Presépio

Repousais, Senhor, em vosso misérrimo e augustíssimo presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros inauferíveis de seu respeito e de seu carinho. Jamais uma criatura adorou com tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus.

Nunca um coração materno amou mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera criatura. E nunca filho amou tão plenamente, tão inteiramente, tão super abundantemente sua mãe.

Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: Mãe, eis aí teu filho. Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26). E, considerando a perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta das profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade” (Luc 2, 14).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo” n° 156, dezembro de 1963)

O “vitral” do Menino Jesus

Sem dúvida, uma das luzes da Civilização Cristã é o belo e imenso repertório de cânticos natalinos por ela engendrado. Cantado por diferentes nações, o mistério do Natal adquire, segundo a índole de cada povo, diversos coloridos e matizes, como os raios do Sol ao atravessarem um vitral.

Enquanto ouvia esses belos cânticos natalinos ingleses, eu estava pensando: Como é bonita a Civilização Cristã! Vemos como, nos vários povos, as canções de Natal variam de acordo com a índole nacional. Mas, de outro lado, como estão sempre presentes as mesmas características.

Hinos de entusiasmo pela inocência

Por exemplo, as músicas de Natal norte-americanas, brasileiras, italianas, alemãs, francesas, espanholas, são bem diferentes. Entretanto, por toda parte os mesmos sentimentos despertados pelo Menino Jesus, por Nossa Senhora, por São José, pelo presépio, etc., aparecem cantados de acordo com a índole de cada país.

Quais são essas notas características?

A primeira é a inocência. Os diversos povos souberam transmitir verdadeiramente um hino de entusiasmo pela inocência de Nosso Senhor, mas que repercute sob a forma de acordes da inocência com os quais cada um glorifica o Menino Jesus. Quer dizer, cada um dá o que tem de inocência para glorificar o Divino Infante. Isso vale muito mais do que o tambor(1).

O entusiasmo que cada um tem pela inocência d’Ele é um elemento de inocência em nós, porque se não tivéssemos nenhuma inocência, não nos interessaríamos por Ele. Quantas pessoas há por aí afora que não se interessam por Ele! E isso porque não têm verdadeira inocência. Se nos interessamos e cantamos bem a inocência do Menino-Deus, é porque há uma inocência em nós. Então, vê-se a inocência presente nesses cânticos.

A ternura por Deus-Menino

Está presente também a ternura. Dado o fato de o Menino Jesus ser tão fraco, tão pequeno, mas ao mesmo tempo Deus, há uma espécie de ternura, eu quase diria de compaixão, porque sendo Deus tão grande, entretanto está, por assim dizer, contido naquela criancinha. Surge, então, uma vontade de proteger o Menino Jesus contra qualquer perigo. Por isso, certas canções de Natal tomam, em certo momento, um ar de defesa e de proclamação de um hino.

Um ”vitral” de músicas natalinas

Eu gostei muito de encontrar essas várias notas nas canções inglesas que vocês cantaram tão bem. É a permanência do mesmo efeito salvífico, divino, salutar, do Menino Jesus sobre as almas das várias nações. É mais ou menos como o Sol que tem sempre a mesma cor, mas quando seus raios incidem sobre um vitral, ao atravessarem os vidros, tomam coloridos diferentes e muito harmoniosos. E se a luz se projeta no chão, fica uma beleza, como se alguém tivesse jogado ali pedras preciosas.

Assim também, Jesus é um só, mas cantado pela alma anglo-saxônica — inglesa ou americana —, vê-se n’Ele uma beleza; cantado pela alma germânica, outra beleza; pela alma latina, outra beleza. Já ouvi canções eslavas em louvor do Menino Jesus, inclusive russas, muito bonitas, mas com uma outra nota. Também brasileiras, hispano-americanas, etc. Tudo isso forma o “vitral” do Menino Jesus. E foi a beleza que eu notei muito aqui, nas canções há pouco entoadas.

Um verdadeiro presente

Agradou-me muito também constatar a força, energia, ênfase e resolução com que cantaram. Agradeço este verdadeiro presente, em primeiro lugar, porque me deu uma recreação agradável após um dia inteiro de trabalho. Mas também porque são sentimentos internos que vocês revelam e que para mim valem muito mais do que qualquer canção. Ainda que fosse um concerto na Ópera de Nova York, com um coro fantástico, valia menos para mim do que essas canções entoadas pelos meus “bem-te-vis”(2) passados, presentes e futuros. Fico muito agradecido pela iniciativa que tomaram e peço a Nossa Senhora que os abençoe.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/12/1988)
Revista Dr Plinio 189 – Dezembro de 2013

1) Dr. Plinio se refere à história de um pobre menino que, não tendo com que presentear a Jesus recém-nascido, toca diante d’Ele seu velho tambor.
2) Título afetuoso dado por Dr. Plinio a seus jovens discípulos norte-americanos.

Natal: festa na terra e no Céu

Ao meditar sobre o ambiente onde nascera o Menino Jesus, em Belém, Dr. Plinio narra saudosas recordações dos Natais que passara em seu tempo de menino.

O Natal é o primeiro passo — quão humilde, velado e discreto — que o Rei glorioso haveria de dar no caminho de sua dor, sua luta e sua vitória.

