São Lourenço de Bríndisi e o luxo do século XVI

O contraste harmônico dá-se sempre entre duas perfeições, as quais, por serem muito  diversas entre si, como que se equilibram. Na conferência transcrita a seguir, Dr. Plinio aplica essa tese à presença de um austero capuchinho em meio ao luxo e requinte da vida de corte.

Para ser comentado hoje, foram-me fornecidos trechos da obra de um jesuíta, a “Vida de São Lourenço de Brindisi”, cuja festa se celebra em 22 de junho.

Antes de passar à leitura e comentários, vale a pena termos uma noção do que era um capuchinho no século XVI, para melhor avaliarmos a projeção da figura desse santo no mundo daquele  tempo.

Conhecemos o traje clássico dos capuchinhos. É aquele hábito marrom-claro, na cintura um rosário, sendo que as fileiras de contas são unidas pela figura de uma caveira. Calçam sandálias sem meias, usam a barba grande e cabelo aparado quase rente.

O capuchinho entrava, desse modo, num contraste violento com o modo de se trajar e de se apresentar dos homens da época. A Renascença estava no fim, e se ia passando para o Barroco e o  Rococó, as modas masculinas iam atingindo um auge de rebuscamento, de elegância, de finura e, às vezes, de efeminamento, como poucas vezes aconteceu na História.

Os homens se trajavam de seda, de damasco, trazendo na roupa botões e outros ornamentos de pedras preciosas.

Usavam anéis, meias de seda, sapatos de verniz (com salto vermelho, quando eram nobres) com fivelas de ouro ou de prata e pedras preciosas. Perfumavam-se. Quando usavam barba, era aparada no formato chamado de “pera”, muito bem cuidada, e os bigodes finos e sedosos — não era o bigode à “kaiser”, com a ponta voltada para cima. Por cima do cabelo natural, ou da cabeça rapada, punham cabeleiras, super preparadas em estabelecimentos especiais. Não falemos da apresentação da dama, porque, se assim era a do homem, mais requintada era a feminina.

Dentro dos sábios equilíbrios da Civilização Cristã, o capuchinho representava a tônica oposta de tanto luxo e tanto bom gosto.

Harmonia baseada nos contrastes

Não seria eu quem haveria de censurar que a Civilização Cristã engendrasse os mais magníficos trajes. Eu teria, certamente, alguma restrição a alguns aspectos desses trajes no século XVI. Mas, na linha geral, a ideia de  acentuar a dignidade do homem por meio de trajes magníficos me parece muito boa e própria a realçar a sabedoria do plano de Deus, o qual, a serviço do rei da Criação, que é o homem, dispôs de materiais capazes de afirmar adequadamente essa realeza.

Sobretudo quanto esse rei é, ao mesmo tempo, membro do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, e tem, portanto, uma dignidade maior do que a própria dignidade humana.

Mas é próprio do gênio, do talento da Igreja Católica estabelecer a harmonia baseada nos contrastes. Uma coisa é a contradição; outra coisa são os contrastes harmônicos. Estes últimos são sempre contrastes entre duas perfeições — não entre um defeito e uma perfeição e, menos ainda, entre dois defeitos — as quais, sendo muito diversas entre si e por serem muito diversas entre si, como que se equilibram.

Um tal esplendor nos trajes, uma tal magnificência na vida de Corte, exigia que se lembrasse ao homem, ao mesmo tempo, os valores opostos da austeridade, da sobriedade, da sobranceria em relação às coisas terrenas, do único valor profundo das coisas sobrenaturais, etc. Só por essa forma a humanidade poderia chegar impunemente a tais requintes de luxo.

Como, em sentido contrário, a afirmação magnífica — eu quase diria brutal — da morte, da pobreza, de tudo aquilo que leva o homem a sofrer na vida, a renunciar, a lutar, só poderia ser um valor geral para a sociedade, freqüente, presente em todos os aspectos da vida social, se, em sentido contrário, o esplendor da vida terrena aparecesse também.

