Autêntica Mãe dos homens

Hoje, pretendo dizer alguma coisa sobre a doutrina que ele [Bem-aventurado Grignion de Montfort] expõe no seu Tratado da Verdadeira Devoção.

Penso não errar afirmando que, em essência, o Tratado não é senão a exposição de duas grandes verdades ensinadas pela Igreja, das quais ele extrai todas as conseqüências necessárias, e cuja luz ilumina toda a vida espiritual.

Estas duas verdades são a maternidade espiritual de Nossa Senhora em relação ao gênero humano, e a mediação universal de Maria Santíssima.

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Dada a espessa ignorância religiosa que reina entre nós, não falta quem suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora o título de Mãe do gênero humano simplesmente para descrever de certo modo os sentimentos afetuosos e protetores que Ela experimenta em relação aos homens. Como estes sentimentos são próprios às mães, por analogia, Nossa Senhora seria também a nossa Mãe. E nós seríamos, em relação a Ela, pobres mendigos que, na sua generosidade, Ela protege como se fossem filhos.

A realidade, entretanto, é muito outra. Não somos filhos de Nossa Senhora simplesmente por uma adoção afetiva. Ela não é nossa Mãe apenas no terreno fictício ou na ordem sentimental, mas com toda a objetividade, na ordem verídica da vida sobrenatural.

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Antes do pecado original, nossos primeiros Pais, vivendo no Paraíso, foram criados por Deus para a glória celeste, que eles poderiam atingir transpondo os umbrais desta vida em um trânsito que não teria a tristeza tétrica da morte, mas o esplendor de uma glorificação.

O pecado original, entretanto, rompendo a amizade em que o gênero humano vivia com Deus, fechou aos homens a porta do Céu, e obstruiu o livre curso da graça de Deus para os homens. Em outros termos, com a punição do pecado original, os homens perderam qualquer direito ao Céu e à vida sobrenatural da graça.

Se bem que não fosse extinto, isto é, que perdesse a vida terrena, o gênero humano perdeu, pois, o direito à vida sobrenatural. E ele só poderia readquirir tal vida se apresentasse à Justiça divina uma expiação proporcionada à enormidade de seu pecado.

Não vem a propósito, aqui, discutir a natureza deste pecado. É certo que todos os teólogos, sem exceção, afirmam nada ter o pecado de Adão de comum com o pecado da impureza, ao contrário de uma versão muito generalizada no povo. Mas a narrativa bíblica mostra claramente os requintes de rebeldia que agravaram sobremaneira o delito de nosso primeiro Pai. Aliás, um dos elementos para se aquilatar a gravidade de uma ofensa consiste em medir a dignidade da pessoa ofendida. Uma mesma impertinência quando dita a um irmão é muito menos grave do que quando dita a um pai. Um gracejo comum entre colegas poderia constituir uma grave irreverência se fosse feito a um Chefe de Estado, e assim por diante. Ora, Deus é infinitamente grande. Por aí não é difícil avaliar a gravidade do pecado original. Uma ofensa feita ao infinito só poderia ser convenientemente resgatada por meio de uma expiação infinitamente grande. E não está no poder de homem, ser contingente por natureza, e envilecido pelo pecado, oferecer ao Criador um tão valioso desagravo. Os pontos que nos ligavam a Deus pareciam, pois, definitivamente cortados e irremediável a decadência a que se atirara loucamente o gênero humano com o pecado.

Foi para remediar tão insolúvel situação, que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-se no seio puríssimo de Maria Virgem, assumiu natureza humana sem nada perder de Sua Divindade e o Homem-Deus, assim constituído, se pôde apresentar à Justiça do Pai como cordeiro expiatório do gênero humano. Efetivamente, como Homem, Nosso Senhor Jesus Cristo podia oferecer uma expiação que fosse realmente humana. Mas em virtude da dualidade das naturezas nEle existentes, essa expiação, se bem que humana, tinha um valor infinito, pois que consistia na efusão generosa e superabundante do Sangue infinitamente precioso do Homem-Deus. Assim, no Sacrifício do Calvário, Nosso Senhor aplacou a justiça divina, e fez renascer para o Céu e a vida sobrenatural da graça a humanidade que estava absolutamente morta em tudo quanto se referisse ao sobrenatural. Se Deus, Uno e Trino, é Nosso Criador, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-Se, se tornou nosso Pai por um título muito especial, que é o da Redenção. Jesus, morrendo, deu-nos a Vida sobrenatural. E quem dá a vida é verdadeiramente Pai, no sentido mais amplo da palavra.

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Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção, é porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez homem, pois que o pecado dos homens deveria ser resgatado.

Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza humana, fê-lo em Maria Virgem, e assim esta cooperou de modo eminente na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza humana que nos desígnios de Deus era condição essencial da Redenção. De mais a mais, Maria Santíssima ofereceu de modo inteiro, e sumamente generoso, o seu Filho como vítima expiatória, e aceitou de sofrer com Ele, e por causa dEle, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu Coração Imaculado.

Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e tão profunda, que se pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer para a vida da graça. Pelo que, Ela é, autenticamente, nossa Mãe. Autenticamente, acentuo, pois que não se trata aí de divagações sentimentais ou literárias, mas de realidades objetivas, que, se bem que sobrenaturais, não deixam de ser absolutamente verdadeiras por isso mesmo que são sobrenaturais.

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Convidando os fiéis a adorar o Santíssimo Sacramento, a Igreja exclama na Sagrada Liturgia: “Quantum potes, tantum aude”, isto é, tem o arrojo de amar tanto quanto te permitir o teu coração.

O mesmo se deve dizer a esta altura. Diante da maravilhosa realidade da maternidade de Maria em relação aos homens, realidade que constitui uma verdade séria, teológica, profundamente substanciosa, o homem deve romper decididamente para que ele se dilate plenamente os limites acanhados de seu coração, sem susto, e singre sem cuidado, pelo oceano de amor que se descortina ante seus olhos. Não são indispensáveis, aí, os artifícios da retórica humana. Uma consideração madura da realidade será suficiente para encher o homem de amor.

De acordo com toda a doutrina católica, o Beato Grignion de Montfort mostra, então, as grandezas de Maria Santíssima. Demonstrando que Ela é Mãe, o que há de mais conveniente e de mais necessário até do que o conhecimento da suprema dignidade e da inexcedível misericórdia que Ela possui?

São Tomás de Aquino diz que Nossa Senhora recebeu de Deus todas as qualidades com que seria possível a Deus cumular uma criatura. De sorte que Ela se encontra no ápice da criação, firmando seu trono acima dos mais altos coros angélicos, e sendo inferior apenas ao próprio Deus, que, sendo só Ele infinito, está infinitamente acima de todos os seres, inclusive de Nossa Senhora.

Costuma-se dizer que Nossa Senhora brilha mais do que o sol, tem a suavidade da lua, a beleza da aurora, a pureza dos lírios, e a majestade do firmamento inteiro. Muita gente supõe que tudo isto não passa de hipérboles, estas comparações pecam por sua irremediável deficiência. O sol, a lua, a aurora, e todo o firmamento são seres inanimados, e estão, portanto, colocados na última escala da criação. Não é admissível que Deus os fizesse tão formosos, dando ao homem dons menores. E, por isto mesmo, a mais apagada das almas mortas em paz com Deus, tem uma formosura que excede incomparavelmente a de todas as criaturas materiais. Que dizer-se, então, de Nossa Senhora, colocada incalculavelmente acima não só dos maiores Santos, mais ainda dos Anjos mais elevados em dignidade junto ao trono de Deus? Um caipira que fosse assistir à solenidade da coroação do Rei da Inglaterra, voltando aos seus pagos natais, possivelmente não encontrasse outros termos para explicar a magnificência daquilo que viu, senão afirmando que foi mais belo do que as festas em casa do Nhô Tonico, o homem menos pobre da zona. Se o Rei da Inglaterra ouvisse isto, que outra coisa poderia fazer senão sorrir? Pois nós, quando procuramos descrever a formosura de Nossa Senhora com os termos escassos da linguagem humana, fazemos o mesmo papel… e Ela também sorri.

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Não espanta, pois, que seja verdade de Fé que Deus se compraz tanto em Nossa Senhora que um pedido feito por meio dEla é sempre atendido, ainda que não conte senão com o apoio dEla. E que se todos os Santos pedissem alguma coisa sem ser por meio dEla nada conseguiriam. Porque, como diz Dante, querer rezar sem Ela é o mesmo que querer voar sem asas…

Assim, pois, todas as graças nos vêm de Nossa Senhora, e é Ela a medianeira universal de todos os homens, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas, se todas as graças nos vêm dEla, e se nossa vida espiritual não é senão uma longa sucessão de graças a que correspondemos, ou renunciamos a ter vida espiritual, ou devemos compreender que esta será tanto mais suave, mais intensa e mais perfeita, quanto mais próximos estivermos junto daquele único canal de graça que é Nossa Senhora. Deus é a fonte da graça, Nossa Senhora o único canal necessário, e os Santos meras ramificações, aliás veneráveis e dignas de grande amor, do grande canal que é Nossa Senhora.

Queremos ter a graça inestimável do senso católico? Queremos ter a virtude inapreciável da pureza? Queremos ter o tesouro sem preço, que é o dom da Fortaleza, queremos ser ao mesmo tempo mansos e enérgicos, humildes e dignos, piedosos e ativos, meticulosos em nossos deveres e inimigos do escrúpulo, pobres de espírito se bem que jungidos às riquezas do mundo, em uma palavra, fiéis e devotos servidores de Nosso Senhor Jesus Cristo? Dirijamo-nos ao trono que Deus deu a Nossa Senhora, e, no recesso amoroso da Igreja Católica, nossa Mãe, peçamos a Nossa Senhora, também nossa Mãe, que nos faça semelhantes a seu Divino Filho.

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São Gregório Nazianzeno

Bispo, Doutor, monge e poeta, São ­Gregório Nazianzeno foi um ­varão de grande clareza de princípios, de uma sólida firmeza no proceder e que triunfou ­magnificamente na ­batalha mais importante e difícil que o ­homem tem na vida:

a batalha contra si mesmo. Por isso, foi um pastor de almas amado por sua bondade e respeitado ­pela austeridade de seus ­sábios conselhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/5/1971)

Mãe de Deus e nossa!

Desde toda a eternidade, Maria foi eleita para gerar o Salvador. Em virtude dessa predestinação, foram-Lhe concedidos todos os demais dons e privilégios constitutivos do grande edifício de sua   santidade ímpar e insuperável por qualquer outra criatura humana ou angélica. “Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria”, afirma São Luís Grignion de Montfort. Entretanto, a própria plenitude de graça n’Ela existente, foi-Lhe conferida pelo Senhor em função de sua Divina Maternidade.

Até mesmo nesse pináculo de perfeição marial está presente o pressuposto cristocêntrico da ordem da criação. E estes eram princípios fundamentais da piedade de Dr. Plinio. Nada o comovia  tanto quanto a contemplação das excelsas relações entre Jesus e Maria, quer durante os nove meses de gestação, quer nos trinta anos de convívio na humilde casa de Nazaré. Dr. Plinio era  sensivelmente tocado por graças ao considerar aspectos da vida quotidiana entre Mãe e Filho, como longa preparação para as ações públicas do Salvador.

