O Sacerdote perfeito

Do amor indescritível pela Igreja Católica, derivava naturalmente, na alma de Dr. Plinio, um entusiasmo respeitoso e admirativo pela mais alta das missões que um homem possa ter neste mundo: ser ministro dessa Igreja, representante de Deus na terra. Numa conferência pronunciada em maio de 1973, ele analisa sob diversos prismas a excelsitude dessa vocação, para chegar ao arquétipo  do sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Após os cânticos de amor e de entusiasmo que acabo de ouvir nesta sessão jubilar, toca-me a mim fazer uma conferência, cabe-me apenas falar. Dura tarefa, malcompensada pelo que tem de realmente formoso o assunto, uma vez que devo entreter os vossos espíritos durante um tempo que terá o mérito de ser breve a respeito de um tema que, a ser bem analisado, contém em si todas as belezas da terra. Eu devo falar a respeito da plenitude do sacerdócio.

Adão no Paraíso, príncipe do mais belo dos reinos

E esta consideração me leva à noite dos tempos, a uma digressão histórica que pega o homem no período, talvez, mais crucial e mais duro de sua história. Nós imaginamos ho-

je que estamos aos bordos, talvez, de  uma  catástrofe sem precedente. Não nos lembramos de que uma catástrofe houve maior do que todas as catástrofes, uma catástrofe houve que marcou logo, desde o início, a história do gênero humano. Aquela catástrofe narrada pelo Gênesis, da desobediência do homem que, tentado pela mulher, tentada pela serpente, duvidou de Deus, revoltou-se contra Ele, não quis seguir os destinos que Deus lhe assinalara e por isso foi expulso do paraíso.

Príncipe do mais belo e mais encantador dos reinos, colocado como senhor de toda a natureza visível cujos segredos ele conhecia perfeitamente e sobre a qual exercia um misterioso império; confortado pelos dons preternaturais que lhe asseguravam, entre outros (benefícios), a imortalidade, Adão pecou, Eva pecou, saíram do paraíso, deixaram aquela terra de bênção e de eleição onde, segundo diz o Gênesis, Deus passeava com Adão, comentando todas as belezas que Ele havia criado.

Saíram daquela terra de eleição e entraram para a terra do exílio. Os dons preternaturais deles se retiraram. A natureza humana, desamparada diante de um ambiente sobre o qual não tinha mais governo, que não mais dominava, sentiu-se apoucada, diminuída, ameaçada pela justa cólera de um Deus que tinha sido ofendido. E com o homem, na terra do exílio penetraram a apreensão, a dor, o sofrimento, a incerteza, seguida, não tanto tempo depois, da imagem terrífica da morte.

O fratricídio de Caim

Adão e Eva que se sabiam, então, destinados à morte, antes de morrerem passaram por esta tragédia terrível de ver o filho da bênção, o filho da predileção, Abel, o doce Abel, o justo, o magnífico, prostrado no chão, morto! Eles nunca tinham visto um morto! Não tinham a idéia plena, talvez, do que fosse a morte, porque aquilo que não se vê, não se conhece inteiramente. E morto por quem? Morto por um outro filho. O fratricídio ignóbil derramando no solo o sangue do justo que, segundo diz a Bíblia, subia até o céu bradando a  Deus por vingança.

E nós podemos imaginar o trágico do primeiro funeral na terra: Eva soluçando, Adão batendo no peito, Caim desvairado sumindo ao longo dos caminhos, os outros filhos abrindo em qualquer lugar a esmo, na terra, uma cova. Fechase a sepultura, encerra-se a história de Abel…

Faz-se o vazio na terra imensa, e a humanidade começa a sua enorme peregrinação, com este sentimento duplo: de um lado, o da própria finitude, o homem vai morrer, morrerá como morreu Abel, será um cadáver como foi Abel, a terra o devorará como está sendo devorado o cadáver de Abel; de outro, o sentimento de precariedade, de incerteza, a natureza revoltada, os animais que agridem, as trovoadas que caem, o alimento difícil de extrair do chão. Tudo somado, dá ao homem uma dificuldade de se orientar na vida, que marca a fundo a existência da humanidade dos filhos de Adão ao longo dessa trajetória que nos conduziu de tragédia em esplendor, de esplendor em tragédia, de esperança em frustração, de frustração em vitória que se arrebenta em novas frustrações; conduziu-nos até este século XX, ápice, ele mesmo pelo menos a seu modo de esplendores, de frustrações e de tragédias.

Diante da infinitude e do mistério, a noção de sacerdócio

Essa posição de finitude e de incerteza do homem diante da sua vida terrena acendeu duas concepções distintas de sacerdócio. Concepções estas que nós encontramos em duas famílias diversas de religiões pagãs.

Em primeiro lugar, as religiões ditas religiões sem mistérios, que correspondem, quiçá, a uma família de almas do gênero humano: as almas mais voltadas para esta terra, que não negam diretamente a existência de uma outra vida, e nem dela se desinteressam, mas que de tal maneira se deixam impressionar pelo dia de amanhã, que o centro de suas preocupações se volta para os afazeres terrenos.

Então os senhores têm, talvez correspondendo a essa família de almas, o aparecimento das religiões ditas sem mistérios. Religiões em que o sacerdote aparece como um mediador entre os deuses e o homem é esta, sempre, a nota característica da noção de sacerdote: é um intermediário entre Deus e os homens -, mas de um mediador que, embora com os olhos voltados para o céu, tem missões caracteristicamente terrenas.

Quais são as missões do sacerdote nas religiões pagãs sem mistérios?

O sacerdote é revestido de poderes mágicos por onde faz crer que ele tem o poder de curar, de matar; tem o poder de, por meio de encantamentos e de sortilégios, governar os trovões, aplacar as feras, etc.

O sacerdote resolve, portanto, problemas humanos: ele executa curas, ele pratica mortes, sendo instrumento de vingança, ele governa os elementos.

Vemos aí uma vaga saudade que o gênero humano tem, nesta decadência, daquele domínio que ele exercia sobre a natureza, quando Adão ainda não havia caído. A nossa natureza pede esse domínio. E os sacerdotes do paganismo, da gentilidade, para satisfazer a esta necessidade de domínio, assim se apresentavam aos homens.

E daí o tipo de sacerdotes exorcistas que enxotam os espíritos malignos capazes de atrapalhar o homem na sua faina diária, de arruinar as colheitas, de espalhar doenças, de fazer fugir o gado, etc.

É também o sacerdote sacrificador, o sacerdote que imola, o sacerdote que diante da vista do homem pecador toma uma vítima um animal, uma fruta, que sei eu? infelizmente, muitas vezes uma vítima humana e a imola para assim aplacar a cólera de um deus que o homem sente irado, brigado com ele, do qual ele tem medo, e por isso deseja de algum modo tornar-lhe propício.

Aqui aparece, então, a figura do sacerdote antigo, segundo o tipo dessa mentalidade mais voltada para os bens terrenos.

O sacerdócio comunicador da vida divina

Mas há uma outra família de almas, talvez mais rara, certamente mais elevada. É a dos homens que vivem compreendendo que, por mais importantes que sejam os problemas terrenos, eles não passam de logística; por mais importantes que eles sejam, não é para resolvê-los que o homem está na terra. São os homens que compreendem não ser a fome o problema central da vida; são os homens que sabem pensar, que param para refletir, e que, abrindo um intervalo nas justas atividades da faina diária, de vez em quando se perguntam:

Que sentido tem isto? Que sentido tem esta vida? Por que nasci? Para onde vou? Depois que eu morrer, o que será feito de mim? Não sei! Preciso indagar.

Essas questões supereminentes dominam a vida humana a qual, sem elas, é inexpressiva.

Para atender às perguntas desse gênero de espírito, a própria gentilidade, embora nos seus desvarios e nos seus erros, levada por um misto de bom senso e de tradição que ela nunca chegou a perder completamente, elabora o tipo de sacerdote de religiões de mistérios. São religiões que praticam em geral às ocultas e em geral para um número relativamente pequeno de crentes ritos que devem operar este efeito extraordinário: algo da vida da divindade passa para o sacerdote, e algo do sacerdote deflui para o público, de maneira que uma certa vida divina circula entre os que praticam e os que presenciam o rito. Vida divina esta que lhes dá mais força nas agruras desta existência, lhes dá mais luz à mente, lhes dá mais energia à vontade. Vida divina esta que se manifesta também pela magnífica promessa de que ela não terá fim. Ela veio do além, ela se insere no homem, ela criam eles não cessa com a morte do homem.

A promessa de uma outra vida, existente de modo menos categórico também nas outras religiões, afirma-se mais definidamente nessas religiões de mistérios. E as almas sequiosas de uma natureza melhor que esta, sequiosas de uma explicação mais alta para seus problemas, de uma orientação para a vida mais profunda do que simplesmente a preocupação de obter o ganho necessário para não morrer de fome, ou para satisfazer ambições e vaidades, esse tipo de almas se encaixa nessa série de religiões.

E assim, vagamente, confusamente, no meio de ritos idolátricos, por vezes abomináveis, e até satânicos, podemos discernir o filão de uma tradição preciosa, o filão do bom senso humano, como também o filão de uma esperança.

Numa noite em Nazaré, fazse a paz entre o Céu e a terra

Com efeito, todas, ou pelo menos muitas dessas religiões, eram animadas pela esperança de que um dia a paz se faria entre o Céu e a terra, um momento chegaria em que os tempos teriam a sua plenitude, e um eleito de Deus, perfeito, amado, haveria de vir ao mundo para restaurar a ordem que o pecado de nossos primeiros pais -lembrado em tantas religiões antigas nos tinha tirado.

Em determinado momento, numa meia-noite, no silêncio absoluto de uma cidade hebraica, uma Virgem tênue, delicada, cândida, trazendo nos olhos uma infinitude (de reflexos celestiais), rezava. Os tempos tinham maturado, o grau de sofrimento e de degradação da humanidade tinha chegado a um ponto tal, que a misericórdia de Deus criara esta Virgem para que Ela, imaculada, conseguisse o que nenhum homem pecador conseguiria: pedir e alcançar a vinda do Messias. E Ela pedia precisamente que viesse o Salvador e que regenerasse todos os povos. O Messias previsto pela raça judaica, que deveria nascer de alguém da estirpe de David, da estirpe de que Ela mesmo nascera, e a que pertencia o seu casto esposo José. Ela rezava na calada da noite, pedindo que esse Messias viesse, e pedia segun-

do piedosas tradições que fosse Ela a escrava, a servidora da mulher bem-aventurada de que esse Messias haveria de nascer.

De súbito, se produz pelos ares um movimento misterioso; algo como um bater de asas, como uma movimentação, como uma vibração diáfana, como uma cintilação da lua marca o ambiente. Ela olha e ouve as palavras tão conhecidas: “Ave, cheia de graça”…

Nasce o Sacerdote perfeito: Nosso Senhor Jesus Cristo

Apenas nós sabemos que depois de Ela ter dito: “Faça-se em mim segundo a palavra do Senhor, sou a servidora d’Ele”, o Verbo se encarnou e habitou entre nós. E veio à terra Aquele que, por excelência, no sentido mais pleno da palavra, no sentido arquetípico da palavra, seria o sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sacerdote no sentido pleno da palavra, porque se é verdade que é inerente ao sacerdócio ser um vínculo, ser uma ligação entre os homens e Deus, ninguém o poderia ser de modo mais perfeito, mais magnífico, do que Aquele que era ao mesmo tempo homem e Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, que ligava a natureza humana à natureza divina. Nosso Senhor Jesus Cristo é sacerdotal por sua própria natureza, porque Ele é o elo, Ele é o vínculo, Ele fundou o sacerdócio verdadeiro, o sacerdócio pleno, o sacerdócio cristão, o sacerdócio católico!

