Fortaleza formidável – Santo Anselmo

Santo Anselmo marcou o século XI por sua ciência, piedade e pelas lutas que travou. Olhando para a sua vida, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, um homem que encheu o seu tempo e cuja glória perdura por todos os séculos graças às vitórias obtidas por ele em favor da Fé.

A solidez, a força, a grandeza da Idade Média se mostram na estatura dos grandes homens que a marcaram. Com efeito, se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria afundado. Portanto, a solidez não consistia em não haver luta, mas na existência de homens dispostos a combater em todos os sentidos.

É preciso estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua, um inteiro desprendimento de si, com os olhos postos completamente na Santíssima Virgem, para que a batalha seja levada a bom termo. Encontrando combatentes verdadeiramente dependentes de Nossa Senhora, a causa é solidíssima, vence mesmo.

Hoje, como durante o Reino de Maria, a nossa vida de luta deve ser constante. Precisamos nos compenetrar de que no dia em que não tivermos lutado, não teremos carregado a cruz. Ora, para um católico, um dia passado longe da Cruz de Cristo e de Nossa Senhora é um dia frustrado. Peçamos a Ela que nunca permita um dia assim em nossas vidas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/4/1966)

São João Batista de la Salle e o sofrimento pelo autêntico apostolado

“O verdadeiro apóstolo tem de sofrer e dar sangue de alma pela obra que deseja realizar” — afirma Dr. Plinio, ao comentar os mais salientes aspectos da vida de São João Batista de la Salle, cujos esforços e padecimentos para estabelecer o ensino religioso nas escolas primárias, redundaram em preciosos frutos de santidade e de virtude para católicos do mundo inteiro.

 

Sobre a vida de São João Batista de la Salle nos são apresentados alguns dados biográficos, colhidos no livro Saints de France (Santos da França), de Henri Pourrat.

Organizador do ensino primário católico gratuito

São João Batista nasceu em Reims em 1651, de uma família de magistrados. Menino ainda, em meio a uma festa, sentiu uma náusea profunda de tudo quanto o rodeava. Dirigiu‑se a uma prima, que só conseguiu consolá‑lo, lendo para ele uma vida dos Santos. Com 17 anos, tornou‑se cônego, colocando‑se sob a direção de M. Tronson, conhecido como excelente diretor espiritual. Perdendo seus pais, precisou cuidar de seus irmãos.

Nesse época, em Rouen, uma senhora fundara uma escola gratuita para meninas órfãs. Em Reims, quiseram imitar esse exemplo, mas para os meninos. M. Nyel, encarregado de iniciar as suas funções de educador nessa cidade, foi hospedado por São João Batista, que escreveu então:“Se, [antes de abraçar minha vocação], eu soubesse que a simples caridade que eu tomava para com os mestres de escola, transformar‑se‑ia no dever de morar com eles, eu os teria abandonado. Porque como eu colocava abaixo de meus criados as pessoas que trabalhavam em escolas, o único pensamento de que seria obrigado a viver com eles me pareceria insuportável”.

E assim começou a missão de São João Batista. A organização do ensino primário católico gratuito, e dos Irmãos das Escolas Cristãs.

Sofrimentos e injúrias

E com isso, seus sofrimentos. Sua cidade natal, seus parentes, puseram‑se contra ele. Escrevendo suas regras para seus irmãos, quis que vivessem confiados na Providência. Seus companheiros murmuraram que isso era fácil para ele, cônego. Abandonou então a sua posição e distribuiu seus bens. Os discípulos murmuraram agora ser crime distribuir bens senão entre eles mesmos.

Organizado o Instituto e as escolas, começaram as perseguições dos mestres‑leigos. Seu hábito simples mereceu‑lhe vaias na rua e a injúria de lhe lançarem lama no rosto.

Amarguras até “entrar na terra prometida dos eleitos”

Mais tarde, difundindo a comunhão freqüente, e recebendo cheio de alegria e submissão a bula “Unigenitus”, João Batista é atacado pelos jansenistas, e abandonado pelos próprios irmãos. Idoso e alquebrado por suas austeridades, em 1717, la Salle pensa em descansar no noviciado de Saint Yon, mas o padre que o serve em suas doenças, o maltrata. E dois dias antes de sua morte, em suas querelas religiosas, o arcebispo de Rouen tira‑lhe todos os poderes, como a um padre indigno.

“Espere — diz João Batista com um sorriso — que logo serei libertado do Egito, para ser introduzido na verdadeira terra prometida dos eleitos”. E ele conseguiu isso, na Sexta‑Feira Santa de 1719.

Relaxamento do empenho apostólico

Para bem situarmos a pessoa de São João Batista de la Salle em meio às vicissitudes por ele vividas, devemos considerar que, naquela época, em virtude das guerras de religião — muito exacerbadas na França — entre protestantes e católicos, que desorganizaram profundamente a estrutura eclesiástica da Igreja Católica, de um lado; de outro, em virtude do fato de que os efeitos salutares da Contra‑ Reforma haviam passado, estava se reintroduzindo nos fiéis, e também no clero, um grave relaxamento de costumes e de empenho apostólico.

Como resultado dessa tibieza, procurava-se muito o apostolado junto aos mais ricos, aos nobres, às pessoas importantes da corte, aos magistrados, enfim, às pessoas que, a qualquer título, tivessem um situação social. Em contrapartida, desdenhava‑se o apostolado junto aos pobres e, especialmente, os meninos carentes. Noutros termos, favorecia-se antes as relações que pudessem trazer vantagens, com detrimento para a gente desprovida de recursos.

Resultado, imensa quantidade de crianças do povo crescia sem ter formação ou ensino religioso.

À procura dos abandonados

Ora, São João Batista de la Salle nascera numa família de magistrados e, portanto, de certa categoria. Além disso, tornou-se cônego, e os cônegos naquele tempo possuíam rendas. Poderia ele, portanto, seguir o movimento geral e candidatar‑se com seu título de cônego para frequentar meios mais gabaritados que os dele. Poderia almejar uma boa carreira eclesiástica, eventualmente como bispo, talvez cardeal. Entretanto, São João Batista de la Salle segue uma orientação diversa.

Pessoa modelar que era, abnegado, desinteressado dos bens desse mundo, vai procurar aqueles que estão sendo abandonados, e constituiu uma congregação religiosa de irmãos leigos, especialmente destinados a ensinar a religião para as crianças.

Catequista primoroso

Há outro aspecto que merece ainda mais nossa consideração. São João Batista de la Salle foi um exímio professor de catecismo, e desempenhou essa função santamente, ou seja, perfeitamente. Existem modos de lecionar o catecismo em nível primário, de maneira que se marque o rumo da alma para a vida inteira. E pessoas há que se mantiveram firmes na virtude e no ideal católico, ao longo de toda a sua existência, por causa de uma catequese bem dada. São João Batista de la Salle foi desses primorosos catequistas, ensinando os fundamentos do catolicismo com toda a atenção, o recolhimento e a influência que pode haver na lição de catecismo proferida por um santo.

Mas, fez ele coisa muito melhor. Não apenas deu aulas, como fundou uma congregação religiosa voltada para a catequese no ensino primário. Ou seja, suscitou vocações de homens que deixaram o mundo para se consagrar exclusivamente ao ensino do catecismo. Portanto, milhares de pessoas que, desde aquela época, têm passado a maior parte de suas vidas nessa nobre tarefa.

Admirável baluarte de Contra-Revolução

A congregação de São João Batista de la Salle se estendeu por inúmeros países e, ainda hoje, é uma das pujantes instituições da Igreja Católica, tornando-se a esse título um admirável baluarte de Contra‑Revolução.

Digna de todo louvor é a pessoa que realiza de modo altíssimo aquilo a que foi chamada. São João Batista de la Salle é uma delas. Esforçou-se, empenhou-se, obteve êxito no seu apostolado. Sua congregação prosperou e fez o bem pelo mundo afora. Essa é a linha mestra do apostolado dele. Um homem chamado por Deus, atendeu ao apelo divino e realizou sua vocação.

Sofrimentos e contrariedades

Agora, em torno dessa linha mestra, de um traçado límpido como um canal, aparecem as sinuosidades dos sofrimentos, das dificuldades, das oposições que ele encontrou à sua frente. Cumpre tê-las presente, para se contemplar, na sua verdadeira perspectiva, a vida e a obra de São João Batista de la Salle. É bela a luta que ele teve de enfrentar contra tantas incompreensões, das quais as mais dolorosas vieram da parte dos seus próximos.

Uns se arrepiaram diante de um quotidiano confiado apenas à Providência, sem rendas nem patrimônios garantidos: “O senhor é cônego, tem bom ordenado, é fácil confiar na Providência quando, todos os meses, cai um montante na sua bolsa. Mas, para nós, coitados, onde está o nosso dinheiro? Queremos patrimônio!”

São João Batista de la Salle renuncia ao seus próprios bens, e a reclamação passa a ser outra. Ele diz:

— Pronto. Estou pobre como vocês.

— Que loucura! Dispensar esse dinheiro! Era só o que tínhamos! É um crime!

Ou seja, aqueles mesmos que deviam apoiá-lo e ajudá-lo na sua obra, não compreendiam todo o alcance do que ele desejava fazer. Muito lhe terá custado passar por essas adversidades, até que os horizontes se clareassem e seus seguidores se pusessem à altura do santo.

Outra contrariedade a vencer: tornar-se professor primário. Percebe-se pela narração que ele, em virtude da formação que recebera na família, não tinha em grande conta a figura de mestre-escola, “colocando-a abaixo de seus criados”. A Providência bate à porta de sua alma e lhe chama: “Meu filho, convido-o para ser professor primário e catequista”. Sem hesitação, ele deixa as honrarias e antigos hábitos, aceita o chamado e passa a viver no meio dos professores primários. Pode-se bem conjecturar que São João Batista esperasse encontrar, entre esses últimos, uma acolhida amável e um trato afetuoso. Não! Mais incompreensões, vistas limitadas, estupidezes.

Regou com o próprio sangue a árvore de sua obra

Ele adota uma vestimenta muito simples, para indicar a modéstia da profissão e das suas condições. Em lugar de respeito, as pessoas o vaiam na rua e chegam a jogar-lhe lama no rosto. Para onde se voltasse, encontrava ele recusa e maus tratos. Apesar de tudo, sua obra caminhava e prosperava.

