Tabernáculo do Verbo Encarnado

Tudo leva a crer que a gestação de Nosso Senhor Jesus Cristo, por ter sido perfeita, tenha durado nove meses normais. Nesse período, Maria Santíssima trazia consigo, como num tabernáculo, o Verbo Encarnado. Isso significava um processo interno de produção do Corpo d’Ele, ao qual deveria corresponder, certamente, um processo de união de alma com o Filho que Ela estava gerando: Ela Lhe dava o Corpo e Ele A revestia de graças em proporções inimagináveis.

Depois disso, Ela deveria aproveitar, com perfeitíssima fidelidade, os trinta anos da vida oculta de seu Divino Filho. Cada minuto de presença de Nosso Senhor Jesus Cristo na Sagrada Família representava imensa graça para a Virgem Maria e São José, superiormente correspondida pelos dois.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/8/1965)

Simbolismos e zigue-zagues na vida de São João da Mata

Dirigindo-se a Roma, São João da Mata foi atacado pelos mouros que arrancaram a vela de sua frágil embarcação. O Santo, porém, substituiu-a por seu manto e, assim, foi conduzido milagrosamente às costas da Itália. Esse barco simboliza a Contra-Revolução que, embora seus recursos não passem de uma pequena vela, pelo poder da oração a Nossa Senhora chegará ao porto feliz, que é a proclamação do Reino de Maria.

 

Vamos comentar algumas notas biográficas sobre São João da Mata, tiradas da obra Vida dos Santos, de Darras.

Um Anjo aparece sobre o altar

São João da Mata nasceu na Provence, a 23 de junho de 1160, de nobre família. As armas da casa de Mata representavam um cativo carregado de correntes com estas palavras como divisa: “Senhor, livrai-me destas correntes, destes vínculos!”

Enquanto sua mãe aguardava seu nascimento, um dia em que se recomendava particularmente à Santíssima Virgem, Ela lhe apareceu dizendo: “Não temas, tu darás ao mundo um filho que será santo e o redentor dos escravos cristãos. Será pai de um grande número de filhos que cumprirão o mesmo ministério para a salvação das almas.”

Seus pais o educaram no amor de Deus e da Virgem, e desde cedo o menino correspondeu a seus cuidados. Fez seus estudos na Universidade de Aix-en-Provence e, ao voltar para casa, decidiu retirar-se para o deserto, escolhendo a região de Beaume, onde Santa Maria Madalena vivera em penitência.

O demônio o assaltou rudemente, mas foi vencido por uma coragem semelhante à de Santo Antão e de outros solitários. Após um ano de solidão, Nosso Senhor recomendou-lhe que fosse acabar os seus estudos porque queria servir-Se dele.

João foi para a Universidade de Paris cursar Teologia. Um dia em que rezava ante um crucifixo, no convento de São Vítor, ouviu uma voz que lhe disse por três vezes: “Procure a sabedoria, ó meu filho, e alegra o meu Coração!” Ele voltou aos estudos com novo vigor e tornou-se tão versado que os mestres da universidade lhe ofereceram o chapéu de doutor. Ele a princípio recusou, mas São Pedro lhe apareceu ordenando-lhe que aceitasse em nome do Senhor.

Sendo professor de Teologia, São João da Mata foi ordenado sacerdote. Quando o bispo lhe impôs as mãos dizendo: “Aceite o Espírito Santo”, um globo de fogo apareceu sobre a sua cabeça.

No dia da primeira Missa, no momento da elevação, a assistência admirada viu surgir sobre o altar um Anjo vestido de branco, trazendo no peito uma cruz azul e vermelha. Ele estendia as suas mãos cruzadas sobre dois cativos, um dos quais era cristão e o outro, mouro. São João explicou então que Deus o chamava a fundar uma Ordem para a redenção dos cativos. Então, com essa finalidade dirigiu-se ao Papa Celestino III.

Encontro com São Domingos e São Félix de Valois

Nesse tempo, São Domingos estudava em Palência. Um dia, uma pobre mulher veio pedir-lhe uma esmola para ajudá-la a resgatar um de seus irmãos que era escravo dos mouros. O Santo, que nada tinha para dar, ofereceu-se ele mesmo. E como a mulher não quisesse vendê-lo, São Domingos lançou-se aos pés de um crucifixo, implorando a Deus que viesse em socorro do cativo e dos outros escravos cristãos. Então, o Crucificado respondeu-lhe em voz alta: “Meu filho, não é a vós que quero encarregar desta obra, mas João, doutor em Paris. Eu te reservo outro ministério, que exercerás entre os cristãos.”