A paz da noite de Natal

Após ter assistido a uma representação da história do menino do tambor, Dr. Plinio explica que, por ocasião do Natal, o Menino Jesus não só recebe aqueles que O visitam na manjedoura, mas vai à procura de todos os homens, de todas as idades, línguas, condições sociais, e lhes diz alguma coisa que de um modo especial lhes toca o coração.

A lindíssima apresentação que tivemos aqui, desses reis magos poéticos, com seus turbantes, desse menino tão mais poético do que os reis magos, com seu chapeuzinho de cone truncado, lembrando um pouco o chapéu de São Charbel Makhluf, daqueles arenais imensos e sem fim, daquelas montanhas que não têm nome, porque o vento as faz e as desfaz. Panorama mutável do deserto, no qual se passa a infância séria, equilibrada, um pouco triste, mas profunda e alegre, daquele menino que, conforme a narração, foi educado pelo seu velho e pobre pai, pois perdera a mãe; portanto na orfandade dos carinhos que não recebeu, e na solidão dos companheiros — muitas vezes, maus — que não teve.

A realidade histórica e a realidade sobrenatural

O menino só conhecia o seu velho pai e a grandeza dos arenais do deserto; retinha um só presente que recebera do progenitor, mas fora galardoado pelo seu pai por um presente muito maior do que todos que poderia ter: a capacidade de alma de se alegrar com um só presente; isso vale mais do que ter mil presentes! E dessa situação ele tirou para si a condição de compositor. Um menino que brinca em produzir ritmos e melodias, que maravilha!

Como é bonita a figura desse menino, bem como a solução dada para o seu caso! Ele, afinal de contas, sabe do Menino Jesus e vai tocar o seu tamborzinho para o Divino Infante. É tocante imaginar o Menino Jesus, para quem os anjos, no mais alto dos Céus, estão cantando sinfonias inapreciáveis, e diante do Qual chega um menino rufando um tamborzinho. O Divino Infante abre os olhos e, com misericórdia, ouve aquele toque, se agrada e atrai aquela alma. Seria, talvez, o primeiro amigo do Menino Jesus. Que vocação maravilhosa!

Tudo isso é muito emocionante, mas se considerarmos um outro aspecto do assunto, talvez nos comovamos ainda mais. Nós temos o hábito de pensar no Menino Jesus, que estava na manjedoura, e as pessoas iam até Ele para adorá-Lo: os Reis Magos, os pastores — bem entendido, Nossa Senhora e São José —, e outros que terão passado por lá. Essa é a realidade histórica.

Mas há uma realidade teológica, uma realidade sobrenatural, que não se dissocia dessa, e é tão mais comovedora e não menos real: o Menino Jesus que, de um modo invisível, na noite de Natal, sai, digamos assim, tocando o seu tamborzinho pelo mundo afora à procura de almas, pedindo a esta, àquela, àquela outra que venham a Ele, que O amem, O conheçam, sejam d’Ele. O Divino Infante tem muito mais do que um tamborzinho para atrair os homens e encantá-los: são as sagradas e inefáveis pulsações de seu Coração.

Ao que corresponde isso de real?

Nosso Senhor se manifesta particularmente para cada um

Se deixarmos a metáfora e formos diretamente ao fato, isso tem de real o seguinte: Considerem as diversas imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo; a que mais me toca — já entra nisso alguma coisa de subjetivo, de pessoal —, é o próprio Santo Sudário de Turim.

Não é Jesus Menino, mas Nosso Senhor morto. Não está nos braços de Nossa Senhora, amorosamente carregado, mas jacente no sepulcro. Todas as chagas da Paixão estão n’Ele representadas. Quando eu olho o Santo Sudário, a graça toca a minha alma — como a de todos os católicos. E, em função da minha mentalidade, da forma de virtude que nos planos da Providência devo ter, a graça me toca de um modo especial, de maneira a ver em Nosso Senhor, no seu Santo Sudário, este, ou aquele aspecto.

Então eu O aprecio, O analiso com a objetividade de uma mente, graças a Deus, sã e que vê a realidade como ela é. E aquilo tudo se ressalta de um certo modo, com certa fisionomia, certas características, que foram feitas para que eu as considerasse; de maneira que para mim, homem concebido no pecado original, o Santo Sudário apresenta uma certa forma de beleza, de atração que não mostrará para nenhuma outra alma do mundo, porque Nosso Senhor se manifesta sob um aspecto especial para cada alma.

Nenhuma alma é igual à outra, e cada uma delas, por mais humilde e modesta que seja, em um certo sentido é suprema e tem qualidades que Deus não deu a mais ninguém. Podem ser qualidades do tamanho de um centésimo da superfície de uma ponta de alfinete; mesmo assim o Criador deu somente a ela.

Assim também Nosso Senhor se manifesta a cada alma em consonância com aquilo que lhe deu, de maneira que ela ame a Deus daquele jeito. Portanto, cada homem que passe pela Terra tem a missão de adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, vendo um certo aspecto de sua Pessoa divina, sua santidade inefável, insondável e perfeita. Se tivéssemos aqui uma imagem d’Ele, todos estaríamos vendo a mesma imagem, mas focalizando alguma coisa, condicionada à santidade que Deus quer de cada um.

O Menino Jesus vai à procura de todos os homens

Ora, é noite de Natal. Nosso Senhor está numa manjedoura. E numa cidade católica se encontraria em todas as igrejas um presépio, e também em outros locais, em oratórios, em lugares públicos, numa vitrine de uma casa comercial especialmente adornada etc.

E um homem, que vai andando por meio de todas essas representações de Nosso Senhor Menino, é, de repente, tocado por uma delas mais especialmente destinada a ele, a qual se fixa em sua alma; ele para e diz: “Meu Senhor e meu Deus!”

Às vezes, entretanto, não é no momento. O homem para, olha e depois vai para casa. Em determinada hora, digamos, à noite, ao se preparar para dormir, lhe vem à memória aquela figura. Ele reza: “Meu Senhor e meu Deus!”

E isto mais ou menos se dá para cada homem. Numa noite de Natal aparece, de modo inteiramente definido, este aspecto de Nosso Senhor. Isto é mais subtil, mais complexo, é uma realidade de fundo. A realidade de superfície é menos marcada. A pessoa vê em quatro, cinco Natais, de quatro ou cinco anos consecutivos, uma mesma imagem, ou duas, três, ou cinco imagens diferentes. Em certo momento, na memória, essas imagens se sobrepõem e, de repente, a pessoa observa uma que tem tudo aquilo que ela sentiu nas outras; então, diz: “Ah! Meu Senhor e meu Deus! Aí está Jesus Cristo Nosso Senhor, como eu amo especialmente”.

Isto equivale a afirmar que o Menino Jesus, pela graça, visita todas as almas. E Ele faz o papel não mais daquele que recebe a visita, mas de quem vai atrás de todos os homens, de todas as idades, línguas, condições sociais, e os procura nessas noites. E lhes diz alguma coisa que lhes toca o coração de um modo especial.

Ao dar à luz, Nossa Senhora se encontrava num êxtase altíssimo

Há uma prova curiosa disso na canção “Stille Nacht, heilige Nacht”. Todos conhecem como esta melodia nasceu. O vigário da igreja de uma cidadezinha do interior da Alemanha e um professor compuseram a letra e a melodia dessa música, que exprimia a emoção deles diante da manjedoura. A Providência tinha preparado na alma deles uma emoção de Natal, que era para o mundo inteiro.

Stille Nacht! Heilige Nacht! Alles schläft, einsam wacht. Stille Nacht: Noite silenciosa. Heilige Nacht: Noite santa. Alles schläft: Tudo dorme. Einsam wacht: Fica sozinho acordado, isolado. Nur das traute hoch heilige Paar. O venerável e altamente santo casal.

Quem é o venerável e altamente santo casal? Quando se aproximou a meia-noite, Nossa Senhora e São José estavam em oração. Uma coisa admirável!

A Santíssima Virgem devia estar num êxtase altíssimo, como talvez místico nenhum na Igreja jamais tenha tido, quando bate nos relógios dos anjos a meia-noite. E, de um modo virginal, sem dor nem sofrimento para Ela, o Menino Jesus vem ao mundo: “Stille Nacht! Heilige Nacht”! De Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do parto, nasce o Menino Jesus!

Como a Santíssima Virgem e São José viram o Divino Infante

Como Ele se apresentou para Maria Santíssima? Se para cada homem Jesus tem um aspecto, como era o aspecto d’Ele para sua Santa Mãe? E para São José? São perguntas que se podem pôr. Evidentemente, eu creio não ser temerário afirmar que para Nossa Senhora, à Qual nenhuma outra criatura pode ser comparada, Ele deve ter aparecido, ao mesmo tempo, com todas as majestades, venerabilidades, todos os encantos, doçuras e afabilidades que teve para todos os homens, desde aquele momento até o fim dos tempos. Era a Mãe d’Ele, concebida sem pecado original e que nunca deixara de dar uma correspondência perfeita a cada uma das graças que havia recebido.

É claro que a Santíssima Virgem O viu e O entendeu completamente, como ninguém antes, nem depois; e que Ela O adorou totalmente. A adoração somada de todos os homens até o fim do mundo, a de todos os anjos, não dava a adoração de Nossa Senhora.

Se pudéssemos ver a São José adorando o Menino Jesus naquela noite, talvez ficássemos instantaneamente santos. Ele era o esposo de Nossa Senhora, o que mais se pode dizer? É possível haver honra maior do que ser o esposo, o alter ego, o outro eu mesmo de Nossa Senhora, o pai adotivo do Filho de Deus?

Pode-se imaginar o que nos ocorreria na alma só de ver, por uma fresta das pedras da gruta, São José rezar? Acho que qualquer um de nós podia se converter e tornar-se um grande santo. Acho que só de ouvirmos o respirar de Nossa Senhora, e sentirmos que seu Coração Sapiencial e Imaculado pulsava mais forte porque ali estava o Menino Jesus, nós nos converteríamos. Cada pessoa é chamada a adorar o Menino Jesus de um modo especial

Pois bem, se foi assim para Nossa Senhora, para São José, em proporções menores é para todos os homens. E nos dias que precedem o Natal, que já vêm ungidos com uma alegria natalina, a graça começa a nos trabalhar.

Ouvindo o Stille Nacht, vendo tal ou qual imagem do Menino Jesus, sentimos de um modo um pouco diferente. É Ele que vai atrás do coração de cada um de nós. E, sem percebermos, diz pela voz da graça no fundo de nossa alma: “Meu filho, assim sou Eu para você. Adore-Me, porque desse modo nenhum outro homem Me adorará.”