Um exemplo de contrários harmônicos

São esses contrários harmônicos que são os fatores de equilíbrio da alma humana. É muito belo ver, em quadros do tempo, cenas de vida de Corte. Lembro-me de um quadro que eu via muito quando era pequeno.

Era uma sala com um rei e uma rainha, algo me sugere que eram soberanos espanhóis, ambos com coroas na cabeça. A Corte inteira de pé, como se recebesse alguém: dignitários, cardeais vestidos de púrpura, guerreiros, ministros, etc., formando um grande semicírculo.

Era a cena da Corte na sua magnificência, parada, à espera de um ato que se devia realizar. A pequena distância do rei ou da rainha, a figura de um capuchinho. Espadaúdo, enorme, forte, com uma barba colossal, e com sua roupa terrível. Natural no meio daquilo, na sua pobreza entre os mais importantes e mais ricos, e cercado de respeito e de delicadeza, constituindo no quadro um  equilíbrio moral que eu não sabia explicitar, mas que me deixava maravilhado. Era esse o papel simbólico dos capuchinhos na civilização daquele tempo. Representavam tudo quanto há de austero na vida, e constituíam a contrapartida harmônica de tudo quanto havia de magnífico na vida, que a civilização daquele tempo estava elaborando.

Um protesto vivo

Temos, pois, um santo, São Lourenço de Brindisi, que é chamado a desempenhar essa missão, simbolizar esse valor na sociedade daquele tempo. O mundo era então marcado pela presença de dois adversários terríveis, que quase liquidaram a Europa.

Um deles era a Primeira Revolução, o protestantismo, contra o qual São Lourenço de Bríndisi lutou com êxito.

A Primeira Revolução, como mostro no livro “Revolução e Contra-Revolução”, foi marcada por uma explosão de orgulho e de sensualidade. De orgulho, afirmado pela negação da hierarquia  eclesiástica e pela inconformidade, na esfera eclesiástica, de todos os súditos com a autoridade. O Bispo não querendo tolerar Papas, os sacerdotes não querendo tolerar Bispos, os leigos não querendo tolerar sacerdotes. Uma verdadeira revolução comunista dentro da estrutura eclesiástica daquele tempo.

De outro lado, a sensualidade, afirmada pela ruptura com o princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal, quer dizer, pelo estabelecimento do divórcio em todas as seitas protestantes e, de outro lado, pela abolição do celibato eclesiástico e do estado religioso com celibato.

Nesse mundo marcado pela perpétua insatisfação de todos, o capuchinho representava um protesto vivo. Ele era pobre o mais das vezes voluntário, um homem que possuíra bens na terra, maiores ou menores, e optara por ser pobre; que renunciara a toda carreira terrena, não ocupava altos cargos nem altas situações, vivia na humildade do voto de obediência pelo qual renunciara à própria vontade para viver sob o império da vontade de um outro; e mantinha a castidade perfeita.

Ele representava, então, um contraste vivo com todo o desregramento do tempo, e passeava naquela sociedade revolucionária como um tanque evolui no meio de batalhões adversos de infantaria. Com serenidade, sobranceria e ação de presença, ia aniquilando.

Desde a infância preparando a alma para grandes batalhas

Vamos agora estudar a vida desse Santo sob esse aspecto. Passo, portanto, à leitura de trechos da biografia dele. Nasceu em Brindisi, em 1559. Foram seus pais das mais nobres famílias daquela cidade. Tinha apenas quatro anos quando pediu aos pais para entrar no convento dos Frades Menores. Os pais acederam. Lourenço era aplicado. Gostava muito de ouvir sermões, retinha-os facilmente e os repetia com exatidão.

Às vezes faziam-no pregar no Capítulo, para que todos ouvissem. Que encanto um capuchinhozinho com voz de criança, mas já com catadura de atleta de Cristo, fazendo sermões que ele ouvia e repetia! Isso ia formando o menino para as grandes batalhas que ele ia travar, para o desembaraço que constitui uma das formas da grandeza capuchinha. O Arcebispo, a quem a notícia chegou, quis também ouvi-lo, e o obrigou a ir pregar na catedral diante de numeroso público, que muito proveito tirou. Levemos em consideração que, naqueles lugares pequenos da Itália — sem rádio, televisão, cinema — qualquer singularidade despertava curiosidade.