Nos seus escritos, conversas ou conferências, Dr. Plinio jamais deixava de se referir a Maria, e com facilidade estendia à maternidade espiritual os maravilhosos corolários de ser Ela a Mãe de  Deus: “Nossa Senhora é incomparavelmente melhor do que todas as mães da Terra. Ela nos ama e é muito mais nossa verdadeira Mãe do que aquela que nos trouxe ao mundo. Ora, sabemos até onde nossa mãe seria capaz de ir para nos proporcionar um benefício. Do que, então, será capaz Nossa Senhora?

“Se, pois, cada filho tem para com sua mãe terrena um carinho peculiar, devemos    cada um de nós amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco uma ternura particular, que pousará sobre cada um de nós, como se só nós existíssemos na face da Terra.” Imbuído desses sentimentos, uma das orações mais caras a Dr. Plinio era a “Salve Rainha”, na qual se invoca sobretudo a misericordiosa maternalidade de Maria, “vida, doçura e esperança nossa”.

Foi a “Salve Rainha”, aliás, rezada candidamente como “Salvai-me Rainha!”, que o livrou de uma provação infantil e imprimiu em sua alma, de modo indelével, a noção vivíssima de ser filho de Maria Santíssima.

Por isso mesmo, ainda muito jovem adquiriu o costume de dizer essa tocante prece, ao ouvir as badaladas que encerram um ano e abrem outro, na meia noite do 31 de dezembro (Cfr. “Dr. Plinio”  nº 34, seção Datas na vida de um cruzado).

Cumpre ressaltar que essa entranhada devoção a Maria, como Mãe de Deus e nossa, era na alma de Dr. Plinio um eco da mais pura doutrina católica, conforme nos ensina o Papa João Paulo II na Encíclica “Redemptoris Mater”: “A Tradição e o Concílio não hesitam em chamar a Maria ‘Mãe de Cristo e Mãe dos homens’: ela está, efetivamente, associada na descendência de Adão com todos os homens; (…) mais ainda, é verdadeiramente mãe dos membros [de Cristo], (…) porque cooperou com o seu amor para o nascimento dos fiéis na Igreja. Esta ‘nova maternidade de Maria’, portanto, gerada pela fé, é fruto do ‘novo’ amor, que n’Ela amadureceu definitivamente aos pés da Cruz, mediante a sua participação no amor redentor do Filho”. Nossa Revista — que alcança hoje sua 70ª edição — honra-se em ser, graças a Deus, testemunha de que Dr. Plinio não cessou de pregar o amor filial a Maria Santíssima como o melhor caminho para se chegar até as profundezas do Coração de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Mãe de Deus e dos homens

Pináculo de tudo quanto possa haver de meramente criado, Nossa Senhora é a Rainha do Céu e da Terra, dos Anjos e dos homens, Medianeira universal de todas as graças. Esses títulos e as inúmeras invocações que existem ou existirão até o fim do mundo para cultuar Maria Santíssima são uma decorrência da Maternidade Divina.

A importância, para a piedade católica, da Festa da Maternidade Divina da Bem-aventurada Virgem Maria está em que todas as graças extraordinárias que Nossa Senhora recebeu — e que fizeram d’Ela uma criatura única em todo o universo e na economia da salvação —, têm como ponto de partida e razão de ser o fato de Ela ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, Mãe de Deus.

Como os pequenos orifícios existentes nas areias das praias…

A propósito desse tema, é interessante ressaltar o modo pelo qual se estabelece a hierarquia na obra de Deus, como todas as coisas feitas por Ele são matizadas, e como isso é contrarrevolucionário.

O espírito revolucionário é a favor das simplificações. Pelo contrário, o espírito contrarrevolucionário ama o matiz, e quando vê uma coisa meio difícil de compreender e até meio antitética, ama aquilo porque compreende que naquela aparente antítese há, no fundo, uma verdade muito bonita que acabará por encontrar. É uma realidade que, desde pequeno, habituei-me a ver na Igreja.

Tive uma surpresa quando comecei a ver coisas aparentemente esquisitas na Igreja, e eu ficava meio enovelado com aquilo, mas depois aprofundava a análise do assunto e percebia que quanto mais esquisito, tanto mais bonita era sua explicação.

Habituei-me, assim, à ideia de que toda objeção que se pode fazer à Igreja é como aqueles furinhos que há na praia. Vê-se um furinho insignificante do qual estão saindo borbulhazinhas. Mete-se o dedo ali, e de dentro sai um caramujo.

Assim também na Igreja: tudo quanto se nos afigura como esquisito, meio incompreensível, antitético, contraditório, desde que saibamos buscar e esperar a explicação, quando de fato Nossa Senhora nos der a entender aquilo, ali encontraremos uma pérola, uma verdadeira maravilha.

É próprio da Igreja que, numa coisa eriçada de contradições, se encontre sempre uma harmonia profunda resultante de uma verdade.

A união hipostática foi feita com uma criatura humana e não angélica

Para um espírito cartesiano, o que pode parecer mais absurdo do que a figura da Mãe de Deus?

Pensemos em um indivíduo a quem nunca se expôs a Doutrina Católica e que toma conhecimento de que a Igreja, ao mesmo tempo em que ensina ser Deus eterno e puro espírito, afirma que Ele tem uma Mãe. Como é possível um ente espiritual ter essa Mãe material e carnal que, sendo temporal, gera um Ser eterno?

São contradições que, para um espírito protestante, correspondem a um verdadeiro absurdo. Ora, tratando-se da Santa Igreja Católica, nunca há absurdo. Existe, isto sim, uma harmonia profundíssima e superior presa a um princípio extraordinário. A questão está em esperar para compreender.

Consideremos que Deus eterno, perfeito, criou os anjos e, abaixo deles, os homens. Contudo, Ele não estabeleceu com um anjo a união hipostática, e sim com a natureza humana.

Também isso pareceria uma contradição: a superior dignidade dos anjos pediria que a união hipostática fosse feita com eles e, principalmente, com o mais alto, o melhor dentre eles. Ora, Deus estabelece a união hipostática com uma natureza inferior à angélica, e opera uma maravilha maior do que se a estabelecesse com o maior dos anjos.

Porque feita a união hipostática com um anjo, Deus dignificaria somente a natureza espiritual. Porém, ao realizá-la com uma criatura humana, Ele dignifica os anjos — porque o homem, enquanto tendo alma, é participante da dignidade espiritual dos anjos — bem como todo o reino material, pois o ser humano é também composto de matéria. Portanto, é todo o cosmo que se dignifica com essa aparente incongruência de Deus Se unir hipostaticamente a uma natureza inferior.

Um desequilíbrio na consideração da maternidade divina

Decorre daí uma disposição hierárquica admirável, toda ela matizada também. No ápice, Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus. Depois, uma criatura humana que é o pináculo de tudo quanto pode existir de meramente criado: Maria Santíssima.

Ela, como Mãe de Deus, está posta como Rainha do Céu e da Terra, dos Anjos e dos homens, investida de todas as outras qualidades, graças e títulos, inclusive de Medianeira Universal de todas as graças, por causa de sua Maternidade Divina.

Assim, essa festa atrai a nossa atenção e a nossa piedade sobre aquilo que, de algum modo, é a própria raiz da devoção mariana: a Maternidade Divina de Nossa Senhora.

Isso é tão verdadeiro, tão ortodoxo! Entretanto, vejamos onde pode entrar um desequilíbrio na consideração dessa verdade.

Há uns vinte anos, eu quis fundar uma congregação mariana em um bairro de São Paulo e convidei para isso algumas pessoas conhecidas naquele lugar, sem saber já estarem elas influenciadas por certas tendências contrárias à sã doutrina.

Depois de confabularem entre si, uma delas me disse:
— A Congregação se chamará “Nossa Senhora Mãe de Deus”.

Título doutrinariamente irrepreensível, mas pouco usual naquela época. Então lhe indaguei:
— Mas por que você escolheu esse título que é pouco usual?

Resposta:
— Porque, afinal, só o que importa em Nossa Senhora é ser Mãe de Deus. Todo o resto não é nada.

Aqui já entra o desequilíbrio. É o mesmo que dizer: na árvore só o que importa é o tronco. A galharia, as folhas, as flores, os frutos, nada disso tem importância. Aceitar a doutrina da Maternidade Divina de Maria, procurando despojá-la de toda essa maravilhosa complexidade e dessa variedade de títulos que dela deflui, para ficar só com o tronco, já é, por si mesma, uma posição errada.

Nota-se nisso o bafo do espírito simplificador, protestante, sob o pretexto de ir às raízes, rejeitando o restante da galharia.

O espírito católico, ao contrário, leva-nos a venerar imensamente esse principal título de Nossa Senhora, respeitando-o como ele merece ser respeitado, mas sequiosos de tirar dele todas as suas consequências. Portanto, tendo o espírito aberto e voltado para as mil invocações que existem e se criarão, até o fim do mundo, para cultuar a Santíssima Virgem, debaixo desse ou daquele aspecto, o que será sempre uma decorrência da Maternidade Divina d’Ela.

Mãe dos homens

Há outro ponto muito importante para nós nessa invocação. Por ser Mãe de Deus, Nossa Senhora é também, por uma série de consequências e a título especial, Mãe dos homens.

Acredito que a mais preciosa graça que se pode ter, em matéria de devoção a Maria Santíssima, é a de Ela condescender em estabelecer com cada um de nós, por laços inefáveis, uma relação verdadeiramente materna.

Isso pode dar-se de mil modos, mas em geral Nossa Senhora se revela principalmente nossa Mãe quando nos tira de algum apuro, de modo a seu amparo nos ficar inteiramente inesquecível. Ou então, quando nos perdoa alguma falta que particularmente não tinha perdão, mas que Ela, por uma dessas bondades que só as mães têm, passa por nós, perdoa e elimina aquilo, como Nosso Senhor Jesus Cristo curava a lepra, de maneira a não ficar nada.

Realmente, nada ali merecia ser perdoado, não havia atenuante e não merecia senão a cólera de Deus; mas Ela, como Mãe, com seu poder soberano e com essa indulgência que as mães têm, com um sorriso apaga aquilo, elimina, e o passado fica completamente esquecido.

Nossa Senhora nos obtém graças dessas, às vezes de um modo tal que, para a vida inteira, fica marcada a fogo na alma — um fogo do Céu, não da Terra — essa convicção de que poderemos recorrer a Ela mil vezes, em circunstâncias mil vezes mais indefensáveis, e Ela sempre nos perdoará de novo, porque abriu para nós uma porta de misericórdia que ninguém fechará.

Creio ser disso que vivemos: um crédito de misericórdia aberto por Maria Santíssima; dessas misericórdias como poucas vezes terá havido. Por essa razão, embora nós não merecendo e fazendo de tudo, Ela ainda tem mais um sorriso, mais um perdão, Ela nos repesca mais uma vez.

Vem-me à memória uma passagem do Apocalipse: “Eis que pus à tua frente uma porta aberta que ninguém poderá fechar, pois tens pouca força, mas guardaste a minha palavra e não renegaste o meu nome”(1). Certa vez vi uma aplicação dessas palavras à devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e acho imensamente legítima. Parece-me também muito legítimo aplicá-las ao Imaculado e Materno Coração de Maria para conosco.