Quer dizer, a Providência quis que ele sofresse tanto para, com os méritos dos seus padecimentos, com seu sangue, regar a semente que lhe fora confiada plantar e fazer vicejar.

Permitam-me chamar a atenção para essa regra da qual não se esquiva nenhuma obra apostólica: o apóstolo autêntico, ou sofre e dá o sangue de alma — mais dolorido e precioso que o do corpo — pelo que deseja realizar, ou absolutamente não é apóstolo.

Todo apóstolo tem de sofrer. E uma das suas aflições mais pungentes é a de se sentir, de um lado, chamado a empreender uma obra, e, de outro, perceber as ondas contrárias que parecem tornar sem sentido o chamado que recebeu. Essa coarctação da vocação, esse enfrentar obstáculos que parecem opor‑se à via do Espírito Santo, constitui uma das dilacerações mais penosas que uma alma pode sofrer.

De maneira que São João Batista de la Salle agiu como verdadeiro homem de Deus, suportando todas essas contrariedades. Por fim, a morte o libertou de tudo, e ele encontrou a sua coroa no Paraíso.

A nós cabe admirar e imitar esse modelo de santidade, de confiança e de resolução que levou a bom termo a obra para a qual a Providência o suscitou. Obra cujos frutos enriquecem e torna mais digna de nosso amor a Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 15/5/1971)

Santa Catarina de Siena e o zelo pela causa da Igreja

Sobressaindo na fé, esperança e caridade numa época semeada de provações para a Igreja, Santa Catarina de Siena tornou-se modelo de alma fervorosa e batalhadora, envidando todos os esforços para ver a Esposa Mística de Cristo triunfar sobre suas adversidades. Razão pela qual Dr. Plinio no-la apresenta como a padroeira de todos aqueles que trabalham e lutam pela causa católica.

 

Ao celebrarmos a memória de Santa Catarina de Siena, virgem e Doutora da Igreja, cuja festa transcorre no dia 29 de abril, parece-me oportuno evocarmos a seguinte passagem de sua vida, narrada por um biógrafo:

Aproximava-se o Natal, primeiro que Catarina passava em Roma. Quando menina, sempre gostara de presentear seus amigos nessa santa comemoração, com flores e cruzes. Agora, porém, que dispunha de prestígio, era conseguindo indulgências e concessões da Igreja que proporcionava alegria aos amigos.

Cinco laranjas para o Papa

Não se esqueceu do Papa, e enviou-lhe cinco laranjas que ela mesma dourara, acompanhando o presente com essas linhas expressivas: “Sede uma árvore de amor enxertada sobre a árvore da Vida, Cristo, o doce Jesus. Desta árvore nascerá uma flor brotada de vossa vontade, o pensamento das virtudes e os seus frutos amadurecerão para a maior honra de Deus e salvação de vosso rebanho. Esse fruto parece amargo a princípio, ao ser mordido pela boca do santo desejo, mas tornar-se-á doce, desde que a alma se resolva a sofrer até a morte pelo Cristo crucificado e pelo amor do bem.

“Assim se dá com a laranja, que se põe na água a fim de lhe retirar o amargor, açucarando-a em seguida e dourando-a por fora. E agora, onde lhe ficou o azedume? Na água e no fogo. O mesmo se passa, Santíssimo Padre, com a alma que concebe o amor da virtude. O que a princípio lhe parece amargo, provém de sua imperfeição. O remédio está no sangue de Cristo crucificado, que proporciona a água da graça, purificando-a do amor próprio e sensual, que enche a alma de tristeza.

“E como o sangue está ligado ao fogo, pois que foi derramado com o fogo do amor, podemos dizer, na verdade, que o fogo e a água purificam a alma do amor próprio e dela extraem o azedume [das ofensas feitas a Deus] que a princípio continha, enchendo-a de força pela perseverança e paciência, e adocicando-a pelo mel de uma humildade profunda.

“Assim preparado o fruto, este é então dourado, simbolizando o ouro da pureza e o ouro reluzente da caridade, que se manifesta por uma verdadeira paciência no serviço do próximo, suportado com imensa ternura de coração.

Suscitada para servir a Igreja numa difícil conjuntura

Florido, rico em idéias e simbolismos, esse texto sobre Santa Catarina de Siena nos remete à época em que ela viveu, marcada por graves acontecimentos na história da Igreja.

Santa Catarina de Siena pertenceu à Ordem Terceira dominicana, e desde seus 15 anos de idade consagrou-se às obras de caridade, a uma intensa vida de piedade e mortificação. Distribuía abundantes esmolas aos pobres, servia os doentes, visitava os prisioneiros e consolava os desafortunados. Como sói acontecer com as almas particularmente queridas por Deus, a Providência permitiu que fosse afligida desde cedo por doenças crônicas, que não fizeram senão se agravar no decorrer de sua breve existência, vindo a falecer aos 33 anos, em Roma.

Dirigida pelo bem-aventurado Raimundo de Cápua — que, além de seu confessor, foi também seu biógrafo, autorizado por ela a publicar o conteúdo de suas visões e revelações — Catarina de Siena se santificou e se tornou um dos mais luminosos florões do catolicismo no século XIV.

Porém, como dissemos, nessa época a situação da Igreja não era o que se poderia desejar como ideal. Pelo contrário, a barca de Pedro era então ameaçada por toda espécie de ondas nefastas que procuravam pô-la a fundo. Sinais de decadência da fé e de relaxamento dos costumes se faziam notar um pouco por toda a parte, nos mais variados ambientes católicos. Até mesmo nos mosteiros e conventos, que deviam proporcionar aos seus religiosos a tranqüilidade e a estabilidade que trazem o desapego dos bens terrenos, instalara-se um desejo de luxo e opulência oposto aos ideais evangélicos.

Como se tal não bastasse, a sede do Papado se transferira de Roma para Avignon, feudo que os Pontífices romanos possuíam na França, e ali viviam sobre o domínio dos soberanos franceses. Ora, aqueles germens de decomposição moral atingiram também as fileiras do clero secular, disseminando um espírito de revolta contra a autoridade do Vigário de Cristo e outros desmandos. Donde se estabelecer, por volta de 1378, uma situação de cisma dentro da Igreja, com o Papa legítimo, Urbano VI,  e um ilegítimo eleito apenas por cardeais franceses.

Em meio a essa confusão, as almas retas lamentavam a ausência dos Papas de Roma, e desejavam ardentemente que a Cidade Eterna voltasse a ser o centro da Cristandade, e a paz, a dignidade da fé e o bom aroma da virtude reinasse novamente no orbe católico.

Uma dessas almas foi Santa Catarina de Siena, suscitada por Deus para, através de suas célebres cartas e admoestações dirigidas às autoridades eclesiásticas — sobretudo à maior delas, o próprio Papa — reconduzir as ovelhas de Cristo a serem outra vez um só rebanho sob a égide de um só pastor. Grande mística, favorecida por visões de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela escrevia essas missivas inspirada por tais revelações, e acabou granjeando influência e admiração entre os que aceitavam seus conselhos. Contribuiu, dessa forma, para sustentar a nau da Igreja em sua conturbada trajetória, embora não chegasse a presenciar em vida o fim do chamado grande cisma do Ocidente, que se deu trinta anos depois de sua morte.

Seja como for, confiante na infinita solicitude de Nosso Senhor Jesus Cristo por sua Esposa Mística, Santa Catarina rezou e se sacrificou até o derradeiro suspiro pela salvação e reunificação da Igreja. Nessas disposições entregou a alma a Deus, no dia 27 de abril de 1380.

Não há flores sem cruzes, nem cruzes sem flores

É essa Santa Catarina que se comprazia em dar presentes de Natal aos seus amigos. Percebe-se nessa peculiaridade o espírito ameno, alegre (no bom sentido da palavra) e afável de uma religiosa tão penitente e mortificada. Mas, os presentes que ela oferecia eram simbólicos. Quando menina, ela dava flores, de que o solo italiano é fecundo, e cruzes, de que a vida do católico é também fecunda.

Essa ideia de oferecer flores e cruzes parece-me muito equilibrada, pois o Natal é uma época de felicidade e convém externar esse júbilo por meio do colorido das flores. Contudo, para o católico não há flores sem cruzes, e por isso sempre será oportuno, na hora do júbilo florido, lembrar a alma que ela deve se preparar para os sofrimentos.

Eu diria mais: também não há cruzes sem flores. Pois o católico sabe aceitar as provações como algo valioso para a sua santificação e para uni-lo a Nosso Senhor e Nossa Senhora. Razão pela qual a cruz é por ele recebida com alegria, como se adornada de flores, a exemplo de Nosso Senhor ao abraçar a cruz que Ele deveria levar até o alto do Calvário. Segundo piedosa crença, no momento em que Lhe impingiram o instrumento de seu suplício, o Divino Redentor o osculou afetuosamente antes de carregá-lo nos ombros, porque era o meio para a realização da missão que O trouxera ao mundo, isto é, a redenção do gênero humano.

Advertências salutares

Quando alcançou notoriedade, dotada de prestígio junto aos Papas, Santa Catarina de Siena passou a dar presentes mais elevados, quer dizer, obtinha para seus favorecidos certas indulgências concedidas pelo Pontífice e outros dons espirituais.

Para compreendermos o valor de uma indulgência cumpre considerar que as almas de quase todos os fiéis defuntos passam pelo Purgatório, onde se purificam e expiam as penas devidas às faltas cometidas nesta vida.

Ora, pelos méritos das indulgências, uma alma consegue abreviar seu período de expiação no Purgatório, ou até mesmo eliminá-lo de todo.

Podemos imaginar, então, com que felicidade os amigos de Santa Catarina de Siena recebiam, mandado por ela na noite de Natal, um documento do Papa concedendo tais e tais indulgências. Com um detalhe interessante de notar. É que por meio dessa forma amena de agradar o próximo, envolta no bimbalhar dos sinos natalinos e sob o invólucro do perdão, Santa Catarina não deixava de lhe dizer uma importante verdade: “Não se esqueça de que você tem contas a pagar. Essas indulgências serão suficientes para cobri-las? Examine sua alma, abra os olhos e pense em como se comportará doravante”.

Havia, portanto, subjacente ao gesto de afeto e amizade, uma salutar advertência para a vida espiritual do seu conhecido.