Assim a Catedral se enchia para ouvir o sermão de um meninozinho extraordinário. O povo, como era naquele tempo, falante, exuberante, fazendo comentários antes de chegar o menino. De repente, este sobe,  começa a fazer ouvir sua voz, o silêncio se estabelece aos poucos. Terminado, o órgão toca, alguém canta uma Ave-Maria, e o público vai lentamente se escoando depois de ter recebido a bênção do Bispo.

O menino entra no convento e não ouve nenhuma das repercussões. Vai dormir e, na manhã seguinte, está limpando o chão.

Ao receber pressões da mãe, São Lourenço foge

Tendo morrido seu pai, quis a mãe que o filho voltasse para casa, a fim de lhe fazer companhia. Mas o jovem procurou esquivar-se às solicitações dela e fugiu para Veneza, onde estava um tio seu, sacerdote, reitor do Colégio de São Marcos.

Veneza de manhãzinha, com seus palácios, seu panorama aquático magnífico, mil jogos de luz maravilhosos. O fradinho que fugiu e viajou a noite inteira entra tranquilamente na cidade, toma uma gôndola e, de pé, olhando os palácios e pensando em como o Reino dos Céus é maior do que o da Terra, chega à casa do tio para estudar.

O tio era aliado de Deus e o acolhe, e a mãe desiste de exercer seu poder. Concluindo ele os estudos de filosofia, seu tio o destinou à Faculdade de Direito Canônico. Chegado aos 17 anos, pediu o hábito capuchinho, e o Provincial lhe concedeu com gosto. Em 24 de março de 1576, ele fez a solene profissão.

Maravilhosas conversões

Aos 36 anos, foi nomeado Ministro Geral para toda a Ordem. Quando Clemente VIII mandou os capuchinhos para a Alemanha, o Santo foi um dos encarregados. O Imperador [do Sacro Império] teve grande satisfação nessa escolha e concedeu-lhe ampla autorização para fundar mosteiros. Fundou-os na Boêmia, Áustria, Morávia e Silésia.

Fundar mosteiros é encontrar vocações para eles, encontrar dinheiro para construí- los e superiores para dirigi-los. É difícil encontrar quem queira levar a vida austera de um capuchinho. Mas ele formou mosteiros em todas essas regiões.

Os Sumos Pontífices confiaram-lhe as mais delicadas missões. Várias vezes foi enviado como embaixador a cortes de diversos príncipes. Estes o honravam também com o caráter de seu  embaixador.

Assim compareceu às cortes dos príncipes da Alemanha e até à Dieta do Império. Seu zelo reteve naquele país e heresia luterana.

Podemos imaginar cenas de Cortes: o arauto anuncia que vai entrar no salão o Embaixador do Santo Padre, tido como o decano dos diplomatas em todos os países católicos, e entra o frade capuchinho na singeleza de seus trajes. Grande reverência ao rei, e prossegue, no meio dos tapetes de luxo, do esplendor, sereno e indiferente, sem revolta e sem admiração, com os olhos postos no Céu e pregando a verdade, às vezes terrível.

Imprudente no nível humano, prudente no sobrenatural

O Imperador desejou que alguns capuchinhos fossem como capelães do exército à Hungria. São Lourenço foi à frente da missão. Era general o Arquiduque Matias, irmão do Imperador, o qual, estimulado pelas promessas que lhe fazia Lourenço da parte de Deus, de alcançar vitória sobre os inimigos, determinou atacá-los perto de Alba Real. O Arquiduque, excelente general, considerava imprudente atacar os maometanos, que estavam chegando pelos Bálcãs para atacar a Hungria e depois a Áustria, por assim dizer, pelas costas, enquanto os Habsburgos tinham de enfrentar o ataque dos protestantes da Alemanha e a oposição política francesa.