Mais tarde São João e São Domingos encontraram-se na França, quando aí estabeleceram suas Ordens.

São João partira de Roma. Em Faucon, encontrou São Félix de Valois, que a ele se associou para a consagração de seus desígnios.

No dia da purificação da Virgem, 2 de fevereiro de 1198, Inocêncio III, em pessoa, deu-lhes o hábito da nova Ordem. Ao vesti-los, disse-lhes que as três cores que o compunham eram o símbolo da Santíssima Trindade. O branco representando o Pai, o azul, o Filho, e o vermelho, o Espírito Santo. E acrescentou as palavras: “Hic est ordo aprobatur, non a sancto fabricato, sed a Deo solo summo – Esta é uma Ordem aprovada, feita não por santos, mas exclusivamente por Deus supremo, sumo.”

Os dois Santos retiraram-se para a França onde fundaram o Mosteiro Serfroit e dedicaram-se ao seu trabalho.

Suas lutas são inenarráveis, sendo acompanhadas de numerosos milagres. É conhecido aquele em que os mouros de Tunis retiraram as velas do navio que levariam São João a Roma. Este fez de seu manto uma vela, e o barco foi conduzido em seis horas às costas da Itália. Este Santo fundou ainda numerosos conventos e pregou a Cruzada contra os albigenses.

Tendo Inocêncio III convocado um Concílio em Latrão, o Rei Filipe Augusto escolheu São João da Mata para seu teólogo. Mas Deus já o queria no Céu, pois o Santo caiu doente, vindo a falecer em dezembro de 1213. Foi canonizado por Urbano IV, em 1262.

Tudo quanto é de Deus passa por zigue-zagues

Essa biografia é rica em dados saborosos e de alto valor simbólico. Antes de tudo, é interessante notar como a predestinação de São João da Mata aparece clara. Desde o ventre materno, Deus quis tornar patente que o destinava para uma grande missão. Mas, enquanto o designava para essa finalidade, fez de sua vida um verdadeiro zigue-zague.

Primeiramente, ele começou a estudar, em seguida se tornou eremita, mais tarde voltou para os estudos, depois já não bastavam os estudos, mas era preciso fundar uma Ordem religiosa. Foi então que ele realizou verdadeiramente a sua vocação.

Por que isso? Porque tudo quanto é de Deus passa por zigue-zagues, por aparentes ou verdadeiros fracassos, derrotas, que representam o extermínio daquela obra, mas depois, afinal de contas, a Providência intervém, arranja as coisas e a obra continua.

Vemos nessa biografia um caminho maravilhoso. Em meio a milagres, como também a lances da vida dele que pareciam desvios de sua verdadeira vocação, encontrando aqui e acolá Santos extraordinários como São Domingos, recebendo deste a confirmação de sua missão providencial, através da revelação do Crucificado feita ao futuro Fundador dos dominicanos, por fim chega o momento em que São João da Mata funda essa Ordem para a redenção dos cativos.

Tratava-se de obter esmolas para, por meio delas, comprar dos maometanos os católicos que tivessem caído no cativeiro deles, aprisionados enquanto viajavam pelo Mediterrâneo ou capturados nas guerras contra os sarracenos.

Esses prisioneiros eram tratados como escravos. Ficavam sujeitos, portanto, à vida mais rude que se possa imaginar, e a tentações medonhas, uma vez que eles viviam na promiscuidade maometana, o que trazia toda espécie de solicitações ao pecado. Situação agravada pelo fato de não terem à disposição padres para se confessarem.

Hábito com as cores que simbolizam a Santíssima Trindade

Imaginem quantos deles padeciam do tormento de pensar que poderiam morrer de um momento para o outro, sem saber se iriam para o Céu ou não, pois quem peca mortalmente e se arrepende dos seus pecados apenas por medo do Inferno não pode ter certeza de salvar-se, porque é só mediante a absolvição sacramental que ele irá para o Céu. A simples atrição, se não vem seguida da absolvição sacramental, não abre para o fiel as portas do Paraíso celeste.

Então, para tirar essas almas desse tormento, os religiosos de São João da Mata obtinham esmolas e iam às terras dos mouros resgatar os cativos. Porém, eles mesmos ficavam em perigo de serem aprisionados, porque não se podia ter a menor confiança na palavra desses mouros.