Um lindo modo de estimular o Papa à prática da virtude

Há ainda o pitoresco fato de ela ter mandado cinco laranjas de presente para o Papa. Entende-se que Santa Catarina fez uma compota, “dourando” os frutos no açúcar e no fogo, o que lhe inspirou a bela comparação que expressou nas linhas dirigidas ao Vigário de Cristo.

Na verdade, encontrara um modo gracioso e igualmente ameno de estimular o Pontífice à prática da virtude, à paciência, ao desapego das coisas materiais, ao amor à cruz e ao espírito de penitência, quão mais necessários naquele que era o guia e modelo de todos os católicos do mundo. Então se refere ao amargor que a fruta apresenta num primeiro momento, para depois tornar-se doce e agradável ao paladar: assim como a virtude, a princípio amarga para o homem ainda presa de suas imperfeições e apegos; em seguida suave e deleitosa, pelo sofrimento unido ao de Cristo e abraçado com perseverança e humildade

Padroeira dos que trabalham e lutam pela Igreja

Concluo esses comentários salientando um ponto que me parece muito oportuno. Uma vez que Santa Catarina de Siena distinguiu-se por seu zelo e fervor no serviço da Esposa Mística de Cristo, posto que ela tanto trabalhou para reerguer a Igreja no tempo dela, não será despropositado tomá-la como padroeira de todos aqueles que igualmente trabalham e lutam pelos interesses católicos.

E, portanto, é de extrema conveniência que a ela elevemos nossas preces, rogando seu auxílio e sua intercessão junto a Maria Santíssima e ao Sagrado Coração de Jesus, a fim de que possamos, nós também, conquistarmos em nossa época grandes vitórias para a Igreja.

 

(Extraído de conferência em 30/4/1971)

 

Santo Anselmo, varão de muitas lutas

Os grandes homens que marcaram a Idade Média — entre os quais se destaca Santo Anselmo — patenteiam a solidez, a força, a grandeza dessa época histórica, que contrastam com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias.

Dia 21 de abril comemora-se a festa de Santo Anselmo de Cantuária, bispo, confessor e Doutor da Igreja, cuja biografia apresenta os seguintes traços(1):

Mansidão do cordeiro e vigor do leão

Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte, de família nobre. Como o pai o afastasse da vida religiosa, entregou-se aos prazeres durante alguns anos. Mas aos 26 anos entrou na abadia de Bec, na Normandia, onde se entregou à pratica das virtudes religiosas e ao estudo das Escrituras. Aos 30 anos, tornou-se prior e em seguida abade.

 Governou sua abadia com uma bondade incansável que lhe permitiu triunfar de todas as dificuldades. Os Papas Gregório VII e Urbano II manifestaram-lhe grande estima. “O bom odor de vossas virtudes chegou até nós”, escrevia-lhe Gregório, e Urbano II diz: “Vinde cá o mais depressa possível a fim de podermos gozar juntos da afeição que nos une”.

Chamado à Inglaterra em 1092, não pôde voltar à França, pois foi nomeado Arcebispo de Cantuária. Nesse cargo muito sofreu do Rei Guilherme o Ruivo pela defesa dos direitos e liberdade da Igreja. Exilado, foi a Roma, onde o Papa o cumulou de honras e lhe deu ocasião, no Concilio de Bari, de convencer do seu erro os gregos que negavam que o Espírito Santo procedesse do Filho como do Pai.

Voltando à Inglaterra após a morte de Guilherme, Santo Anselmo morreu a 21 de abril de 1109. Clemente XI, em 1720, o declarou Doutor da Igreja.

Monge, bispo, Doutor, Anselmo reuniu em sua pessoa os grandes apanágios do cristão privilegiado. E se a auréola do martírio não veio completar tanta glória, pode-se dizer que a palma faltou a Anselmo, mas que ele não faltou à sua palma. Sua vida foi toda entregue às lutas pela liberdade da Igreja. Nele o cordeiro revestiu-se do vigor do leão. “Cristo, dizia, não quer uma escrava para esposa. Nada Ele ama tanto no mundo quanto a liberdade de sua Igreja”. O nome de Anselmo lembra a mansidão do homem do claustro unida à firmeza episcopal, a ciência junto com a piedade. Nenhuma memória foi mais suave e, ao mesmo tempo, mais brilhante do que a sua.

Um varão que marcou o século XI

Notem as lutas que esse santo precisou enfrentar em plena Idade Média. Ele parece não ter tido — ao menos segundo esses traços biográficos — especiais lutas em seu convento. Mas ele teve dois grandes inimigos a vencer: um rei prepotente que queria sujeitar a Igreja à sua autoridade; e os cismáticos gregos que, reunidos no Concílio de Bari com os católicos, ele conseguiu persuadir, mas de maneira efêmera, de que a doutrina católica era verdadeira.

Ele ao mesmo tempo foi um homem que viajou muito. Era italiano, depois foi para a Normandia, Inglaterra, Bari, Roma. E numa época em que essas viagens representavam empreender um enorme esforço. Eram feitas em estradas péssimas, com riscos de toda ordem, muita dificuldade, lentidão, etc.

Um homem favorecido por Nosso Senhor por especiais graças, e que levou a bom termo tudo aquilo de que foi incumbido: como abade foi muitíssimo estimado; Arcebispo de Cantuária, ele empreendeu uma luta rigorosa contra o rei e acabou sendo reintegrado na sua sede episcopal; lutando contra os cismáticos, conseguiu persuadi-los de seus erros. Depois, extinguiu-se na alegria e no amor de todos pela vida que tinha levado, porque a morte dos santos é muito mais uma alegria do que uma fonte de tristeza.

Vemos, entretanto, qual a natureza da verdadeira grandeza da Idade Média: esse homem marca o século XI pela sua ciência, sua piedade, pelas suas lutas, e leva a Causa Católica à vitória.

Então, considerando a vida dele, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, de um homem que encheu o seu tempo, venceu, e cuja glória perdura por todos os séculos por causa das vitórias que ele obteve em favor da Fé. Quando se olha isso, fica-se com a sensação da solidez, da força, da grandeza de toda a Idade Média, que contrasta com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias. E essa impressão não é falsa; é verdadeira porque nos mostra a solidez da estatura dos grandes homens que marcaram a Idade Média.

Precisamos lutar sempre, com os olhos postos em Nossa Senhora

Mas de fato ele teve muitas lutas. E se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria perecido. Na Idade Média havia uma batalha contínua; a solidez não consistia em não haver luta, mas em que a boa reação vencia sempre e era, portanto, nesse sentido, sólida. Entretanto, por um pouco que os homens fraquejassem, a coisa poderia cair.

Podemos vislumbrar, de antemão, qual vai ser a solidez e a precariedade do Reino de Maria. A solidez será enorme enquanto houver homens de uma grande firmeza, dispostos a lutar em todos os sentidos. Então, o Reino de Maria poderá durar séculos e séculos.

Se encontrar homens fracos, ele soçobrará imediatamente, porque o reino do demônio se tornará forte, pois estamos numa humanidade marcada pelo pecado original e num mundo imerso na presença dos tais demônios dos ares de que falava São Paulo(2).

Portanto, é preciso estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua, um desprendimento de si inteiro, tendo os olhos postos completamente em Nossa Senhora, para que a luta seja levada a bom termo. Mas encontrando autênticos lutadores, verdadeiramente dependentes da Santíssima Virgem, a causa é solidíssima, ela vence mesmo. A questão é haver quem lute por Ela. 

Peçamos a Nossa Senhora que nos dê forças e nos compenetre da verdade, para entendermos bem o seguinte: agora, como durante o Reino de Maria, a nossa vida deve ser de luta constante, e no dia em que não tivermos lutado precisamos nos compenetrar de que não carregamos a Cruz de Cristo, e que esse foi um dia frustrado em nossa existência.

Não lutar é não sofrer; não sofrer é não carregar a Cruz de Cristo. Para um católico, um dia passado longe da Cruz de Cristo, longe de Maria Santíssima, é um dia cancelado, um dia em branco.

Ordenado arcebispo, apesar de seus protestos

Temos agora uma nota sobre a sagração de Santo Anselmo, extraída da “Vida dos Santos”, do Padre Rohrbacher(3).

Decidiram os bispos ingleses sagrar Santo Anselmo Arcebispo de Cantuária, mas ele recusou terminantemente porque sabia da intromissão real neste cargo.

Mostraram-lhe os prelados as consequências de sua negativa para a Inglaterra. Replicou o Santo que conhecia tais problemas, mas que era velho, mal conseguindo carregar a si próprio; como poderia levar o fardo de toda uma Igreja? Por outro lado, não era de sua índole cuidar de negócios temporais.

“Conduzi-vos somente nos caminhos de Deus, nós nos encarregamos dos negócios temporais”, replicaram os prelados.

Alegou Anselmo suas múltiplas obrigações e a impossibilidade de abandoná-las. Resistindo ainda, levaram-no ao soberano que se encontrava gravemente enfermo.

O rei aflito disse-lhe: “Anselmo, que fazes? Por que me envias ao Inferno? Lembra-te da amizade que meus pais tinham por ti e não me deixes perecer, porque sei que estou condenado a morrer conservando este Arcebispado”. Todos os assistentes, comovidos, insistiam com Santo Anselmo acusando-o de matar o rei.

O Santo voltou-se para os dois monges que o acompanhavam e disse: “Meus irmãos, por que não me socorreis?”

Um deles respondeu: “Se esta é a vontade de Deus, quem somos nós para resistir-Lhe?”

“Ai! — disse Anselmo — Vós vos rendestes mui prontamente”.

Vendo-o assim obstinado, acusaram-no de covardia. Buscaram uma cruz, tomaram-lhe o braço direito e o aproximaram do leito. O rei lhe apresentou a cruz, mas ele fechou a mão. Os bispos empenharam-se em abri-la até fazê-lo gritar. Por fim seguram-lhe a mão com a cruz dizendo: “Viva o bispo!”; e entoaram o “Te Deum”. Levaram-no à igreja vizinha e, sob seus protestos, sagraram-no.

Fato estranho e magnífico ao mesmo tempo!

Maus reis queriam eliminar a liberdade da Igreja

Para compreender um pouquinho o conjunto dos acontecimentos, é preciso tomar em consideração o seguinte: Cantuária é a mais antiga diocese, portanto a sede primacial, da Inglaterra. E naquele tempo, mais do que hoje, os arcebispos e os primazes tinham certa jurisdição, certa influência sobre os bispos de seu país.