Situação crítica para a Casa d’Áustria. O Arquiduque Matias, parente do Imperador, generalíssimo das tropas do Império Romano-Alemão, diante dos turcos duvida se ataca ou não. Podemos imaginá-lo numa tenda magnífica, reunido com seus homens de guerra, olhando mapas sobre uma mesa de emergência, discutindo se avança ou não, com dados obtidos pelos espiões. Segundo as regras da técnica militar, a batalha é imprudente.

Entra então a sentinela e diz: “Frei Lourenço quer falar”. O Arquiduque Matias aquiesce e o capuchinho entra, avisando a revelação de Deus: “Podem dar o ataque, porque vencerão”. Há um momento de sensação, quando, ouvido o religioso, que não dá razões técnicas, mas só as ouvidas do Céu, os generais vêem o Arquiduque hesitar. Alguém um tanto incrédulo diz: “Alteza, não permita essa luta. Será o fim dos exércitos e o fim da Arqui família” (chamavam desse modo pitoresco a família dos Arquiduques).  — Não — repete Frei Lourenço. — A glória da Arqui família está na batalha. Seus caminhos passam pelos caminhos de Deus. Para a frente!

Ordena o ataque. Naquele tempo ainda havia Fé. Os homens criam. O Arquiduque decide dar a batalha, porque Frei Lourenço lhe prometeu vitória. Batalha imprudente no terreno humano, mas prudente no terreno sobrenatural, que ia ser abençoada por Deus. Os cristãos, embora inferiores em número, acometeram com tal ímpeto que galgaram de espada em punho as trincheiras, conseguindo uma vitória completa e a conquista de Alba Real. Os turcos recuaram. Esse sucesso, que custou apenas 30 homens aos cristãos, julgaram todos que foi devido às orações de Lourenço, o qual, durante todo o combate, montado em um cavalo, animava os soldados a combaterem pela fé.

Que cena magnífica! O capuchinho montado a cavalo, segurando as rédeas com uma mão e a cruz com outra. E o tempo inteiro percorrendo as fileiras e estimulando à luta, prometendo o Céu para quem morresse.

E aqueles homenzarrões, com parte do armamento ainda de metal, tendo de enfrentar tiros de canhão ainda incipiente, projéteis com pedras, e a carga contrária dos maometanos, o ouvem tão inflamados que vão com ímpeto, fazendo os maometanos flectirem e fugirem. Podemos imaginar como foi o declínio da tarde sobre Alba Real conquistada pelos católicos. A alegria das tropas católicas diante do milagre evidente. O Arquiduque talvez na casa do governador maometano de Alba Real; todos descansando nos vários lugares da batalha. Repicam os sinos. Frei Lourenço está chamando para a prece.

A igreja está cheia. Entram, ele está junto ao altar e canta um magnífico Te Deum.

Isso é viver!

A gota d’água no cálice de vinho

Ainda sobre o papel do nosso sofrimento (que Dr. Plinio aborda neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima), mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à Paixão redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais abundantíssimos.

Embora os merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam superabundantes, dispôs a vontade divina que deles se aproveitassem os homens, em muitas circunstâncias, unindo seus próprios sacrifícios aos do nosso Redentor. Assim nos ensina a Santa Igreja.

Donde, para conseguir tocar e converter determinada alma, por exemplo, seriam suficientes os méritos infinitos alcançados por Jesus, sem os quais nada obteríamos. Porém, é do superior desejo de Deus que essa conversão se efetue mediante o concurso dos nossos sofrimentos, associados aos de Nosso Senhor.

E se almejamos, portanto, uma imensa transformação moral para a sociedade contemporânea, ou um “renouveau” da vida da Igreja, cumpre que soframos todo o necessário, nos consumindo nesse sofrimento como uma tocha ardente. Tais são os desígnios de nosso divino Salvador, para que, de fato, a dolorosíssima Paixão d’Ele se verificasse útil a essa alma, àquele grupo social, ou mesmo àquele ciclo de civilização.

