, a meu ver, com a idolatria nos povos antigos.

O célebre pregador francês Bossuet, ao se referir à situação do mundo naquele período, invectiva a crença idólatra como um defeito grosseiro e um erro evidente praticado por aquelas populações.  Os antigos estavam profundamente aferrados a esse erro, não obstante possuírem muitos deles uma inteligência privilegiada, como os gregos e os romanos.

Não que a razão humana não fosse bastante forte para perceber o erro da idolatria. Prova-o as diversas vozes discordantes dela, entre as quais Sócrates, Aristóteles e Platão. Contudo, esses três  homens, dos mais inteligentes de todos os tempos, falando para um povo também dos mais sábios do mundo, renunciaram a abolir esse mal, por considerar que o povo estava encalhado na  idolatria.

Isso é o que notamos no encalhe da vida espiritual: há todas as possibilidades para se ver o erro em que se caiu, mas as pessoas estão enraigadas no apego a ele. Não existem argumentos nem  recursos que obtenham resultados, por causa de um ponto encalhado.

Em contrapartida, o cristianismo é o exemplo do maior desencalhe da História. Depois da vinda de Nosso Senhor, homens menos inteligentes, dirigindo-se a povos por vezes menos favorecidos no tocante à inteligência, lograram vencer com facilidade a idolatria. De modo repentino, porque entrou um fator novo diferente de todos os anteriores, eles desencalharam.

Temos então, na idolatria e no cristianismo, casos coletivos de encalhe e desencalhe. Características do “encalhe” espiritual O que propriamente caracteriza um encalhado na vida espiritual é o fato  de ele se recusar a sair do erro em que se encontra preso. Alguém pode ter um defeito, mas se empenha na atitude de o deixar, acatando os conselhos que lhe dão nesse sentido.

Este inidvíduo não deve ser tido como um encalhado.

Pelo contrário, a vítima do encalhe é aquela que toma em relação ao seu defeito um apego tal que não quer abrir mão dele, apesar de todas as admoestações e orientações que receba. Esse defeito  não será, necessariamente, um pecado mortal. É uma falta venial ou uma mera imperfeição. Mas, à medida que a pessoa não quer renunciar àquele ponto, ela estagna. Por isso a vida espiritual é  semelhante a uma montanha em cuja encosta se pode encalhar, a qualquer altura. Há quem pare num ponto muito elevado dela. Não raro, quanto maior a altitude alcançada, tanto menor a  bagatela pela qual se fica preso.

Dir-se-ia existir uma espécie de enfermidade das alturas, pois o indivíduo que não se deixou encalhar por medo de leões, detém-se por causa de uma borboleta. É uma forma de vertigem na vida espiritual, um tremendo complexo contra o qual é preciso se defender com dez mil cuidados.

Às vezes, uma pessoa que renunciou a tudo julga-se muito engraçada e se toma de apego pelos gracejos que prodigaliza. Noutros casos, o homem se apega ao que não tem. Por exemplo, um grande jurista com mania de ser poeta, tem pouco ou nenhum apego por seu saber jurídico, mas vive com receios de que não o reconheçam como autor de versos inspirados.Nasce daí a vaidade, vem o
encalhe…

O salutar e valioso remédio da oração

Posto, então, diante desse problema que se apresenta na vida espiritual de incontáveis almas, Santo Afonso faz uma afirmação bem característica no começo do seu livro, indicando um elemento  para a sua solução. Escreve  ele: Vejo que os cristãos pouco  cuidam de empregar este grande meio de salvação [que é a oração]. E, o que ainda mais me aflige…. é ver que os pregadores e  confessores tampouco recomendam a oração a seus ouvintes e penitentes. E mesmo os livros espirituais que hoje em dia correm pelas mãos dos fiéis não tratam suficientemente desse assunto,  quando é certo que todos os pregadores e confessores e todos os livros outra coisa não deveriam incutir, com mais empenho e afinco, do que a necessidade de orar. Ensinam eles às almas tantos  meios de se conservar na graça de Deus, como fugir das ocasiões, frequentar os sacramentos, resistir às tentações, ouvir a palavra de Deus, meditar as máximas eternas e outros meios. Todos eles  são certamente utilíssimos, mas, digo eu, de que valem as prédicas, as meditações e todos os outros meios aconselhados pelos mestres espirituais, se falta a oração, quando é certo que o Senhor diz  não conceder graças senão a quem pedir? “Petite et accipietis: Pedi e recebereis”.