A palavra agonia, em grego, quer dizer luta. Os atletas que lutavam nos circos eram chamados agonistas. E a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo foi propriamente sua luta heroica durante a Paixão: Ele imergiu na morte para depois ressuscitar, a fim de nos salvar e podermos reinar ao seu lado no Céu.

Numa gruta em Belém…

O Natal evoca um casal colocado na situação mais triste que uma pessoa possa ter na Terra, na ordem humana dos valores.

A casa de David estava de tal maneira posta de lado, que São José era um carpinteiro pobre. Ele, príncipe da estirpe de David, vai registrar-se em Belém para obedecer às ordens de um soberano estrangeiro, César Augusto, que dominava naquele tempo a Terra Santa. O descendente dos antigos reis vencidos obedece ao decreto do imperador vencedor.

Qual a razão desse decreto de César Augusto?

Vaidade! Ele queria saber quantos homens estavam submetidos ao seu poder, e por causa disso mandou que cada um se recenseasse no lugar de onde era sua família. A de São José era originária da cidadezinha de Belém.

Podemos imaginar Nossa Senhora, na posição difícil de uma mãe que está com uma criança para nascer, montada num burrico, e São José andando a pé. Chegando a Belém, batem de porta em porta pedindo hospedagem e ninguém os acolhe. Foram então a uma gruta onde ficavam os animais.

Nessa gruta se deu o acontecimento mais importante da História: o Filho de Deus, feito carne no seio puríssimo da Virgem Maria, veio ao mundo.

Houve ali uma alegria feita de contraste: uma grande miséria, mas uma grande elevação; uma riqueza à qual nada se compara na Terra, o Filho de Deus feito Homem colocado no lugar mais pobre, numa manjedoura de animais.

A glória, à qual ninguém sabe dar valor, exceto aquele casal, está ali representada no estado de um Menino débil, frágil, que chora, tem fome e estende os bracinhos para a Mãe.

E no Céu, na maior festa até então realizada, todos os Anjos — querubins, serafins, arcanjos —, em coro magnífico com brilho extraordinário, glorificaram a Deus pelo Natal de Jesus Cristo. Esta glória impregnou a gruta discretamente, porque era preciso que somente as almas de Fé a sentissem. E, excetuando Nosso Senhor Jesus Cristo, a maior alma de toda a História — a qual vale mais do que todos os Anjos e todas as almas que houve, havia e haverá até o fim do mundo — estava ali reclinada, rezando: Maria Santíssima. E orando a Ela e ao Menino Jesus, o homem que teve a honra de ser escolhido para Seu esposo.

Vemos assim como é dentro de um quadro da maior pobreza que nasce a maior de todas as glórias.

Nossa Senhora e São José viam aquele Menino chorar, dando a entender que queria alguma coisa, ou que estava com frio. E a Santíssima Virgem O vestiu com as roupinhas que Lhe havia preparado, sabendo que Ele era o próprio Deus cheio de glória, uma só Pessoa, embora em duas naturezas. Aquela Criança era o Criador d’Ela, que Lhe abria os braços; e o dono de todo o universo, que chorava desejando receber um pouco de leite e roupa para se cobrir.

Aerologia do Natal

Tendo Ele nascido à meia-noite, podemos imaginar o que seria esse horário num lugar ermo daquelas vastidões do mundo antigo, onde tão pouca coisa se movia. Na cidade de Belém, o silêncio, todos dormiam, tudo estava escuro. Mas dentro daquela gruta, onde estava aquele casal único, havia uma luz brilhante, pois nascera um Menino que era o Rei de todos os séculos, o próprio Deus encarnado.

Isso faz parte do que poderíamos chamar aerologia do Natal, oposta à da Páscoa. Esta é uma grande vitória triunfal que se comunica a todo o mundo. O Natal é um acontecimento divino, mas que se realiza aos olhos de poucos; a maior das glórias reside num Menino e permanece escondida. De maneira que quem contempla aquela cena deseja se recolher, ficar quieto, para senti-la dentro de si, mais do que proclamá-la a grandes brados. Tem reverência enternecida, uma espécie de comiseração de Deus, porque consentiu em fazer-Se tão pequeno; ao mesmo tempo, não sabe como agradecer a honra de tocar de perto em tão alto mistério: o Verbo de Deus assumiu voluntariamente a natureza humana. E encontra dificuldade em exprimir ao mesmo tempo o respeito tão grande, que chega ao temor, e a ternura tão profunda, a qual quase liquefaz a alma.

Então, suma veneração, adoração e ternura, bem como noção de uma honra — perto da qual percebemos que nada somos — e concomitantemente de uma humilhação. Isto explica o que há de noturno no Natal. Não teria beleza abolir a Missa do galo e celebrar o Natal com uma Missa ao meio-dia. Não se compreende que essa festa não seja comemorada à noite, porque sua luz é muito discreta e pede a noite para dentro dela brilhar.

Stille Nacht, a canção natalina por excelência

A alegria do Natal é tão íntima e delicada que teme se expandir inteiramente. O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX por um simples mestre-escola, passou a ser a canção de Natal por excelência. Uma de suas genialidades está em que ela consegue exprimir essa delicadeza e intimidade. Dir-se-ia que o coro está na gruta e canta porque ficou tão emocionado, que quase não conseguiu deixar de fazê-lo. Porém, canta baixinho para não acordar o Menino e não perturbar a canção indizível e serena com que Nossa Senhora está embalando o próprio Deus.