A essa necessidade de unir nossas dores às de Jesus, costuma-se aplicar um dos muitos e lindos simbolismos da liturgia eclesiástica. Trata-se da gota d’água que o sacerdote verte no cálice com vinho, durante o Ofertório, a qual representaria o sofrimento humano depositado no oceano do sofrimento divino, para, juntos, serem imolados ao Padre Eterno.

Quiçá esse simbolismo não tenha fundamento na história litúrgica, porém exprime ele adequadamente um pensamento piedoso suscitado por esse ritual da celebração eucarística.

E sempre que observo o padre fazer essa mistura da água com o vinho, lembro-me dessa ideia muito formativa: é a gota do nosso sofrimento no mar das dores de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por outro lado, reveste-se de extrema beleza o fato de essa gota d´água, uma vez dissolvida no vinho, ser também transubstanciada. Quer dizer, o que não era matéria para consagração, acaba se tornando uma só coisa com a espécie do vinho e se transubstancia no Sangue preciosíssimo de Cristo. Isto manifesta bem o valor descomunal  de nossos méritos, de si tão minguados quando unidos aos méritos infinitamente valiosos de Nosso Senhor.

O sofrimento humano completa o desenho da Criação

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão de ser desse vínculo entre o nosso sacrifício e o de Jesus. Considerando os desígnios divinos, chegaríamos à conclusão de que, tendo Deus criado seres inteligentes e dotados de vontade, intencionalmente deixou que uma parte da beleza da criação fosse completada por esses seres. Daí uma série de coisas lindas da natureza surgirem graças ao engenho humano. Por exemplo, o casulo do bicho-da-seda é uma obra saída das mãos do Onipotente, com a manifesta intenção de que o homem o utilizasse para fabricar o rico tecido com que orna mobílias, decora ambientes ou confecciona magníficas peças de vestuário.

De si feios, o verme e o casulo oferecem ao talento dos artífices a matéria para realizarem maravilhas. E assim, mil outros elementos se encontram na criação, tornando-a semelhante a esses desenhos pontilha pontilhados no seu contorno geral, feitos para  serem completados e coloridos pelas crianças.

O homem, entendendo a criação, amando-a e aperfeiçoando-a, recebe de Deus a honra incomparável de ser elevado à dignidade de continuador d’Ele no seu plano para o mundo. Ora, tendo acontecido que Deus, além de Criador, se fez Redentor, dispondo que Jesus Cristo padecesse e morresse na Cruz para nos salvar, era natural que o homem também fosse associado a essa obra-prima da criação, que é a Redenção. E que ele, portanto, tivesse um sofrimento complementar a oferecer ao Padre Eterno, unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.

Grandeza das almas que sofrem pelas outras

Temos, então, as mais diversas e tocantes formas de padecimento do homem nesta terra de exílio. É belo o sofrimento do apóstolo, com seu caráter expiatório ou imprecatório, como um ato de amor e de holocausto desinteressado, tantas vezes misturado a lutas e dificuldades de toda ordem. É belo, quando ele precisa levar a bom termo sua faina apostólica num determinado meio, e surgem as incompreensões, as calúnias, os motejos, precipitando-se sobre o apóstolo. Ele enfrenta todos os obstáculos, parecendo abandonado por Deus. Por quê?

Porque é preciso que ele sofra, assim como é necessário que ele atue e reze. Sem esse sacrifício do apóstolo, Nosso Senhor poderia recusar a aplicação dos méritos da Paixão d’Ele para aquele ambiente, para aquele meio, para aquela alma.

Belo é, igualmente, o padecer daqueles dos quais a graça divina se serve para atuar, pela primeira vez, junto a um determinado grupo social. Esses instrumentos suscitados por Deus são como que fundadores, e devem ter um sofrimento mais intenso do que os outros. De fato, o homem que inicia uma obra possui a glória de tê-la começado. Mas essa glória traz para ele o peso tremendo de sofrer pela obra inteira. E se esta for chamada a perdurar até o fim do mundo, produzindo frutos que o tornarão ainda mais engrandecido, é natural que ele irrigue com suas dores a existência
inteira dessa fundação.