Sem a oração (falando segundo a providência ordinária) serão inúteis todas as meditações que se fazem, todos os propósitos e todas as promessas. Se não orarmos, seremos sempre infiéis a todas  as luzes d’Ele recebidas e a todas as nossas promessas. (…) Eu quisera, caro leitor, antes de tudo  que vou escrever aqui, explicar este meu sentimento, para que agradeçais ao Senhor, o qual, por  meio deste meu livrinho, dá a graça de fazer a oração com maior entendimento e conhecimento deste grande meio de salvação que temos, pois todos os que se salvam, falando dos adultos,  ordinariamente se salvam por este único meio.¹

A oração é, portanto, o mais seguro caminho que nos conduz à salvação. E o primeiro fundamento para compreendermos este valor da oração, no plano da Providência, é considerar como Deus  deseja ser, Ele mesmo, o nosso Cireneu. Com efeito, Nosso Senhor Jesus  Cristo aceitou sofrimentos superabundantes para nos salvar na Cruz.

Mas, Ele quis dar ao homem a possibilidade de se associar a esses padecimentos, completando o que era necessário por meio do sacrifício de cada um. É o papel da expiação que forma o tesouro  da Igreja, Corpo místico de Cristo. Assim, se Deus quis que fôssemos os cireneus d’Ele, também quer ser o nosso divino Cireneu.

Ele não é, portanto, um estranho na nossa vida. Ele, fonte de toda a consolação, quer entrar em nossa existência pessoal, tomando parte nela a pedido nosso, ajudando-nos, tanto em nossas  necessidades espirituais quanto nas terrenas. Seria mesmo compreensível que alguém fizesse uma imagem de um homem carregando a cruz, auxiliado por Nosso Senhor, como outro Simão  Cireneu.

Sim, Ele é um Cireneu que nunca nos abandona. E se nalgum momento deixa a Cruz pesar em nossos ombros, é para nosso bem, a fim de que alcancemos méritos e frutos para o Céu. Devemos,  pois, nos compenetrar dessa confortadora verdade: Deus é o nosso Cireneu infinitamente afável, infinitamente misericordioso, disposto a nos socorrer e amparar sempre. Para isso, basta o nosso  pedido, ou seja, a nossa oração.

Preparar o espírito, antes da oração

E como fazer para adquirir o valioso hábito da oração? Antes de rezarmos é preciso preparar o espírito, colocando-o diante das verdades que fazem com que nossa prece tenha alimento, do  contrário será completamente mecanizada. Então, um ponto de nosso exame de consciência seria preguntar se preparamos o nosso espírito para a oração, considerando os motivos pelos quais se reza bem. Por exemplo, tendo presente que Deus sabe como nos modificar e tem a força para fazê-lo.

Que Ele nos transformará, desde que peçamos. E que a condição para o nosso pedido ser atendido é a importunidade, virtude evangélica tão recomendada por Nosso Senhor:  Se algum de vós tiver um amigo, e for ter com ele à meia-noite e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, porque um meu amigo acaba de chegar à minha casa de viagem e não tenho nada  que lhe dar; e ele, respondendo lá de dentro, disser: Não me sejas importuno, a porta já está fechada, os meus filhos estão deitados comigo; não me posso levantar para te dar coisa alguma.

Se o outro perseverar em bater, digo-vos que, ainda que ele se não levantasse a dar-lhos, por ser amigo, certamente pela sua importunação se levantará e lhe dará quantos pães precisar (Lc 11,5-8).

Esta é a imagem d’Ele mesmo, querendo ser importunado e pedindo de nós, não o que alguns dizem: “reze pouco, mas reze bem”, mas o contrário: “reze como puder e reze muito, seja maçante,  reclame, e se Deus demorar em atender, peça ainda mais, porque Ele acabará atendendo com uma generosidade maior!”

Ora, se eu, antes de rezar, lembro-me bem que Nosso Senhor quer e sabe como me curar, e que a condição é ser importuno, eu preciso pedir muito. E fazê-lo por meio de Nossa Senhora, pois  através d’Ela realmente obtemos tudo.