Percebe-se a beleza que há nisso, e como Nosso Senhor pode ser comparado àquele menino do tambor, neste sentido: o menino foi atrás d’Ele; Jesus vai procurar todos os homens, meninos ou velhos, grandes ou pequenos, sábios ou ignorantes, pecadores — e às vezes pecadores imundos —, e toca seus corações dizendo a cada um: “Meu filho, não queres vir a Mim? Pelo menos desta vez, neste instante, deixe-Me te comover um pouco! Aqui estou Eu à tua procura, no interior de tua alma.”

Esse é o sentido profundo da noite de Natal. Aquele palpitar das almas nessa solenidade é uma manifestação da graça obtida por Ele. E é por essa graça, a qual devemos pedir por intermédio da Virgem Maria, que nossas almas pulsam de um modo especial na noite de Natal.

Eu imagino o Menino Jesus apresentando-Se ao olhar de Nossa Senhora e de São José já com os braços abertos em forma de cruz. Podemos ver nisso o prenúncio não só do santo sacrifício do Calvário, mas das Missas incontáveis que, na noite de Natal, pela Cristandade inteira, e por toda a Terra, se celebra e as pessoas que vêm porque Nosso Senhor as atraiu, falando-lhes na alma de modo especial e que depois voltam para casa com algo que não percebem claramente, mas que é uma especial mensagem do Menino Jesus para elas.

Reúnem-se em torno de uma mesa, e todos estão de acordo, em harmonia entre os vários aspectos do Menino Jesus, que estão presentes na alma de cada um. Forma uma espécie de sinfonia, e esta é a paz da noite de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/12/1984)
Revista Dr. Plinio 177 – Dezembro de 2012

Meditação sobre o Natal – I

Em épocas de decadência, a ânsia pelos prazeres lança no desvario as pessoas que buscam neles a finalidade de suas vidas. No Presépio de Belém, o Menino-Deus nos dá três lições fundamentais para alcançarmos a santidade. Dr. Plinio as medita, na primeira parte desta sua conferência, seguindo a escola de Santo Inácio de Loyola.

Estamos nas festividades que lembram a infância de Nosso Senhor Jesus Cristo, das quais a principal é o Natal, e dentro de cuja atmosfera se passam todas as outras. Assim, parece-me muito apropriado meditarmos hoje sobre o Natal.

Vou apresentar duas meditações distintas para depois perguntar que modo de considerar o Santo Natal lhes fala mais, porque eu gostaria de analisar como se comportam os espíritos nas gerações que sucederam a minha.

A primeira meditação tem uma altíssima autoridade, pois é tirada de Santo Inácio de Loyola.

A sede de delícias, riquezas e honras

Nos períodos de decadência, como era a época em que Nosso Senhor nasceu, os homens, em sua grande maioria, vivem para si e não para Deus, e o egoísmo deles propende para um destes três objetivos: delícias, riquezas e honras.

Como delícias, Santo Inácio entende todos os prazeres que os sentidos podem dar. Primeiramente, os prazeres sensuais, mas também os da degustação, da vista, do olfato, do ouvido, enfim, tudo quanto a vida de luxo possa proporcionar de agradável, de gostoso.

Por riquezas ele entende a simples posse do dinheiro. É a avareza daqueles que procuram o dinheiro, não por causa dos prazeres que este pode trazer, pois neste caso o que os move é a sede dos prazeres para cuja obtenção o dinheiro é apenas um meio. Mas são aqueles que têm a mania do dinheiro, querem ser ricos por serem ricos, mesmo sem tirar muito proveito de suas fortunas, e vivem, às vezes, de um modo muito obscuro, apagado, banal, e até miserável, para terem a alegria de se sentirem continuamente de posse de uma grande quantia.

Depois há os prazeres da honra: pessoas que não procuram tanto o dinheiro nem a vida agradável quanto a consideração dos outros. Querem ser objeto de grandes homenagens, de grandes atenções, de grandes reverências, procuram o prestígio.

Esta classificação é perfeitamente bem feita. Em última análise, o egoísmo dos homens tem um desses três objetos, e todos poderão notar em torno de si — e talvez em si mesmos, fazendo um exame da consciência — que se cada um se deixasse levar pelas próprias inclinações, correria atrás de uma dessas três coisas.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, esta classificação está muito esquemática, porque uma pessoa pode ir atrás das três coisas ao mesmo tempo: gostar muito do dinheiro, das delícias e do prestígio”. É verdade, mas é próprio ao espírito humano, necessariamente, que a pessoa goste de uma dessas coisas muito mais do que das outras, a ponto de, tendo experimentado todas, acabar se fixando numa delas e fazendo desta a finalidade de sua vida. Como ensina São Tomás de Aquino, há uma coesão no ser humano pela qual este é levado também a possuir uma unidade de objetivo; e quando um homem não procura a Deus como seu fim último, acaba buscando sua finalidade em um desses três prazeres.

Uma meditação para um católico coerente

Santo Inácio considera como Nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo para provar aos homens que esses prazeres não valem nada. Evidentemente, esta prova só vale para os católicos, pois tem como ponto de partida a convicção de que Nosso Senhor Jesus Cristo é Homem-Deus e que, portanto, toda lição dada por Ele é infinitamente sábia e verdadeira. Um ateu não aceitaria essa prova. Mas como fazer uma meditação de Natal para um ateu, uma vez que ele nega os pressupostos do Natal?

Esta é, portanto, uma meditação para um católico. Não para um católico qualquer, mas para um católico com algum fervor, capaz de se impressionar, pelo menos em alguma medida, com as coisas da Religião. Os exercícios espirituais inacianos supõem um católico que tenha a possibilidade de se sensibilizar pelos temas da Religião, algum desejo de ser coerente com sua Fé, de maneira a tirar dos princípios religiosos consequências para seu procedimento, e que considera insuportável haver incoerência entre sua própria conduta e sua Fé.

O Criador de todas as riquezas quis nascer pobre

Santo Inácio começa por perguntar de que valem as riquezas deste mundo. Afinal de contas, Nosso Senhor Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, sendo Deus, criou o Céu e a Terra, porque as operações divinas são conjuntas da Santíssima Trindade, e por isso foram as três Pessoas da Santíssima Trindade conjuntamente que criaram o universo com todas as riquezas que ele contém.

Portanto, tudo quanto há na Terra de maravilhoso e capaz de fundamentar a prosperidade de um homem, foi Deus que criou. Ninguém pode ter uma riqueza comparável à d’Ele que, além de ter criado todas as riquezas existentes, possui o poder inesgotável de criar quantas queira, e sem o menor esforço, porque é onipotente e exerce sua onipotência com uma perfeitíssima facilidade. Basta olharmos as estrelas do céu para compreendermos que riqueza representa cada uma delas, e entendermos com que facilidade Deus cria tudo. Ademais, Ele é rico na sua essência, muito mais do que simplesmente por aquilo que criou.

Ora, esse Deus infinitamente rico quis vir à Terra como pobre. Ele quis ter como pai jurídico um carpinteiro; quis nascer de uma mãe que, como qualquer outra, executava serviços domésticos; quis ser deitado numa manjedoura, ou seja, no lugar mais pobre que se possa imaginar, tendo como aquecimento apenas o bafo de alguns animais e as roupinhas feitas por Nossa Senhora para Ele; e por asilo, não uma residência de homens, mas de bichos, porque a gruta onde Ele nasceu era o lugar aonde os animais iam para comer. Aí que nasceu o Verbo de Deus! Ele quis mostrar, desse modo, o quanto o homem deve ser indiferente às riquezas quando se trata de compará-las com o serviço de Deus, e, portanto, deve viver antes de tudo não para ser rico ou ter grandes cabedais, mas para servir, amar e louvar a Deus nesta Terra, para depois adorá-lo no Céu por toda a eternidade.

Suponhamos o homem mais rico do mundo cuja relação dos bens ocupasse um catálogo do tamanho de uma lista telefônica. O que seria isso em comparação com Deus Nosso Senhor? Absolutamente nada!

Então, todos esses homens que correm desenfreadamente atrás do dinheiro, fazendo da obtenção da fortuna a única preocupação de suas vidas, e das conversas sobre finanças seu tema predileto; que colocam toda a felicidade na ideia de possuírem dinheiro e nunca ficarem pobres; esses homens procedem como verdadeiros insensatos, pois calcam aos pés e não compreendem a lição que Nosso Senhor Jesus Cristo nos deu no presépio: que o homem pode desejar adquirir e conservar as riquezas, desde que não faça disso o objetivo supremo de sua vida, mas sim a glória de Deus e, portanto, a glória da Igreja Católica.

Renunciar às delícias pela glória de Deus e por amor às almas

Quanto às delícias, se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse, teria mandado reunir no Presépio as sedas mais deliciosas do universo, ordenado aos Anjos introduzirem no lugar onde Ele nasceu os perfumes mais agradáveis, poderia ter para ouvir uma música mais agradável do que todas as melodias existentes na Terra, porque se os Anjos cantaram para os pastores ouvirem, quanto mais cantariam para o Menino Jesus! E não há música terrena que, de longe, se possa comparar à música angélica. O Menino Jesus poderia ter tido agasalhos supereficazes, ter sido nutrido desde o começo pelas melhores comidas que há no mundo, em uma palavra, Ele poderia ter-Se enchido de delícias logo no primeiro momento de sua vida terrena.

O que Ele fez foi o contrário: quis nascer deitado sobre palha, material cujo contato não dá nenhum regalo para o corpo. Ele quis estar num estábulo, onde o cheiro normalmente não é bom, por mais que Nossa Senhora e São José tenham limpado o local antes. Ele quis estar tiritando de frio, nascendo à meia-noite de um mês em que, na região onde Ele nasceu, é inverno. E quis ter como música apenas o mugido dos animais que estavam junto a Ele.

Portanto, o oposto de todas as delícias que se possam imaginar. Ele quis assim para mostrar aos homens o quanto é uma loucura fazer das delícias a principal finalidade da vida. Desde que seja para o bem das almas e para a glória de Deus, devemos nos desfazer de todas as delícias, procurando apenas aquilo que possa favorecer a causa católica, embora com muito sacrifício e com muita renúncia.

A loucura da vaidade

O que vem a ser o desejo de honras? Segundo esta concepção de Santo Inácio, é o fato de alguém procurar ser objeto de reverências por possuir qualidades superiores aos outros, como por exemplo, ser mais inteligente, mais jeitoso, mais engraçado, mais diplomático, mais interessante, mais simpático, ou por qualquer outro predicado que a pessoa tenha ou imagina ter. Por causa disso julga-se no direito de receber dos demais uma atenção especial.

Por vezes, tal é a miséria humana que o homem se envaidece até das coisas próprias a não causar vaidade. Conta-se que o famoso São Paulo Eremita, tendo ficado muito velho e vivendo sozinho no deserto, em certo momento considerou que ele seria, provavelmente, o homem mais velho da Terra. Ora, o homem mais velho da Terra é o que está mais perto da sepultura, num estado físico — e às vezes mental, também — em maior desagregação. Realmente, não dava para ficar vaidoso!