Não conheço verdade mais palpável, mais digna de nosso amor e de nossa gratidão do que esta.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/10/1963)

Maternidade de Maria

A importância da maternidade divina de Nossa Senhora para a piedade católica, é que todas as graças extraordinárias que Ela recebeu e que fizeram d’Ela uma criatura única em todo o universo e na economia da salvação, têm como título e ponto de partida o fato de Maria ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, envolvida nesse fato, a afirmação da Igreja de que Ela é Mãe de Deus!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1965)

Admiração e afeto da Virgem-Mãe

Ao contemplar o Menino Jesus, Nossa Senhora tinha por Ele um afeto cheio de admiração, primeiramente considerando-O como Deus, e secundariamente em sua fragilidade humana.

Ao meditarmos no relacionamento de Maria Santíssima com seu Divino Filho ainda criança, consideremos a adoração da criatura para com seu Deus e Criador e, ao mesmo tempo, o afeto d’Aquela Mãe celeste para com seu Filho único e incomparável.

Afeto que começa por atos de admiração

Sendo modelo de humildade, Nossa Senhora não se aproximaria do Menino-Deus antes de ter-Lhe manifestado todo o respeito e toda a admiração que Ele merecia. Por outro lado, Ela, que sabia Quem era enquanto mera criatura, ou seja, a chave de cúpula da Criação, entretanto não poderia deixar de se colocar nessa posição humilde diante do Salvador. Porque a mais alta das criaturas está tão infinitamente abaixo do Criador que pode falar a Nosso Senhor como se fosse a última delas. Por exemplo, se uma pessoa se julgasse mais próxima do Sol por medir dez centímetros a mais do que o comum dos homens, daríamos risada, porque é tal a distância entre a Terra e o Sol que se pergunta: o que são dez centímetros?

Assim Deus, sendo infinito, até mesmo a imensa distância que separa Nossa Senhora de todos nós é pequena diante daquela que A separa de Nosso Senhor. Portanto, é compreensível a série de atos de humildade que Ela poria na presença do Menino Jesus.

Não é uma humildade egocêntrica, e sim teocêntrica. Ela não começa apenas a dizer “Eu sou a última das criaturas”, mas, mais do que a sua condição limitada de criatura, Nossa Senhora tem em vista a grandeza infinita de Deus. Por isso, seus afetos começam por atos de admiração.

Há nisso uma ordenação lógica que merece um rápido comentário. Quando queremos muito bem a alguém, devemos começar por admirá-lo. Porque a admiração é o fundamento do amor verdadeiro. Amar por quê? Ter amor por outrem apenas como alguém que gosta de um bonequinho, isso é sentimentalismo. No caso concreto, a Santíssima Virgem tinha para amar Aquele que, enquanto homem, era a mais admirável de todas as criaturas, e enquanto Homem-Deus, hipostaticamente unido à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, estava infinitamente acima de tudo. A Santíssima Trindade, nem se têm palavras para admirar. Ora, se não há palavras para admirar, também não há palavras para exprimir suficientemente o amor, pois este é a defluência da admiração.

No frágil Menino, contemplar a infinita grandeza de Deus

Evidentemente, Maria Santíssima tinha razões para amar seu Filho recém-nascido muito acima do fato de Ele ser muito engraçadinho, bonitinho, etc. Isso tem seu papel legítimo também, mas não é o principal. Muita gente imagina que Nossa Senhora olhou o Menino Jesus e disse: “Que engraçadinho! Que bonequinho!” Absolutamente isso não estaria à altura da circunstância.

Ela conhecia, por revelação divina feita diretamente a Ela, que o Filho gerado n’Ela era a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E o primeiro assombro é: “Tão fraquinho, tão pequenino, entretanto Deus, na sua infinita grandeza, e na sua admirabilidade incomensurável. Deus está aí!” O primeiro pensamento d’Ela vai para Deus no que Ele tem de grandioso, depois se volta para o Menino, medindo o espaço que vai de um a outro, a profundidade da união hipostática, e a glória que essa união faz defluir, a torrentes solares, sobre o Menino; para depois começar a analisá-Lo com afeto de mãe, e ver no olhar d’Ele o sol de Deus que se faz refletir. Entra, então, a ternura materna pelo Filho tão pequenino.

A admiração e o afeto são duas posições de alma correlatas

Contudo, a admiração não desaparece nessa hora, para deixar lugar ao puro afeto, porque na hora em que admiração morresse, o afeto morreria também; assim como na hora em que morresse o afeto, morreria a admiração.

A admiração e o afeto são duas posições de alma correlatas, a tal ponto que quando uma boa mãe tem um bebê, ela se enternece com a criança, mas deveria estar, ainda que no subconsciente dela, a seguinte ideia: “Que grandeza há no fato de uma criatura humana, chamada a levar uma vida de longa duração, a cumprir obrigações graves, como as da paternidade ou da maternidade, e, sobretudo, os deveres para com Deus, a ser boa filha ou bom filho da Igreja Católica, dominar as suas paixões, santificar-se, ir para o Céu por toda a eternidade! Este como que projeto de anjo que está aqui, que coisa extraordinária! E como eu fico enternecida vendo como uma coisa tão grande cabe em tão pouco.”

Ao considerar que aquele pequenino é seu filho, entra uma ternura muito grande, mas também uma grande admiração: “Que mistério admirável pelo qual eu, criatura humana, gerei outra criatura humana! Que coisa misteriosa e profunda! Nasceu de mim, foi alimentado por mim, formou-se no meu claustro, eu o liberei para a vida e aqui está tão pequenino, tão minúsculo, mas para ele existir realizou-se um imenso mistério.”

Depois este outro mistério: a hora exata, que não se sabe qual é, na qual Deus, como que Se debruçando sobre aquele embrião, “sopra” uma alma, e lhe dá algo que a mãe não gerou, que não veio do ato nupcial, mas criado diretamente por Deus. Que coisa magnífica!

Na ternura de uma mãe verdadeira, bem orientada para com seu filho, deve aparecer isto.

Toda essa série de mistérios que se formaram nela, ao qual ela deu origem, e que fizeram com que sobre a carne da carne e o sangue do sangue dela — esse “outro eu mesmo” — pairasse o Divino Espírito Santo, e criasse uma alma que não foi dada por ela, em que a obra de Deus se somou à obra dela para fazer uma coisa tão imensamente maior: infundir-lhe uma alma. Com a alma, os horizontes se abrem para aquela criança! Horizontes na Terra, horizontes de luta, de batalha, de abnegação, horizontes também de dias de alegria, de vitória, em que se tem a impressão de estar tocando o Céu com as mãos. Mas também horizontes de tristeza, de abatimento, de desfalecimento, em que se tem que pedir graças a Deus para se continuar.

Elucubrações de uma verdadeira mãe

Então, aparece outro aspecto do nascimento de uma simples criança. Segundo a Igreja, a vida de toda criatura é comparável a um herói que se prepara com exercícios para a luta, e, depois, na hora de entrar na arena, se prepara por fricções, óleos perfumados, etc., para que toda a musculatura esteja em condições para enfrentar as feras que vai combater, ou então outros gladiadores com os quais vai lutar. Pega as armas, o escudo, e com tudo em forma entra na arena. Quem olhasse para um herói desses na sala dos gladiadores, dos domadores de feras, e o visse sentado esperando o chamado, tranquilo, pronto, para uma imensa batalha, não poderia deixar de se admirar.

Ora, uma criança que entra no mundo é como esse herói. Ela está na entrada de uma imensa batalha. Seja uma menina ou um menino, se a mãe tiver uma verdadeira noção das coisas, ela dirá: “Batalhador! Batalhadora! Eu te admiro porque és combatente do bom combate! Teu dever é este. Uma vez que recebas o Batismo, a graça te chamará. E a partir desse momento começará uma vida sobrenatural em ti que é mais ou menos como uma vela na qual alguém ateia um fogo.” Então a criança é para a mãe como uma vela que daqui a pouco vai ser acessa. Ela mesma vai levá-la até o padre que vai acender ali a luz da graça, participação criada na vida de Deus. Ela olha e diz: “Quanto vai arder esta alma? Que bem fará? Que glória dará a Deus?”

Se for um medíocre, mas tiver a coragem de assumir a própria mediocridade, dirá: “Eu nasci e Deus me criou de inteligência, de saúde, de capacidade de atrair, de capacidade de agir medíocres, eu todo sou medíocre. Mas em mim uma coisa não é medíocre: eu adoro a Deus de todo o meu coração! Creio na Santa Igreja Católica com toda a minha alma, e estou disposto a viver a minha vida medíocre e a carregar a minha cruz de mediocridade, que me imporá em todas as circunstâncias o segundo, o terceiro, o quinto lugar, pouco importa, mas eu carregarei tudo isso comigo até o fim.

E quando eu morrer, entregarei a Deus a minha mediocridade ornada pelo meu sacrifício, pela minha aceitação, pela minha humildade. Deus receberá essa mediocridade ornada com o amor com que Ele a criou medíocre. E na escala de valores, Ele amorosamente me destina um lugar no Céu. Que maravilha ter a fronte no Céu iluminada por toda a eternidade com esta nota: é um medíocre que amou sua mediocridade com todo o amor, porque assim realizava os desígnios de Deus. Oh, grande homem!”

Na mesma hierarquia dos seres celestes, nós poderemos encontrar talvez grandes homens, com grande inteligência, e na fronte escrito: “Grande homem, teve grandes dotes e fez algo por Deus”. Isto lhe valeu um lugar no Céu.

Assim é como uma mãe olha para o seu filho.

Antes de tudo, ver nas almas o desígnio de Deus

Mais ainda, se uma mãe tiver a coragem de levar os seus raciocínios até o fim, ela não poderá deixar de pensar: “Não será que essa criança vai, um dia, ofender a Deus? Não abusará ela da paciência divina? Não será que Deus descarregará sobre esta pessoa a sua cólera e ela irá para o Inferno? A mim, como mãe, que preparei para ele este berço tão delicado, tão esplendoroso, como me dói pensar que esta boquinha que chora é capaz de ser condenada, de tal maneira que blasfemará contra Deus por toda a eternidade! E se eu me salvar, do alto do Céu, por toda a eternidade, verei esta criancinha, já adulta, blasfemando contra Deus por toda a eternidade! E direi: ‘Meu Deus! Não teria sido melhor que não tivesse nascido a correr esse risco?’”

Entretanto, se ela for verdadeira mãe, é porque antes de tudo soube ser verdadeira filha de Deus e, portanto, pensará de outra maneira:

“Se acontecer que essa minha criança, apesar de eu rezar por ela como Santa Mônica rezou por Santo Agostinho, resistir a qualquer graça e for precipitada no Inferno, oh! Deus, que destino terrível! Mas se ela merecer a vossa cólera eterna, eu não sei, meu Deus, desunir-me, desligar-me de Vós; e se Vós a odiardes, eu a odiarei também! E quando ela blasfemar contra Vós no Inferno, e Vós a amaldiçoardes, desde já junto à vossa a minha maldição de mãe. Se ela for vossa inimiga, ela terá a mim, mãe dela, como inimiga também.”