Assim, compreendemos o papel do noturno e as mil delicadezas que vibram no Stille Nacht. Essa canção manifesta uma espécie de compaixão em relação Àquele que está sendo celebrado, como que dizendo: é tão pequeno esse Deus infinito, mas tão infinito esse Deus pequeno!

Foram necessários dezenove séculos de meditação para que desabrochasse essa canção, como uma flor dentro da Igreja Católica.

Pressa pelo Natal

Imaginemos a pressa de Maria Santíssima pelo nascimento do Redentor. Pressa que tiveram todos os profetas pela vinda d’Aquele que haveria de pôr as coisas em ordem, esmagar o demônio e os efeitos do pecado original.

Em meu tempo de moço, tal pressa era representada pela expectativa pelo Natal que havia em toda parte na pequena cidade de São Paulo. Essa expectativa — com uma dessas delicadezas de alma que somente a Igreja Católica possui —, para não ficar uma coisa teórica para as crianças, era ao mesmo tempo a pressa da vinda do Menino Deus e também da festa de Natal.

Às vésperas do nascimento de Jesus

Assim como Jesus ficou oculto antes de nascer, a comemoração do Natal se preparava no mistério para as crianças. Os mais velhos confabulavam entre si e combinavam o tamanho da árvore de Natal, seus enfeites, as mesas de doces para a criançada, o que deveria ser diferente do ano anterior, e o presépio a ser posto aos pés da árvore de Natal.

As crianças não podiam assistir a essa conversa. Sentiam que se preparava uma grande festa de alegria não só para o corpo, mas também para a alma. Mais do que isto, era uma festa religiosa: vinham graças de Deus especiais; era como se o Menino Jesus nascesse. Procurava-se ouvir as últimas palavras dos mais velhos, as quais as crianças contavam entre si para conjeturar como seria a comemoração do Natal.

E havia o mistério do presente natalino. As crianças bem novinhas acreditavam que São Nicolau trazia o presente de Natal. Os pais sondavam para saber mais ou menos o que elas queriam, mas nada diziam. E quando as crianças estavam dormindo profundamente, eles colocavam os presentes aos pés das camas.

Lembro-me que dormia na expectativa do dia seguinte. Minha cama era pintada com laca de cor branca, com figurazinhas de santos e cenas pastoris. Havia um quadrinho na parede que dava para o jardim do fundo da minha casa. Atrás desse jardim existia um terreno baldio — São Paulo não era ainda muito habitada — onde havia uma cabana, que datava, creio eu, do tempo dos índios. E dentro dessa cabana, uma quantidade enorme de grilos. Eu adormecia ouvindo os grilos… Parecia-me ser o latejar de todas as coisas à espera do Natal que viria.

Às vezes, minha pressa de receber o presente era tão grande que eu acordava uma ou duas vezes durante a noite e, quando me virava — sempre fui de virar-me muito na cama —, sentia seu peso nos pés, pois em geral, tinha tamanho grande. E eu ficava desejoso de me sentar para ver o presente. Mas não o fazia porque desgostaria mamãe se eu acendesse a luz para olhá-lo; além disso, eu pensava de mim para comigo o seguinte: será mais gostoso ver o presente amanhã cedo e agora continuar a dormir, com a ideia de que ele já chegou e é pesadão, como estou sentindo.

É melhor fruir esta expectativa e amanhã ver o presente, do que destruí-la, brincando excitado com o presente, e depois não conseguir mais dormir. Então eu me afundava nas cobertas e continuava repousando, embalado pela certeza de ter recebido o presente.

Uma manhã de alegria plena

Na manhã seguinte havia o melhor dos acordares para mim. Assim que manifestava alguns sinais de haver despertado, ocorria o que não se dava em nenhuma outra manhã do ano — exceto se eu estivesse doente: mamãe estava — com um olhar que, ao longo de minha vida, nunca recebi igual — aos pés de minha cama, vendo meu acordar, deleitando-se com o prazer que eu iria ter com o presente dado por ela. Porém, mamãe não sabia que para mim a alegria dela era um maior presente do que aquele colocado aos pés da cama. Quando percebia que eu estava inteiramente acordado, ela estendia os braços e dizia: “Filhinho!” E eu, antes de ver o presente, ia para os braços dela, porque sua alegria e a interpenetração de nossas almas valiam mais do que o presente concedido por ela. Ao mesmo tempo em que a abraçava, eu ia olhando para o presente e depois corria para apanhá-lo.

De todos esses presentes, nenhum deixou uma recordação mais profunda em minha alma do que um de grande valor não quantitativo, mas qualitativo: Um grupo de soldadinhos de chumbo, alguns montando bonitos cavalos; tinham couraças de aço e chapéus com a crina caída, e todos com a espada na mão. Esses soldadinhos me deixaram encantado.

E já de manhã havia a distribuição de algumas boas iguarias, pão de mel com manteiga, deixando as mais saborosas para serem servidas à noite. Depois eu ia para o quarto de brinquedos.

Junto à árvore de Natal

A certa hora da noite, todos os primos estavam em nossa casa, com trajes de festa, que eram então roupas de gala para criança, e não esses vestidinhos de hoje em dia. E todos com modos mais respeitosos e elegantes uns com os outros, porque estavam em trajes de gala.