Deus deseja nos fazer o bem

Além disso, é muito proveitoso tomarmos os trechos do Evangelho a respeito da oração — Nosso Senhor a ela se refere inúmeras vezes — e analisá- los sob o seguinte ponto de vista: o desejo de  Deus de nos fazer bem. O próprio fato de Nosso Senhor nos ensinar a rezar o Padre Nosso é a prova de que Ele nos quer conceder tudo quanto está dito ali. Senão, seria da parte de Deus uma  aberrante contradição.

Imaginemos um rei que dissesse: — Plinio, se você quiser obter graças de mim, reze de acordo com esta fórmula…  Se eu não fizer uso dela, o rei poderá ficar zangado comigo e pensar: “Esse homem me está tomando como palhaço, porque se eu lhe forneço um modo de obter aquilo que ele quer, deve admitir que darei mesmo, se ele pedir.” A parábola do Bom Pastor encerra um  tocante ensinamento a esse respeito: a ovelha está toda emaranhada, numa posição em que não pode se mexer mais. E o Bom Pastor toma a iniciativa de tirá-la da má situação na qual se encontra.

É bem a imagem de Deus, pegando a alma escangalhada, arrebentada, colhendo-a e conduzindo-a. O Bom Samaritano também faz isso com o homem que está à beira da estrada todo ferido. Ele  pára e o socorre. Pois de igual maneira procede Deus conosco. Estarei eu, então, fazendo a minha meditação do Evangelho orientada neste sentido? Não é o caso de incluir este ponto no meu exame de consciência? Por outro lado, cumpre lembrar  que, ao atender as nossas orações, Deus nos faz um imenso favor. Mas, Ele faz também uma ação que O glorifica  e, portanto, temos toda a razão de achar que, movido pelo amor de Si mesmo, Ele encontrará motivos para nos ser favorável.

Importa pedir sempre, e pedir muito

Seguindo a linha de seu ensinamento, Santo Afonso cita alguns trechos interessantes do Evangelho que provam a necessidade de pedirmos para  recebermos. O primeiro é uma promessa de Nosso Senhor, exposta em São João (16, 24): “Pedi e recebereis”. Noutro passo: “Pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á concedido” (Jo 15, 7). Num terceiro se afirma: “Todo o que pede recebe, e o que busca acha” (Lc 11, 10). E ainda: “Se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele vo-la dará” (Jo 16, 24).

Santo Afonso insiste para que vejamos a estrutura dessas frases e a natureza de suas promessas.  “Pedi e recebereis”. É uma verdadeira condicional. Devemos pedir, do contrário não recebemos. É  como  quem diz: “preencha a condição, e eu faço”. E não está escrito que apenas o homem bom, justo, casto ou puro recebe o que pede, mas simplesmente: “quem pede, recebe”! É difícil haver afirmação mais incisiva que esta. “Pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á dado”. Excetuando os pedidos que não forem para o nosso bem, tudo quanto rogarmos, ser-nosá concedido. Que  palavras poderiam ser usadas para afirmar isto com mais clareza?

Portanto, a promessa está formulada de um modo límpido e preciso. O mal está em não nos convencermos  disto, não sabendo manejar a oração como deveríamos. Ademais, Nosso Senhor não  especifica o pedido. Portanto, podemos solicitar tudo o que quisermos, até mesmo os bens materiais, desde que estes não ofendam a Deus. E se o pedido não convier, Ele não dará o que rogamos, porém nos compensará com algo melhor. Dessa maneira, acabaremos  alcançando o que desejamos.

Nesses dias difíceis em que vivemos, semeados de problemas, tenho certeza de que se rezássemos jaculatórias para cada necessidade, mesmo temporal, implorando a Nossa Senhora que nos  facilite isto, que nos simplifique aquilo, etc., conseguiríamos muitas coisas. Com o desgaste que as dificuldades da vida moderna causa nos temperamentos, e os problemas que podem acarretar  para a vida espiritual, esse gênero de pedido é altamente recomendável.

Tanto mais quanto a linguagem de Nosso Senhor é claríssima. As mesmas regras do Evangelho em virtude das quais acreditamos que, tendo Ele dito “isto é meu corpo”, opera-se a transubstanciação quando o sacerdote consagra as espécies, levam-nos também a crer que tendo Ele dito: “Pedi e recebereis”, de fato receberemos, se pedirmos.