Esta seria a meditação de uma mãe levada até o último ponto.

Convívio entre Nossa Senhora e Nosso Senhor

Mas, voltando a meditar no convívio entre a Santíssima Virgem e seu Divino Filho, podemos considerar a história d’Eles durante os trinta anos em que Jesus passou recolhido na casa de Nazaré, assistiu à morte de São José — proclamado, com muito tato e acerto, pela Igreja, como Padroeiro da Boa Morte, pois não se pode morrer em melhores condições do que assistido por Nossa Senhora e pelo próprio Menino Jesus —, e o auxílio prestado pelo Filho a sua Mãe que ficara viúva.

Poderíamos imaginar as conversas d’Ele com Ela, quando, estando sozinhos na casa de Nazaré, à noite, terminada a refeição, olhavam-se e se queriam bem, fruindo da enorme felicidade de estarem juntos, de se olharam e de se quererem bem, de conversar, trocar pensamentos, etc.

Nossa Senhora meditando no que aconteceria futuramente, pensava, inclusive, que viria um determinado momento em que os Anjos haveriam de transportar aquela casa santa pelos ares para não cair nas mãos dos maometanos. Que a santa casa de Nazaré, ia ser pousada num lugar chamado Loreto, e que ali, um número incontável de peregrinos, provavelmente até o fim do mundo, iriam venerar as paredes santas entre as quais ecoaram essas conversas, onde se ouviram os risos cândidos e cristalinos do Menino Jesus, onde se ouviu a voz grave, paterna e afetuosa de São José, onde se ouviu a voz de Virgem-Mãe, modulada quase ao infinito como um órgão, exprimindo adoração, veneração e ternura em todos os graus e modalidades.

Maria Santíssima pensava na vida pública de Nosso Senhor, nos milagres que Ele iria praticar, nas almas que Ele iria atrair, como tudo isto daria no momento em que Ele começaria a ser recusado pelos judeus, e na traição de Judas.

Depois Pentecostes, a dilatação da Igreja por toda a bacia do Mediterrâneo, os lugares misteriosos por onde andariam os Apóstolos, enchendo a Terra com a presença deles. A libertação da Igreja por Constantino, a Igreja que brilha na face da Terra, a invasão dos bárbaros, depois São Bento, que se desprende daquele pantanal, caminha até Subiaco e ali começa uma vida espiritual da qual nascerá a Idade Média.

Vem a Idade Média, mas começa a Revolução: o Renascimento, o Humanismo, o Protestantismo, a Revolução Francesa, a Revolução Comunista…

Tudo isso nós devemos considerar quando estivermos ao pé do Presépio, e dizer: Ele é a pedra de divisão, a pedra de escândalo que divide a História pelo meio. Tudo quanto está com Ele, é a Contra-Revolução, tudo quanto é contra Ele é a Revolução.

Prece ao Divino Infante

Poderíamos, então, fazer esta oração junto ao Presépio:

Aqui está mais um filho da Igreja militante, Senhor Jesus Cristo, trazido pela graça que vossa celeste Mãe, por suas preces, obteve de Vós. Aqui está este batalhador, ajoelhado diante de Vós, antes de tudo para Vos agradecer.

Agradeço-Vos a vida que destes ao meu corpo, o momento em que insuflaste minha alma, o plano eterno que tínheis a respeito de mim, como de qualquer homem, um plano determinado e individual, por onde deveria haver nos desígnios de Deus alguém que, dentro da coleção dos homens, haveria de ocupar este lugar, mínimo que fosse, no enorme mosaico de criaturas humanas, que devem subir até o Céu.

Agradeço-Vos por terdes posto uma luta no meu caminho, para que eu pudesse ser herói. Agradeço-Vos a força que me destes para rezar, resistir e espancar o demônio, como dizia Santo Antonio Maria Claret, o fundador dos padres do Coração de Maria: “A Dios orando y con el mazo dando”.

Agradeço-Vos todos os anos de minha vida que já se foram e que se passaram na vossa graça. Agradeço-Vos os anos que se foram e que, embora não se tenham passado na vossa graça, Vós os encerrastes, num determinado momento, e eu abandonei o caminho da desgraça, para entrar de novo na vossa graça.

Agradeço-Vos, oh! Divino Infante, oh! Menino Jesus, a hora em que eu disse sim e comecei a Vos servir.

Eu Vos agradeço tudo quanto fiz de difícil para combater os meus defeitos; por não Vos terdes impacientado comigo, e por terdes me conservado vivo para que eu ainda tivesse tempo de corrigi-los antes de morrer. E se um pedido quero Vos fazer neste Natal, Senhor Jesus, ei-lo, adaptando um pouco o versículo de um Salmo que diz “Não tireis a minha vida na metade dos meus dias”: Não me tireis os dias, na metade da minha obra, e concedei-me que meus olhos não se cerrem pela morte, meus músculos não percam seu vigor, minha alma não perca a sua força e sua agilidade, antes que eu tenha, para a vossa glória, vencido todos os meus defeitos, galgado todas as alturas interiores que Vós me criastes para galgar, e no vosso campo de batalha eu tenha prestado a Vós, por feitos heroicos, toda a glória que Vós esperáveis de mim quando Vós me criastes. Assim seja.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1988)

Santo Odilon

O famoso abade do mosteiro beneditino de Cluny foi objeto dos comentários de Dr. Plinio durante uma série de conferências proferidas no ano de 1972. Nos seguintes trechos selecionados, Dr. Plinio salienta como até o modo de andar ou de falar de uma pessoa pode demonstrar a santidade de sua alma.

Cada época histórica possui grandes homens característicos. Santo Odilon o foi para a Idade Média: grandioso no sentido verdadeiro da palavra.

Apesar de possuir grande valor pessoal, o que sobretudo transparecia em nosso santo eram as graças sobrenaturais — incomparavelmente mais preciosas do que qualquer valor pessoal — que adornavam sua alma.

Sua personalidade tinha tal amplitude harmônica de aspectos, como não se encontra nos grandes homens do tempo da Revolução.

O modo de andar

Passemos a comentar trechos de sua vida, retirados de uma ficha biográfica(1):

“Comecemos por seus méritos menores. E digamos que esse homem tinha um andar grave, uma voz admirável, ele falava bem. Era uma alegria vê-lo.”

Ao descrever o porte e o modo de ser do santo, o autor ressalta mais os sinais da virtude do que a virtude propriamente dita.

O modo de andar das pessoas as define muito, e por causa disso o biógrafo, contemporâneo de Santo Odilon, julgou que deveria começar a descrevê-lo pelo passo.

O que é um passo grave?

É um passo firme, varonil, de alguém que, ainda que não tenha diante de si obstáculos visíveis, anda vencendo. É um passo cheio de consequências e de ponderação.

Compostura respeitosa

“Cada um de seus movimentos exprimia honestidade. Sua fisionomia era angélica e seu olhar sereno.”

Honestidade, no francês antigo, significava compostura. “Un honnête homme” significava um homem muito composto, muito digno. Vê-se, então, que todo o modo de ser de Santo Odilon era cheio de compostura e de dignidade.

É preciso ressaltar também que na Idade Média o conceito de anjo não era o desse tipo de anjinho gorduchinho, com ares de irresponsável. Não seria um elogio dizer para alguém que ele tem aquela carinha. A ideia que o medieval fazia dos anjos era a que está expressa nos vitrais medievais: os grandes heróis do Céu; príncipes na presença do Altíssimo.

Percebe-se, assim, o que o autor quer dizer quando afirma que “sua fisionomia era angélica”. Este era Santo Odilon, que grande figura

Continua a ficha:
“Cada dobra de seu hábito sacerdotal apresentava dignidade e mostrava o respeito que ele tinha por si mesmo e pelos outros.”

Santo Odilon sabia que era a “alma” do grande movimento de Cluny, o qual, por sua vez, era a “alma” irradiante da Idade Média.

A verdadeira humildade consiste em respeitar-se a si próprio como deve ser respeitado.

Sabendo ser Superior de uma Ordem religiosa, homem sagrado por Deus, ele se respeitava enormemente. Vemos que o porte desse varão de Deus era, ao mesmo tempo, principescamente angélico e cheio de humildade.

Alma luminosa

Continua a narração:

“Ele trazia consigo qualquer coisa de luminoso, que convidava a imitá-lo e venerá-lo. A luz da graça, que estava nele, brilhava, por assim dizer, no exterior, e manifestava a qualidade de sua alma.”

O autor soube fixar essa luminosidade que havia em Santo Odilon, a qual nota-se em tantos santos. Ela é algo difícil de descrever, pois trata-se de uma luminosidade do olhar e de algo que paira em torno da personalidade.

Assim como há algo que distingue um homem morto daquele que apenas dorme, há também uma luz na fisionomia do santo, a qual o distingue de quem não o é.

“Seu rosto exprimia a uma vez a autoridade e a benevolência.”

O autor acentua muito bem os contrastes: autoridade e benevolência.

Imaginemos um claustro medieval, repleto de ogivas, e Santo Odilon andando sozinho. Ao longe, um noviço o vê e se ajoelha, Santo Odilon passa e o abençoa.

É bem o contrário daquilo que a Revolução procura incutir nas mentalidades: quem tem autoridade é uma espécie de fera que subiu e, quando encontra a oportunidade de pisar nos outros, fica contentíssima, como quem diz: “Eu apanhei até subir; agora desconto nos que estão embaixo”.

Uma concepção da autoridade não pode ser mais ordinária do que essa.

Pelo contrário, a autoridade existe para fazer o bem. Sua missão é cumprir a benevolência. Benevolência quer dizer querer o bem dos outros.

“Para os bons, ele se mostrava risonho e acolhedor, mas, para os orgulhosos e rebeldes, se tornava tão terrível que era difícil conseguirem fitar seu olhar.”

Que verdadeira maravilha! Eu tenho entusiasmo por essa arma do homem que é o olhar. Quão poucos homens a possuem! O autor dessa ficha soube ver o olhar terrível de Santo Odilon. Isso é admirável! Terrível como um exército em ordem de batalha!

“Seus olhos brilhavam com brilho singular: eram olhos acostumados às lágrimas.”

Como o mundo moderno não compreende mais isso! O mundo moderno só gosta dos olhos habituados a rir; olhos estultos e néscios, os quais só dizem o que sente o egoísmo. O mundo antigo compreendia qual era o valor dos olhos habituados a chorar pelas coisas santas. Chorar pela Paixão de Nosso Senhor, chorar pelos pecados, pelos outros e por si. O pranto sagrado transforma o interior do olhar e o faz luminoso como uma linda rosácea banhada pelos raios do sol.

“Mesmo em viagem, Santo Odilon trazia sempre um livro nas mãos. Enquanto viajava a cavalo, sua alma refazia as forças através da leitura.”

Não entendamos isso à maneira moderna, onde o indivíduo tira do bolso um livrinho e lê comodamente. Devemos pensar que os livros do tempo de Santo Odilon eram in-fólios, pesadões, feitos em pergaminho.

Apesar disso ele tinha sempre um livro consigo. Quer dizer, ele aproveitava todos os pequenos interstícios para ler alguma coisa e assim desenvolver seu espírito na meditação das coisas celestes.