São João da Mata deu o exemplo para que essa forma de heroísmo se desenvolvesse, e convocou religiosos no mundo inteiro para salvar essas almas.

Com efeito, o número de escravos cristãos aprisionados pelos mouros em campo de batalha era enorme. Por isso a Providência suscitou essa Ordem composta de católicos dispostos até a se entregarem como escravos para resgatar aqueles prisioneiros. De maneira que aquelas almas sujeitas a um sumo risco fossem substituídas por outras que, por terem mais virtudes e perseverança, expunham menos a risco a sua salvação eterna entre os infiéis.

Foi, portanto, para esse elevado objetivo que essa Ordem foi fundada; e Deus chamou para a redenção dos cativos não só um homem de linhagem nobre, como São João da Mata, mas um príncipe, como São Félix de Valois. Ambos foram os Fundadores dessa Ordem, cujos membros deveriam estar prontos a se entregar como escravos.

É bonito ver, no momento em que lhes é dado o hábito com as três cores – branca, vermelha e azul –, o Papa declarar que são as cores da Santíssima Trindade. Debaixo de certo ponto de vista, é uma das mais belas combinações de cores que há. O Papa indicou o simbolismo: o branco é o Padre Eterno, o azul, o Filho, e o vermelho, que é o fogo do amor, o Divino Espírito Santo. Então, com as cores da Santíssima Trindade, eles foram mandados para esse apostolado.

As Cruzadas eram um empreendimento santo

Vimos tudo quanto eles fizeram nesse apostolado, e como a obra se tornou famosa durante séculos. Entretanto, São João da Mata queria pregar uma Cruzada contra os albigenses. Portanto, este Santo tão cheio de mansidão, que pregava o resgate dos cativos, também se distinguiu pelo valor com que pregou a Cruzada.

Por outro lado, é um lindíssimo apostolado que indica a solidariedade de São João da Mata com o movimento das Cruzadas. Isso comprova o quanto as Cruzadas eram um empreendimento santo, e como agem muito mal os que as difamam. Santos verdadeiros foram cooperadores das Cruzadas, entusiasmados com elas.

Ademais, ao resgatar os prisioneiros de guerra, exerciam um efeito favorável à Cruzada, porque diminuía o medo nos cruzados com a esperança de serem resgatados e, por vezes, os cativos libertos podiam voltar à luta. Vemos, portanto, a importância dessa obra complementar das Cruzadas.

Tudo isso é muito bonito e constitui um aro de ouro no qual se crava uma pedra preciosa que é este outro fato: São João da Mata embarca com uma série de cativos resgatados e, como as velas de seu barco foram rasgadas, ele faz duas coisas características. Primeira, improvisa uma vela insuficiente. Segunda, reconhecendo que a vela não era suficiente, passa o tempo inteiro rezando e cantando salmos.

Nossos recursos não passam de uma pequena vela

Figurem um pequeno barco, com cento e tantas pessoas nas ondas do Mediterrâneo, com aquela vela, perdidos no fluxo do mar, e um Santo, com o crucifixo na mão, cantando salmos a bordo. Podemos ter ideia do entusiasmo e da Fé desses cativos, os momentos de pânico pelos quais passaram… Considerem quantas vezes São João da Mata precisou exortá-los a terem confiança em Deus, e o bem feito para essas almas e a toda Cristandade com esse prodígio!

Mas o que esse prodígio queria dizer? Era a confirmação desta regra inaciana, séculos antes de Santo Inácio: Devemos agir como se tudo dependesse de nós e nem um pouco de Deus; mas rezar reconhecendo que tudo depende de Deus e não de nós. Ele fez de seu manto uma vela e mandou que o barco fosse manobrado aproveitando os ventos. Mas, ao mesmo tempo, rezava reconhecendo que tudo dependia da oração.

Esse barco bem pode simbolizar a Contra-Revolução. Ela é também um barco solto, e todos os nossos recursos não passam de uma pequena vela. Devemos pedir a São João da Mata para fazer o que ele realizou: cantar orações contínuas aos pés de Nossa Senhora para nosso barco chegar ao porto feliz, que é a proclamação do Reino de Maria, depois de derrotada a Revolução que hoje impera no mundo.

 

(Extraído de conferências de 7/2/1966, 7/2/1969 e 8/2/1977)

Voltemo-nos para o Menino Jesus…

A  expectativa de mais um Natal, e na comemoração dos 107 anos do nascimento de Dr. Plinio, meditemos uma mensagem natalina gravada por ele em 1992, cuja atualidade permanece e faz-se, hoje, muito mais clamorosa do que há duas décadas.