Entretanto, ele teve que lutar contra a tentação de pensar: “Ah, eu sou hoje o homem mais velho, o maior anião de toda a Terra!” Se ao menos se julgasse a pessoa mais madura, que atingiu, embora efemeramente, o ponto de maior conciliação entre o que a idade pode dar e a juventude conservar, já seria errado, mas haveria um fragmento de lógica dentro disso. Mas envaidecer-se por ser o mais velho da Terra, é simplesmente um disparate! Mas até com isso um homem pode ser tentado a ter vaidade.

Nosso Senhor Jesus Cristo quis nascer despido de tudo o que pode envaidecer. É fato que Ele era príncipe da Casa de Davi, mas é fato também que veio ao mundo tendo por Pai jurídico um carpinteiro; nasceu, como eu dizia, de uma Mãe que fazia serviços domésticos, numa época em que a Casa de Davi tinha perdido seu poder político, seu prestígio social, seu dinheiro, e em que Ele não era absolutamente nada na ordem terrena das coisas. E nasceu como um pária, fora da cidade, porque nesta ninguém quis dar abrigo a seus pais. Eles iam de casa em casa pedindo lugar, mas não havia hotéis, hospedarias, e não os acolheram. Ele quis nascer numa manjedoura para provar até que ponto são loucos aqueles que conservam uma ideia fixa de parecer mais do que os outros; e que ao invés de procurarem servir a causa católica, fazem dessa vaidade o fim de suas vidas.

Aplicações à vida espiritual

O modo pelo qual um católico deve aproveitar esses raciocínios é fazer uma aplicação aos outros. Quando ele vê que alguém, que não vive segundo a Lei e para a glória de Deus, mas exclusivamente para sua própria vantagem — tal amigo da família, tal vizinho, tal colega de profissão —, que tem prestígio ou que leva uma vida deliciosa, ou que possui muito dinheiro, se ele tiver a tendência de admirar aquele homem só por isso, ele deve dizer:

“Não, este procedimento é censurado por Nosso Senhor no Evangelho. Nosso Senhor, que é Rei e a Sabedoria eterna, ensinou o contrário. Essas coisas são secundárias e esses indivíduos, pondo nelas todo o empenho de suas vidas, agem de um modo irracional e serão condenados por causa disto no último dia. Pelo contrário, bem-aventurados serão aqueles que renunciarem à riqueza, aos prazeres, às honras; ou tiverem riquezas, prazeres e honras, mas sempre na disposição de renunciar a qualquer minuto se a causa católica assim o pedisse. A esses, do partido da renúncia, eu vou admirar; aos outros vou desprezar, não vou me permitir ter admiração por uma pessoa que não vive como deveria viver.”

Depois aplicar a si mesmo também. Nas relações com os outros, o que eu procuro? Ser considerado pela minha riqueza, pela vida regalada que levo, por algum título de superioridade que eu tenha? Então, não valho nada, porque eu devo almejar não que os outros me considerem, mas que amem a Deus; encaminhá-los para o amor de Deus, e não fixar a atenção sobre mim, pois senão estarei roubando aquilo que é devido a Deus. Devo apenas me preocupar com a dedicação inteira de minha alma a Nosso Senhor, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica.

Necessidade da oração

Então, segundo a escola de Santo Inácio, que é uma escola verdadeira, nós devemos ter, dia e noite, essas considerações diante dos olhos, e eliminar de nossas almas, com energia como quem arranca a erva daninha, as considerações mundanas que levam a adorar o dinheiro, os prazeres e as honras.

Isto supõe, naturalmente, muita oração, porque o homem não cumpre este propósito de pensar sempre nisso apenas com um ato de força de vontade. Este é um pensamento tantas vezes penoso para o homem, que ele tem dificuldade de tê-lo sempre em vista. E mesmo que o tenha, sentirá muita dificuldade de renunciar a esses prazeres. Ele necessita de oração, da graça, ele precisa mortificar-se para conseguir fazer isto. Mas se agir por esta forma, ele conseguirá e assim poderá agradar a Deus.

Então, o programa é ter esta meditação diante dos olhos e orientar as suas orações, o seu Rosário, a sua Comunhão, sobretudo as Missas a que assista, os atos de piedade ou de apostolado que faça; deve orientar tudo segundo esta ideia: desapegado do dinheiro, dos prazeres e das honras.

Aqui está uma meditação feita segundo a escola de Santo Inácio de Loyola.

(Continua)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/12/1973)

Revista Dr Plinio 189 – Dezembro de 2013

A bondade de Dona Lucilia

Em Dona Lucilia havia uma apetência de espírito para o sobrenatural, porque ela queria ter sua principal relação com Deus, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, quem ela mais amava era Nosso Senhor Jesus Cristo. A bondade dela a conduzia a considerar as pessoas com muita elevação, envolvendo-as de doçura e afeto.

 

Dona Lucilia foi a última semente da árvore da Idade Média que, ao cair no solo, fez germinar o futuro. Ela é uma alma profundamente medieval, mas não apenas enquanto uma síntese do passado. Era chamada a ser, sobretudo, esse começo do futuro.

Uma bondade que ultrapassa a medieval

Por exemplo, no tocante à bondade. Não se pode dizer que a bondade dela fosse estritamente medieval. A Idade Média está ali dentro, mas é uma bondade que ultrapassa a medieval, é um desenvolvimento da que existia naquele período histórico. A bondade de Dona Lucilia é feita de uma elevação de espírito que multiplica a bondade pela bondade. Custo a realizar como é que existia na Idade Média a bondade debaixo desse ponto de vista.

Em mamãe havia uma tendência, uma apetência do espírito para um contato com Deus, porque ela queria ter sua principal relação com um Ser tão elevado, nobre e sublime, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, o que ela amava era Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso conduzia a que toda a bondade que ela tivesse fosse constituída de um modo de considerar os outros com uma elevação muito alta, envolvendo de doçura e afeto a pessoa a quem ela considerava. Esse afeto descia dessa eminência, por assim dizer, quase raptando a pessoa para uma esfera sobrenatural muito elevada também.

Tomemos, por exemplo, o cântico Anima Christi. Há quase uma diferença entre as palavras e o tom de voz com que aquilo deve ser cantado, de um lado, e a música do outro. Porque há qualquer coisa de arrebatado no estilo inaciano desse cântico. Mas existe ao mesmo tempo uma ternura levada a uma elevação, a uma coisa que é o extremo no gênero! Da elevação de quem considera a sublimidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e quase a fraqueza d’Ele.

No Anima Christi existe uma espécie de compaixão com que é tratado Nosso Senhor, mas, de outro lado, um arrebatamento. Há naquilo um misto de veneração muito profunda e respeitosa, e de ternura que, tomando em consideração a grandeza do Redentor, mas também a Ele chagado, tem quase receio de se exprimir, pelo medo de tocar n’Ele de um modo insuficientemente delicado. Mas no fundo e no centro está uma evocação da Pessoa d’Ele e dos sentimentos que essa Pessoa desperta. Assim, aquele cântico, de algum modo, descreve a Ele.

O Sagrado Coração de Jesus era o píncaro de seu amor

Havia tudo isso no modo de ser de mamãe, por onde o Sagrado Coração de Jesus era o ápice, o píncaro de seu amor. Isso dava a marca medieval dela. Porque, embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não tivesse nascido na Idade Média, ela levava a ternura do medieval para com Ele até o último ponto. É bonito que Nosso Senhor tenha aparecido em Paray-le-Monial, cujas origens remontam à Ordem de Cluny.

A consideração de tudo isso me levava a respeitá-la profundamente e, ao mesmo tempo, ter para com ela uma ternura a mais delicada possível. Mas com a sensação de que tudo quanto eu fizesse não bastava, pois ela estava acima disso.

Quando Dona Lucilia morreu, senti uma dupla lancetada: de um lado, a noção de que uma pessoa assim acabava de ser, inexoravelmente, “desfeita” pela justiça divina… Porque a morte é isso. Os dois elementos constitutivos do ser humano, a alma e o corpo, são separados. Portanto, nesse sentido desfeita. Aliás, se não fosse a ressurreição, seria um absurdo. Eu me lembrava de uma cançãozinha que se cantava quando as Filhas de Maria faziam procissão na Igreja de Santa Cecília: “Misteriosa justiça nos prende, só por filhos à culpa de Adão; mas a lei quebrantada anulou-a a tua santa e feliz Conceição.” Quer dizer, realmente é uma misteriosa justiça.

De outro lado, a irreparável ausência dela. Porque encontrar outra pessoa assim…  Pode levar a lanterna de Diógenes que não descobre nada…

Reveses e provas

Pouco antes de ser acometido de diabetes1, estávamos jantando, só ela e eu, em casa. Falávamos, mas o melhor da conversa era a presença. Portanto, eu estava mantendo a prosa quase por polidez, mas de fato me embevecendo fantasticamente com ela.

Lembro-me de ter pensado nisto: como seria difícil mãe e filho se quererem tão bem no mundo de hoje. E me vinha ao espírito a ideia: “Esta salinha de jantar é, no fundo, uma espécie de torrãozinho onde Nossa Senhora ainda conserva um pequeno resto, mas em mamãe um resto solar! Será que está nos desígnios da Providência permitir que tudo isso se dissolva com uma antecedência relativamente grande dos acontecimentos previstos em Fátima? Mamãe falece; de repente eu morro também, isto tudo aqui é vendido, se dispersa, e é mais uma coisa boa que desaparece no mundo…”

Quando me apareceu aquela infecção no pé, recordei-me imediatamente daquilo que eu tinha pensado. Passei os dias em casa fazendo todo o possível para que ela não percebesse a gravidade de meu estado de saúde.

Certa ocasião mamãe estava sentadinha junto à mesa da sala de jantar, eu passei pelo hall e tive um tombo sem que ela visse. A empregada me disse num tom meio atrevido e revoltado:

– Mas o que é que tem? O senhor informe a ela de uma vez sobre o estado em que o senhor se encontra!

Eu manifestei desagrado com ela e afirmei:

– A senhora não está vendo que eu não quero aborrecê-la?

– Mas assim, até esse ponto?

– Até esse ponto. Quem gradua isso sou eu.

Entrei na sala pensando: “O que eu tinha previsto está se realizando… Esse negócio que tenho aqui é uma gangrena.” Mandei chamar os médicos e afundei num túnel. Cogitei: “Um vendaval vai me tomar e ela ainda morrerá por esses dias…”

Ficava transido de pena de mamãe ao pensar o que poderia acontecer se eu morresse antes dela. E me punha o seguinte problema: Recomendo que não digam a ela que eu faleci? Porque o problema se punha. Quer dizer, para não lhe comunicarem que eu morri, tinha que entrar pelo caminho das mentiras. Mas ela, no estado em que se encontrava, tinha o direito à verdade?

Mas, de outro lado, se Deus a queria provar, possuía eu o direito de poupá-la dessa prova? Quer dizer… uma coisa tremenda!

A cadeira de rodas de Dona Lucilia

Quando me vieram avisar que ela estava morrendo, eu acabara de tomar o café da manhã e de ler o jornal. Dirigi-me ao quarto dela tão rápido quanto minhas condições físicas permitiam e, ao chegar, ela já estava morta. Chorei muito e, afinal de contas, fui para o meu quarto. Inexplicavelmente – creio que foi uma graça obtida por ela – invadiu-me uma paz, uma tranquilidade que era quase uma alegria.