Estava-se num período de comunicações com Roma, devido à distância, muito difíceis, e não havia um corpo de núncios apostólicos inteiramente organizado. De maneira que se fazia sentir, mais do que hoje em dia, a necessidade dos bispos de um determinado país se apoiarem sobre um que fosse a pedra de ângulo de todos, e este era o Arcebispo de Cantuária.

Esse arcebispo tinha muita importância; por outro lado, estava-se num período em que a Revolução — em sua forma absolutamente ancestral e original; nem se pode ainda falar de Revolução —, ou melhor, os germes dos quais futuramente a Revolução nasceria, se exprimiam sob a forma de um desejo do poder temporal. Quer dizer, dos chefes de Estado, em concreto dos reis, de se apoderarem da liberdade, dos atributos da Igreja, transformando-a num instrumento de dominação material.

Os soberanos não queriam, por exemplo, que os bispos os censurassem, porque havia naquele tempo muitos bispos que repreendiam os reis e os poderosos. Eles queriam se assenhorear dos bens com que a Igreja socorria inúmeros pobres e mantinha o esplendor do culto divino.

O medo do Inferno leva muitas pessoas para o Céu

Por outro lado, os bispos eram muitas vezes senhores feudais e constituíam um elemento de imparcialidade dentro do jogo da vida feudal. Certos reis, movidos por mau espírito, queriam se assenhorear dos feudos eclesiásticos para, por esta forma, combater os outros senhores feudais.

E isto tudo fazia com que os reis tivessem uma preocupação constante de nomear, para os cargos importantes, bispos que fossem seus instrumentos.

Então, Santo Anselmo, monge já idoso, com inúmeros serviços prestados à Igreja, era desejado ardentemente pelo rei e pelos bispos para ser Arcebispo de Cantuária.

Pelos bispos porque era um líder natural para defendê-los contra o rei. Pelo rei, porque este já tinha tido dificuldades com a Igreja, mas estava doente e temia morrer. E ele achava que ia para o Inferno se, antes de falecer, não evitasse para a Igreja a catástrofe de uma má nomeação; por isso ele queria nomear um bom arcebispo para Cantuária.

Quer dizer, o rei estava com a espada da ameaça do Inferno colocada no peito, e nós sabemos que o medo do Inferno tem levado muita gente para o Céu. Para a grande maioria dos homens, poucas coisas fecham tanto a porta do Inferno quanto o medo de ir para lá. 

Então todos queriam que Santo Anselmo ficasse Arcebispo de Cantuária.

Uma violência tipicamente medieval

Aí se dá a cena muito curiosa. Os bispos pedem, ele recusa dando um argumento que está à altura de um Santo. Não é um argumento baseado em falsa modéstia, mas é uma coisa verdadeira. Sendo um homem velho, que mal se carrega a si próprio, exausto por anteriores serviços à Igreja, é natural que ele tenha receio de não conseguir desempenhar satisfatoriamente um cargo tão pesado; e, portanto, procure tirar o corpo.

Tanto mais que ele devia conhecer bem o rei e sua entourage, e o Santo poderia conjecturar que o rei, tendo já criado encrenca com a Igreja, criaria outra, caso ficasse curado — como diz o ditado: cesteiro que faz um cesto, faz um cento.

Os sucessores do monarca, que faziam parte daquela entourage do palácio, tinham a mesma mentalidade. Santo Anselmo teria que travar uma luta, portanto, contra o poder temporal, coisa muito mais difícil do que qualquer outra batalha. E ele naturalmente temia por sua própria fraqueza; achava que um homem moço estaria mais em condições de conduzir essa luta.

Mas tal era a força da virtude dele, a confiança que tinham no auxílio que a graça lhe prestaria, que todos queriam que ele ficasse arcebispo.

Então se dá esta cena: Os bispos, não conseguindo nada, levam Santo Anselmo ao quarto onde o rei estava doente. Depois de muita insistência, acaba havendo uma espécie de violência bem medieval.

Pegam uma cruz e dizem ao rei: “Põe na mão dele!” O Santo declara: “Não, não quero!”

Com força, abrem a mão dele, a ponto de doer; ele segura a cruz e levam-no, então, para ser sagrado.

Por meio dessa violência material, que talvez tivesse tido um caráter afetuoso e feita no meio de sorrisos — a crônica é muda a respeito deste particular —, o que houve foi isto. Mas o fato é tão estranho que não é de se repelir como absurda a hipótese deste ter sido feito no meio de sorrisos.

Houve um momento em que Santo Anselmo, pelo extremo desejo dos outros, que chegou até à violência, resolveu ceder. Ceder não mais coagido fisicamente, mas moralmente persuadido de que ele não deveria resistir a um anseio tão unânime.

E, então, ele mesmo aceitou a sagração, a qual não aceitaria se estivesse convencido de que outra era a vontade de Deus. Ele teria certamente — sendo um Santo — morrido mártir, mas não se deixaria sagrar, se tal fosse a vontade do Altíssimo. Seria o primeiro caso de martírio de um padre que se faz matar para não ser bispo.

Uma vez que Santo Anselmo está no Céu, devemos estar persuadidos de que ele de fato quis, em determinado momento e por esta forma, ele foi Arcebispo de Cantuária.

Devemos ser insistentes em nossas orações

Podíamos nos perguntar se essa violência feita na pessoa dele é censurável. Às vezes a graça, na sua sabedoria e imensa liberdade de movimentos, se serve de meios muito estranhos. Meios imorais ou ilegítimos jamais. Meios surpreendentes e desconcertantes, bem possivelmente.

Quem sabe se a graça quis que a insistência chegasse até esse ponto para mostrar o desapego deste homem, e depois lhe dar mais liberdade de lutar contra o rei, mostrando que ele tinha sido forçado a aceitar o cargo?

De qualquer forma, lembramo-nos das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho: “O Reino dos Céus padece violência”(4). É preciso fazer violência para se entrar no Céu.

Às vezes é necessário fazer até uma santa violência com Deus. O próprio Redentor contou aquela parábola admirável de um homem que está deitado na cama junto com seus filhos,

 e um indivíduo cacete bate do lado de fora pedindo pão.

O dono da casa explica que já está deitado e não pode atender. Afinal, o outro é tão cacete que o primeiro se levanta, abre a porta e lhe dá os pães.

E Nosso Senhor afirma que o dono da casa atendeu por causa da importunidade do outro; e acrescenta que isto é o modelo daquele que reza.

Quer dizer, quando não temos méritos, devemos ser muito insistentes. Porque à força de insistência, como que caceteamos a Deus Nosso Senhor e obtemos aquilo que nós queremos.

No caso ocorrido com Santo Anselmo, houve qualquer coisa de parecido com isso, e vemos as vias superiores de Deus, insondáveis, nem sempre inteiramente explicáveis e que formam uma das belezas da História da Igreja.

Mistérios de Deus e da vida da Igreja

Se na História da Igreja tudo fosse explicavelzinho, clarinho, limpinho, não seria a História da Igreja de Deus. Faltaria a ela uma das notas daquilo que é verdadeiramente divino.

Naquilo que é autenticamente divino precisaria haver mistério. E vou dizer mais, quanto mais claro que determinada coisa é divina, tanto mais convém que nela haja mistérios. Porque a presença do mistério é uma marca de superioridade divina, que impõe respeito aos homens.

Aqui também, são os mistérios da vida da Igreja, os fatos misteriosos por onde Deus mostra a sua divina grandeza. Depois as coisas se explicam.

Com certeza, para alguns contemporâneos de Nosso Senhor, a Paixão há de ter parecido um mistério inexplicável, e foi preciso a Ressurreição para que se compreendesse esse mistério.

Atualmente, nós estamos em presença do maior mistério dentro de vinte séculos de vida da Igreja. Creiamos na divindade dela e amemos a Santa Igreja Católica mais do que nunca… eu jamais diria apesar do mistério, mas sim por causa deste mistério.

Só uma Igreja santa e divina pode ter uma fortaleza, uma grandeza tal que nela caiba um mistério tão profundo, tão tenebroso. É preciso ser uma Igreja divina para não morrer deste mistério, para atravessar a era de mistério e, do outro lado, se mostrar gloriosa e resplandecente como se tivesse ressuscitado.

Nós, desse pequeno fato misterioso da vida de Santo Anselmo, devemos voar para regiões muito mais altas dos grandes mistérios da Igreja Católica. E então façamos hoje à noite, a Nossa Senhora, um ato de amor pelo mistério tremendo diante do qual nós vivemos, certos de que os grandes mistérios têm depois as suas grandes explicações.

Nunca um homem se defrontou com um mistério tão terrível quanto São José, mas depois, que explicação, que esclarecimento! É a explicação das explicações.# v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 20/4/1966 e 20/4/1967)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada por Dr. Plinio.

2) Cf. Ef 6, 12.

3) Cf. ROHRBACHER, René François. Vies des Saints pour tous les jours de l’année. Volume II. Paris: Gaume frères, libraires-éditeurs, 1853. p. 401-410.

4) Mt 11, 12.

São Conrado: Abnegado apóstolo porteiro

Quando menino, a simples presença de São Conrado entre seus colegas afugentava aqueles que diziam palavras imorais. Esse Santo, por ser inteiramente abnegado de si mesmo era um homem puro.

O inteiro desapego de nós mesmos é a condição de nossa perseverança e da fecundidade de nosso apostolado.

Sobre  São Conrado de Parzham, em Schamoni, O verdadeiro rosto dos Santos, nós encontramos alguns trechos biográficos.

Meu livro é a Cruz

Conrado de Parzham, no século Johann Birndorfer, nasceu no dia 22 de dezembro de 1818, em Parzham, perto de Passau, na Alemanha, descendente de uma piedosa família de camponeses. Quando menino ainda, seus colegas falavam coisas menos dignas e, ao vê-lo aproximar-se, exclamavam: “Calemos, aí vem o João”. Sentiam já respeito pela majestade de Deus. E nas tarefas do campo, em pleno calor estival, recusava cobrir a cabeça porque, estando continuamente em oração, acreditava que somente com a cabeça descoberta podia rezar.