Afinal, aparecia mamãe anunciando que a festa de Natal ia começar. Então íamos para uma saleta onde nos reuníamos, dávamos-nos as mãos e descíamos uma escada externa da casa para o andar térreo, que dava diretamente para o jardim, onde havia uma árvore de Natal. Éramos umas vinte crianças, todas cantando o Stille Natch, e vínhamos trazendo uma imagem do Menino Jesus, que até hoje está em minha casa, a qual todos os anos mamãe adornava com vestidinhos diferentes.

Girando em torno da árvore, cantávamos canções de Natal, já sentindo o cheiro do chocolate com creme chantilly, com o qual iam se enchendo as xícaras; e também o do pinheiro que, ao ser um pouco queimado por algumas velas, deitava um perfume de resina especial, próprio do Natal.

Em tudo isso havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia travessura, peraltice; todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia emanar das imagens do Menino Jesus, de Nossa Senhora, de São José e, naturalmente, do boizinho e burrico que em todo presépio não podem faltar.

Essa alegria era algo que não sei exprimir. No fundo, provinha da idéia do Puer natus est nobis — foi-nos dado um Menino —, e participava da felicidade do Céu. Realizava-se como que a repetição do próprio nascimento de Jesus, e sentíamos estar vivendo as graças do primeiro Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)
Revista Dr Plinio 141 – Dezembro de 2009

O “canticum novum”

Quais as graças, as cogitações, a poesia e os cânticos que caracterizarão os Natais no Reino de Maria? A este respeito Dr. Plinio tece belos e inéditos comentários.

Gostaria de tratar de alguns aspectos do Natal a partir de conjecturas a respeito de como seria a música de Natal no Reino de Maria. Sobre isso haveria diversas hipóteses que se entrecruzam.

Uma canção natalina que abrangesse desde o Nascimento até a Ascensão de Jesus

A mim pessoalmente agradaria uma música que considerasse o mistério do Natal relacionando-o com o futuro do Menino Jesus. Assim, em determinado momento, desenvolvesse algo sobre a vida contemplativa d’Ele com Nossa Senhora durante os trinta anos vividos em Nazaré. Depois, a dor da despedida, a vida pública, Paixão, Morte, Ressurreição, glória no Céu. Terminando, por exemplo, com esse pensamento: se os Anjos cantaram “glória a Deus no mais alto dos céus e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14), o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus. Ninguém teve boa vontade como Ele, em nenhum sentido, nem de longe. Logo, a glória d’Ele não se iguala à de ninguém. Os Anjos, quando entoaram “glória a Deus no mais alto dos céus”, cantaram a Ele enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade também. E quando cantaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram-No enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem e, com esta, a verdadeira paz.

Depois a luta d’Ele e a Ascensão ao Céu, porque sendo Ele o Homem de boa vontade por excelência que realizou tudo quanto devia realizar, teve uma glória incomparável no Céu. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o Stille Nacht.

Cântico do inocente, do penitente, do pecador e do guerreiro

Eu também imaginaria de bom grado canções natalinas para estados de alma diferentes. Então, para a alma inocente que, imersa neste mundo e dentro da luta, tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço até o fim.

O cântico de Natal da alma inocente seria diferente do cântico da alma penitente. O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José dizendo não ser digno, mas pedindo ao Santo Patriarca que obtenha da Santíssima Virgem para ele um olhar e uma compaixão. Seguem-se a resposta afirmativa de São José e um apelo a Nossa Senhora. A Mãe de Deus atende e o recebe maternalmente.

O pecador arrependido então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus. Sentindo-se indigno de entrar na gruta, canta do lado de fora, dizendo: “Até o bafo do boi é digno de estar ali dentro, porque está na ordem de Deus. Mas eu sou o pecador que rompi em determinado momento essa ordem. Portanto, não sou digno de aproximar-me dali. Onde os animais entram eu não posso entrar. Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!” Ela o cobre, e coberto pelo manto, ele recita um Confiteor e recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como um movimento instintivo de uma criança, mas na realidade tem o sentido de um perdão. O penitente se retira agradecido.

Outro poderia ser o cântico natalino do pecador atolado no pecado. Que gostaria de sair desse estado, mas não o quer com toda a eficácia. Mas ao menos de longe, de fora, canta implorando a Nossa Senhora enviar-lhe um mensageiro que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe a mensagem no bico da ave.

A súplica é entregue, e nela ele diz não ser como o pecador anterior que tendo rompido com Deus, rompeu depois com o pecado. Aquele, quando entrou na gruta, após reconhecer que não merecia estar onde até o boi e o burro eram dignos, já estava reconciliado com Deus. Este, entretanto, não é nem o pecador arrependido nem o boi: ele é a serpente, pois se encontra em estado de pecado mortal. Está carregado de pecados, mas tem tristeza e esperança, e implora de longe a Nossa Senhora, cujo pedido pode obter de seu Divino Filho que um aceno de mão remova as montanhas internas do pecado na sua alma e faça dele um homem que, afinal, se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Quando o pecador se aproxima de Nossa Senhora, o Menino Jesus sorri, senta-Se e abre os braços. Diante desse gesto, ele pede perdão, é perdoado e sai contrito.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente, do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. Viriam as objeções: “Natal é festa da suavidade, da concórdia, não entra em considerações de guerra.” Mas se essa guerra é lícita, por que não cabe um lugar para ela aos pés da manjedoura onde está o Menino Jesus?