Nós nos encontramos numa situação dominada completamente pelo caos. Não há um aspecto da vida política internacional contemporânea na qual não se note a confusão.

Junto ao berço do Menino Jesus não é o momento de estarmos rememorando tantas atitudes mal feitas, mal pensadas, mal planejadas, porque não as presidiu o Espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O segredo da organização adequada de todas as coisas da vida terrena se encontra na canção que os Anjos entoaram, na noite de Natal, para os pastores maravilhados: “Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade”.

Quando todos os homens reconhecem a majestade, a onipotência, a santidade, enfim, o acúmulo de todas as perfeições que há em Deus, no mais alto dos Céus, e O glorificam por isso, então nascem no coração dos homens aquelas boas disposições de espírito pelas quais eles se tornam homens de boa vontade.

Se nos lembrarmos de que essa noite de Natal é uma noite de misericórdia e de bondade, de perdão e de esperança, que próxima ao berço do Menino Jesus está Nossa Senhora — cuja prece junto a seu Divino Filho é onipotente — e que Ela tem um coração de Mãe que ama mais cada um dos homens do que todas as mães do mundo amariam a seu filho único, e que, portanto, Ela está na disposição de nos obter do Divino Infante o perdão de nossas faltas, a emenda de nossos erros e defeitos, e o propósito firme de seguir em tudo a Lei de Deus, se tomarmos isso em consideração, compreenderemos que, por mais forte que seja o mal, todas as portas da esperança estão abertas para nós, desde que nos voltemos para o Menino Jesus nascido em Belém.

É para essa esperança consoladora que eu quero atrair a atenção de todos.

Desejo que, quando os sinos tocarem à meia-noite anunciando que o Natal chegou, os povos estiverem se dirigindo, tranquilamente, para assistir ao Santo Sacrifício da Missa, e as famílias forem, em grupos, rezar aos pés do Santo Presépio, todos se lembrem dessa grande esperança e, deixando de lado as aflições da hora presente, compreendam o que disse o Apóstolo: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”(Hb 13, 8)(1).

 

1) Excertos da mensagem de Natal de 18/11/1992.

 

O COLÓQUIO DE ÓSTIA

Como, no decorrer dos séculos, a maneira de raciocinar dos vários povos vai enriquecendo com traços peculiares a fisionomia da Igreja – eis a tese exposta por Dr. Plinio na conferência que vimos reproduzindo em partes nesta seção. Para encerrá-la, comenta ele um texto célebre, repassado de beleza sobrenatural e literária, que bem exemplifica o pensamento latino: é o colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho

 

Durante a extraordinária conversa que manteve com seu filho, Santa Mônica externou seu desejo de partir o quanto antes para o Céu, pois já não via razão para permanecer por mais tempo nesta Terra. A Providência Divina não demorou em atender aos santos anseios dela, e pouco depois a levou para a eterna bem-aventurança. O próprio Santo Agostinho narra de modo esplêndido a morte e os funerais de sua mãe, e como continuou a existência dele, após o último adeus àquela que lhe alcançara a conversão.

Numa janela, junto ao porto de Óstia

Hoje, porém, gostaria de comentar apenas o trecho em que Santo Agostinho descreve o seu diálogo com Santa Mônica, em Óstia. Ao lê-lo, tem-se  a impressão de que em certos momentos o texto se transforma em fita magnética, e como que se percebe a voz de Santo Agostinho ecoando através dessas páginas, de tal maneira são eloquentes os movimentos de alma dele expressos nessas palavras que ele dirige a Deus. Vejamos.

“Próximo já o dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos – sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos”.

Creio não ser difícil sentir a cadência e a força de evocação extraordinária do texto. Temos a impressão de ver o pequeno jardim para o qual dava a janela dessa casa, que devia ser uma hospedaria, e de ver Santo Agostinho e Santa Mônica olhando meio maquinalmente para as plantas e flores, sem prestar maior atenção nelas nem em outras coisas. E eles que começam a dialogar, numa conversa que logo se eleva a altos píncaros. Mas, já aqui vemos que ele não registra nenhum por- menor inútil. Nessa narração tudo está calculado como num mosaico ou num “puzzle”. Não há palavra supérflua. Ao mesmo tempo, porém, nota- se uma vida e um calor intensos na descrição dele. Por exemplo, este som: “Próximo já o dia em que ela ia sair desta vida”… É um modo fenomenal de iniciar o relato.