Aos 31 anos, tendo certeza de sua vocação religiosa, abandonou a casa e a herança e entrou como leigo na Ordem Capuchinha. Depois dos votos,  o Irmão Conrado foi destinado a ao convento de Altötting, junto ao qual há um santuário da Virgem, visitado anualmente por milhares de peregrinos. Em tal mosteiro, que no ambiente do campo não encontra um mo-mento de repouso, o cargo de porteiro é sumamente difícil.

O Irmão Conrado cuidou da portaria do convento por quarenta e um anos e, aplicando-se em sua missão com tato e atenção, teve inalterável paciência, sempre cheio de deferência, humilde, serviçal, piedoso, laborioso. Nunca foi visto mal-humorado, jamais pronunciou uma palavra inútil. Assim converteu–se num pregador silencioso, que infundia respeito aos visitantes, convertia os pecadores, consolava os aflitos e ajudava os pobres.

Escreveu uma vez a um amigo: “Minha regra de vida consiste em amar, sofrer e maravilhar-me em êxtases e orações pelo amor de Deus para conosco, pobres criaturas. Nunca termina esse divino amor. Nada há que me impeça, em minhas  ocupações, de me afastar de minha união com Deus. Meu livro é a Cruz, basta-me um olhar para ela para saber em cada ocasião qual há de ser minha conduta”. Três dias antes de morrer, renunciou a seu cargo de porteiro, falecendo a 20 de abril de 1894.

Ele morreu, portanto, bastante idoso.

A Revolução hoje vai progredindo como um câncer

É muito interessante a figura desse Santo. Eu já vi em livros com gravuras de Santos uma reproduzindo seu perfil, oposto ao de São Leão IX que era um aristocrata, homem de grande formosura e talento. Um varão superior, debaixo do ponto de vista de suas qualidades naturais, no qual se inseriu, como um facho de luz maravilhoso, a vida sobrenatural e a sua própria santidade.

São Conrado de Parzham é o contrário. Um humilde irmão franciscano, que na gravura aparece muito branco, de barba e cabelos brancos, com um maço de chaves na cintura, indicando a sua função de porteiro. Com toda essa inferioridade humana em relação a um São Leão IX, por exemplo, é, entretanto, uma figura esplêndida, de tal maneira que poderia ser colocada como par desse Papa Santo, pois todas as qualidades naturais se eclipsam e desaparecem quando estão em jogo os valores de caráter sobrenatural.

Temos aqui vários dados da vida de São Conrado a considerar.

Em primeiro lugar, como ele afugentava – sendo simples camponês – os colegas que diziam palavras imorais. Vemos aí uma preservação daquela época, ao menos no lugar em que ele vivia. Porque hoje eu duvido que até um Santo consiga afugentar os meninos de colégio que falam palavras obscenas. Vê-se por aí como a Revolução vai progredindo à maneira de um câncer, invadindo tudo. Naquele tempo ainda havia gente amedrontável; hoje não existe mais.

O mal se mostra completamente desatado e inteiramente triunfante. É exatamente um dos elementos que tornam necessários os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. É também digno de nota a intensidade da piedade dele, rezando de tal maneira, de um modo contínuo, que durante o período de trabalho no campo  ele orava também. E por isso não queria cobrir a cabeça porque, como estava falando com Deus, ele preferia receber todo o calor, mas permanecer numa atitude de respeito diante de Nosso Senhor.

Observa-se, por um lado, a falta de respeito humano e, por outro, uma piedade ininterrupta e acendrada, um grande espírito de mortificação. Porque o trabalho manual já é de si penoso; realizá-lo com o sol incidindo na cabeça descoberta o torna mais difícil ainda. E no meio disso ele conseguia se concentrar. É uma capacidade de atenção, de oração, digna de nota. Sobretudo para os homens de nossa época tão fáceis de se dissiparem.

Um porteiro edificante, solícito, digno, respeitoso

Ele entrou como irmão leigo na Ordem Capuchinha aos 31 anos de idade, e foi destinado como porteiro do convento junto a um santuário de Nossa Senhora. E tornou-se aí o contrário dos porteiros de convento que habitualmente se conhecem. Manda-se telefonar, chamar um frade, passa meia hora…; em parte devido à lentidão do porteiro em chamar o frade, em parte à demora deste em vir ao telefone. São as duas coisas que se conjugam: displicência e desinteresse.

Em São Conrado vemos o oposto: era um mero porteiro de convento, mas tão edificante, tão solícito, tão digno, tão respeitoso, que todo mundo se edificava com ele. E então a ficha diz muito bem que, sendo um mero porteiro de convento, pela sua ação de presença, pela sua virtude, ele pregou uma grande lição de quarenta e um anos, se transformou num grande missionário, num grande pregador.

Isso nos faz ver que os homens eficientes para o apostolado de nenhum modo são apenas aqueles que têm capacidades intelectuais, como a de falar em público. Esses também podem ser eficientes, mas a chave da eficiência deles não está no talento, e sim na vida sobrenatural que habita neles e se comunica aos outros.

Por causa disso, vemos um simples porteiro, irmão leigo, ter feito pela Causa Católica um apostolado enorme no mais obscuro dos cargos, um homem com uma ciência mui to pequena. Apostolado de portaria. Como isso indica qualquer coisa de restrito, de circunscrito em matéria de apostolado! Entretanto, o êxito do brilho desse apostolado deve-se à vida interior.

O apostolado seriamente conduzido exige abnegação e renúncia completas

Eis o pensamento dele a respeito da oração contínua: “Minha regra de vida consiste em amar, sofrer e maravilhar-me em êxtases e orações pelo amor de Deus para conosco, pobres criaturas”.

É uma ilustração da tese de Dom Chautard, em seu livro A alma de todo apostolado: Se queremos que nosso apostolado seja fecundo, tratemos de fazê-lo por amor de Deus e não por nosso amor, não para aparecermos nem sermos importantes, mas considerando a Causa de Nossa Senhora e mais nada. Se fizermos isso, nosso apostolado será um canal de graças. Por tentar qualquer forma de desejo de nos mostrar, de recebermos aplausos, nosso apostolado será como um canal obstruído por onde as águas não passam, e as almas terão fome de graça e não serão nutridas por causa de nossa falta de correspondência. Essa é a abnegação inteira, a renúncia completa que o apostolado seriamente conduzido exige. É muito duro isso.

Eu compreendo que, para a natureza humana, a vontade de se mostrar é uma coisa primeira, elementar e veemente, como o desejo de respirar, mas é preciso a todo custo vencer isso. Quem quer ser um verdadeiro apóstolo precisa ser uma pessoa abnegada, cheia de renúncia; se for tirada de qualquer cargo ela não geme, não sofre, não protesta. E que, sendo desconhecida pelo seu chefe, dá graças a Deus, porque assim ela está imitando a Nosso Senhor que também sofreu o desprezo dos outros. Uma pessoa, enfim, inteiramente abnegada de si mesma.

Deem-me um homem inteiramente abnegado de si mesmo e eu lhes darei um homem puro. No fundo, as tentações contra a pureza provêm de orgulho, falta de abnegação, vaidade, apego si mesmo.

Se consideramos um homem abnegado, ele não só será puro, mas um apóstolo perfeito; seu apostolado produzirá resultados por vezes surpreendentes. Mas se ele tiver um apego, o seu apostolado não dá nada; é uma tristeza.

Pode haver uma frustração pior para um apóstolo do que, tendo deixado tudo para dedicar-se ao apostolado, ver que sua vida não teve fecundidade?

Não tenhamos ilusão: nossa vida será estéril, infecunda, nosso apostolado inútil, passam-se os anos sem que conquistemos nada. Tudo isso decorrente de um apego a nós mesmos.

O inteiro desapego de nós mesmos, de que São Conrado de Parzham foi um exemplo, é condição de nossa perseverança e da fecundidade de nosso apostolado.

(Extraído de conferência de 19/4/1967)

São Fidelis de Sigmaringa: Coragem e serenidade diante da morte

Pela palavra e pelo exemplo, esse heroico missionário combateu tenazmente os erros espalhados pela primeira Revolução.

Tais foram seus êxitos que os inimigos da Igreja, consumidos pelo ódio, o martirizaram.

Em 24 de abril comemora-se a festa de São Fidelis de Sigmaringa, sobre o qual me enviaram uma ficha com alguns dados biográficos.

Viveu de 1577 a 1622. Ingressou nos capuchinhos aos 35 anos de idade.

Nascido em Sigmaringa, Alemanha, distinguiu-se como estudante de Filosofia e Direito, em Friburgo.

A seguir foi nomeado tutor de três jovens príncipes, com quem viajou por toda a Europa durante seis anos, e, depois de ter exercido a profissão de advogado, resolveu abandonar o mundo.

No testamento que fez, a certa altura, diz o seguinte: “Quero viver, daqui para o futuro, na maior pobreza, castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, numa penitência austera e humildade profunda. Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me de tudo para entregar-me aos braços do Salvador”.

O Padre Fidelis possuía grandes dotes oratórios, pregou em numerosas cidades alemãs e suíças, e em muitas igrejas do campo.

Como o protestantismo estava a se espalhar pela Suíça, especialmente nos Grisões(1), a Santa Sé encarregou os capuchinhos de combatê-lo. O Padre Fidelis foi nomeado chefe dessa missão.

“Dentro em breve não me tornareis a ver — disse ele aos seus amigos —, pois fui chamado a dar o sangue pela Fé”. Ao escrever uma carta a seu superior, encerrou-a assim: “Seu amigo Fidelis, que em breve será pasto dos vermes”.

Em janeiro de 1622, entrou na região ocupada pela Áustria e começou a pregar a Fé, com grande êxito.

Furiosos, os protestantes prepararam uma revolta, e o missionário avisou os austríacos. Os Grisões levantaram-se, então, em massa.

No dia de 24 de abril, estando o Padre Fidelis a pregar, ouviu-se o grito: “Às armas!” Os Grisões saíram ao encontro das tropas imperiais, que tinham forçado seus postos avançados, convencidos de que o Padre Fidelis fora quem chamara os austríacos. Ainda o deixaram sair da cidade, mas, como daí a pouco regressasse, vinte soldados caíram sobre ele. Trataram-no de sedutor e quiseram forçá-lo a abraçar a sua seita.

“Que me propondes? — respondeu Fidelis. Vim até vós para refutar vossos erros e não para abraçá-los. A Doutrina Católica é a Fé de todos os séculos. Não renunciarei! Ademais, sabei que não temo a morte.”