Seriam, portanto, cânticos destinados a vários estados de alma, para dar ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Acréscimo legítimo às comemorações natalinas

Contra tudo quanto acabo de dizer há uma objeção muito séria. É a defesa do não se acrescentar nada ao Natal como atualmente é comemorado. O Natal é uma festa com um significado próprio, preponderante, não de um Deus presente no mundo e já exercendo a sua missão. Mais tarde Ele perdoará os pecadores, moverá as montanhas. No momento está existindo só para Nossa Senhora e São José, e deve ser considerado apenas assim. Por causa disso, é ordenado que os espíritos retos fruam a beleza específica do Natal e mais nada. Misturar todos esses pensamentos seria tirar a especificidade dessa festa. A liturgia da Igreja tem outras comemorações reservadas ao pecador, por exemplo, a Paixão de Nosso Senhor.

O Natal é a festa da candura, da infância, da aliança de Deus com o homem, encarnando-Se e descendo à Terra. É a festa da distância fabulosa no caminho percorrido pelo Verbo de Deus, estando eternamente na Santíssima Trindade, convivendo com as outras duas Pessoas num relacionamento perfeito e ininterrupto, sem começo nem fim, e que Se faz Homem, vem para a Terra, e está ali, no Presépio, entre Maria e José. Isso tudo é tão alto e tão cheio de significado que não se deve misturar com outras considerações.

A meu ver, essa defesa tem seu sentido, mas de fato o Natal existiu não só para que Nossa Senhora, São José, os pastores e os Reis Magos contemplassem o Divino Infante, mas também todos os outros homens. Portanto, o Natal enquanto vivido por todas as outras gerações que, em certo sentido, se aproximam do Menino Jesus merece essa ampliação.

Daí não vem uma censura ao Natal atual, mas o desejo de algo a mais. Ouso esperar que no Reino de Maria esses argumentos sejam ponderados por quem de direito possa realizar esse acréscimo. Temos assim uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento, de como seriam os vários Natais do Reino de Maria.

Sacralidade dos Natais de outrora

A isso acrescento um elemento que me parece decisivo dentro do assunto. Havia nos antigos Natais um traço que eu alcancei: uma sacralidade da qual as gerações mais novas não podem fazer ideia.

No meu tempo, nos dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. No Centro velho, o triângulo formado pelas Ruas Líbero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois o conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, havia lojas que vendiam brinquedos e expunham na vitrine um presepe. Esses estabelecimentos comerciais possuíam gramofones que tocavam músicas de Natal. Então, percorrendo a pé, por exemplo, a Rua Direita, de ponta a ponta ouviam-se as melodias natalinas.
Quando chegava a noite de Natal, as famílias todas começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho, nas ruas vazias de qualquer gente que não fosse quem se dirigia para a Missa, na paz, naquele andar vagaroso de famílias que saem numa hora na qual costumam estar dormindo. Da igreja saía uma luz forte que iluminava a rua cada vez que se abria a porta, e lá dentro estavam começando a cantar. Em certo momento batia o sino e começava a Missa.

Tinha-se a sensação de uma graça vinda de uma altura, mas de uma altura…! Graça de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito aparentemente incompatíveis, mas que convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites. Talvez de nada da minha infância eu tenha tantas saudades quanto desse aroma e dessa graça de Natal.

A graça de Natal no Reino de Maria

Como será essa graça no Reino de Maria? Estou certo de que ela se reapresentará. Porém, ninguém pode prever qual vai ser sua magnificência e esplendor. Lendo o que São Luís Grignion escreve a respeito desse assunto, notamos que ele prevê em palavras magníficas a vinda do Reino de Maria, mas não o descreve, porque tem qualquer coisa superior a tudo quanto poderíamos imaginar.
É compreensível, pois o tormento dos justos na época em que estamos é superior a tudo quanto poderíamos conceber. E se esse foi o tormento dos justos, foi também o sofrimento de Maria, que previu e padeceu com tudo isso. Portanto, a um tormento sem proporções com nada deve seguir-se uma glorificação e um gáudio sem proporções com nada.

Eu pergunto: Aos que formos fiéis até a hora do Reino de Maria, não é verdade que a alegria do primeiro Natal deverá ser com graças que ninguém imagina? Mais ainda: às vezes tenho me perguntado se o primeiro dia do Reino de Maria não será um dia de Natal. Quer dizer, na véspera o demônio é derrotado, seu reino acaba e os Anjos levam umas tantas horas para limpar a Terra dos vestígios dos pecadores. A própria natureza torna-se diferente. Tem-se a impressão de que do alto do céu, mas também do fundo da terra saem bênçãos, evolam-se graças, é tudo tão diverso… É a primeira noite de Natal, nasceu o Reino de Maria! É uma possibilidade, não digo que seja certo. É uma hipótese entre outras, e é legítimo fazer hipóteses.