Fui ao cemitério para o enterro, mas não ousei ir até a sepultura.

No dia seguinte parti para nossa sede, em Amparo, voltando de lá para a Missa de sétimo dia durante a qual se deu aquele fenômeno do raio de sol sobre as orquídeas, que tomei como sendo o sinal pedido por mim a Nossa Senhora de que mamãe não estava mais no Purgatório2.

Lembro-me, por exemplo, de uma bagatela. Eu me desagradava muito da cadeira de rodas dela. Eu gostaria que mamãe caminhasse. O passinho dela era uma das muitas coisas que me encantavam. Como ela conseguia andar com gravidade e com um passinho rápido! Dona Lucilia era muito grave no que ela fazia, mas rápida no andar. Não sei como ela conciliava isso.

Apesar de antiga e de já não se usar mais cadeiras de rodas daquele tipo, por ser mais alta tinha mais dignidade do que os modelos recentes. E eu não queria vê-la metida nessas cadeiras muito melhores, porém menos dignas. Então arranjei aquela mesma. Ela, então, vinha altinha sobre aquilo.

Quando ela morreu, mandei devolver a cadeira de rodas à Santa Casa e pagar o preço de um aluguelzinho. Uns cinco dias depois, comecei a sentir saudades da cadeira de rodas e ordenei perguntar à Santa Casa se podiam me vender.

São recordações que me dizem muito. Embora o recuo do tempo, neste caso, não melhore a perspectiva, nem me leve a querê-la mais bem por causa disso, por alguns lados convida a uma atitude mais admirativa em relação a mamãe.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 20/4/1991)

Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)

 

1) Em dezembro de 1967, em consequência de uma grave crise de diabetes, Dr. Plinio teve gangrena no seu pé direito, sendo submetido a uma cirurgia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para debelar a infecção. (Cf. Revista Dr. Plinio n. 117, pp. 4-5).

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 121, p. 19.

Santo Estêvão, cheio da graça divina

Destacando-se entre as mais arrebatadoras páginas da Escritura Sagrada, o nobre holocausto do protomártir da Igreja se reveste de ainda maior brilho, considerado à luz desses tocantes  comentários de Dr. Plinio.

Após comemorar as radiantes alegrias do Natal, a Igreja celebra em 26 de dezembro a memória de Santo Estêvão, seu primeiro mártir. O holocausto desse extraordinário herói da Fé é assim narrado pelos Atos dos Apóstolos:

Naqueles dias Estêvão, cheio de graça e de fortaleza, fazia prodígios e grandes milagres entre o povo. Ora, alguns da sinagoga, chamada dos libertos, dos cirenenses, dos alexandrinos e dos que eram da Cilícia e da Ásia, levantaram-se para disputar com ele. Mas não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito que o inspirava. (…)

Tendo ouvido seu discurso, seus corações foram feridos pelo ódio e eles rangiam os dentes contra ele. Mas Estêvão, que estava cheio do Espírito Santo, tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus, e disse: “Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus”.

Eles levantaram então grandes gritos, taparam os ouvidos e se atiraram todos contra ele. E arrastando-o para fora da cidade, lapidaram-no. E as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo. E lapidaram Estêvão que rezava e dizia: “Senhor Jesus, recebei meu espírito”. Depois, tendo ajoelhado, gritou com voz forte: “Senhor, não lhes imputeis esse pecado”. E dizendo isso, adormeceu no Senhor.

Prodígios que suscitam o ódio dos maus

A narração é de extrema beleza, e cada frase mereceria um comentário próprio, pois a cena se desenvolve em lances sucessivos, com significados peculiares. O primeiro fato é que Estêvão opera maravilhas, definidas pelo Livro Sagrado com uma linguagem tão cheia de imponderáveis que nos deixa encantados. Logo no início encontramos uma bonita expressão, empregada para indicar a virtude do santo: cheio de graça e de fortaleza.

Quer dizer, era um homem na plenitude do vigor — não só de ânimo, mas também do sobrenatural, da graça que atua nele —, realizando prodígios e milagres entre o povo. Ora, à vista desses feitos espetaculares, a pertinácia dos que desejavam perseguir Estêvão é bem apontada pelos Atos dos Apóstolos: tomados de ódio, levantaramse para discutir sofisticamente com ele e atacá-lo. É o  segundo lance.

Porém, seus opositores não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito com os quais Estêvão falava. De modo que, depois de ter operado prodígios, ele também argumentou de maneira  maravilhosa, confundindo completamente os maus e os deixando sem palavras para lhe replicar. E estes que odiavam os milagres, detestaram ainda mais os seus argumentos. Trata-se, portanto, de uma ira crescente, à medida que Santo Estêvão vai manifestando as excelências depositadas por Deus em sua alma. Como se viu, a primeira manifestação dessa grandeza maravilha são seus  feitos prodigiosos, contra os quais se declarou a sanha dos adversários, em forma de discussão. Tendo o santo argumentado de forma irretorquível, aumenta-lhes o rancor — gratuito, em relação  ao bem enquanto bem.

Outra não é a razão dessa raiva. Enganado estaria quem pensasse ter ela eclodido porque Santo Estêvão foi inábil, porque cometeu algum equívoco ou porque não entenderam algo do que disse. Eles compreenderam perfeitamente, deram-se conta das maravilhas que Estêvão operava e ouviram argumentos contra os quais não tinham respostas. Então o odiaram, porque era bom e sem erro.

É semelhante, aliás, o procedimento de muitos fautores do mal. Atacam o bem e a verdade, porque não podem suportá-los. E quanto maior a manifestação da verdade e do bem, tanto maior o ódio que suscita nos maus. Esses que se mostraram hostis a Santo Estêvão eram da mesma laia dos que decidiram a morte de Nosso Senhor, dos que preferiram Barrabás ao Cordeiro imaculado. O ladrão, o facínora, foi considerado mais simpático, mais atraente e agradável do que Nosso Senhor, por causa do amor ao mal.

Nesses episódios se patenteia a iniqüidade e a malícia do pecado daqueles aos quais a Escritura chama de “filhos das trevas”, dos que cometem a falta, não por fraqueza ou debilidade, mas scienter et volenter. Daqueles que aborrecem o bem que não observam e se comprazem com o mal que praticam, e professam uma doutrina má em virtude da qual detestam a boa causa por sabê-la  benéfica.

Santo Estêvão teria sido imprudente?

Prosseguindo, a narração sagrada nos evoca a atitude de Santo Estêvão que, “tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de  Deus, e disse:

‘Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus’.”

É interessante fazer aqui uma composição de lugares, e imaginar o modo como Santo Estêvão externou essa magnífica afirmação. Há de ter sido de maneira tal que os ouvintes perceberam toda a sua veracidade, e viram que ele tinha razão. Reluzia nele um tamanho reflexo daquilo que dizia, uma superior evidência da autenticidade do que falava, que suas palavras eram irrecusáveis! O fato nos faz recordar outro, ocorrido no século XIX, e comentado por Dom Chautard. Conta este que um advogado esteve em Ars para assistir a um sermão de São João Batista Vianney. Depois, ao ser interrogado por seus amigos acerca do que presenciara naquela cidade, exclamou: “Vi Deus num homem”.

Ora, se isso se deu com São João Vianney, imaginemos como Santo Estêvão, no momento do seu êxtase, estaria transbordando de sobrenatural! Foi um resplandecer de graça mística tão imenso  que seus perseguidores não puderam suportar, e cresceram em ódio a ponto de resolver matá-lo.

Poder-se-ia perguntar se Santo Estêvão não foi imprudente, enfrentando desse modo a ira dos maus. Não agiria melhor se tivesse ido embora, sem forçar, por assim dizer, aquela gente a cometer  um assassinato sacrílego? Pelo contrário, ele cada vez se afirmava mais, aumentando a raiva dos seus contendores, até que chegaram ao homicídio.

Este crime não ocorreria, e Estêvão não perderia sua vida de apóstolo, se fugisse. Então, não procederia de forma mais sapiencial se ficasse quieto e procurasse escapar?

A primeira resposta a essa pergunta, encontramos na própria Escritura: Santo Estêvão estava cheio do Espírito Santo. Portanto, agia corretamente, sob a inspiração divina. O fato é que ele se achava engajado numa luta cujo desfecho era incerto. Nessa pugna, tentava ele com insistência penetrar naquelas almas, por meio de uma nova maravilha que operava. Para comovê-las e  conquistá-las, ele foi afirmando verdades sempre mais elevadas. Quando atingiu o ápice de seu apostolado, seus interlocutores, empedernidos no recusar o que Santo Estêvão dizia ou fazia,  cometeram o assassinato.

O método apostólico que ele empregou foi perfeito. Procurou tocar aqueles corações, iluminar aquelas inteligências. A cada rejeição, ele respondia com uma misericórdia maior, deixava  transbordar de seu íntimo uma graça mais intensa, exprimia um argumento mais fulgurante, realizava um prodígio mais admirável. Até o ponto em que eles recusaram tudo. Sua atitude foi  altamente sábia e apostólica. Ele poderia ter convertido aqueles homens se estes tivessem aberto suas almas ao efeito da ação salutar da santa vítima.

Porém, não quiseram ceder à bondade e à virtude de Estêvão. Ergueram-se contra ele e só açaimaram quando perpetraram o ignominioso assassinato.

A morte plácida dos justos

Cometeram-no — descrevem os Atos dos Apóstolos — depois de lançar grandes gritos e “tapar os ouvidos”, como se costumava fazer diante de alguém que proferisse uma blasfêmia. E num ódio que movia a todos,  atiraram-se contra Santo Estêvão, apedrejando-o mortalmente.

E pode-se bem imaginar que a sanha dos malfeitores crescia, à medida que o primeiro mártir da Igreja tomava atitudes cada vez mais sublimes, enquanto as pedras caíam sobre ele. Um curioso detalhe salientado pela Escritura é que “as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo”. Saulo, o futuro São Paulo, naquele tempo fariseu e encarniçado  Perseguidor dos cristãos.

A vida de Santo Estêvão vai se extinguindo sob a brutalidade da lapidação.

Procuremos imaginar a cena maravilhosa. Ele, qual segundo Cordeiro de Deus, olhos voltados para o céu, ferido e deitando sangue por todo o seu corpo, com contusões horrorosas, faz apenas esta  oração: “Senhor Jesus, recebei o meu espírito! Senhor Jesus, recebei o meu espírito!”

Que extraordinária impressão essa atitude devia causar nas almas boas!

E depois, “tendo ajoelhado, gritou com voz forte: Senhor, não lhes imputeis esse pecado!”

Então, a primeira prece — “Senhor Jesus, recebei meu espírito” —, ele a disse de pé. Mas, é natural, vergado pela violência das pedradas, não pôde mais se manter ereto. Caiu de joelhos, e nessa postura tão supremamente conveniente para a oração, ele pediu a Nosso Senhor que não lhes imputasse aquele pecado. Ou seja, ainda com voz forte, rogava o perdão para os seus próprios agressores.