Ademais, a locomoção não era como hoje em dia! Viajava-se a cavalo ou a burro. E as estradas, como eram? As mais precárias possíveis. As menores distâncias eram transpostas em longos períodos.

Imaginemos, então, que cena pitoresca: o cavalo trotando e Santo Odilon com uma das mãos na rédea e com a outra segurando um pergaminho escrito com umas letras enormes; ele enrola a folha que terminou de ler, pensa um pouco, coloca essa folha num saco, e tira outra página. O animal andando em meio de precipícios, onde Santo Odilon para e pede o auxílio do Anjo da Guarda!

“Gloria tibi, Domine”… E continuava.

Autoridade e benevolência, virtudes indissociáveis

“Santo Odilon difundia a caridade fraterna por sua própria feição, antes de ensiná-la. E ele a ensinava, sobretudo por seus atos.

“Amando seus irmãos com o interno calor de sua alma, o santo queria engrandecer a cada um deles, e levá-los ao amor de Deus. Jamais desprezava ou rejeitava pessoa alguma; por sua caridade — verdadeiramente divina — ele convidava a todo o mundo, sem nenhuma reserva, a aproveitar de sua indulgência, pois aquele que é verdadeiramente grande arde nesse desejo de amar o próximo.”

Santo Odilon foi abade de Cluny numa época em que a íntima conjugação das instituições temporais e espirituais fazia de um abade um personagem de grande importância. E, tomando em consideração que Cluny representava a maior abadia francesa do tempo, ser seu abade significava ser um dos homens mais consideráveis da estrutura política e social da Idade Média.

Ademais, o mosteiro de Cluny possuía os direitos feudais sobre grande quantidade de terras, e isso dava a Santo Odilon não só o poder espiritual, mas também o material. Ele, por sua reputação pessoal, pelo prestígio de sua santidade e cultura, estava elevado muito acima de seus contemporâneos.

Esse homem, tão insigne por uma porção de circunstâncias, sabia, entretanto, ser muito paterno para com os monges colocados sob a sua jurisdição.

Então, o biógrafo mostra como ele se aproximava de cada um com afeto, entrando em seus problemas pessoais para resolvê-los, e fazendo junto a cada um o papel de Bom Pastor.

Continua a ficha:

“Pois, como é natural, quanto mais alto é um homem, tanto maior é a caridade que ele tem para com os seus irmãos.”

Segundo o espírito que sopra no mundo depois do Protestantismo e da Revolução Francesa, tem-se a errada idéia de que quanto mais um homem é elevado, mais ele despreza os que estão abaixo de si; o superior vê no inferior um concorrente, o qual quer subir e necessita ser espancado para não ter êxito; o inferior, por sua vez, vê no superior um tirano que está lhe explorando e precisa ser derrubado. Desse modo, em qualquer lugar onde haja um degrau hierárquico, há uma luta entre superior e inferior.

Na história de Santo Odilon vemos o contrário. Quanto mais elevado está um homem, mais ele deve tender à bondade, à proteção dos inferiores e a exercer uma autoridade benfazeja.

Onde está o fundamento da idéia de autoridade, como ela era exercida por Santo Odilon?

São Tomás de Aquino explica, esplendidamente, que o superior está para com o inferior como uma imagem de Deus. Quer dizer, ele deve proteger o menor, orientá-lo, guiá-lo, à semelhança de como Deus protege todas as suas criaturas.

Na ordem estabelecida por Deus, os anjos são desiguais, o superior guia o inferior.

Isso se verifica também no mundo humano. Os mais eminentes — por seu poder, talento ou autoridade — devem representar a Deus junto aos que estão abaixo de si e fazer-lhes bem.

Segundo essa consideração, quanto mais alta é a autoridade de alguém, maior é a responsabilidade que ele tem de fazer bem aos outros.

Por isso os súditos devem amar especialmente suas autoridades e querer bem aos que estão constituídos numa dignidade especial.

Este é o princípio que rege a Santa Igreja Católica. Por exemplo, numa paróquia, não é razoável que um fiel ame o seu Vigário e espere dele toda proteção e apoio? Mas, o fiel deve amar ainda mais ao Bispo. E, por isso, não há motivos para esperar maior bondade do Bispo do que do Vigário? E o Papa, não deve ser ainda mais venerado? E não há também motivos para esperar mais indulgência dele do que do Prelado?

A “poluição” do mundo moderno

Essas são considerações que nos descansam da brutalidade de todos os dias!

Não é verdadeiro que nos despolui pensar nisso?

Quando leio nos jornais matérias referentes à poluição em nossas cidades, tenho vontade de dizer: “Vocês não percebem que o que mais polui o mundo contemporâneo é o homem contemporâneo? Não há chaminé que polua mais do que a Revolução!” A verdadeira despoluição se daria quando tivéssemos na terra verdadeiros “Santos Odilons”…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 23 e 25/9/1972, 2 e 13/10/1972)

1) Não possuímos referência exata para a citação do trecho comentado.

Ternura da Mãe de Deus

O protótipo de ternura é o coração materno. Especialmente o é o Coração da Mãe das mães, que excede de um modo inimaginável a ternura de todas as mães que houve, há e haverá. Quase que se poderia dizer que Nossa Senhora é a personificação da ternura.

Para exprimir isso aos homens por formas diversas, Maria Santíssima multiplica suas graças. Ora Ela aparece sob a forma de uma Rainha esplêndida, em homenagem à qual se constroem catedrais magníficas; ora sob o aspecto de Mãe de misericórdia, meiga, que Se contenta com o culto que Lhe é tributado em pequenas choupanas, onde, entretanto, Ela faz milagres excelentes para tornar mais patente sua maternal bondade, animar os homens a Lhe pedirem, com confiança, tudo quanto queiram, e convidá-los a amá-La por causa da ternura que Ela lhes demonstra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/5/1966)

Santa Melânia: Invencível e heróica

Filha de uma família romana nobilíssima e fabulosamente rica, Santa Melânia vendeu judiciosamente todos os seus bens, fez doações às igrejas, aos pobres, resgatou cativos e construiu mosteiros. Tornou-se religiosa e praticou as virtudes de forma vigorosa, autêntica, genuína, coerente, levando até as últimas consequências os princípios que adotara.

Santa Melânia nasceu em 383, filha de nobilíssima família senatorial romana. Aos 14 anos quis se consagrar a Deus, mas seus pais fizeram-na casar com Valério Piniano, somente três anos mais velho que ela.

Possuidora de grande fortuna…

Com esse casamento, reuniam-se dois ramos de uma das maiores famílias do Império, conservando-se também o patrimônio mais rico existente na aristocracia romana.

Depois de ter dois filhos, que morreram em tenra idade, os dois esposos decidiram adotar vida de castidade. Resolveu, então, Melânia, desfazer-se de seus bens e se dedicar inteiramente à oração e ao estudo dos livros santos.

Mas foram necessários anos para que a Santa conseguisse doar sua fortuna, definida por um autor como “mundial”. De fato, além de joias, pratarias e preciosidades artísticas, Melânia possuía latifúndios na Itália, Sicília, Gália, Espanha, África Proconsular, Numídia, Mauritânia, Mesopotâmia, Síria, Palestina e Egito. Essa fortuna era tão grande que um palácio em Roma ficou sem comprador, por não se achar quem tivesse dinheiro para adquiri-lo. O próprio senado romano levantou objeções ao que ele considerou esbanjamento. Mas a Santa persistiu em seu intento, tendo-o levado a cabo após anos e anos de luta.

À medida que ia vendendo seus bens, erguia mosteiros, protegia os pobres, fazia doações às igrejas e resgatava prisioneiros. Ao mesmo tempo, esses negócios obrigavam a Santa a viajar muito, sendo interessante notar que ela procurava fixar residência em lugares onde o bispo era homem de vida santa e conhecedor das Escrituras. Assim, teve contato com grandes santos de sua época, como Santo Agostinho.

Depois de ter conseguido completar a “obra de Marta”, como chamava a preocupação com seus bens terrenos, dedicou-se “à de Maria”, como sempre desejava. Retirou-se para um mosteiro em Jerusalém. Vestiu-se com um saco de penitência, entregando-se à oração, ao jejum e aos estudos das Escrituras. Escreveu muito, e tão bem, que realizou notável trabalho de copista, dado seu grande conhecimento de latim e grego. Incentivou a reza do Ofício Divino durante a noite e foi orientadora espiritual de muitos mosteiros femininos.

Santa Melânia, que morreu em 31 de dezembro de 439, teve sua vida minuciosamente relatada por seu filho adotivo e discípulo espiritual. Considerada uma das grandes figuras de sua época, mereceu grande elogio de São Jerônimo que a citava como exemplo para suas dirigidas.(1)

…quis doá-la para praticar a pobreza

Essa resenha biográfica sobre Santa Melânia só pode ser devidamente compreendida tomando-se em consideração o modo pelo qual as riquezas estavam distribuídas, tanto no Império Romano do Ocidente como no do Oriente.

De um modo geral, em tudo quanto se publica a respeito dos povos pagãos, a historiografia oficial é cheia de elogios aos romanos, aos gregos, à civilização egípcia, à Índia, à China, ao Japão.

Entretanto, não encontramos referências elogiosas, por exemplo, à classe média indiana. Nem sobre o bem-estar dos trabalhadores manuais entre os romanos. A maior parte dos habitantes da cidade de Roma, e do Império Romano, era constituída de escravos. A lei, o senso jurídico dos romanos era fabuloso. Contudo, a maior parte da população estava colocada à margem da lei…

No mundo pagão, vemos se acumularem riquezas fabulosas sem qualquer proporção com a capacidade de fruir — ou mesmo de se ornamentar — do homem. O luxo ordenado não é censurável. Portanto, é compreensível que um potentado tenha grandes palácios. Mas que ele possua tantos palácios que não tenha tempo para conhecê-los nem para deles usar, tantas terras que não disponha de tempo para geri-las, evidentemente há uma desproporção entre ele e esses bens. E existe, portanto, um fenômeno de má distribuição.

Entre os antigos romanos encontramos homens tidos como possuidores de uma riqueza média, por exemplo, Cícero, cujo inventário de bens era considerado como de uma fortuna mediana. Entretanto, era um nababo. Ele mesmo reconhece, em cartas e outros documentos, não saber no que consistia a maior parte de seu patrimônio.

Santa Melânia era herdeira de uma dessas famílias fabulosamente ricas, que tinham patrimônio por todo o Império Romano do Ocidente. E ela, então, realiza uma dessas verdadeiras belezas de sabedoria da Igreja, que é a seguinte: uma nobre que quer não só reduzir a sua fortuna a proporções humanas, mas doá-la inteiramente para praticar a pobreza.

Sabedoria para gerir os bens terrenos

E ela não está nas condições de São Francisco de Assis, que simplesmente tirou a túnica, jogou-a para o pai dele, Pietro di Bernardone, e disse: “Agora eu posso dizer: meu Pai que estais no Céu…”; entregou-se ao bispo que lhe impôs um hábito, e estava liquidada a questão. Deserdado pelo pai, ele só tinha uma túnica para dar, de maneira que era um ato rápido de executar-se.