O nascimento de uma nova melodia natalina

Compreende-se como nascem as grandes coisas. Nessa noite uma pessoa dotada de dons poéticos, caminhando rumo à igreja, sussurra aos ouvidos de um companheiro: “Está vindo à cabeça uma poesia em louvor do Menino-Deus e de Nossa Senhora!” E recita um poema que ele mesmo não percebe ser admirável. Isso se espalha, e uma pessoa com dotes musicais começa a cantar, ali mesmo na rua. A certa altura, todos aprenderam a melodia e entram na igreja entoando esse cântico.

Nasceu mais uma música natalina para todos os séculos. O Anticristo, quando vier, ainda encontrará essa canção sendo entoada. Os últimos fiéis, na escuridão de alguma catacumba, ainda cantarão a mesma melodia no último Natal da História. Qual será a surpresa deles quando perceberem que alguém canta muito melhor do que eles essa música, do lado de cima da terra. Eles ficam comovidos e delegam alguém para subir, pé ante pé, e ver o que está acontecendo. Ele volta correndo e extasiado: são os Anjos que estão cantando no céu!

Um gênero de poesia livre da rima e da métrica

Como serão essa música e essa poesia? Vem aqui uma conjectura, mais uma vez toda ela pessoal: A poesia como ela existe hoje, e mesmo como os clássicos romanos e gregos a conheceram, eu admiro muito, é muito bonita. Mas ela tem qualquer coisa que me dá a impressão do que sentiria um homem ao usar um colete para corrigir a desvio na espinha dorsal ou algo semelhante. Aquele sistema métrico, aquela rima que deve bater com a outra… Parece-me que o pensamento e o sentimento ficam meio algemados dentro daquilo.

E eu gostaria de imaginar um gênero de poesia liberta desses entraves, e que fizesse exprimir toda a sua beleza sem a obrigação desse pesadelo da rima e da métrica. Eu, tão desconfiado com a espontaneidade, nesse ponto advogo uma certa espontaneidade. Assim, eu imaginaria algum gênero de composição que fosse poético muito mais pelo pensamento, pelo sentimento, do que pela forma literária. Como seria isso? Também não sei. A canção de gesta tem um pouco disso.

O verdadeiro espírito poético e o “canticum novum”

Como se forma o espírito poético? Nós estamos tão deformados pela Revolução que quando se fala de espírito poético vem à mente a ideia da canção sentimental, com a eterna lenga-lenga do rapaz que queria a moça e ela não queria o rapaz ou vice-versa. Então sai um choro mole, triste, que por vezes dá numa reconciliação, e fica no puro choro e acabou-se. É a última lágrima, o último ponto final da poesia.

Não é isso. O espírito poético verdadeiro é de quem não tem na alma esses vapores tóxicos do sentimentalismo. É uma alma limpa do vício da pena de si mesmo, e que não quer cantar as suas aspirações, a sua vida interna, mas os ideais para os quais vive. Quer dizer, é o cântico da alma generosa que compreende o elevado, o sublime, e quer cantar a sublimidade. Uma poesia onde possivelmente não figure sequer a palavra “eu”, nada egocêntrica. Não canta a sua dor, canta aquilo que adora.

Quem cantou o grande Carlos, quem compôs a canção de gesta? Discute-se. Uma das hipóteses é que um anônimo tenha cantado pela primeira vez, e depois as multidões começaram a repetir, acrescentando episódios, trovas, etc. É quase um imenso autor anônimo que não se preocupou em deixar seu nome para a posteridade, mas desinteressadamente se preocupou em cantar os pares de Carlos Magno. Essas são as almas capazes de poesia.

Na América Latina há mil criatividades à espera da hora da graça, e que Deus não quis que se gastassem na época da Revolução. Estão reservadas para glorificar a Mãe d’Ele quando Ela reinar. Serão o canticum novum(1) que este continente, descoberto pela Europa e povoado muito preponderantemente por filhos daquelas terras, acrescentará ao lindíssimo, ao admirável canticum antigo que a Europa entoou, e que ela conservará e legará para o futuro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)
Revista Dr Plinio 237 – Dezembro de 2017

1) Do latim: cântico novo.

O menino do tambor

Há mais de dois mil anos, nos imensos e longínquos arenais da Arábia, vivia um menino muito pobre, que possuía tão somente um pequeno tambor. Órfão de mãe desde muito pequeno, vivia sozinho com seu pai, guardião de um oásis, cujas águas eram abundantes e cristalinas.

Numa fria noite de inverno, enquanto o menino tocava seu tambor, apareceu no céu uma estrela que brilhava mais do que todas as outras. Contemplando o luminoso astro, logo compreendeu que ele prenunciava um feliz e grandioso acontecimento.

Na manhã seguinte, o menino divisou no horizonte uma longa fila de homens e animais. Percebeu não se tratar de uma caravana comum, pois até o menor dos servos vestia-se ricamente. No fim do longo cortejo, sentados no alto de vigorosos dromedários, vinham três nobres senhores, vestidos com trajes coloridos e turbantes de seda. Um deles era um ancião de longa barba, outro um homem maduro de vivos olhos e ruivos cabelos, o terceiro um vigoroso árabe de pele escura. Dir-se-ia que os três eram poderosos reis.

Ao se aproximar a caravana, curioso, o menino dirigiu-se aos reis: “Senhores, perdoem meu atrevimento, mas a que se deve a presença de tão ilustres pessoas nestas desoladas paragens?”

