Santo Annon: energia e astúcia

Utilizando sapiencialmente as qualidades que Deus lhe havia concedido, Santo Annon salvou a Reforma Gregoriana que estava passando por um gravíssimo período. Sua figura nos ajuda a compreender melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Santo Annon, bispo e confessor, é um dos grandes e pouco conhecidos Santos da Idade Média. A seu respeito, temos a seguinte ficha preparada por um dos membros de nosso Movimento.

Pessoa de trato verdadeiramente agradável

Santo Annon é um dos grandes santos dos primeiros anos do Sacro Império Romano Alemão. Seus altos feitos ficaram registrados não só na História, como na Literatura, pois sobre a sua vida foi escrito um poema em 876 versos, clássico da literatura medieval alemã.

Professor da escola de Bamberg, Arcebispo de Colônia e Chanceler do Sacro Império, fundador de mosteiros, a ele se deve também, em grande parte, a introdução da reforma cluniacense na Alemanha.

Era uma personalidade invulgar. De porte majestoso, bem proporcionado, seus contemporâneos o descreviam como um belo homem, grande orador, e não menor “causeur”, suas aulas e sua prosa prendiam a atenção de todos os que o ouviam, nele admirando não só a ciência, como a ortodoxia de seu pensamento. A amenidade de seu trato e a extraordinária, e mais tarde legendária, energia impunham a todos respeito e veneração.

É uma bonita descrição de um desses homens completos, muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla qualidade: um trato muito ameno, orador, “causeur” brilhante, e homem muito enérgico. Isto demonstra quanto é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar: a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas horas de energia, sabe ser enérgica.

O que vem a ser um trato verdadeiramente agradável? Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas, mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, enobrecida. Esse era o trato de Santo Annon.

Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana

Continua o texto:
Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana, ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.

Antes de São Gregório VII, a Igreja passou por vacilações enormes, por crises, por depressões morais tremendas. E essas crises morais foram todas elas contrariadas pelo movimento de Reforma Gregoriana, que São Gregório VII, então cardeal, impôs através de vários Papas que eram discípulos dele, e depois ele mesmo, elevado ao Pontificado, com uma energia não excedida e talvez não igualada, levou à sua perfeição. A esse movimento restaura-dor, um dos maiores que tenham havido dentro da Igreja, costuma-se chamar de Reforma Gregoriana. E foi uma glória de Santo Annon ter cooperado para essa reforma.

Dificuldades em época de sucessivos papas

Com efeito, Estevão IX, o primeiro Papa eleito pelo povo romano sem consulta ao Imperador, enviou ao Sacro Império o monge Hildebrando para convencer a Imperatriz Inês, que governava na menoridade do filho, futuro Henrique IV, a reconhecer a eleição. A Imperatriz Inês, que era Condessa de Poitiers e foi educada num ambiente cluniacense, não opôs dificuldades em aceitar. Mas Estevão IX morrera antes da volta de Hildebrando. Na hora da morte, o Papa fizera o clero e a nobreza jurarem que não elegeriam um novo soberano pontífice antes de Hildebrando chegar. Não respeitando o juramento, o clero e a nobreza se reuniram logo depois dos funerais, e elegeram o Santo Padre.

São Pedro Damião, Cardeal-Arcebispo de Óstia, protestou e fugiu de Roma, indo ao encontro de Hildebrando, que estava em Florença, e logo reuniram um Sínodo. Foi eleito Nicolau II, que a Imperatriz também reconheceu. As dificuldades começaram quando Nicolau II decretou que a eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.

A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Reforma Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Nicolau II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e alguns bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuniram-se e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que tomou o nome de Honório II.

Quem deve eleger o Papa? Questão decisiva para o êxito da Reforma Gregoriana

Aqui estava em jogo uma questão muito importante. A eleição do Santo Padre foi, em todos os tempos, um dos elementos decisivos da política mundial, tanto mais na Idade Média, quando o mundo era muito mais católico do que hoje e, portanto, muito mais sensível a qualquer pensamento, vontade, pronunciamento ou ato do Sumo Pontífice.