Cumpre dizer que a ótima tradução portuguesa contribui para se aquilatar a beleza do texto. Veja-se o cantante da formulação, que não fala da tristeza da morte, mas toma antes o lado bonito da existência que findou: “sair desta vida”. É o aspecto luminoso da morte. Em seguida ele se volta para Deus e diz: “Dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos”. Esse dirigir-se ao Senhor parece uma oração, e que Deus está perto dele. Então, de repente nós sentimos a proximidade de Deus com ele e da nossa alma com Deus, através das palavras de Santo Agostinho.

Ele termina o parêntese e continua: “Sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios…”

Santo Agostinho já está se perguntando por que aconteceu de ele estar junto com a mãe, na janela. E dá a resposta: provavelmente foi Deus quem quis. Percebe-se o raciocínio latino nesse modo de conjecturar, indagando e estabelecendo os motivos para o que ocorreu. Continua: “… que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoia- dos a uma janela”. A situação é linda, porque as janelas romanas não eram muito grandes, e naquela onde os dois se encontravam, não havia lugar para um terceiro. A moldura da janela quase que os isola do resto do mundo, e não cabe ninguém perto.

“…cuja vista dava para o jardim interior da casa onde estávamos”. Devia ser uma casa romana antiga, com pá- tio interno, ajardinado, e onde não havia quase movimento. Esse detalhe indica como estavam sós, e nos faz compreender a intimidade da cena. Mais uma vez, tudo tem sua razão de ser, nada é supérfluo.

“Era em Óstia, na foz do Tibre”…, ou seja, o lugar augusto em que o Tibre evanesce dentro do mar, outro aspecto muito bonito da narrativa. “…onde, apartados da multidão” – sempre a ideia dos dois inteiramente sós, na intimida- de – após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos”. Quer dizer, a mãe e o filho estão propriamente na vida comezinha, na hospedaria, sem ter o que fazer e repousando. Mas o espírito, em altos vôos. Apoiam-se a uma janela e, nessa intimidade, para  onde  sobem  as  almas?

Um diálogo filosófico- teológico à maneira latina

“Falávamos a sós”. Repare-se na insistência dele a respeito do isolamento em que se encontravam. O que ele faz de maneira literária, e não como um registro policial: “Estávamos sozinhos e ponto. Tome nota disso”. Não. Ele insiste várias vezes e aquilo vai penetrando no espírito de quem o lê.

“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou”.

Eles, de fato, estão fazendo filosofia e teologia. Mãe e filho tratavam do futuro e se perguntavam como seria a vida dos santos na eternidade, na presença do Altíssimo, a Quem os olhos nunca viram, nunca os ouvidos ouviram e nunca o coração do homem imaginou como é. Eles se põem, então, um problema teológico-filosófico.

“Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da vossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que (ajudados) segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”

Faço notar a beleza da expressão: “os lábios do nosso coração”, para indicar a vontade afetuosa do homem. Nesse diálogo, eles vão raciocinar e se elevar a subidas considerações, com verdadeiros vôos de Anjo. Eles percebem que o assunto é alto e mobilizam a capacidade de raciocínio deles, enfrentando juntos o tema. É a mãe, na despedida da vida, e o filho, num colóquio ultra-íntimo e amoroso. O que eles estão fazendo? Filosofia.

“Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.”

Quer dizer, tudo que existe neste mundo não é nada. E ele, na sua descrição, já deixou a Terra aqui embaixo e está pensando pura e exclusivamente no Céu. Santo Agostinho agora começa a voar. Faço notar como isto é um tratado: mãe e filho estão na janela, da qual o espírito deles se eleva a um píncaro acima de tudo quanto é terreno, considerando como as coisas temporais não têm nenhum valor em comparação com as da beatitude eterna. Iniciam, então, a outra parte de sua viagem filosófico-teológica. É um itinerário racionalmente calculado. Mas, com que sabor! Ele continua:

“Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais, até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra. Subimos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras.”

Podemos imaginar a cena em que os dois faziam juntos essa contemplação: “Olha como o sol, a lua e as estrelas são bonitos, porém não nos satisfazem”. É propriamente uma meditação escolástica a respeito das criaturas que refletem a Deus, mas de modo insuficiente, sem darem inteira satisfação à alma. Esse é um discurso filosófico-teológico, feito de mãe para filho e de filho para mãe, numa janela de um albergue, diante de um acanhado jardim, no momento em que os dias dela já estavam contados e muito próxima a sua partida para o Céu. É maravilhoso!

“Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o nutrimento da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que Ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e sempre será.”

Eles analisaram todas as criaturas terrenas e concluíram: não nos bastam. Depois analisaram a alma humana e disseram: também não basta. A partir daí ascenderam até o lugar que eles não conheciam, mas que era a pradaria onde as almas imortais “Israel” simboliza isso as eleitas, as preferidas são apascentadas pelo Eterno Pastor. Então eles ficaram contentes. Uma vez mais, importa considerar como é metódico esse itinerário de raciocínio, um autêntico curso de filosofia pré-São Tomás de Aquino, no voo das doçuras e da genialidade. Tudo é bem ordenado, numa atmosfera diferente daquela de São Charbel Makhlouf, do catolicismo, dos ritos litúrgicos e da hieraticidade dos santos do Oriente. É um outro estilo, outra forma de beleza da Igreja luzindo através dos vitrais da alma do povo latino.

Mãe e filho vivem seu primeiro instante de Céu

O colóquio de Óstia chega ao seu termo, e Santo Agostinho, mais à frente, prossegue sua narrativa:

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração.”

É um modo discreto de dizer que Deus apareceu a eles. No momento em que conversavam e subiam de indagação em indagação, naquele instante em que eles estavam com a meditação racional inteiramente feita, cai sobre a flor ordenada, perfumada e aberta da alma de cada um deles a gota de orvalho do Céu: é Deus que  se mostra a eles. Percebe-se como Nosso Senhor se comprouve com o raciocínio deles, auxiliou-os a atingir esse auge de meditação e, quando aí chegaram, mostrou-Se a eles. Compreende-se, por outro lado, como Deus ama a quem raciocina de maneira virtuosa e a quem procura metodicamente a verdade.

“Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”

Quer dizer, eram os primeiros frutos de suas almas e de suas inocências, um primeiro presente que recebiam de Deus, e um primeiro instante de Céu que viveram juntos, e ali deixaram presos seus espíritos. Mãe e filho nunca mais se esqueceriam daquela hora, sendo que Santa Mônica em breve passaria a desfrutar eternamente das maravilhas que anteviram. “Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo que subsiste por si mesmo, nunca envelhece e tudo renova?”

É uma referência a Nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus Encarnado. Ele é a a palavra eterna que Deus diz a respeito de si próprio. Enquanto a palavra do homem é “um ruído vão”, porque começa e acaba, sai do silêncio e volta ao silêncio, o Verbo de Deus existe e existirá por toda a eternidade. Que diferença entre essa palavra de Deus que eles perceberam num êxtase e essas palavras vazias que nós pronunciamos! As nossas passam, a de Deus permanece. É eterna e renova tudo quanto existe. Santo Agostinho e Santa Mônica o compreenderam, numa visão.

“Ainda que isso dizíamos, não pelo mesmo modo e por essas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e seus prazeres nos pareciam vis naquele dia, quando assim conversávamos.” 

Os desejos de Santa Mônica postos na eternidade

Em seguida, Santa Mônica faz entender que ela vai morrer:

“Minha mãe então me disse: Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que cá esteja, evanescidas já as esperanças deste mundo.” Depois do que ela  contemplou, não tinha mais razão nenhuma para estar no mundo. Nem Santo Agostinho. Ou seja, ela viu tão alto em Deus que nem a companhia do filho, santo, por cuja conversão ela tinha chorado trinta anos, não a retinha mais nesta Terra. E ela queria ir para o Céu.

Alguém poderia indagar: “Não é um pouco duro esse desejo de partir?”

Não me parece, uma vez que ela, no Céu, estaria mais próxima de Santo Agostinho do que na Terra, porque se acharia perto de Deus, que é, por assim dizer, a “raiz” de Santo Agostinho. De fato, todos os que vão para a eterna bem-aventurança se encontram mais próximos dos que estão neste mundo do que se aqui ainda vivessem. Esta é uma verdade lindíssima, da qual

não podemos nos esquecer. Santa Mônica continua:

“Por um só motivo desejava prolongar um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de morrer. Deus concedeu-me esta graça super abundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?”

Note-se como ela punha a fé católica acima de tudo. O pensamento dela era este: “Meu filho se converteu e tornou-se um bom católico. Portanto, posso morrer em paz. O resto não me interessa”. Dias depois ela morreu…

E aqui também termina a nossa exposição.

Plinio Corrêa de Oliveira