Um dos reis sorriu e explicou-lhe que vinham de muito longe e que seguiam uma estrela que haveria de guiá-los até o local onde nasceria o Messias, o Salvador da humanidade, anunciado pelos profetas. “Então, tomamos ouro, incenso e mirra e pusemo-nos a caminho, a fim de prestar-Lhe homenagens”.

O menino sentiu um irresistível desejo de ir conhecer o Messias prometido e, com a permissão de seu pai, juntou-se aos viajantes.

Alguns dias depois, a caravana fazia sua entrada em Belém de Judá e numa humilde casa, sobre a qual se detivera a milagrosa estrela, os três nobres senhores encontraram um inocente Menino nos braços de uma bela Senhora. Logo compreenderam que aquele lindo Infante era o esperado Messias. Prosternaram-se, adorando-O e Lhe ofereceram ouro, incenso e mirra.

Mas, eis que ouve-se o rufar de um tamborzinho e uma harmoniosa e pueril voz:

Eu quisera pôr a vossos pés
Algum presente que vos agrade, Senhor!
Mas Vós sabeis que eu sou pobre também,
E não possuo mais do que um velho tambor!

Era o “menino do tambor” que cantava para o Salvador uma humilde e bela canção, acompanhada pelos graves acentos de seu tambor. E a face do Menino Jesus iluminou-se com um belo sorriso.

Dois olhos que são um firmamento

O principal ponto de adesão entre Dr. Plinio e sua mãe era o fato de ela estar continuamente voltada para uma “trans-esfera” muito nobre, elevada, doce, serena, lúcida, do alto da qual mantinha  relações com todo mundo. Isso que poderia parecer etéreo se exprime muitíssimo bem no Quadrinho de Dona Lucilia, especialmente nos olhos.

 

Dona Lucilia era uma senhora de família ou, como se diz hoje de uma maneira horrível, “de prendas domésticas”.

Vivia para o trabalho de uma existência de senhora, para dentro de sua casa. Não foi uma senhora de estudos, pois no tempo dela não era costume as senhoras estudarem. Tinha as ideias gerais  das senhoras que viviam no ambiente de homens cultos. Era profundamente católica. 

Estado de espírito sempre nobre, elevado e sereno

Mas eu não ousaria dizer que este ponto fosse o principal da adesão entre mim e ela. Certamente não haveria adesão se ela não fosse assim. Isso é certo, mas não é o fundamental. O principal  ponto de adesão era um modo de ser da alma dela que me parecia estar continuamente voltado para uma “trans-esfera”1 por onde, embora ela tomasse conta de tudo muito bem, o melhor da  atenção, do afeto dela estava voltado para essa “trans-esfera” muito nobre, elevada, doce, serena, lúcida, do alto da qual ela mantinha relações com todo mundo, de tal maneira que se percebia estar  sua alma, ao mesmo tempo, na “trans-esfera” e na pequena coisa concreta.

Lembro-me de que ela gostava muito de uma flor chamada primavera.

Na fazenda do Amparo de Nossa Senhora, onde eu costumo me hospedar, há uma trepadeira com essa flor. Sabendo que mamãe apreciava a primavera, os membros de nosso Movimento ali  residentes cortavam muitas daquelas flores e me davam para levar para ela, cada vez que eu voltava a São Paulo.

Quando chegava, eu lhe entregava as flores, e via os jeitos dela olhar encantada para elas. Às vezes, suave e discretamente, mamãe até parava um pouquinho a respiração e depois fazia algum  comentário. Mas eu notava que o comentário não era nada em comparação com o que estava no espírito dela a respeito daquilo. Entretanto, o que ela dizia estava relacionado com uma  “trans-esfera” da qual aquelas flores não eram senão o símbolo. Em última análise, uma relação com Deus Nosso Senhor, com Nossa Senhora e tudo o mais que tange o mundo sobrenatural.

Desse sentido elevadíssimo no qual Dona Lucilia habitava procediam todos os seus estados de alma, os quais constituíam o meu maior encanto por ela, e que procurei haurir e transformar em  meus, tanto quanto pude.

Este era o principal ponto de atração. É um pouco nebuloso, etéreo, mas a pessoa se dá conta disso olhando o Quadrinho. Porque vendo-o percebe-se o que isso quer dizer de concreto, embora seja um pouco inexplicável.

História de uma obra-prima

Se querem saber qual é o principal ponto de atração da alma de mamãe para a minha, olhem para o fundo do olhar dela no Quadrinho e compreenderão. Aquilo diz muito mais do que qualquer  palavra ou descrição.

Quando um discípulo meu pintou aquele quadro – tendo como base uma das últimas fotografias tiradas dela – fê-lo durante uma longa viagem, dentro de uma “Kombi”, nas condições mais  desfavoráveis que se possa imaginar para um trabalho desse tipo.

O resultado foi que ele terminou a pintura e não gostou. Então, apagou tudo, exceto os olhos, que lhe pareciam ter ficado bons. Assim, no pano restaram apenas aqueles dois olhos. E ele tinha a  impressão de que os olhos dela lhe suplicavam que retomasse a pintura. Ele então fez e, apesar de outras vicissitudes, saiu aquela obra-prima.