Eles, então, mataram-no a golpes de sabre.

Varão sobrenatural, enérgico e batalhador

É interessante notarmos bem qual foi a atuação deste Padre, deste grande pregador, para que depois o comentário hagiográfico possa se fazer adequadamente.

Ele era um missionário famoso, um grande orador que pregava em vários lugares. A Santa Sé, desejando impedir a expansão do protestantismo na região da Suíça, denominada Grisões, incumbiu a Ordem religiosa da qual ele fazia parte, que era a dos capuchinhos, de mandar pregadores para aquela zona bons oradores, a fim de converterem os que se tinham pervertido para o protestantismo, e para impedir que novos católicos fossem objeto do proselitismo protestante.

Então nosso Santo, que já transformara inteiramente uma cidade importante da Alemanha por seus sermões, dirigiu-se à Suíça, sabendo que iria morrer, pois teve uma revelação de que lá seria martirizado.

Mas, homem sobrenatural, enérgico e batalhador, ele não recuou diante dessa ameaça. Pelo contrário, enfrentou a martírio com uma espécie de prazer em considerar a hipótese de sua morte próxima. Ele até assinava: “Frei Fidelis, que em breve será pasto dos vermes”. Quer dizer, sabendo que seria mártir e a sua alma iria para o Céu, isto lhe dava então uma grande alegria.

A essa demonstração de tenacidade, ele juntou outra prova de força, de valor, que foi o fato de ter irritado sobremaneira os protestantes. Ninguém se torna irritante para o adversário sem ter conquistado êxitos contra ele. Portanto, ele alcançou resultados importantes como, aliás, se refere na nossa ficha. A tal ponto, que os protestantes resolveram assassiná-lo, e prepararam um encontro em que ele, afinal de contas, acabou morto.

Foi, portanto, um orador audacioso, valoroso, forte; um missionário vigoroso que não recuou diante do holocausto do martírio; um homem que nos dá um admirável exemplo de fortaleza, porque esta virtude atinge um alto grau em cada mártir que leva a abnegação e o desejo de lutar até o ponto de imolar efetivamente a sua existência.

Devemos nos precaver contra o sentimentalismo religioso do século XIX

Por outro lado, considerem esta fórmula que São Fidelis empregou:

“Quero viver, para o futuro, na maior pobreza, na castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, numa penitência austera e humildade profunda. Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me de tudo para entregar-me aos braços de Nosso Salvador.”

Isso poderia ser pronunciado, segundo um estilo sentimental de piedade difundido principalmente no século XIX, entre suspiros e com tanta moleza que seríamos levados a não tomar a sério essas palavras.

Compreendemos, assim, o equívoco tremendo que a piedade eivada de sentimentalismo do século XIX criou em torno de fórmulas como essa, e o quanto é necessário que não nos deixemos vencer por esse engano. Porque, embora o estado de espírito que eu apontei seja muito ruim, a fórmula é muito boa, em si mesma considerada. É uma fórmula empregada por um santo e, portanto, não pode deixar de ser boa, porque tudo quanto um santo faz é bom.

De maneira que, sendo essa fórmula susceptível de ser pronunciada e considerada de outro modo, não devemos permitir que o besuntado sentimentalismo religioso do século XIX nos torça a visão do que ela tem de bom, e de sua coerência com algumas das virtudes que nós fomos mais chamados a praticar: a fortaleza de ânimo, a resolução e a combatividade.

É um engano pensar que quem pronuncia essa fórmula é incompatível com essas virtudes que nós tanto apreciamos. Não pode ser, porque entre virtudes não há incompatibilidade. Ora, isto tem que ser virtude, porque foi pronunciado por um santo. Logo, não pode haver incompatibilidade.

Por isso, o valor dessa fórmula é muito grande. É evidente que um homem dotado da verdadeira virtude da sabedoria, que compreenda como todas as coisas deste mundo são nada — na medida em que obstem a aquisição da virtude e o amor de Deus —, deseje retirar-se desta Terra.

Fidelidade à vocação religiosa

Quando Nossa Senhora deseja que alguém abrace uma vocação, em geral Ela torna difícil a vida para essa pessoa fora da vocação. Portanto, um santo, nessas condições, é levado pelas circunstâncias à seguinte alternativa: ou se perde, ou adota o estado de vida para o qual foi chamado.

Ademais, independentemente do perigo de se perder, ele tem um atrativo da graça para estar meditando as coisas da sabedoria, para unir-se a Deus por essa forma, naquele estado de vida e, por amor do Altíssimo, ele adota aquela fórmula. Então se faz, como São Fidelis, um capuchinho, por exemplo.

O que quer dizer fazer-se capuchinho?

É adotar a pobreza completa, renunciando a toda forma de apego às coisas materiais, despreocupando-se com os bens deste mundo, não só não querendo tê-los para si, mas não se entusiasmando com as pessoas pelo fato de os possuírem. Não admira ninguém porque tem um bonito automóvel, um bom apartamento ou uma fábrica importante. Absolutamente não! Mas, dá valor aos homens e às coisas, na medida em que se aproximam da sabedoria.

Uma pessoa assim possui um estado de espírito varonil, combativo, e poderia dizer: “Eu quero viver daqui para o futuro na maior pobreza, castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, porque quero imitar Nosso Senhor Jesus Cristo que sofre; e, por isso, serei um lutador, vou batalhar e sofrer, porque na guerra se sofre”.

Isso nada tem de “heresia branca”(2). É piedade de boa lei que o homem mais valoroso e mais combativo deve ufanar-se em ter.

Assim também, dizer com coragem que daqui a pouco vai ser pasto dos vermes, é uma prova de que ele não tinha medo de morrer e ria a respeito disso: “Eu agora estou vivo, esta carne que estou vendo vai ser comida pelos vermes; através destas órbitas vão entrar vermes e comer estes olhos; destes ouvidos, desta boca, sairão vermes como que engendrados pelo meu próprio corpo. Mas não me incomodo, porque a minha alma vai para o Céu. Terei o martírio, que vale muito mais. E, no último dia, o meu corpo ressuscitará e se juntará à minha alma no Céu”.

É uma atitude de força de alma completamente oposta ao faniquito que o sentimental tem diante da morte.

Lutou arduamente contra a Revolução de seu tempo

Portanto, bem interpretada, bem entendida, essa fórmula nada tem de “heresia branca”. É uma fórmula esplêndida! É “heresia branca” estar no estado temperamental estúpido com que a escola dos sentimentais do século XIX repetia isso; escola essa que está, mais ou menos, viva até nossos dias.

Em São Fidelis temos a prova concreta: um homem que empregava fórmulas dessas deu exemplo de uma admirável coragem, vendo chegar até ele a morte com a serenidade que os maiores heróis não saberiam sobrepujar, e que lutou arduamente contra a Revolução em seu tempo, foi um verdadeiro contrarrevolucionário, porque o protestantismo era a Revolução em sua época. Homem completo, portanto, e digno de toda a nossa veneração.

Uma relíquia deste santo se encontra em nossa capela; de maneira que faremos uma boa coisa pedindo-lhe que nos dê a graça de compreender como fórmulas dessas se compaginam bem com a nossa piedade, desde que expurgadas dos péssimos eflúvios do sentimentalismo religioso do século XIX, vivo até hoje, infelizmente.

O século XIX foi um século de grandes santos, santos admiráveis, mas que estavam isentos disso, e até eram modelos do contrário.

É bem o que se poderia dizer de Santa Teresinha do Menino Jesus. A pequena via, inaugurada por ela, tão cheia de candura, de suavidade, é uma via de grande força e combatividade, para quem sabe ver a vida de Santa Teresinha.

Percebe-se isso nos desejos da Santa de Lisieux. Ela dizia que tinha desejos infinitos, entre os quais o de brandir o ferro no combate contra os inimigos da Igreja. Vê-se nisso uma manifestação de combatividade que chega até o cruzado. E isso da parte desta Santa tão suave na sua pequena via.

Vemos, portanto, como as virtudes são inteiramente compatíveis entre si.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/4/1971)

 

1) Um dos cantões da Suíça, o de maior extensão territorial.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor. São Fidelis deu exemplo de uma admirável coragem: vendo chegar a morte com a serenidade que os maiores heróis não saberiam sobrepujar, foi um verdadeiro contrarrevolucionário.

São Fidelis: Admirável exemplo de fortaleza

São Fidelis de Sigmaringa era um missionário famoso, grande orador enviado à região da Suíça para impedir a expansão do protestantismo.

Homem sobrenatural, indômito, enérgico, batalhador, tendo recebido a revelação de que seria martirizado,  não recuou diante dessa ameaça. Pelo contrário, enfrentou a morte com alegria.

A essa prova de tenacidade ele juntou a de força, valor e eficácia, pois irritou sobremaneira os protestantes, que resolveram então matá-lo. Ninguém se torna de tal maneira irritante para o adversário sem ter conquistado êxitos importantes contra ele.

Eis, portanto, um orador audacioso, valoroso, forte, um missionário vigoroso que não recuou diante do holocausto do martírio. São Fidelis nos dá um admirável exemplo de fortaleza levada à abnegação de sua própria existência, e ao desejo de lutar a ponto de imolar efetivamente a sua vida.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/4/1967)

São Pedro Armengol: De bandido a religioso

São Pedro Armengol é o modelo da confiança. Pecador medonho, ele se arrependeu, confiou e não só foi perdoado, mas recebeu uma vocação religiosa. Nossa Senhora chamou o bandido para ser religioso. É uma bondade extraordinária!

Nas dificuldades, peçamos a São Pedro Armengol a confiança e a calma dele, certos de que Nossa Senhora resolverá tudo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1988)

Sublime intimidade entre o Menino e a Mãe

Aplicando o senso católico e o discernimento dos espíritos ao comentar o afresco de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, Dr. Plinio sonda as encantadoras profundidades do convívio entre o Menino Jesus e sua Mãe santíssima.

 

Nossa Senhora do Bom Conselho se apresenta a nós com uma invocação que, à primeira vista, talvez não pareça ter muita relação com o quadro. Este representa uma Rainha de um pequeno país balcânico, o que se nota na figura, nos ornamentos e, mais ainda, no tipo marcadamente oriental, com os olhos um pouco em amêndoa, e voltados para baixo.