Outra frase típica nesse sentido: “Todo o que pede, recebe; e o que busca, acha”. Ora, eu sou um que pede; logo, recebo. Eu sou um que busca; logo, acho. Naturalmente pode demorar, levar mais  tempo ou menos, mas a promessa de Nosso Senhor permanece imutável. Às vezes, no nosso apostolado precisamos de algo que não temos, e desanimamos. Peçamos! Rogando, obteremos. E se  não for o que necessitamos, será algo melhor. Nunca se perde por pedir.

Como a vida seria mais fácil e mais suave se nos compenetrássemos desse valor da oração! Ela é, verdadeiramente, um cetro posto em nossas mãos. A bem dizer, governamos os acontecimentos  com a prece humilde e persistente. Se nós não tomamos a sério estes ensinamentos, por falta de espírito de fé, privamos de tesouros inestimáveis a Igreja.

A via régia da vida espiritual

Consideremos, ainda, esta outra promessa de Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes a meu Pai alguma coisa em Meu nome, Ele vo-la dará” (Jo 16, 23). Santo Agostinho diz que a expressão “em verdade, em verdade” é uma espécie de juramento. De tal maneira quis Nosso Senhor acentuar o sentido exato das suas palavras, que chegou a usar esta frase: “Em verdade, em verdade Eu vos digo…”. Ou seja, “Eu vos juro: se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele vo-la dará”.

Assim, dificilmente haverá melhor oração do que esta: “Padre Eterno, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo eu vos peço: lembrai-Vos das promessas de vosso Filho e concedei-me essa graça de  que necessito”.

Compreende-se que talvez não seja fácil nos compenetrarmos deste inestimável valor da oração, e de nos colocarmos nesta perspectiva. Nosso Senhor, a Sabedoria infinita, compreende essa nossa  deficiência melhor do que nós mesmos. A prova está na insistência d’Ele, pois encontramos inúmeras promessas do gênero nas Sagradas Escrituras. Ele sabe não terem os homens muita  propensão para se humilharem e pedir com perseverança. Diversas razões os desviam dessa atitude tão necessária: o desejo de fazerem as coisas pessoalmente, de escalar o Céu por seu esforço  próprio e não pela graça de Deus; por não quererem acreditar nos juramentos e nas misericórdias de Nosso Senhor em nosso benefício, enfim, por misérias de toda ordem.

Mas, note-se bem, é este o principal ponto de batalha da vida espiritual. Se a pessoa de fato pedir a graça de se compenetrar das verdades acima consideradas — e é preciso implorar essa graça, não  basta fazermos um exercício mental de compenetração — Nossa Senhora nos alcançará tudo. Quanto a isto não se pode ter dúvidas. Esta é a via régia da vida espiritual.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Pedro Julião Eymard

São Pedro Julião Eymard foi um homem de uma virtude abrasadora, uma espécie de nova edição do Profeta Elias, pelo fogo de sua alma.

O católico ideal é um católico de fogo. E o sacerdote só é verdadeiramente digno deste título quando possui uma alma de fogo. Por isso, os bons sacerdotes são os que têm almas de fogo, como São Pedro Julião Eymard. O sacerdote deve ser aquele que puxa todos para a frente, que está na primeira fila.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4/4/1993 e 2/8/1995)

Rainha e Mãe de misericórdia

As primeiras palavras da Salve-Rainha inspiram a quem as recita a plena confiança de que será atendido, apesar de suas misérias.

 

Pediram-me para fazer o comentário da Salve-Rainha. Devido ao pouco tempo de que disponho, vou comentar apenas as primeiras palavras desta bela oração: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Rainha que tudo tem e tudo pode

Salve, em latim, é uma saudação, e passou assim para o português. Os latinos costumavam dizer salve como saudação, sem nenhum nexo e sentido com a ideia da salvação, “salvai-me”. Não é isso, é uma mera saudação. Então, “eu Vos saúdo”.

Agora vem outro ponto: “…Rainha, Mãe de misericórdia”.

Vemos aqui uma harmonia muito bonita. O autor da oração coloca antes de tudo o título d’Ela de Rainha.

Nossa Senhora é Rainha? Evidentemente, Ela o é, pois é a Mãe do Rei, e um Rei que faz tudo quanto Ela deseja.