Porém, se tinha importância a eleição de um Papa, outra pergunta também era muito importante: quem o elegeria? Vemos definirem-se duas tendências diversas: uma que considerava estarem os nobres e o clero de Roma habilitados a eleger o Pontífice; outra julgava que este deveria ser escolhido pelo Sacro Colégio.

Em rigor, não era contra a instituição divina que o Papa fosse eleito pelos nobres e clero de Roma. O Direito Canônico pode atribuir-lhes tal faculdade como poderia concedê-la também ao povo romano. Mas do ponto de vista da conveniência, quer dizer, para assegurar melhor a eleição de um Papa digno do cargo, era muito preferível naquele tempo — e o é em tempos normais — que a escolha fosse feita pelo Sacro Colégio, pois este representa uma aristocracia, uma elite dentro da Igreja, sendo um conjunto de clérigos considerados mais eminentes, pre-claros e seguros pelos Pontífices anteriores.

A palavra “cardeal” vem de cardo, em latim, que significa o gonzo da porta. Os cardeais estão para a Igreja como os gonzos para uma porta: sustentam-na, permitindo e facilitando-lhe o movimento. Era, pois, natural que esse escol de colaboradores dos vários Papas, participando em grau subordinado do governo e conhecendo melhor do que ninguém o ambiente eclesiástico e as necessidades da Igreja, elegessem o Santo Padre.

Isso seria certamente mais adequado do que se a eleição ficasse a cargo de clérigos de uma ordem inferior, incumbidos da direção ou do exercício de atividades na diocese mais importante do mundo, é verdade, mas voltados para problemas locais, circunscritos à Diocese de Roma; enquanto os cardeais são uma elite internacional. Ora, a missão do Papa não é apenas local, mas principalmente mundial.

Por outro lado, os nobres romanos eram os senhores de pequenos feudos nos arredores de Roma, e que muitas vezes guerreavam por seus interesses. Havia o risco de escolherem um Papa de acordo com suas conveniências pessoais ou familiares.

Portanto, era natural que os partidários da Reforma Gregoriana quisessem transferir essa atribuição para os cardeais.

Vemos que se pronuncia um incidente no qual o monge Hildebrando, cardeal e futuro Papa São Gregório VII, convenceu o Pontífice novo de transferir os poderes de eleição para o Sacro Colégio. Naturalmente, o clero e a nobreza de Roma ficariam indignados com isso, pois perdiam um poderoso elemento de influência política. Então, foram logo ao encontro da Imperatriz do Sacro Império Romano Alemão para obter que ela se solidarizasse com eles.

Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador — ou a imperatriz, quando o imperador era menor de idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do poder imperial se tornavam muito menores.

Esse choque de interesses comprometia a Reforma Gregoriana que, sendo um movimento de reestruturação e reorganização da Igreja, estava maximamente empenhada em que o órgão adequado elegesse o Sumo Pontífice.

Num momento crucial, Santo Annon intervém com astúcia

Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe normando Roberto Giscard, que não estava em bons termos com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava com a causa de Cádalo, por interesses pessoais.

Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu intervir. Combinou com alguns nobres alemães um golpe de Estado.

Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em determinada ilha quando viajava pelo reino.

Era uma ilha aprazível e lá costumava ela repousar das fadigas da viagem.

Santo Annon mandou construir uma barca esplêndida, riquíssima, adornada com toda espécie de obras de ar-te: finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; cortinas dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações de ouro e pedras preciosas.

Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.

Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se passavam: uma ilha aprazível, uma barca linda, com cortinas e incrustações de pedras preciosas, à espera da Imperatriz. Que lindo teatro para uma cena histórica! Como isso é mais bonito do que um avião para se passar qualquer episódio da História humana!

Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo Annon, com outros conjurados, viajou diretamente para a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, como Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henrique IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, maravilhando o menino. Logo depois do almoço, Henrique IV manifestou o desejo de visitar a barca. Recebido com todas as honras, assim que o rei subiu a bordo, os remadores, já avisados, puseram a embarcação em movimento, afastando-a da ilha.

A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, promoveram um grande tumulto, e o menino-rei, amedrontado, atirou-se ao rio.