Ela está com o Menino nos braços e numa atitude de muita intimidade, em que se tem impressão de que Ela esqueceu que é Rainha e Ele esqueceu que é Rei! Não que hajam pedido demissão ou abdicado da realeza. Mas, no momento, aquilo que está no fundo do espírito, na primeira plana da atenção e do modo de sentir, é o fato de que Ela é Mãe e Ele é Filho!

Profundeza de sentimento e de pensamento

Mais ainda — e é uma das coisas que mais me atrai no quadro —, há uma profundidade na intimidade de relacionamento, pela qual se sente até o fundo da alma d’Ela: Ela é Mãe, e Mãe daquele Filho, quer bem àquele Filho; e até o fundo da alma d’Ele: Ele é Filho, e Filho daquela Mãe! Há entre Eles uma união de alma, que explica a tranquilidade e quase a imobilidade daquele afeto.

Ou seja, é um afeto que chegou tão ao fundo, que Eles não têm nada para dizer entre Si. Estão quietos e apenas querendo-Se bem, mais nada, como quem nota que, de parte a parte, o conhecimento e o afeto mútuos chegaram até o fim. E que, portanto, não há mais o que considerar. É só fruir uma bem-aventurada delícia daquele mútuo entendimento e mútuo estar juntos!

Nesse ponto, o artista foi muito delicado porque, pintando o Menino com todas as feições de criança daquela idade, e nada de comum com o hominho precoce, vê-se n’Ele uma profundeza de sentimento e de pensamento, que o homem feito não tem. E que corresponde inteiramente à Doutrina Católica sobre o Homem-Deus.

A unidade das naturezas divina e humana na mesma Pessoa traz, como consequência, que aquele Menino, daquela idade, concebido sem pecado original, e que, portanto, não passou por nenhuma das debilidades e das — eu digo no sentido etimológico latino — imbecilidades, das fraquezas da infância, tenha a profundidade do sentir. Ele está tão consciente do que é uma mãe, do que é aquela Mãe, quais as profundezas de alma que Ela oferece a Ele; e Ele entra tão a fundo nessas profundezas que se põe na mão d’Ela como uma criança!

Quadro que tem um voo sobrenatural extraordinário

Com um sublime paradoxo: Ele é criança para tudo, exceto para entender e querer as coisas sublimes, extraordinárias. De maneira que não me espanta que Ele quisesse precisar d’Ela para os serviços mais modestos. Porque é assim que se compagina a condição de criança no Menino-Deus. E o quadro exprime isto admiravelmente. É uma obra de arte mediana, mas tem um voo sobrenatural extraordinário!

O afresco nos dá bem a noção da relação entre Eles. O modo como Nossa Senhora O carrega é o de uma pessoa que leva um tesouro de um valor infinito; mas é uma pessoa muito generosa. Se supusermos um indivíduo levando um tesouro, nós o imaginamos agarrado ao tesouro, e voltado a impedir que alguém o roube; e sua atitude é de quem diz para qualquer um: “Isto é meu, não é seu! Não chegue perto e não amole, porque é meu!”

Nossa Senhora não. Ela O segura com muito cuidado, muita delicadeza, de maneira tal que nada se passa n’Ele, ou em torno d’Ele, que Ela não note imediatamente; uma vigilância materna dulcíssima! Mas Ela não deixa ver a menor preocupação de que Lhe tirem o tesouro. Ela sabe que é desses tesouros que quando se compartem não se dividem. E uma vez dado, ele fica inteiramente com quem deu, e inteiramente a quem foi concedido. De maneira que, sem propriamente mostrar o Menino, a própria posição do rosto d’Ela foi calculada com cuidado para que não ocultasse nada da face do Menino. E que o Menino ficasse em primeiro plano e Ela no segundo.

E, pelo respeito e pela seriedade tranquila, distendida e afetuosa com que Ela O carrega, vê-se que Ela tem uma noção inteira de que está levando o Filho de Deus. E que O adora com o mais profundo respeito.

Mas, de outro lado, Ela tem a sensação de estar de tal modo penetrada pelo afeto d’Aquele a quem Ela respeita, que Se sente desembaraçada para, sem nenhuma vacilação, nenhum acanhamento, dar ordens ao seu próprio Deus. De maneira que Ela delibere quando é hora de deitá-Lo ou tirá-Lo do Presépio; se é hora de dormir ou não. E Ela, sabendo que é nada, ou como que nada, para o Deus d’Ela diz: “Meu Deus, chegou a hora de dormir!” E Ele, cuja natureza humana está hipostaticamente ligada à natureza divina, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, fecha os olhos e dorme, porque sua Mãe mandou.

Desdobramentos da Encarnação

Todas essas possibilidades estão contidas no “et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis”. Quando São João diz no prólogo de seu Evangelho: “O Verbo de Deus se fez carne, e habitou entre nós”(1), todo esse celeste turbilhão de relações vertiginosas, admiráveis e dulcíssimas será contido na Encarnação, são desdobramentos da Encarnação.

Não conhecemos detalhes do convívio entre Eles, mas é possível, por exemplo, que Ele, com um pouco mais de idade, na hora de brincar — e era Deus querendo brincar! — não tenha dito a Ela o que queria, como não diz uma criança que não sabe ainda falar. E que Ela, por amor, precisou adivinhar que Ele queria uma bola. E que tenha arranjado uma bola para Ele.

Podemos imaginar Nossa Senhora e São José confabulando sobre o tamanho, o diâmetro da bola, de que matéria seria, como fazer a bola oca, para não ficar muito pesada para a mãozinha d’Ele, etc. Mas ambos já imaginando em cima desta bola uma cruz, como se haveria de ver depois nas mãos de incontáveis reis da Terra!

Ou, então, Maria Santíssima prestando atenção para saber de que comida Ele gostava mais. Ou fazendo oração para pedir a Ele que Lhe desse o conhecimento de qual era a refeição que Ele queria comer naquele dia. E Ele talvez fazendo dificuldade para falar; de repente, dizendo a Ela uma palavra qualquer, própria de criança, mas na qual Ela percebia misteriosamente que queria dizer: “Não sabeis, minha Mãe, que Eu vim à Terra para sofrer?”

Ninguém pode calcular o que foram as relações dessa infância, os mistérios, as sublimidades… Deus brincando! A Escritura diz que, antes de todos os séculos, Deus, que é a Sabedoria, brincava na superfície de Terra(2). Mas daí a uma bolinha feita na oficina de Nazaré… Que diferença!

A Mãe que criei e da qual nasci

E Nossa Senhora falando com Ele… Assim como Ele se transfigurou para três Apóstolos no alto do Monte Tabor, quantas vezes Ele Se transfigurou para Ela? E em que atitudes? Dormindo, talvez… E no dormir, que poder, que majestade, que inocência, que delicadeza! Às vezes, de fugidio, de repente, é Deus que Ela vê!

Quem pode calcular isto?

Nós sabemos, pelo Gênesis, que Deus, no sétimo dia, repousou e considerou todas as coisas que tinha feito. Mas nenhuma delas era bonita como Nossa Senhora. E Jesus, como Criador, confabulando com sua natureza humana, por assim dizer, pensando: “Como é linda esta Mãe que Eu fiz e da qual nasci! Como a alma d’Ela é incomparável!

Ali no quarto — estando entreaberta a porta — vejo que Ela está rezando. É noite, e uma candeia dá uma luz indecisa. Vejo o perfil d’Ela e noto que Ela reza para Mim. Mas não entro no quarto. E percebo que Ela está orando para o Padre Eterno, para o Divino Espírito Santo. Eu — como Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, diria Ele — conheço a oração d’Ela. Entretanto, é hora de chamá-La para tal coisa.” E grita: “Mamãe!”

Poder-se-iam multiplicar as situações, desenvolver isto ao infinito. Ele A vê, em certo momento, chorar. E Ele sabe, porque a Santíssima Trindade — Ele, portanto — está dando esclarecimentos a Ela sobre a Paixão, e depois sobre a morte d’Ele. E Ele nota a docilidade d’Ela, como Ela aceita, como Ela quer. Mas Ele vê desde já aquela espada que transpassa a alma d’Ela. E Ele Se deleita em considerar que, pelo amor que Ela tem aos homens, Ela quer que Ele morra. E no dia seguinte, quando Ela se levanta, Ele percebe um sulco de dor que dá uma majestade, uma gravidade, uma interioridade à fisionomia d’Ela, que é verdadeiramente indescritível.

Imaginemos Nossa Senhora tendo conhecimento profético dos milagres, dos ensinamentos, das parábolas d’Ele, vendo a figura d’Ele, num alto de um monte, que passa… A Paixão, a Cruz, a morte e a glória da Ressurreição. Quem poderia imaginar tudo isso adequadamente? Ninguém!

Quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, no Colégio São Luís

No Colégio São Luís havia um quadro da Mãe do Bom Conselho colocado no retábulo do único altar da modesta capela, que era uma sala transformada em capela. Inúmeras vezes entrei lá. Por exemplo, para celebrar o mês de maio em honra de Nossa Senhora, diariamente todos os alunos entravam na capela cantando. Eu olhava para a imagem, naturalmente, e minha atenção era solicitada por duas coisas muito desiguais: uma era a Mãe de Deus e outra o Menino Jesus, mas tomados em tese, como a Doutrina Católica os considera, e como a mente de uma criança pode alcançar.

E pensava: “É a Mãe de Deus, Maria Santíssima, que me deu aquela graça no Coração de Jesus(3) e está aqui sob outra invocação, outra roupagem. Mas é Ela! E vou rezar para Ela, porque já vi como é misericordiosa comigo. Sem a misericórdia d’Ela eu não me arranjo. Mas com a misericórdia d’Ela eu alcanço tudo. Portanto, é mais uma oportunidade de me unir bem a Ela, e rezar a Ela para alcançar esta união”.

Eu sabia que o título, a invocação d’Ela era “Mater Boni Consilii”, portanto, Mãe do Bom Conselho. E tentei, algumas vezes, rezar para esta invocação, que eu notava ser excelente, mas não me dizia grande coisa. A piedade é assim: às vezes uma invocação excelente não nos fala muito à alma.