Santa Melânia, não; ela possuía um patrimônio fabuloso, como vimos: preciosidades artísticas, palácios, riquezas de toda ordem, terras, latifúndios etc. E não podia dilapidar essa fortuna de um modo estúpido. Porque, por mais que quisesse ser religiosa e, portanto, pobre, ela era responsável perante Deus por essa fortuna. E, portanto, deveria vendê-la e aplicá-la ordenadamente. Só depois de tudo vendido e bem aplicado, ela, em consciência, podia entrar para o convento.

Vemos, então, este fato que nas histórias dos povos pagãos absolutamente não se encontra: uma grande dama, de uma grande família, trabalhando para ser pobre. Mas, ao mesmo tempo, esse ímpeto radical de uma pobreza completa se conjuga com a sabedoria de uma boa gestão dos bens desta Terra, e a noção de que essa aplicação deve ser criteriosa.

De outro lado, vê-se a perseverança do propósito dela. Um propósito mais débil, ao longo desses anos e anos de despojamento, em certo momento teria se rompido: “Ah, não! Essa pérola eu deixo para dar no fim, aquela outra joia vai ser a última coisa que venderei; essa tal coisinha eu guardo para mim…”

Essa Santa não agiu assim. Invencível e heroica, perseverou durante todos os anos, vendendo, aplicando, vendendo, aplicando. E enfrentando — a ficha deixa entrever isto — alguma dificuldade, porque a venda dos seus bens produziu um certo regurgitamento no mercado, a tal ponto que um palácio dela valia tanto que não houve comprador. Pois bem, ela acaba liquidando tudo e vai para o mosteiro.

Conversou com Santo Agostinho, foi elogiada por São Jerônimo

Então se manifesta outro aspecto de sua alma. Depois desse despojamento, ela é constituída em dignidade e se torna uma excelente superiora do mosteiro; passa a dirigir almas. E após ter dirigido a destruição de seu patrimônio, ela constrói o patrimônio espiritual de outras almas. Ela aconselha numerosos conventos, orienta toda uma vasta família de almas, em vários lugares. E depois de anos e anos da prática efetiva de uma pobreza completa, ela entrega sua alma a Deus.

Durante esse tempo, dispersando tesouros que todos recolhem e recolhendo tesouros que muitos dispersam. Ela não tem sede de posição social, de dinheiro, de conforto, mas tem sede de almas. Quer ser pobre, sacrificar-se pelas almas dos outros para dá-las a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Nossa Senhora.

Ademais, procurava o convívio das pessoas virtuosas, indo morar — antes de ser religiosa — em dioceses onde havia homens santos com quem ela pudesse se aconselhar. Teve, assim, a graça e o privilégio extraordinários de conhecer Santo Agostinho e conversar com ele.

Uma virtude assim severa, vigorosa, autêntica, genuína, coerente, igual a si mesma até os últimos desdobramentos das últimas consequências dos princípios que aceitou, mereceria bem o panegírico que teve. Ser louvada por um Santo é uma grande coisa, mas por São Jerônimo é uma coisa grandíssima! Porque São Jerônimo tinha o gênio, o fogo da descompostura. Para arrasar alguém com palavras candentes e merecidas, para dizer-lhe verdades ao pé da letra, não havia como São Jerônimo. Até a Santo Agostinho ele escreveu uma carta dizendo coisas duras, a tal ponto que Santo Agostinho escreveu-lhe depois uma carta, gracejando, brincando, afirmando que afinal não precisava tanto furor, que ele se convenceria com menos zanga, etc. Não era uma intemperança de São Jerônimo, era o feitio do seu espírito, a apreciabilíssima forma de santidade dele.

Coube-lhe ter como comentador da vida dela São Jerônimo, o homem implacável, arguto, que via os defeitos até o fim e que a julgou como um ouro perfeito, no qual não havia nenhuma liga e nenhuma impureza. E ela morreu tendo esta glorificação suprema: foi a dama elogiada por São Jerônimo! O Santo da apóstrofe vigorosa e inflexível, o Santo da severidade completa, analisou-a e achou-a boa. Ela estava inteiramente pronta para ser entregue a Deus.

Grandeza e verdadeira imortalidade dos Santos

O que devemos dizer, em nossa época, a respeito da biografia de uma Santa como esta? Sem dúvida, edifica muito, mas pede, de outro lado, um comentário.

Não podemos julgar que ser uma grande dama, senhora de muitos bens, é contrário à santidade, e que Santa Melânia deixou seu estado anterior por ser incompatível com a santidade. Isto é falso.

Uma grande dama dotada de grandes bens deve, isto sim, fazer grandes esmolas. Ela pode manter largamente sua posição social e a dignidade de sua categoria gozando de todos esses bens, mas doando, na medida do necessário, uma parte do supérfluo. Agindo assim ela pode ser uma grande dama e santificar-se. Não devemos, portanto, nos iludir com o alcance do gesto de Santa Melânia.

Esse gesto foi belo porque constituiu a renúncia de uma situação terrena boa, agradável, na qual ela poderia se santificar. Para se santificar, ela deveria ter o desapego necessário das coisas da Terra, mas isto ela poderia conseguir mesmo no gozo de uma grande fortuna.

Por causa disso houve na História numerosas rainhas santas, numerosos reis santos, pessoas que, do ponto de vista social, eram muito mais do que Santa Melânia e dispunham também de grande quantidade de dinheiro.

Ela, entretanto, foi chamada pela graça para outra forma de vida, e soube obedecer a esse chamado, seguiu-o e santificou-se. E nisto ela andou perfeitamente bem, porque se deve fazer a vontade de Deus. E para com ela a vontade de Deus foi muito generosa, porque a chamou para o estado religioso, que é mais perfeito. Ela, então, se santificou nesse estado com edificação para todos nós e até para a posteridade. Esta é a glória de um Santo.

Certa vez, tendo Vitor Hugo sido eleito para a Academia Francesa de Letras, alguém comentava que ele se tinha tornado imortal, mas não era necessária a glorificação da Academia de Letras, porque o nome dele já era imortal para todos os séculos. Vitor Hugo, que conhecia Dom Bosco, disse: “Imortal é Dom Bosco, porque ele vai ser canonizado. E muito tempo depois de que ninguém mais leia meus romances, e só alguns eruditos conheçam meu nome, ainda a Igreja vai ter no mundo inteiro festas litúrgicas em louvor de Dom Bosco. Não há senão uma verdadeira forma de imortalidade: é a dos Santos da Igreja Católica”. Perfeitamente bem apanhado!

Há uns dez anos, li a notícia de que os livros de Vitor Hugo, que restaram nos estoques das livrarias por falta de leitores, eram vendidos em carrocinhas a peso, nas ruas de Paris.

Santa Melânia viveu há quantos séculos! O que eram as nossas respectivas pátrias no tempo em que Santa Melânia floresceu? Nunca se tinha ouvido falar dessas terras da América! Ela morreu, seu corpo se desfez, não resta nem o pó, mas num lugar onde naquele tempo talvez houvesse uma taba de índios, há gente de várias nações glorificando o nome dela. Isto acontecerá assim indefinidamente. Tal é a grandeza e a imortalidade dos Santos da Igreja Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/2/1972)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos desta citação.

“Vinde, a Santíssima Virgem vos espera!”

Ao contemplar as aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, Dr. Plinio ressalta o caráter profético de suas mensagens e a afabilidade e a inocência que transparecem nas narrações da Santa.

Devemos começar agora o comentário dos fatos que se relacionam com a aparição de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré.

Ângulo de análise dos fatos precedentes às aparições

Para acompanhar bem o assunto é preciso conhecer a situação geral da França e da Europa naquele tempo, porque se trata de uma série de revelações de caráter profético, neste sentido da  palavra: elas se deram em 1830 e Nossa Senhora previu fatos — naquele tempo mais ou menos improváveis — que se dariam em 1870, quarenta anos depois, exatamente.

Os fatos tinham muita relação um com o outro e, debaixo desse ponto de vista, essas aparições interessam de um modo todo particular, porque a revolução de 1830 é apresentada por Nossa Senhora como sendo  o primeiro sinal de um conjunto de desordens na França, que haveria de culminar com uma revolução em 1870.

A revolução de 1830 foi liberal. A de 1870 foi a chamada Comuna de Paris, e talvez se possa dizer a primeira revolução comunista na Europa, se não se considerar a Revolução Francesa como uma revolução comunista.

Isso é outra questão. Habitualmente não era tida como comunista. Hoje muitos historiadores reconhecem que ela, chegando ao seu auge, tomou o caráter, o espírito comunista pelo menos.

Enfim, deixando isso de lado, é, portanto, a ideia do liberalismo gerando o comunismo que é apresentada de algum modo pelas revelações. Ideia que se relaciona tanto com a RCR e com as  preocupações habituais do Grupo, que eu não poderia deixar de realçar isto desde o começo.

Tática revolucionária de Napoleão

Qual era a situação da França e da Europa em 1830? Era a seguinte. A Revolução Francesa deve ser considerada como um grande movimento revolucionário que começou em 1789,  simbolicamente, com a queda da Bastilha e que, verdadeiramente, teve seu fim em 1815, quando Napoleão caiu pela segunda vez.

Napoleão é tido por muitos como  o contrário da revolução, porque ele impôs ordem à França quando ela estava no caos e na desordem. Mas a questão é que Revolução não é apenas desordem,   caos, é também uma ordem material na qual se impõe que as coisas fiquem de cabeça para baixo. E foi exatamente o que Napoleão fez.

Ele aproveitou a ordem que ele impôs e aproveitou o prestígio das vitórias militares que alcançou para impor à França, de modo estável, uma série de transformações que a Revolução Francesa introduziu, mas  que eram mal aceitas pelo povo. Em algumas coisas Napoleão recuou em relação à Revolução Francesa, em outras coisas ele impôs. E isto fazia parte do jogo: ceder algo, mas tornar  algo definitivo e irremediável.

Revanche da Revolução

Em 1815 se dá a Batalha do Waterloo, Napoleão é mandado para Santa Helena, e a ordem na França gira: os Bourbons são restaurados e reinam de 1815 a 1830.

A restauração dos Bourbons se deu na pessoa de Luís XVIII, um irmão de Luís XVI. Ele foi sucedido por Carlos X, que reinou de 1824 até 1830, um reinado rápido. Em 1830 houve uma revolução  de caráter liberal que destituiu Carlos X, tido como um rei reacionário e ultramontano.

Em seu lugar foi colocado um parente deles, o Duque de Orleans, que não tinha direito à sucessão ao trono e que reinaria de 1830 a 1848. A introdução de um rei ilegítimo, de ideias  conhecidamente liberais, representava uma revanche da Revolução.

Podemos dizer que a Revolução deu um grande passo para trás com a restauração dos Bourbons; fez meio passo para frente com a implantação da monarquia burguesa de Luís Felipe, e daí para a frente os fatos se foram dando até a Comuna de Paris em 1870.

Carlos X era católico, mas via uma série de coisas muito estrabicamente. Apesar disso, por causa da onda da opinião contrarrevolucionária, a Religião fez muitos progressos na França, restaurou uma porção de coisas,  de instituições que tinham caído, foi uma ocasião de recatolicização.

Nesse período os adversários da Religião também se levantaram e houve motins, agressões, um desenvolvimento grande do anticlericalismo. Isso era um bom sinal do ponto de vista religioso, porque sempre que a Igreja é atacada por seus inimigos, quer dizer que ela está fiel a si mesma.