Maria Santíssima é chamada a Onipotência Suplicante. Ela, de Si, é uma criatura humana como nós, mas a súplica feita por Ela é onipotente, porque pode tudo diante de Deus.

Assim, também enquanto suplicante, Maria é Rainha, porque Aquela que pode tudo é Rainha. Então, vem desde logo uma ideia posta ao alcance do fiel: Aquela a quem ele vai se dirigir é uma rainha; logo, Ela tem e pode tudo.

A rainha e o rei são de uma riqueza enorme. Normalmente são as pessoas mais ricas do reino, que dispõem da maior soma de poderes, honrarias e riquezas de toda ordem. Ela é a Rainha, quer dizer, tudo quanto Lhe peçamos Ela pode dar.

Ademais, Deus, que é o Filho d’Ela, concede tudo quanto sua Mãe insondavelmente perfeita Lhe pede. O resultado é que, quando pedimos alguma coisa a Ela, temos a certeza de que Ela pode dar, porque Ela tem. Isso nos leva a nos encher de confiança no nosso pedido.

Não há carinho como o materno

Mas vem logo depois: “Mãe de misericórdia”.

Mãe já traz consigo a ideia de misericórdia, porque o mais misericordioso e compassivo dos entes, numa época em que a instituição da família funcione normalmente, é a mãe. Mesmo o pai pode ser muito bom e seu afeto é indispensável para completar a educação do filho. Mas o carinho é com a mãe.

Lembro-me de ter assistido, certa vez, a uma cena minúscula em casa, entre meu pai e minha mãe.

Eu costumava, naquele tempo, sair logo depois do almoço para meu escritório de advocacia. Minha mãe me acompanhava até a porta do elevador, junto à qual tem uma escada. Às vezes eu estava com muita pressa e me impacientava com a lentidão do elevador, e descia a escada a toda pressa. Lembro-me de que, enquanto eu descia, ouvia minha mãe dizer: “Filhão, cuidado com o corre-corre.” Era um último sinal de carinho.

Mas um dia desci muito precipitadamente e esqueci um objeto em casa. Chegando na rua, senti falta do objeto e voltei para apanhá-lo. Passei ao lado de uma pequena sala de estar onde ela e meu pai costumavam ficar durante o dia. Estavam conversando, certos de que eu tinha ido embora.

Meu pai estava sentando numa poltrona e minha mãe, em pé junto a ele, dizia:

— João Paulo, hoje para o jantar eu mandei fazer tal prato. Você acha que o Plinio ficará satisfeito ou seria melhor preparar outra coisa?

Não parei para olhar, mas tive a impressão de que meu pai estava louco para tirar uma sesta, e respondeu negligentemente que estava bem.

Não satisfeita com a resposta, ela acrescentou:

— Não, mas quem sabe se fizer de tal outro jeito seria melhor.

— Também está bem — respondeu ele.

Como ele estava querendo dormir e ela continuava a insistir, ele disse:

— Bem se vê que mãe é mãe. Se fosse comigo eu diria: “Rapaz, tem aqui para jantar tal coisa, se você não quiser, vá jantar num restaurante”.

Ora, mamãe queria exatamente evitar que eu fosse para o restaurante, pelo gosto de estar e conversar comigo. É o carinho da mãe que é todo especial, único.

Mãe toda feita de misericórdia

Entretanto, não contente com esta ideia, o autor da Salve-Rainha pôs: “Mãe de misericórdia”. É uma Mãe toda feita de misericórdia.

O que quer dizer “misericórdia”? Cordis, em latim, é o coração. Miseri, os miseráveis. Portanto, para com os miseráveis Ela é “toda coração”. Os miseráveis são aqueles que não têm do que viver, estão na miséria. Porém, moralmente falando, são os pecadores que ofenderam muitas vezes a Nossa Senhora e deram a Ela razão para estar descontente. Se esses pecadores se voltarem e rezarem para Ela, encontrarão n’Ela uma Mãe de misericórdia toda disposta a atender.

Então, está tudo reunido para inspirar a maior confiança: Ela é uma rainha que tem tudo e pode tudo; é Mãe de misericórdia, “toda coração”, inclusive para os filhos mais miseráveis.

Quem pode deixar de ter toda a confiança na bondade d’Ela em que será atendido, quando faz esta oração?

(Extraído de conferência de 5/3/1992)