No auge da tragédia, ele tem uma frase de uma simplicidade e de uma serenidade sublimes.

“E dizendo isso, adormeceu no Senhor.”

Tudo acabou, e veio a morte plácida dos justos. A tormenta se tinha transformado num sono, o martírio estava consumado, ele estava dormindo em Deus. Ao exalar o último suspiro, aquele  homem todo ensanguentado, certamente terá tido uma expressão de fisionomia tranquilíssima. Sua alma subia ao Céu. Como esse martírio é digno de ser o primeiro da história da Igreja, exemplo para os demais holocaustos dos que morreram testemunhando sua Fé em Cristo Jesus, Senhor nosso!

Plinio Corrêa de Oliveira

Universo Natalino

Uma das inocentes alegrias que o Natal proporciona às almas provém das tocantes canções com as quais os diversos povos louvam e homenageiam o Divino Recém-nascido.

Ao longo dos séculos, cada nação da Cristandade, e notadamente as da Europa, compôs seus cânticos natalinos típicos, cujas letras e melodias se unem aos costumes e culinárias locais para  conferirem mais luz e perfume à unção própria dessa grande festa católica.

Já tivemos ocasião de comentar o Stille Nacht, a canção de Natal universal, entoada no mundo inteiro, surgida no século XIX numa aldeia austríaca. Deu-lhe vida o povo alemão, o povo da  bravura, da proeza militar, mas também dessa profunda delicadeza de espírito que o levou a imaginar o sentimento de ternura de quem se colocasse junto à manjedoura do Menino Jesus e contemplasse aquela criança fraquinha, com todas as debilidades físicas da infância e, entretanto, o próprio Deus.

Em qualquer canção natalina germânica encontra-se essa nota de compaixão humana, contemplativa e súplice, diante do que há de mais frágil e suave. Será, então, Maria Durch ein Dornwald  ging, uma lenda cantada acerca de um bosque onde, por sete anos, apenas espinhos brotaram, sem flor e folhagem alguma.

Por essa rude floresta entra Nossa Senhora, trazendo ao braço seu Divino Rebento, e à medida que Eles caminham, os espinhos vão se transformando em rosas… Maria Santíssima, com sua  candura e força virginais, traz o Menino bem protegido sobre o seu coração.

Ambos penetram num bosque de espinhos. Ora, como podem essa flor de delicadeza ímpar que é a Mãe de Deus, e esse tesouro da Terra que é o próprio Homem-Deus, exporem-se a natureza tão agreste e hostil? Não é possível concebê-lo. Então, enquanto andam, os espinhos viram rosas de agradável fragrância. Nossa Senhora compreende: foi uma amabilidade de seu Filho para com Ela!  Jesus dorme junto ao seu coração, mas continua a governar a natureza. Ternura, enlevo, extremo respeito. Voltemos nossos olhos para a Espanha e seus célebres “villancicos de Navidad”.

À semelhança do povo alemão, o espanhol é feito para o heroísmo de uma autenticidade e arrojo inegáveis. Encara a coragem como lance individual, atira-se na peleja sozinho, como o toureiro diante do touro, “banderilla” na mão, disposto a todas as façanhas.

Entre as inúmeras dádivas que Deus concedeu à Espanha, está a de lhe ter envolvido por um panorama de montanhas as quais nos dão a impressão de haverem sido moldadas pela truculência de um gigante, um quebra-montes que, à força de pancadas e pontapés, desenhou aquelas cordilheiras, enquanto talvez dançasse uma jota ou cantasse uma saeta.

É uma natureza pobre, contrastando com a riqueza de vida e superabundância de coragem que leva o espanhol a realizar essa arte que nos deixam boquiabertos: são alegres na carência, na  necessidade, na falta de doces, de confortos. E essa felicidade de existir, de sentir a sua própria vida, de olhar para o Céu e pensar em Deus, está presente na canção de Natal espanhola. Eles oferecem ao Menino Jesus o seu júbilo por pertencer a esse povo, como se dissessem: “Senhor, Vós me deixais muito contente e cheio da coragem que Vós me destes! Homenagem a Vós, Senhor!”

A Santa Igreja vive na alma de povos diferentes, despertando distintos acordes com os quais eles cantam e glorificam o Natal de nosso Salvador

É um modo diverso, porém digno de festejar o Natal, pois é o povo que se oferece a si mesmo e a sua alegria como ação de graças a Deus. Gratidão preciosa, daquele que recebeu menos mas  demonstra toda a grandeza de sua alma.

Já o inglês, tão diferente do espanhol, apresenta uma analogia na maneira de entoar suas canções natalinas. A nação britânica canta também a sua alegria de viver e de ser conforme seus costumes peculiares.

Porém, não é saltitante nem procura se exprimir através dos superlativos como os castelhanos. A principal preocupação da música de Natal inglesa é ser equilibrada, procurando a beleza do  sentimento proporcionado, adequado, comedido.

E ele oferece ao Divino Infante a sua anglicidade, a sua personalidade, os seus problemas. Povo de gentlemen, dirige-se a Nosso Senhor como um gentleman, sem demonstrar tristeza nem  aborrecimento. Sabe que essa existência é árdua, mas não desanima, pois o Menino Jesus nos socorre e ampara.

São estes alguns exemplos de como a Cristandade canta o Natal. E servem para nos fazer compreender como a Igreja Católica vive na alma de povos diferentes, produzindo diferentes acordes.

Porque Ela é riquíssima e inesgotável em frutos de santidade, de perfeição. É como o sol quando atravessa vitrais de variegadas policromias: oscula o vidro vermelho e acende um rubi, o verde, e faz fulgurar uma esmeralda.

Assim o gênio da Igreja iluminando o povo alemão, o espanhol, o inglês ou qualquer outro, engendra maravilhas e inocências natalinas que devem nos cumular de admiração, comprazimento e  desejo de louvar o Verbo Eterno que se fez carne e habitou entre nós.

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plino 81 – Dezembro de 2004

A tríplice lição do Natal

Emmanuel:”Deus conosco”. A cada Natal, a graça vem bater no coração dos homens com particular intensidade, convidando-os a meditar sobre este acontecimento grandioso. Algumas considerações de Dr. Plinio muito auxiliam a penetrar nesse espírito natalino.

Segundo o acertado ensinamento de Santo Inácio de Loyola, o conjunto dos homens egoístas que vivem, não para Deus, mas para eles mesmos – triste maioria, sobretudo nas épocas de decadência como a nossa —  pendem para um destes três objetivos: as delícias, as riquezas ou as honras.

Por delícias, Santo Inácio entende os prazeres que os sentidos podem dar. São, antes de tudo, os deleites sensuais; depois, os da degustação, da vista, do olfato, do ouvido, enfim, tudo quanto uma vida de luxo pode oferecer de agradável, de gostoso.

Por riquezas ele entende a simples posse do dinheiro. É a avareza daqueles que procuram o dinheiro não por causa dos prazeres que este possa proporcionar (pois neste caso a moeda seria apenas um meio para satisfazer a primeira propensão), mas pela mania do dinheiro enquanto dinheiro, da riqueza enquanto riqueza. São pessoas que não tiram proveito nenhum de sua própria fortuna. Vivem às vezes de modo obscuro, apagado, banal, quiçá miserável, tendo apenas a alegria de se sentirem continuamente de posse de um grande patrimônio financeiro.

Há, por fim, os prazeres da honra. A estes, procuram não tanto pessoas que aspiram ao dinheiro nem à vida agradável, mas à consideração dos outros. Querem ser objeto de maiores homenagens, de elevadas atenções e reverências. Procuram o prestígio.

Assim, de acordo com a sábia classificação feita por Santo Inácio, o homem egoísta sempre opta por um desses três pólos.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, tal classificação está muito esquemática. Uma pessoa é capaz de ir atrás das três coisas ao mesmo tempo: gosta muito do dinheiro, muito das delícias e muito do prestígio”.

É verdade, respondo eu, mas é próprio necessariamente do espírito humano satisfazer-se mais com uma dessas coisas do que com as outras. De maneira que, depois de ter experimentado a todas, o indivíduo acaba se fixando em uma determinada, e fazendo desta a finalidade de sua vida. Ora, pelo ensinamento inaciano, na festa do Natal quis Nosso Senhor Jesus Cristo dar aos homens uma tríplice lição, provando-lhes que tais prazeres não valem nada diante do único e autêntico fim para o qual devem tender, isto é, amar a Deus sobre todas as coisas neste mundo, e depois adorá-Lo face a face na bem aventurança eterna.

Vinda do próprio Homem-Deus, esta lição é infinitamente sábia e verdadeira, e nenhum de nós tem o direito de não aceitá-la. Sensíveis ou não aos princípios religiosos, temos de ouvi-la e aprendê-la.

Nulidade das riquezas

Primeiro, quanto às riquezas mundanas. Sobre estas, o que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina no presépio?

Como Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, foi Ele quem criou o Céu e a terra, com tudo o que nesta existe de rico, de maravilhoso, de belo, tudo quanto aqui seja capaz de fundamentar a prosperidade de um homem. Mais. Ele é rico em sua essência, e não apenas criou todas as riquezas existentes, mas tem ainda o poder inesgotável de criar quantas outras queira. E sem o menor esforço, sem o menor empenho, sem a menor aplicação especial. Ele é onipotente e exerce sua onipotência com perfeitíssima facilidade, criando estrelas e universos como criou um grão de areia.

Ora, esse Deus infinitamente rico quis vir à terra como pobre. Quis nascer de um pai carpinteiro, de uma Mãe que executava em casa serviços domésticos; quis vir ao mundo numa manjedoura, lugar o mais modesto e rústico que se possa imaginar. Como aquecimento, quis ter apenas o bafo de alguns animais e as roupinhas que Nossa Senhora Lhe fez. Como asilo, preferiu não uma residência de homens, mas o local onde os bichos iam se abrigar e se alimentar. Foi aí que nasceu o Verbo de Deus!

Quis Ele mostrar, assim, quanto o homem deve ser indiferente às riquezas quando postas em comparação com o serviço do Altíssimo. E como, portanto, deve viver, antes de tudo, não para ser rico, não para ter grandes cabedais, mas para glorificar o Criador, amando-O, louvando-O e servindo-O nesta terra, e depois adorando-O no Céu por toda a eternidade.

Infelizmente, vemos em torno de nós homens que correm debandadamente atrás do dinheiro, que fazem da posse deste a única preocupação de sua vida, que colocam toda sua felicidade na sensação de que possuem grandes finanças, na ilusão de que nunca ficarão pobres e sim cada vez mais ricos. Tais homens são uns perfeitos insensatos. Por-que esses bens, por mais que valham, são uma parcela minúscula dos existentes no universo. E, para Deus, o que são senão um pouquinho de poeira e de lama?

Imaginemos o homem mais rico do mundo, um magnata. Imaginemos ainda que a relação de seus bens ocupem um catálogo do tamanho de uma lista telefônica: imóveis, dinheiro, títulos, créditos, objetos de valor, etc., etc. O que é tudo isto em comparação com Deus Nosso Senhor? Nada, absolutamente nada.