Devemo-nos situar nessa atmosfera para compreendermos o ambiente no  qual se deram as revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, religiosa de São Vicente de Paulo.

As Irmãs da Caridade

O hábito das Irmãs de Caridade era preto, como são os hábitos das religiosas, mas com uma espécie de grande gola engomada branca. A cabeça era adornada por uma toca bretã um tanto estilizada pela inspiração  e pelas mãos da Igreja. Naturalmente, um rosário pendente da cintura.

Eu não tive muito contato com essas freiras, mas conheci muitas e muitas delas. Eram, em geral, pessoas robustas, fortes e prontas para o trabalho. Algumas — isso não as desdourava em nada — um pouco  camponesas. Olhar límpido, reto, atitude despretensiosa de quem preferia passar despercebida.

Elas eram destinadas muito frequentemente a tomar conta dos hospitais, atender os doentes, e a outras obras de caridade material. Obras de misericórdia temporal, que elas aproveitavam como ocasião para obras de misericórdia espiritual: aproveitavam para chamar um padre para o agonizante, convidavam uma criança para ir ao catecismo da paróquia ou no convento delas. Se  encontravam alguém desventurado pela rua, paravam, perguntavam o que queria, ajudavam a pessoa, etc. Enfim, faziam tudo quanto pudessem para atender aos infortúnios, às carências  materiais, mas, sobretudo, às necessidades espirituais dos mais variados ambientes por onde elas costumavam se infiltrar. A elevação desse apostolado que elas realizavam era tão grande e elas eram de tal maneira admiradas por isso que uma irmã de São Vicente de Paulo costumava ser tida como o próprio símbolo da Religião numa das suas expressões mais belas e mais comovedoras.

Quando Nossa Senhora deseja…

Catarina Labouré nasceu em 1806. Era filha de um casal de proprietários rurais. Sua mãe faleceu quando tinha apenas nove anos.

Catarina pediu autorização do pai para ser freira. Este se opôs terminantemente e julgou bom, para distraí-la, mandá-la para um lugar de prazer, um emprego onde ela podia se distrair, ter  prazeres.

Paris já era, para as proporções da França e do mundo daquele tempo, uma cidade de luxo, uma cidade-turbilhão da alegria, do contentamento de viver mundano. O pai queria conduzi-la até Paris para a vocação desaparecer.

Mas quando Nossa Senhora quer, quer: Catarina acabou indo para Paris, tornou-se freira e recebeu as revelações.

Nos subúrbios de Paris

Catarina Labouré, no ano de 1828 foi posta pelo pai ajudando seu irmão num pequeno  restaurante para operários, num dos bairros mais populosos de Paris.

Era um restaurante só de homens. Com certeza  estes homens comiam ali porque não tinham tempo de ir para casa comer. Imaginem a beberagem, as conversas imorais, as canções. E a futura santa obrigada pelo pai a servir ali. Vejam o contraste e o “rio chinês” que o desígnio da Providência percorreu nesta ocasião.

Ela tinha nessa ocasião 22 anos, uma idade inteiramente inadequada para esse tipo de serviço. Ela ficava — era a defesa dela — quieta, e durante o serviço nunca descerrava os lábios. Falassem com ela o que fosse, perguntassem o que quisesse, ela servia sem dizer uma palavra. Era o meio de, naquele ambiente, se isolar e proteger a sua própria pureza, a sua piedade.

Ela se sentia supliciada em um ambiente tão livre como esse, onde os gracejos e até os galanteios a ela evidentemente não faltavam.

O operário daquele tempo era, em geral, muito corpulento, porque a indústria era muito menos mecanizada do que hoje em dia, exigia muito mais força no trabalho manual. Imaginem um    restaurante pequeno  cheio de homenzarrões. Entra uma donzela que não tem outra coisa senão seu Anjo da Guarda para defendê-la e que acaba domando o ambiente.

Brincadeira de cá, gracejo de lá, galanteios de acolá. Ela tem apenas a defesa do repúdio e dos lábios errados. Ela domina. Vê-se a virtude dominando o vício, o espírito dominando a matéria. Que bela vitória e como isso nos ajuda a conhecer o perfil moral da santa.

Em Châtillon-sur-Seine Esse martírio durou cerca de um ano. Em 1829 Santa Catarina Labouré passou a residir com uma cunhada, que mantinha um pensionato para moças em Châtillon-sur-Seine, no departamento de Côte d’Or. Era aí que uma parte da nobreza da Borgonha enviava suas filhas.

Catarina viveu com mais liberdade e pôde melhorar algum tanto sua escrita. Mas a ortografia dela foi sempre muito irregular.

Em janeiro de 1830 ela entrava no hospital de caridade dirigido pelas irmãs de São Vicente de Paulo em Châtillon-sur-Seine.

Ela, que tinha vergado os operários do botequim, vergou também o pai. Depois de três meses de postulantado, seguiu, enfim, para Paris. E em 1830, no mês de abril, pela primeira vez entrou no noviciado da Rue du Bac, onde as aparições se deram. Ela era, portanto, noviça quando essas aparições se verificaram.

Junto ao coração de São Vicente Três dias depois da chegada de Catarina, deu-se a solene transladação dos despojos de São Vicente de Paulo para a capela da Rue du Sèvre, grande cerimônia à qual assistiam o Rei Carlos X e o arcebispo de Paris, Mons. Quélan.

Que cena linda: o arcebispo de Paris com certeza presidindo a cerimônia, é provável que o pálio cobrisse os restos mortais de São Vicente de Paulo e ali fosse o rei também. Tudo leva a crer que antecedendo e fechando  o cortejo das relíquias, havia personalidades do clero, da família real, da corte, povo em quantidade, provavelmente tropas apresentando armas, etc. Assim se deu a transladação do corpo de São Vicente de Paulo, que era o fundador da congregação religiosa para onde ela estava entrando e que era, naturalmente, venerado por todo o povo francês.

Santa Catarina, como noviça, frequentou várias vezes a capela de Saint-Lazare, onde foi colocado o corpo de São Vicente de Paulo. Conta ela:

O coração de São Vicente aparecia todas as vezes que eu voltava de Saint-Lazare. Apareceu-me três vezes de modo diferente, três dias seguidos: branco, cor de carne, o que anunciava a paz, a calma, inocência e a união; depois o vi vermelho, cor de fogo o que indicava o incêndio de caridade de seu coração; parecia-me que a comunidade devia se renovar, estender-se até as extremidades da Terra, o que de fato se deu. Por fim o vi vermelho  negro, o que indicava tristeza. Vinham-me tristezas que tinha muita dificuldade em dominar. Não sei porque nem como essa tristeza se  relacionava  com a mudança de governo que havia proximamente na França.

São Vicente de Paulo, como santo, amando a França, a civilização cristã e sobretudo a Igreja, dava a conhecer a ela, antes da queda do governo, que o rei cairia. Exprimia a sua dor profunda  fazendo ver o próprio coração nesses coloridos diferentes. Um vermelho quase preto que indicava tristeza, o que iria acontecer?

Por que é que ela sabia de antemão?

Para que nós soubéssemos, é claro. Mas também para rezar e para ir pedindo pela causa católica na França antes mesmo da causa ser golpeada, de maneira a  conseguir que o golpe não fosse tão grande e alguma coisa sobrevivesse.

Vemos a Providência que permite o golpe, mas prepara também algo que atenua. Vê-se aí a bondade e a misericórdia de Nossa Senhora.

Graças de perseverança

Certo dia uma voz interior disse à vidente: “O coração de São Vicente está um pouco consolado, porque obteve de Deus, por mediação de Maria, que suas famílias não pereceriam no meio dessas infelicidades e que Deus se serviria delas para reanimar a fé”. Quer dizer, seria normal que o ramo masculino e feminino da obra de São Vicente de Paulo desaparecessem, mas Nossa Senhora obteve e pediu antes da revolução que essas duas famílias — eu interpreto assim, sendo ramo masculino e feminino — sobrevivessem para espalhar a fé pelo mundo inteiro. O que em larga medida aconteceu.

Revolução de julho

Os mais negros e tristes pensamentos ocorreram no dia da Santíssima Trindade, 6 de junho. A revolução foi em julho. “Nosso Senhor me apareceu como um rei com a cruz sobre o peito no Santíssimo Sacramento. Isto se passava durante a Santa Missa, no momento do Evangelho. Pareceu-me que Nosso Senhor era despojado de todos os seus ornamentos, caindo tudo por terra”. Isto  se relacionava com a revolução que haveria daí.

“Foi então que tive o pensamento que o rei da terra seria despojado de suas vestes reais”. Foi o que aconteceu nos últimos dias de julho.

“Daí os pensamentos que tive, que não saberia explicar, sobre a perda que se fazia.” Como ela era uma pessoa pouco culta, não compreendia todo o alcance desse acontecimento, o que a Religião perdia com isso.

Ela estava com o espírito pouco afeito a medir os vais-e-vens da Revolução e da Contra-Revolução, mas Nosso Senhor Jesus Cristo lhe dava a entender uma profunda tristeza com esses fatos.

Aí os senhores têm uma coisa curiosa, que é o relacionamento direto… Eu não me lembro de ter visto uma coisa parecida — talvez houvesse — de uma revelação tão altamente provável, eu no meu foro interno a tomo como certa, com um fato político. Mas assim, um fato político determinado: “A fulano vai acontecer tal coisa, e por isso Deus está triste”. Eu não me lembro de uma coisa  dessas, é um fato único — único ao menos para minha memória — e que eu gostaria de ressaltar.

O sobrenatural começa a manifestar-se

Imaginemos a cidade de Paris, naquele tempo enormemente menor do que ela é hoje, silenciosa, tranquila, ainda sem motores. Os automóveis ainda não existiam, o silêncio de toda a população que dormia era  apenas de vez em quando interrompido pelas patas de um cavalo que batia sobre a pedra da rua e que ia puxando algum carrinho ou alguma carruagem depressa durante a noite
para um lugar.

Não havia ainda luz elétrica e o dormitório das religiosas era iluminado por candeeiros. Todos dormiam, inclusive Catarina. Ali, completamente diferente do mundo fora, o maravilhoso sobrenatural começa a se desenrolar e Nossa Senhora faz a primeira das suas diversas grandes mensagens para o mundo no século XIX.

Vale a pena ler o próprio texto da santa contando o que se passou então. É um pouco longo, mas são suas próprias palavras. Isso fará um desenvolvimento do tema.

“A Santíssima Virgem vos espera…”

Ela diz o seguinte:

“Veio depois a festa de São Vicente.

Na véspera, nossa boa Madre Marta nos fez uma instrução sobre a devoção à Santíssima Virgem, o que me deu desejo de vê-La. Deitei-me, pois, com o pensamento de que naquela noite mesmo eu veria a minha boa Mãe. Havia tanto tempo já que eu desejava vê-La”.

A inocência e a ingenuidade desse pensamento e o caráter filial são muito bonitos.

Enfim, às onze e meia da noite… Para aquele tempo era alta noite. “…ouvi me chamarem pelo nome:

‘Irmã Labouré! Irmã Labouré!’. Acordando, olhei do lado de onde vinha a voz, que era do lado da passagem”.