O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de São Gregório VII, mais tarde.

O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trouxe de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV para uma das salas e teve com ele uma longa conversa, convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada uma assembleia de nobres para discutirem a situação.

Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos, meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir impérios; e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo Annon tratando seriamente com um menino de seis anos sobre política e convencendo-o.

Alguém poderá objetar: “Mas o menino não tinha nenhuma resistência possível a oferecer a um homem da qualidade de Santo Annon”.

É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou que não podia resolver o caso só com brinquedinhos e fazendo cocegasinhas no queixo do rei; mas precisava dar uma argumentação política. Deu, e o monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível de menino que não é comum.

Para se compreender bem essa atitude de Santo Annon é preciso esclarecer que, em caso de regência, a posse do rei pelo chanceler já era um bom título para que ele se tornasse regente. Portanto, quando o rei era menor, o regente do reino era a mãe, mas também podia ser o chanceler, se este estivesse na posse do rei-menino. E o golpe dele foi roubar o rei-menino dentro dessa “ratoeira” de madeiras preciosas, seda e pedrarias. Uma coisa que nos deixa um pouco interditados quanto à liceidade, se não fosse o fato de que é Santo Annon quem fez, e, portanto, isso deve ter suas razões históricas que provavelmente não aparecem na ficha.

Sínodo em Colônia

Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuniram e, depois de se informarem dos acontecimentos, decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em Colônia, o regente seria Santo Annon. Que era Arcebispo de Colônia…

A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e reconheceu a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.

Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o papel decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas outras ocasiões.

É lamentável ver como a notícia dessas grandes figuras se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade! Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! Santo Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de uma imagem de Santo Annon “bon parleur”, de espada na mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organizando as coisas. Como isso faria bem!

Diferença entre o pecador medieval e o pecador filho da Revolução

Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha recolhido a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um espetáculo só possível na Idade Média: a Imperatriz apresentou-se às portas da cidade, vestida como penitente, descalça e com uma corda ao pescoço, rogando permissão para entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quanto tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a absolveu de todos os pecados e daí em diante, até a morte do Cardeal, foi seu confessor.

Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Damião, reconheceu ter andado mal criando entraves ao movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim era a penitência na Idade Média, época que se poderia caracterizar pela radicalidade:  O indivíduo cometia, às vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia, praticava também penitências de arrepiar.

Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, recolhe-se a um convento para cuidar de sua vida espiritual e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor, ela não seria obrigada a esse ato público de penitência. Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pedro Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível. Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis praticar um ato público de reparação, porque público tinha sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Roma, vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se dirige a uma igreja para pedir perdão.

Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e penitente daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!

São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vestida pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude humilde, a alma deste santo Cardeal — louvava a grandeza da graça que opera tais transformações nas almas humanas. Isto é Idade Média!

Talvez nunca se tenha falado tanto a respeito do perdão quanto em nossos dias. Fala-se, por vezes, até o abuso. A propósito de qualquer coisa se repete: “Ah, Deus perdoa!”  Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber, poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou menos às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapareceu. As pessoas perderam este senso, não são lógicas, falta-lhes coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa é a mentalidade do homem contemporâneo.

Comparem o pecador medieval com o pecador filho da Revolução, e verão a enorme diferença: um é suscetível de grandes arrependimentos à maneira de Davi; grandes regenerações e, eventualmente, até grande santificação. O outro, se é que tem um arrependimento sério, pede um perdãozinho superficial.

Qual a causa desta diferença de atitude? Em última análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gravidade dos pecados e de não fazer penitência, criando-se o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias de hoje.

Quantos pecados cometidos em nossos dias mereceriam uma penitência pública! Nesses casos, um padre, antes de conceder a absolvição, agiria muito bem se exigisse uma reparação pública.

Entretanto, a debilidade, o liberalismo, tantas vezes até no próprio confessor, criam esse clima crepuscular no qual estamos…

Olhemos para figuras como a de Santo Annon e compreenderemos melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 29/3/1974)
Revista Dr Plinio 213 – Dezembro de 2015