Amar as riquezas mais que a Deus é uma completa inversão de valores, é calcar aos pés a lição que Jesus nos deu no presépio. É não compreender que Nosso Senhor, ali, ensinou-nos que ao homem é permitido desejar, adquirir e conservar riquezas, desde que não faça disto o objetivo supremo de sua vida. A preocupação financeira deve ser necessariamente colateral, sob pena de se agir como um verdadeiro demente, por inverter a ordem dos valores, amando mais o que devia amar menos, e amando menos o que devia amar com mais intensidade.

Loucura de fazer das delícias a principal finalidade da vida

As delícias terrenas. Nosso Senhor Jesus Cristo, caso desejasse, teria ordenado aos anjos reunir no presépio as melhores e as mais deliciosas sedas, os mais agradáveis perfumes, teria mandado os Anjos tocarem e cantarem músicas as mais deleitáveis, pois se o fizeram para os pastores, com quanto maior gáudio não o fariam para o Menino Jesus?!O Divino Infante poderia ainda dispor de agasalhos super-eficazes, ser nutrido desde o começo com as melhores comidas. Numa palavra, poderia ter-se enchido de delícias logo no primeiro momento de sua vida terrena.

O que fez Ele? O contrário. Quis nascer deitado na palha, material cujo contato nenhum regalo dá ao corpo; quis estar numa manjedoura cujo odor não devia ser dos mais agradáveis; quis tiritar de frio, escolhendo para surgir no mundo à meia-noite de um mês de inverno. Como música, quis ter apenas o mugido dos animais. Em última análise, quis o oposto de uma situação de delícias. E quis assim mostrar aos homens o quanto é loucura fazer delas a principal finalidade da vida. A lição que Ele veio trazer é, pois, esta: desde que seja para o bem das almas, desde que seja para a glória de Deus, devemos desfazer-nos de todas as delícias, procurando apenas o bem da causa católica e a salvação de nossa alma, embora nos custe muito sacrifício e muita renúncia.

Insensatez de procurar as honras como meta da vida

No que diz respeito às honras, devemos entendê-las como sendo a aspiração do indivíduo de ver-se objeto de reverências por achar-se, a qualquer título, superior aos outros: mais inteligente ou mais jeitoso; mais engraçado ou mais diplomático; mais interessante ou mais simpático; mais qualquer coisa que tenha ou imagine ter, pela qual se julga no direito de uma atenção especial.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo quis nascer despido de tudo aquilo que pode trazer vaidade. Não obstante fosse Ele um príncipe da Casa Real de David, apareceu para o mundo como filho de pais modestos, numa época em que a sua linhagem régia havia perdido seu poder político, seu prestígio social e seu dinheiro. Ele, portanto, não era absolutamente nada na ordem terrena das coisas.

Além disso, quis nascer como um pária, fora da cidade, porque nela ninguém deu acolhida a seus pais. Nasceu na gruta dos pastores, para provar aos homens como são loucos aqueles que fazem do aparecer uma ideia fixa, em vez de procurarem servir a Deus e à Igreja, a insensatez daqueles que procuram ser mais, ser mais, e que fazem desta vaidade a meta de sua vida.

Se fizermos desses valores terrenos a finalidade de nossa existência, estaremos roubando aquilo que devemos unicamente a Deus. Cumpre, portanto, preocupar-nos antes de tudo com a dedicação inteira de nossas almas a Nosso Senhor, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica.

Tenhamos, dia e noite, diante dos olhos esta lição do Natal, e procuremos eliminar de nossos corações, com a energia de quem arranca uma erva daninha, as falsas ideias mundanas que nos levam a adorar o dinheiro, os prazeres e as honras.

Plinio Corrêa de Oliveira

Jubilosas esperanças no advento do Messias

As chamadas antífonas do “Ó” nos fazem ingressar pelo pórtico de uma alegria cada vez mais jubilosa, até o deslumbrante átrio do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dr. Plinio comenta o profundo significado dessa semana que antecede o nascimento do Salvador, a qual ensejou a devoção a Nossa Senhora do Ó — ou da Expectação — em Portugal e no Brasil.

Em 18 de dezembro inicia-se a última semana do Advento, denominada pela Igreja de “semana da expectação”(1), já com as vistas postas na festa do Natal. Durante esse período, a Esposa Mística de Cristo imagina o júbilo e a esperança da Santíssima Virgem diante do fato de que o Messias haveria de nascer, e Ela veria por fim a face bendita do Filho que estava gerando em seu imaculado seio.

Novos esplendores conhecidos pela divina Mãe

Há anos Nossa Senhora vinha suplicando a Deus que apressasse a chegada do Redentor e, sendo sua oração insondavelmente agradável ao Padre Eterno, d’Ele tudo alcançando, foi atendida nos seus rogos, e a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade afinal tomaria nossa natureza e habitaria entre nós. Maria foi convidada a ser a Mãe do Verbo, aceitou e gerou em seu claustro virginal o Filho do Altíssimo.

Ao longo dos nove meses de gestação, ia Ela concebendo a fisionomia adorável que Ele teria, e ao contemplar a face do Menino já nascido conhecerá um esplendor novo, uma maravilha nova a respeito da alma e da personalidade d’Ele. Verá chegar a redenção para a humanidade e o triunfo da glória de Deus sobre um estado de coisas marcado, durante milênios, pelo pecado original e pela influência do demônio.

Numa palavra, a Santíssima Virgem sente aproximar-se o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo, restando apenas uma semana para que, pelo nascimento do Salvador, o império de Satanás sofra um golpe mortal e comece a derrocar.

A expectativa de todos os séculos posta na véspera do Natal

Tal conjuntura cumula de esperança a alma da Mãe de Deus, e por isso Ela é chamada, nesse perío­do, Nossa Senhora da Expectação, ou Nossa Senhora da Esperança, ou ainda Nossa Senhora do Ó.

Esta última invocação se explica pelo fato de que, em cada um desses sete dias, a Igreja canta no Ofício Divino uma antífona que começa pela exclamação “Ó” [ver texto em destaque]. Exprimem elas as alegrias de Nossa Senhora ao perceber dentro de si o Corpo de Jesus já completo, seus primeiros movimentos, e a ideia de que Ele ali orava ao Pai, como de dentro do mais prodigioso dos sacrários, assim como o Santíssimo Sacramento, hoje, reza no interior dos tabernáculos nos altares de todo o mundo.

O intenso desejo de Nossa Senhora de dar à luz o Verbo Encarnado continha e sublimava os anseios de todos os profetas do Antigo Testamento por Aquele que, afinal, viesse redimir o gênero humano, esmagar o cetro de fumaça do demônio e apagar, pelo sacramento do Batismo por Ele instituído, a mancha original herdada de nossos primeiros pais. De fato, as exclamações “vinde, ó Emanuel! Ó Rei das nações!”, etc., expressam os pedidos de Adão o qual, após a queda, recebeu de Deus a promessa do Salvador, e ele viveu e morreu com essa esperança. Viveu e morreu na alegria penitencial de ser o antepassado do Redentor que, agora, achava-se no claustro imaculado de Maria Virgem.

Portanto, todas as expectativas de todos os séculos se concentravam nesses dias e nesses momentos que antecediam de tão perto o Natal.

Realização dos anseios do Antigo Testamento

Consideremos, pois, essas invocações.

Ó Sabedoria, que saístes da boca do Altíssimo, e atingis até os confins todo o universo e com força e suavidade governais o mundo inteiro: vinde ensinar-nos o caminho da prudência.

Ó Adonai(2), chefe da casa de Israel, que aparecestes a Moisés no fogo da sarça ardente e lhe destes a Lei no Monte Sinai, vinde restaurar-nos com a força de vosso braço.

Há mais de mil anos os hebreus meditavam sobre o episódio da sarça ardente e sabiam que Deus apareceria ao povo eleito de um modo muito mais real e palpável do que a Moisés. Donde o pedido que assim poderia ser expresso: “Vinde, ó Senhor, renovar aquele feito, porém com uma excelência incomparavelmente maior”.

Ó Raiz de Jessé, que estais de pé como sinal dos povos, diante do qual os reis guardarão silêncio e a quem os povos hão de invocar, vinde libertar-nos, não tardeis.

Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu da raiz de Jessé, ou seja, da Casa real de David (filho de Jessé), à qual pertencia a Virgem Maria. Diz a antífona que Jesus será invocado por todos os povos da Terra e diante d’Ele todos os reis ficarão mudos. Por isso implora: “vinde a nós, não tardeis”, pois a humanidade geme e não pode mais esperar pela libertação.

“Vinde salvar-nos, Senhor nosso Deus!”

Ó Chave de David e cetro da Casa de Israel, que abris e ninguém fecha, fechais e ninguém abre, vinde e tirai do cárcere o prisioneiro imerso nas trevas e nas sombras da morte.

Nosso Senhor fecha e ninguém abre, abre e ninguém fecha, quer dizer, Ele possui o domínio de todas as coisas.

Ó Oriente, esplendor da luz eterna e sol de justiça, vinde e iluminai aqueles que estão envolvidos pelas sombras da morte.

Em linguagem teológica, “justiça” designa o conjunto de todas as virtudes, o estado de graça.

O Redentor Divino é o “esplendor da luz eterna” e, por outro lado, o sol de todas as virtudes, iluminando os que vivem nas trevas e nas sombras da morte, ou seja, presos dos vícios e dos pecados.
De fato, Nosso Senhor veio ao mundo e da sua luz infinita nasceu a civilização cristã, com seus fulgores de santidade bafejada pela graça.

Ó Rei das nações e por elas desejado, pedra angular que reunis os dois povos [judeus e gentios], vinde e salvai o homem que formastes do lodo da terra!

Jesus Cristo é a pedra angular de toda a ordem humana e n”Ele os dissídios se reconciliam verdadeiramente, e não de um modo relativista. Além disso, o Filho de Deus salva o homem, criado do limo da terra.

E estando o Natal iminente, exclama-se:
Ó Emanuel, nosso Rei e Legislador, esperança e salvação das nações, vinde salvar-nos, Senhor nosso Deus!

São exclamações de tal maneira repassadas de desejo e fervor que quase se sente Cristo prestes a nascer, bem como a alegria de todas as nações esperando seu Salvador.

Pedir a implantação do Reino de Maria

Essas belas antífonas nos sugerem uma consideração sobre a época atual.

Disse o Papa Pio XI em sua encíclica Divini Redemptoris, escrita em 1937, que o mundo resgatado por Nosso Senhor Jesus Cristo se encontrava naquela época numa situação lastimável, ameaçado de cair mais baixo do que antes da Redenção.

Ora, com o passar das décadas esse estado lamentável do mundo não fez senão se agravar, a impiedade e a imoralidade grassando sem freios nos mais diversos ambientes da sociedade humana.

Razão pela qual ansiamos por uma renovação da face da Terra, um como que irresistível revigoramento dos frutos da Redenção — de si definitiva e super-suficiente — aplicados aos homens de nosso tempo, para que, regenerados e reconciliados com o Divino Salvador, trabalhem pela implantação do Reino de Maria.