De maneira que isto ficou assim, até eu ler um livro sobre Nossa Senhora de Genazzano, pouco antes de sofrer aquela crise de diabetes(4), e depois suceder tudo quanto sucedeu. Seria mais ou menos como um facho de luz que nasce pequenino, de uma lâmpada pequena, mas forte, e que depois se torna imenso. Assim seria essa primeira visualização minha de Nossa Senhora de Genazzano.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1985)

1) Jo 1, 14.
2) Cf. Pr 8, 31.
3) Ver Revista Dr. Plinio, n. 1, p. 4-7.
4) Ver Revista Dr. Plinio, n. 21, p. 20-21.

Exemplo de constância e de fortaleza

Varão de espírito nobre, muito inteligente e culto, São Martinho I foi sujeito a uma das maiores humilhações a que um Papa tenha sido exposto, desde o começo da história do Pontificado.

 

Vamos analisar uma nota biográfica referente a São Martinho, Papa e mártir(1).

Condenado à morte por defender a verdade

São Martinho I sucedeu a Teodoro, no ano 649.

A alma do novo Papa deveria ser grande para suplantar as grandes dificuldades do momento. Para salvar especialmente as Igrejas do Oriente, devia anatematizar a heresia monotelista(2). E foi o que fez o novo Papa.

Imediatamente, por ordem do Imperador Constante II, foi preso numa emboscada e transportado num navio para o Oriente. Sofreu horrivelmente durante a viagem. Ao chegar a Constantinopla estava em extremo grau de debilidade; mesmo assim, manietado, arrastaram-no ao tribunal, chamaram testemunhas falsas que depuseram contra o Pontífice acusando-o de traidor e herético. Depois de condená-lo, carregaram-no para junto das cavalariças imperiais, onde se reunia incontável multidão.

São Martinho foi alçado a um terraço para que Constante pudesse vê-lo da sacada de seu palácio; depois o juiz que havia presidido o tribunal aproximou-se do ancião mofando: 

— Viste como Deus te livrou de nossas mãos, eras contra o imperador. Deus te abandonou.

Em seguida ordenou aos soldados que rasgassem as vestes do Papa e lhe arrancassem os calçados. Entregando-o ao prefeito, recomendou-lhe que o fizesse em pedaços. Como a multidão se mantivesse calada, o juiz incitou-a a anatematizar o condenado, mas ouviu-se somente a voz de umas vinte pessoas. As demais, olhos baixos, dispersavam-se silenciosamente.

Os carrascos então despojaram São Martinho de seus farrapos e do pálio sacerdotal. Revestiram-no com uma túnica aberta de ambos os lados, grotesca e humilhante. Rodearam-lhe o pescoço com uma argola de ferro, puxaram-no por uma corrente pela cidade até a prisão, que era a mesma dos criminosos comuns. Sob o frio intenso, tiritava. Permaneceu preso esperando a morte, mas sua pena foi comutada por prisão perpétua.

No exílio da Crimeia, seu martírio aumentou dia a dia até que o Criador o chamou para Si, no ano de 655.

Esse pontífice deixou cartas notavelmente bem escritas, cheias de vigor e sabedoria, bem como as respostas dadas no tribunal de Bizâncio. Seu estilo é nobre e sublime, digno da majestade da Sé Apostólica.

Constância e fortaleza em meio a injustos tormentos

Encontramos nessa narração vários aspectos desse martírio que são instrutivos para nós.

Em primeiro lugar, a suma respeitabilidade desse Pontífice e a forma especial de tormento a que ele foi sujeito. Por ser um santo, tinha na mais alta conta a dignidade do trono pontifício por ele ocupado, compreendendo perfeitamente tratar-se do maior cargo da Terra.

Não há dignidade de rei, nem de imperador, nem de nenhum outro que se possa comparar sequer de longe à dignidade do Vigário de Cristo na Terra, daquele que é sucessor de São Pedro, a quem Jesus Cristo deu as chaves do Reino do Céu, de maneira que aquilo que ele abrir estará aberto e aquilo que fechar permanecerá fechado.

Além disso, São Martinho era um homem de um espírito nobre, muito inteligente e culto, em cujas cartas se expressava com nobreza e elevação. Portanto, uma pessoa que gostava de tudo quanto é alto, sublime, digno.

Pois bem, ele foi sujeito a uma das maiores humilhações a que um Papa tenha sido exposto, desde o começo da história do Pontificado.

São Pedro, crucificado de cabeça para baixo, foi tão humilhado ou mais do que ele. Mas poucos foram os Papas que sofreram um martírio tão terrível como São Martinho.

Trata-se de um Pontífice romano, que se sabe Vigário de Cristo, e que é jogado no porão de um navio daquele tempo, desce na cidade de Constantinopla, é arrastado ao tribunal por hereges monotelistas, para ser condenado; depois é levado diante de uma imensa multidão, vestido de um modo ridículo, colocam-lhe no pescoço uma argola de ferro atada a uma corda, e o conduzem como se fosse um animal; encontrando-se já na iminência de ser morto, ele é arrastado, a pé e descalço, pela cidade até a outra ponta, para ser preso entre os prisioneiros comuns. Imaginem a humilhação de um homem que se preza, sofrendo tudo isso!

Mais ainda: fazia um frio intenso, ele já estava idoso e tiritava. Naturalmente tomavam o tremor dele como sendo por medo, e muitos terão caçoado dele.

Vê-se a crueldade desse Imperador Constâncio e dos hereges monotelistas, que o arrastaram. Depois ele foi mandado para a Crimeia e ali, submetido a trabalhos forçados, morreu por causa das intempéries, da idade, mas em consequência dos maus tratos. Por isso a Igreja o considera mártir. Até o fim ele não cedeu e, diante do interrogatório do imperador e do juiz, ele suportou com altivez e soube dizer ao juiz as verdades que deveriam ser ditas. É um nobre exemplo de constância e de fortaleza.

Crueldade e indolência, sintomas de um império que caía

Por outro lado, vemos o Império Romano que caminhava para seu fim. Haveria ainda alguns séculos para o termo final do Império Romano do Oriente, mas esse fim vinha sendo preparado de longe por sinais manifestos de decadência. Esse crime praticado pelo imperador na presença de todo o povo é um sintoma disso. O imperador manda expor o Papa num terraço onde ele o pudesse ver e, naturalmente, zombando do Pontífice sacrilegamente.

Todo o povo também presenciou a cena e o juiz estava querendo induzi-lo a vaiar o Papa. Mas a atitude do povo foi esta: ficou quieto e depois foi se dispersando. De dentro da multidão, apenas umas vinte pessoas — provavelmente pagas — vaiaram o Pontífice. A vaia não teve a menor repercussão, ninguém acompanhou, e as pessoas se dispersaram lentamente.

Há uma frase famosa que diz: “O silêncio dos povos é a lição dos reis”. Quer dizer, os povos não vaiam, não agridem, mas quando eles não aplaudem, os reis ficam compreendendo haver uma censura. Essa é uma frase do “Ancien Régime”(3), e isso era verdade antes da Revolução Francesa.

Quer dizer, resta sempre aos povos um recurso que ninguém tem o poder de lhes tirar: é o de não aplaudir. Como obrigar o povo a aplaudir? Uma multidão imensa, se não quiser aplaudir não aplaude, e não se pode matar a multidão por causa disso.

Entretanto, nota-se de um lado o prurido de independência dos imperadores do Oriente contra o Papa, o que acabaria desfechando no cisma e, posteriormente, na queda do Império Romano do Oriente. De outro lado, constata-se também a maldade do povo. À primeira vista, tem-se uma boa impressão do povo porque se recusou a aplaudir; era, portanto, menos corrupto do que o imperador. Contudo, não deixava de ser um povo corrompido também, porque se ele sabia que aquele ancião, sendo o Vigário de Cristo, não deveria ser tratado assim e merecia todo o respeito, o que fez esse povo que não se revoltou contra os algozes, não protestou e não vaiou aquele juiz?

Evidentemente, dispersando-se, a multidão se condenou porque provou saber que aquilo era mau, e mostrou que se tinha intrepidez de não aplaudir, entretanto, não possuía coragem de libertar. Ora, o Papa tinha o direito de ser liberto. Isso mostra o profundo apodrecimento do povo; era um império que caía de podre.

Rechaçados pela Justiça de Deus

Resultado: durante séculos essa rivalidade entre Constantinopla e Roma, as duas maiores cidades de cultura latina daquele tempo, foi aumentando. Quando no século XV os turcos assediavam Constantinopla, estava ali um personagem que pôde até assistir à queda da cidade e conseguiu fugir a tempo.

Nas cartas que esse personagem escreveu, ele pôs a seguinte nota: “O povo de Constantinopla, que era herege, tinha rompido com a Santa Sé, estava apavorado com aquela entrada feroz dos turcos, que fizeram uma carnificina, reduziram inúmeros indivíduos a escravos, entraram em conventos, destroçaram tudo”.

E fez este comentário: “Se se desse aos constantinopolitanos a opção entre salvar a cidade, voltando a aderir à Igreja Católica, ou continuar na heresia e serem destroçados pelos turcos, eles prefeririam a heresia e a morte a se unirem novamente à Igreja Católica”.

Quer dizer, um ódio tão cego à verdade que eles só queriam saber de aderir à heresia, e preferiam a morte com a heresia à vida, à dignidade e à honra. Vemos, por aí, como os adversários da Igreja podem ser fanáticos, a ponto de gostarem mais daquilo que representa o seu próprio destroçamento do que a união com o que significa a verdade integral.

Lembro-me de uma frase de Donoso Cortés(4), grande pensador espanhol, que dizia o seguinte: Os homens gostam de verdades, mas nenhum homem, a não ser pela graça de Deus, gosta da verdade inteira, da verdade global.

A Doutrina Católica oferece a verdade global. Esta, os inimigos da Igreja odeiam mais do que tudo, preferindo qualquer erro à verdade total. Assim eram os monotelistas, como também os cismáticos de Constantinopla séculos depois, e os modernistas do tempo de São Pio X. Tudo menos a verdade global. Resultado: serão rechaçados pela Justiça de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/9/1973)

 

1) Não dispomos das referências bibliográficas nas quais se baseia Dr. Plinio.
2) Monotelismo: heresia que nega a existência de duas naturezas — a humana e a divina — em Nosso Senhor Jesus Cristo.
3) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
4) Juan Francisco María de la Salud Donoso Cortés y Fernández Canedo. Filósofo, político e diplomata espanhol (* 1809 – † 1853).