Deveria ser uma passagem no dormitório.

“Corro a cortina e vejo um menino de 4 ou 5 anos que me dizia: ‘Vinde à capela, a Santíssima Virgem vos espera’. Devemos imaginar um ambiente com uma paz, tranquilidade, todas as freiras dormindo, esse menino aparece — ela depois descreve o menino — e diz: “A Santíssima Virgem vos espera”. Quer dizer, uma afabilidade de Nossa Senhora à espera dela.

“Logo me veio o pensamento: ‘Irão perceber’. O menino me respondeu: ‘Ficai tranquila. São onze e meia da noite, todo o mundo está dormindo. Vinde, eu vos espero’. Quem é esse menino que diz “eu” aí?

“Vesti-me depressa e me dirigi para o lado do menino. Este tinha permanecido de pé sem avançar além da cabeceira de minha cama. Ele me seguiu, ou melhor, eu o segui, sempre à minha  esquerda.”

“Por todos os lugares onde passamos as luzes estavam acesas, do que me admirava muito…”

Naturalmente ninguém via, era milagre. Tudo isso já é dado para causar impressão.

“Porém, muito mais surpresa fiquei quando entrei na capela. A porta se abriu mal o menino a tocou com a ponta do dedo e minha surpresa foi ainda mais completa quando vi todas as velas e   castiçais acesos, o que me  recordava a Missa de meia-noite”.

Como se fosse a Missa do Galo.

“Entretanto, nada vejo da Santíssima Virgem. O menino me conduziu ao presbitério, ao lado da cadeira de braços do senhor vigário. Ali me ajoelhei e o menino permaneceu de pé todo o tempo. Eu achava o tempo longo e olhava para ver se as vigilantes não passavam pela tribuna.”

No fundo, onde fica o órgão. Ela tinha medo que pudessem perceber, alguma coisa violasse o segredo. Seria bonita a cena. Ela ajoelhada junto à cadeira do senhor vigário, as luzes todas acesas e pensando o que diria à vigilante sobre essa completa irregularidade.

“Ali se passou o momento mais doce de minha vida”

Por fim chegou a hora. O menino  me preveniu. Ele me disse: ‘Ei-la, a Santíssima Virgem’. Ouvi como um roçar de vestido de seda que vinha do
lado da tribuna…

Era o frou-frou de quem está com um vestido de seda que, naquele tempo, ia até o chão. Produzia aquele ruído agradável e muito peculiar. … perto do quadro de São José e que passava sobre os degraus do altar do lado do Evangelho sobre uma cadeira igual à de Santa Ana. O que seria essa cadeira de Santa Ana?

“Eu estava em dúvida se seria a Santíssima Virgem. Nesse preciso momento o menino que estava ali me disse: ‘Eis a Santíssima Virgem’. “Ser-me-ia impossível dizer o que senti nesse momento, o que se passava dentro de mim. Parecia-me que não via a Santíssima Virgem.

“Então o menino me falou não mais como uma criança, mas como um homem dos mais fortes e com as palavras mais fortes.

“Nesse momento, olhando para a Santíssima Virgem, dei um salto para junto d’Ela, pondo-me de joelhos sobre os degraus do altar e com as mãos apoiadas sobre os joelhos da Santíssima Virgem”.

Nossa Senhora estava sentada na cadeira do vigário. Santa Catarina apoiou as mãos sobre os joelhos de Nossa Senhora. Vejam a afabilidade dessa aparição, uma coisa extraordinária.

Depois, para quem for São Tomé, que pôs a mão no flanco de Nosso Senhor, ela também tocou. “Ali se passou o momento mais doce de minha vida. Ser-me-ia impossível dizer tudo o que senti.

Ela me disse  como deveria me conduzir em relação ao meu diretor espiritual, e várias coisas que não devo dizer. A maneira de me conduzir em meus sofrimentos, vir lançar-me aos pés do altar, e me mostrava  com a mão esquerda o pé do altar, e ali fundir o meu coração. Aí eu receberia todas as consolações de que tivesse necessidade”.

Quer dizer, quando ela tivesse sofrimentos, não comentasse com ninguém,  fosse ao altar e desabafasse ali, mas num lugar indicado por Nossa Senhora para ela: “Aqui, nesse ponto, você venha”. Os senhores compreendem quanto ela voltou a esse lugar fisicamente indicado por Nossa Senhora. Uma verdadeira maravilha. “Então lhe perguntei o que significavam todas as coisas que eu tinha visto e ela me explicou tudo”.

Mas ela não disse o que era. Aqui não está. “Fiquei não sei quanto tempo. Tudo o que sei é que quando Ela partiu não percebi senão que alguma coisa se extinguia. Enfim, mais uma sombra que se dirigia para o lado da tribuna pelo caminho  pelo qual Ela tinha chegado”.

“Levantei-me dos degraus do altar e percebi o menino onde o tinha deixado. Ele me disse: ‘Ela se retirou’. Nós retomamos o mesmo caminho, sempre todo iluminado. O menino estava sempre à minha esquerda.

Creio que este menino era meu Anjo da Guarda que se havia tornado visível para me fazer ver a Santíssima Virgem, porque havia rezado muito a ele para que me obtivesse esse favor. Estava vestido de branco trazendo consigo uma luz miraculosa, isto é, ele era esplandecente de luz. Tinha a idade  mais ou menos de 4 ou 5 anos. De volta ao meu leito eram duas horas da manhã, pois ouvi tocar as horas.

Não tornei mais a dormir. Está terminada a revelação.

Um veludo precioso

Não me consta que lá, na Rue de Bac, se indique qual foi o lugar mostrado por Nossa Senhora a ela. Evidentemente, qualquer um de nós que ali estivesse não deixaria de rezar, oscular o chão. A cadeira está ali sobre um estradozinho e todo mundo que entra vai oscular a cadeira. Quando eu a osculei, deitei o olhar sobre o veludo e este pareceu-me novo. Fiquei desagradado, porque, se é novo, não é o veludo sobre o qual Nossa Senhora se sentou.

Na saída, perguntei à freira:

Irmã, me faz favor. Esse veludo da cadeira é o próprio no qual Nossa Senhora Se sentou?

Ela disse:

— Não. Nós, há pouco, o substituímos por um veludo novo.

Eu pensei em ficar com o veludo para mim, e disse:

— Irmã, eu não poderia ter esse veludo? Ou ao menos um pedacinho dele?

Ela disse:

— Não.

Não me lembro se ela disse que foi jogado fora ou queimado. Eu não pude conter a minha surpresa e disse a ela:

— Mas, irmã! A senhora já pensou o que seria esse… Se a armação de madeira da cadeira se oscula, por que não oscular o veludo? Por que não guardar? A senhora já pensou que isto é uma relíquia.

— É…

Eu disse:

— A senhora já pensou quantas

pessoas viriam aqui para receber das senhoras um pedacinho deste veludo? Ela ficou assim meio surpresa e eu disse:

— Irmã, eu sou da América do Sul, sou do Brasil. Eu lhe garanto que a América do Sul desfilaria aqui para receber pedaços desse veludo! — Nous n’avons guère songé — nem sequer pensamos  nisso.

Uma promessa feita por Nossa Senhora

1830, julho. Colóquio com a Santíssima Virgem. “Minha filha, o bom Deus quer encarregar- vos de uma missão. Tereis muitos sofrimentos, mas superareis estes sofrimentos pensando que o fareis para a  glória do bom Deus. Conhecereis que é do bom Deus e sereis atormentada até que o tenhais dito àquele que é encarregado de vos conduzir. Sereis contraditada, mas tereis a graça e por isso não temais. Dizei com confiança tudo o que se passa em vós, dizei-o com simplicidade, tende confiança, não temais”.

Vemos quanto medo ela tinha do próprio confessor com o qual ela se deveria abrir.

“‘Vereis certas coisas. Prestai conta do que virdes e ouvirdes. Sereis inspirada na vossa oração. Prestai conta do que virdes em vossas orações.’”

Os tempos são muito maus. Os males virão precipitar-se sobre a França; o trono será derrubado, o mundo inteiro será transtornado por males de toda ordem — ao dizer isto, a Santíssima Virgem
tinha um ar muito penalizado  —, mas vinde ao pé deste altar; aí as graças serão derramadas sobre todas as pessoas que as pedirem.

É uma promessa magnífica. “‘Minha filha, gosto de derramar graças sobre a comunidade em particular. Eu aprecio muito. Sofro porque há grandes abusos contra a regra’”.

Nossa Senhora gostava da comunidade enquanto instituição, mas já naquele tempo havia muitos abusos no cumprimento da regra.

“‘As regras não são observadas, há grande relaxamento nas duas comunidades. Dizei àquele que está encarregado de uma maneira particular da comunidade. Ele deve fazer tudo o que lhe seja   possível para repor a regra em vigor. Dizei-lhe de minha parte vigiar sobre as leituras, as perdas de tempo e as visitas.’”

“‘A comunidade gozará de uma grande paz, ela tornar-se-á grande. Momento virá em que o perigo será grande, acreditar-se-á tudo perdido.”

É curioso que este momento não é em 1830. Por que, como vai haver uma grande paz e se corrigirá os abusos, etc., etc., quando ela já está em julho e a revolução foi em julho? Esses fatos não cabem aí, mas depois.

“‘Eu estarei convosco, tende confiança. “Mas não se dará o mesmo com as  outras comunidades: haverá vítimas — ao dizer isto, a Santíssima Virgem tinha lágrimas nos olhos. Para o clero de Paris haverá vítimas. Mons. Arcebispo —  a essa palavra lágrimas de novo”. Eu creio que não foi Mons. Quélan. Talvez aí seja uma profecia de 1870, não sei.

“Minha filha, a cruz será desprezada e derrubada por terra. O sangue  correrá, abrir-se-á de novo o lado de Nosso Senhor, as ruas estarão cheias de sangue, Mons. Arcebispo será despojado de suas vestes — aqui a Santíssima  Virgem não podia mais falar:

o sofrimento estava estampado sob a sua face. ‘Minha filha, dizia Ela, o mundo todo estará em tristeza’”.

A essas palavras pensei quando isto se daria: compreendi bem daí a quarenta anos.

Em 1870, onde realmente o arcebispo foi fuzilado abençoando os revolucionários e duas balas cortaram os dedos dele. Ele morreu abençoando. Disse-me uma pessoa, muito competente nesses assuntos de História do século XIX, que o arcebispo era de tendência liberal. Ele teve de algum modo um castigo, porque os liberais o fuzilaram. Mas vejam como Nossa Senhora sofreu com o fato porque ele era arcebispo e, na pessoa dele, era a Igreja que sofria uma violência.

Vejam como Nossa Senhora ama as instituições eclesiásticas. Ela ama tanto uma congregação religiosa na qual Ela, entretanto, denuncia graves abusos. E Ela sofre tanto com o padecimento de um arcebispo.

É a congregação enquanto congregação, o arcebispo enquanto arcebispo. Isso deve nos fazer compreender o amor que nós devemos ter às instituições eclesiásticas, por mais que as vicissitudes humanas façam com que dentro delas se passem coisas que são contrárias ao que se poderia querer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/11/1980)