Nas vésperas do Natal, essas antífonas devem exprimir um pedido ao Menino por intercessão de Nossa Senhora: assim como Ele atendeu a prece da Virgem Santíssima e apressou sua vinda ao mundo, abrevie igualmente os presentes dias e faça sentir sua ação mais enérgica, triunfal, invencível para reimplantar seu reino. E reimplantá-lo sob o aspecto mais requintado, magnífico, ou seja, Nosso Senhor reinar por Maria, com Maria e em Maria.

Rezemos com a firme confiança de que essa graça insigne nos será concedida, e assim transporemos com alegria, não só os dias piedosos que circundam a festa de Natal, mas também os umbrais do ano vindouro.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

1) Embora as antífonas do Ó continuem a ser rezadas na última semana do Advento, cumpre notar que essa exposição de Dr. Plinio data de 1965, seguindo ele, portanto, a Liturgia então em vigor.
2) Um dos nomes com que os hebreus invocavam o Altíssimo.

Espírito de reparação

Devido aos pecados cometidos em todo o mundo, ao comemorarmos o Santo Natal precisamos também fazer atos de reparação. Nossa Senhora, desde o primeiro instante em que Jesus nasceu, reparava junto ao Redentor os sofrimentos que Ele viria padecer.

Como estamos próximos da Natividade de Nosso Senhor, é interessante ter o pensamento voltado para esta grandíssima data.

Influxos da graça e do demônio no subconsciente

Tenho aqui uma ficha tirada das visões de Catarina Emmerich(1), que trata dos efeitos da vinda próxima de Nosso Senhor, sobre toda a natureza. Mas a palavra “natureza” é tomada não só no sentido dos reinos mineral, vegetal e animal, mas também e sobretudo do homem, quer dizer, de toda a Criação.

Então, Ana Catarina mostra que nas vésperas e com o nascimento de Jesus houve uma transformação, um movimento profundo nas almas e na matéria.

E isto é expresso de um modo muito bonito com estas palavras dela mesmo.

Todos os corações piedosos, que estavam aflitos com um santo desejo, palpitam sem querer nem saber, em presença da Redenção.

São estes movimentos profundos que há nas almas boas, quando alguma coisa grande se aproxima; elas sentem-se tocadas até o fundo para tudo quanto é bem, sem saber por quê.

Tudo está em movimento. Os pecadores sentem tristeza, ternura, arrependimento e esperança. Os que não querem arrepender-se, os pecadores empedernidos, os inimigos, os que hão de crucificar o Salvador sentem angústia, inquietação e confusão, cuja causa não compreendem, mas percebem um movimento indescritível no tempo, cuja plenitude se aproxima.

Dou muito valor a descrições dessa natureza, porque mostram muito os influxos profundos da graça e também do demônio no subconsciente das pessoas. Mas tocando no que a personalidade tem de mais interno e apresentando todo o papel do subconsciente nos grandes movimentos da História.

Movimento dos bons, dos maus e da natureza

Esta plenitude e a felicidade que traz consigo estão no coração puro, humilde e humano de Maria, que ora em presença do Salvador do mundo que n’Ela se fez Homem e que, como Luz feita carne, virá dentre em pouco a esta vida, a seus domínios, onde os seus não O conheceram.

Por que há homens que procuram e não encontram? Aqui eles deveriam ver que o bem produz sempre o bem, e o mal produz mal, quando não é destruído pelo arrependimento e pelo Sangue de Cristo.

Assim como os santos e os que vivem piedosamente, e as pobres almas do Purgatório, estão em constante relação entre si, trabalhando juntamente, ajudando-se e comunicando-se mutuamente os meios de salvação e santificação, assim vejo isto mesmo em toda a natureza.

Então há três movimentos: um de todos os maus, outro de todos os bons, e o terceiro, da natureza. Esses três movimentos são da ordem da Criação e, digamos, representam uma luta de uns com os outros, e são fatos fundamentais da História do mundo.

É inexplicável o que vejo, o que é simples e segue a Jesus recebe-O gratuitamente. Esta é a graça admirável deste tempo para sempre. Nestes dias o demônio está acorrentado, arrasta-se e treme. Por isso aborreço os animais que se arrastam pela terra.

Vejam que conclusão interessante! O animal que se arrasta pela terra é uma figura do demônio como, aliás, está escrito no Gênesis.

Também o demônio nauseabundo e detestável da heresia anda encurvado, e não pode fazer nada nestes dias. Tal é a graça eterna deste tempo.

Realmente, no tempo em que o Natal ainda não era comercializado, não estava transformado numa feira para impor o escoamento de produtos industriais, custe o que custar, sentia-se muito isto: uma doçura, uma cordialidade, uma alegria celeste, sobrenatural, que nenhum caráter meramente humanitário nem de longe tem. E exatamente a industrialização do Natal, a meu ver, é feita para acabar com essa atmosfera e colocar uma atmosfera de fundo diabólico, que é exatamente feita para liquidar os prejuízos que o demônio tem nesse tempo.

Comemoração do Natal numa atmosfera comercializada

Vejamos como essas influências sobre as quais eu falava são verdadeiras. Nas vésperas do nascimento de Nosso Senhor, os homens bons, os pecadores que não eram endurecidos, mas arrependidos, estavam alegres, e os maus, profundamente perturbados.

Pouco antes da Revolução Francesa, do protestantismo, notava-se completamente o contrário. Os homens bons profundamente angustiados, às vezes sem saber por quê; os ruins alegres, cheios de esperança. São as tais influências que percorrem o mundo e dão o sentido profundo da História.

Que devemos pedir à vista disso?

Em primeiro lugar que Nossa Senhora atue sobre a nossa fraqueza, dando-nos uma orientação exata quanto a essas influências para o lado bom e vantagem da nossa alma. E em segundo lugar que Ela nos dê um meio de resistência neste Natal à atmosfera comercializada e péssima que temos diante de nós. Por toda parte se veem essas cestas enormes com pseudo presentes, e nos postes das ruas, manifestações natalinas horrorosas, para preparar o Natal de mentira.

Que Maria Santíssima nos conceda também o espírito verdadeiro do Santo Natal, quer dizer, algo dessa alegria pela comemoração do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Atos de reparação na noite de Natal

Entretanto, eu gostaria de acrescentar algo que deve marcar as nossas festas de Natal.

Não podemos celebrar este Natal como se este fosse um ano qualquer. Imaginemos uma casa na qual a mãe de família está gravemente doente e sofrendo dores atrozes. Compreende-se que se faça uma árvore de Natal e, sobretudo, que haja um movimento de piedade a propósito dessa festa, e alguma coisa da alegria natalina.

Mas isto tudo deve ser dominado pela lembrança da mãe que está doente. Ou seja, há uma espécie de luz de tristeza, arroxeada.

E é bem isto que precisa existir também no nosso Natal, por razões que todos estão fartos de saber.

Devemos carregar a dor de nossa Mãe durante este Natal, porque é como filhos d’Ela que nós o celebramos.

Eu gostaria de insistir também num ponto: no momento do Santo Natal, precisamos fazer atos de reparação. Nossa Senhora, com certeza, desde o primeiro instante reparava junto ao Menino Jesus todos os sofrimentos que Ele viria padecer.

Portanto, o dia de Natal teve tristezas. E na situação atual, não ter essa tristeza é completamente inconcebível.

Então, o cálice está sendo bebido até a última gota e nós, em vez de pensarmos nos cálices com fel, cogitamos nas taças com champagne? Fazendo assim, como se pode ter alma reta? É evidentemente impossível.

De maneira que eu insisto: na própria noite de Natal, é preciso saber ter um espírito de reparação nos atos de piedade, que nesta ocasião vamos oferecer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/12/1965)
Revista Dr Plinio

 

1) Freira Agostiniana, mística, beatificada em 3 de outubro de 2004.

Mistério de gloria e humildade

Conforme observava Dr. Plinio, o Natal, por sua natureza, “é uma festa diferente das celebrações da Páscoa, pois não exalta a vitória do Homem-Deus sobre o demônio e a morte, mas é o primeiro passo — quão humilde, quão velado, quão discreto — que o Rei glorioso haveria de encetar nos caminhos de sua dor, de sua luta, de seu triunfo”.

“Primeiro passo o mais elementar, pobre e indigente que imaginar se possa.

“Um casal posto em triste situação, considerada a ordem humana dos valores: Nossa Senhora na difícil posição de mãe prestes a dar à luz, montada num burrico, acompanhada por seu esposo, São José, modesto carpinteiro, desconhecido príncipe de uma Casa de David relegada à decadência. Ambos procuram hospedagem em Belém, sem encontrar quem os acolha. Não tendo onde ficar, vão para as montanhas vizinhas, para as grutas que servem de abrigo aos animais. E assim, no interior desse rude refúgio, na mais estrita intimidade, dá-se o fato mais importante da História: o Filho de Deus feito carne no seio puríssimo de Nossa Senhora vem ao mundo.

“Compreende-se, então, como a alegria do Natal é feita de contrastes. Uma grande intimidade, uma grande miséria, mas uma grande elevação. No meio da pobreza extrema, a maior riqueza do universo, o Filho do Onipotente reclinado em tosca manjedoura. O Rei da eterna glória ali está, e ninguém o vê, ninguém lhe dá valor, senão aquele venturoso casal. Glória representada no estado de um Menino débil, frágil, que chora, sente fome e estende seus tenros braços para a Mãe.

“Contraste de esplendor e abatimento! Festejado e adorado nos Céus por toda a coorte de anjos que O louvam num concerto magnífico e O celebram com brilho incomparável, o nascimento do Salvador acontece na Terra de modo tão apagado e despercebido do resto dos homens! Do resto, sim, à exceção da alma que vale mais que todas as almas abaixo da d’Ele, Nossa Senhora, reclinada e rezando ao seu Deus e Filho; à exceção do homem a quem estava reservada a honra de ser o pai adotivo do Unigênito do Altíssimo.

“É, portanto, sob um invólucro de miséria e de pobreza que nasce a maior de todas as glórias. Nasce à meia-noite, num lugar ermo daquelas vastidões do mundo antigo. Ao redor, apenas o silêncio, o abandono, o profundo repouso, tudo imerso nas penumbras noturnas. Dentro daquela gruta, aquele casal único, sob as coruscações de uma pequena fogueira, deitando luz suficiente para se ver o que ali se passava. E havia o Menino que era o Senhor de todos os séculos, o próprio Deus encarnado.

“A contemplação de tal cena nos move ao recolhimento e à quietude, como o Natal se deu na quietude e no recolhimento. Leva-nos a sentir em nosso interior as alegrias do advento de Jesus, mais do que a desejar proclamá-las a grandes sons. Infunde-nos um misto de reverência enternecida de quem toca tão altos mistérios, de quem não sabe agradecer a honra desmedida de partilhar a natureza humana com o Criador, e uma espécie de pena, de comiseração de Deus, porque Deus consentiu em fazer-se tão pequeno…

“Um respeito tão grande que chega ao temor, uma ternura tão profunda que quase nos desmancha a alma. Suma veneração, suma adoração, sumo carinho. Suprema glória, perto da qual não se é nada; suprema humilhação, perto da qual se é tudo.

“É a alegria do Natal, tão delicada que teme se expandir inteiramente, com receio de perder a sua doçura e intimidade. É a luz natalina, tão discreta que aguarda a meia-noite para refulgir dentro dela…”