Pois bem, eu me comovo imaginando aqueles dois olhos no tecido. Seria quase o que mamãe foi para mim: dois olhos ao longo da vida…

Todo o resto, um tecido. Mas aqueles dois olhos eram, para mim, um firmamento! Recordo-me de quantas e quantas vezes eu olhava para os olhos dela profundamente. E mamãe tinha uma coisa  curiosa: quando ela se sentia analisada, tomava uma atitude bem fixa e se deixava olhar. Eu tinha a impressão de que pegava com a mão no fundo da alma dela, de tal maneira me ficava claro  quem ela era. E ficava encantadíssimo, mas encantadíssimo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1978)

1) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a trans-esfera.

Santo Filogonio – Fundador de uma luta santa

É uma glória especial dar começo a qualquer boa obra. Por isso costumamos homenagear o fundador de uma cidade, de uma dinastia, de uma diocese, o primeiro povoador de um país.

Portanto, a “fortiori”, devemos homenagear também aqueles que levantem uma luta santa. Neste caso, são os fundadores da reação. Eles possuem o mérito e a glória de terem sido os primeiros a combater quando estavam isolados e não sabiam com quem haveriam de contar. Tendo corrido o risco da aventura de levantar o estandarte, tornaram-se os pais espirituais de toda a luta que veio depois.

São Filogônio deve ser extraordinariamente digno de nossa veneração, porque foi dos que suscitaram a luta contra um precursor de Lutero, chamado Ario.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/12/1965)

Felix Cæli Porta

Na hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus, a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente, Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou.

Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura o Verbo de Deus encarnado!

(Extraído de conferência de 2/7/1995)

As Graças do Natal

Queiram ou não queiram os homens, a graça lhes bate às portas da alma, mais sublime, mais meiga, mais insistente, neste tempo de Natal. Dir-se-ia que, apesar de tudo, paira nos ares um luz,  uma paz, um alento, uma estimulo ao idealismo e dedicação, que é difícil não perceber.

Ademais, em inúmeras igrejas, em muitos lares, o presépio ainda nos põe diante dos olhos a imagem do  Menino Deus, que veio para romper os grilhões da morte, para calcar aos pés o pecado, para perdoar, para regenerar, para abrir aos homens novos e ilimitados horizontes de fé e de ideal, novas e  ilimitadas  possibilidades de virtude e de bem.

Que a paz do Natal penetre em nós

Mais uma vez, Senhor, a Cristandade se apresta a Vos venerar na manjedoura de Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob a luz ainda mais clara e fulgente dos olhos maternais e doces de Maria. A  vosso lado está São José, tão absorto em Vos contemplar que parece nem sequer perceber os animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram as nuvens e cantam, bem visíveis, no mais  alto dos Céus”.

Eis pequeno trecho de uma meditação de Dr. Plinio, em noite de Natal, diante do presépio, que o encontrava pela capacidade de reviver algo daquela atmosfera indizível reinante na gruta de  Belém. O primeiro presépio da história foi obra de um refulgente santo, há quase oito séculos. Conta Tomás de Celano — o biógrafo do seráfico São Francisco de Assis, e seu contemporâneo — que  este, no Natal do ano da graça de 1223, desejou compor do modo mais real possível a cena vista pelos pastores na Gruta de Belém.

Com seu espírito poético, voltado para o maravilhoso, sua candura e humildade, preparou uma manjedoura coberta com feno e mandou colocar de um lado um boi, e de outro um asno. Fez  celebrar nesse local a Missa e, observando a cena, dirigiu-se aos assistentes,  descrevendo com palavras ardentes de piedade e amor o nascimento do Homem-Deus.

A partir desse fato, difundiu-se por toda a Cristandade o costume de montar presépios por ocasião do Natal. Ativando a imaginação de pequenos e adultos, eles são ocasião de incontáveis flashes —  ara utilizarmos um termo pliniano —, proporcionando-nos algumas das mais inesquecíveis horas de nossa vida.

Considerando esse quadro, quantas e quantas vezes Dr. Plinio elevou suas cogitações até aquele convívio inefável da Sagrada Família, nunca se esquecendo de recordar que essa sublime cena nos  cobra uma determinada disposição de espírito: “Não basta que nos inclinemos ante Jesus Menino, ao som dos hinos litúrgicos, em uníssono com a alegria do povo fiel. É necessário que cuidemos  cada qual de nossa própria reforma, e da reforma do próximo, para que a crise contemporânea tenha solução, para que a luz que brilha no presépio recobre campo livre para sua irradiação em  todo o mundo”.

Contudo, Dr. Plinio destacava igualmente que, nesse dia bendito, Jesus e Maria querem especialmente de nós que nos deixemos impregnar pela doce e benigna atmosfera do acontecimento  grandioso: “Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe d’Ele, mas também nossa. […] Ao contemplar isso, nossas almas crispadas se  distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado. Florescem os dons de alma. O dom do afeto. O dom do perdão. E, como  símbolo, a oferta delicada e desinteressada de algum presente”.*

Nessa ocasião do mais augusto de todos os aniversários, aproximemo-nos do presépio e, silenciosos e recolhidos, deixemos que nossas almas sejam inundadas por essa paz luminosa do santo Natal.

* Os trechos acima transcritos foram publicados respectivamente em Legionário, 22/12/46; Catolicismo, dez/52; Folha de S. Paulo, 27/12/70.

Plinio Corrêa de Oliveira