Para suprir a debilidade dos homens no oferecimento de seu sacrifício, existem na Igreja as almas que têm a vocação de sofrer pelas outras. Diante dessas pessoas desejosas e capazes de padecer pelo próximo, teria vontade de me ajoelhar e lhes dizer — “servatis servandis” — como São João Batista a Nosso Senhor: “Não sou digno de desatar as correias de seu sapato”. De tal maneira me empolga e entusiasma essa forma de apostolado, merecedora de meu respeito e profunda veneração.

Nada é mais nobre e mais bonito, nada revela maior integridade de alma e maior sinceridade em todos os propósitos, nada é mais eficiente em seu gênero próprio, do que a alma que aceita sofrer pelos outros. Barreiras enormes se abatem, preconceitos tremendos caem, dificuldades fabulosas se resolvem quando uma determinada alma decide ser conseqüente e abraçar a dor até onde o permita a vontade de Nosso Senhor.

Não tenho palavras para exprimir a gratidão emocionada, o sentimento de culpa e de vergonha que me toma diante de uma alma que realmente seja capaz de levar essa vocação até o fim. “De culpa e de vergonha”, digo, porque sempre me fica a impressão de que, na raiz do êxito admirável de nosso apostolado, existem almas que sofreram e talvez já morreram — ou ainda estejam vivas — padecendo para nos alcançar tudo o que a nós foi concedido por Nossa Senhora.

Se me fosse dada a felicidade de conhecer uma alma assim, sem dúvida me ajoelharia e lhe beijaria os pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria diante da causa verdadeira da  nossa grandeza, da razão primeira de nossos sucessos, da minha perseverança e do que possa haver de virtude em mim. Com efeito, se alguém não tivesse tomado a cruz às costas e subido ao alto do Calvário, imolando se por nós, não creio que eu pudesse realizar a obra que me foi confiada.

Portanto, essa alma sofredora é o sustentáculo de minha fraqueza, o remédio para as minhas lacunas, enfim, é o fator preponderante para que nossas atividades progridam e frutifiquem.

Nada se faz sem os “micro- Cristos”

Claro está que as almas mais especialmente chamadas por Nosso Senhor para se associar ao sofrimento d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam a algo que poucos têm coragem de abraçar.

Muitos estão prontos para agir, alguns para rezar. Onde estão os dispostos a sofrer? Onde encontraremos alguém que deseje se sacrificar, com este sentimento: “Eu sofro, peço à Nossa Senhora que conforte a minha fraqueza, mas aceito e dou esse passo”?

É natural que em nossa obra a Providência suscitasse almas dispostas a sofrer e a fazer do padecimento seu  primeiro apostolado. Essas almas seriam as principais entre nós, incumbidas da missão mais difícil, mais necessária, mais urgente.

Para se compreender o mérito dessa vocação particular, devemos tomar em consideração que o sofrimento não é só se flagelar ou se martirizar. Não. Antes de tudo, é aceitar bem as diversas provações que Deus permite em nossa existência diária. Devemos recebê-las de frente e dizer: “É verdade, eu sofro. Posso até agir para eliminar essa dor. Mas, enquanto não for evitada, acolho-a de bom grado, porque é algo inapreciável para a minha alma e para a dos meus semelhantes.

É preciso que alguém se imole por eles”. Penso não existir expressão mais vil do que esta: “Vê lá se eu sou um Cristo para aguentar tal coisa!”. Embora seja de uma sordície inominável ela tem um pressuposto curioso: existem micro-Cristos, digamos, que  aqui, lá e acolá se deixam crucificar ara que as realizações humanas cheguem a bom termo. E sem esses micro-Cristos, nada se faz. Eles são a honra, a glória, a alegria, a vitória dos ambientes pelos quais sofreram. É deveras inapreciável essa condição de sofredores dentro da Igreja.

Almas que devemos amar entranhadamente, porque foram corajosas o bastante para oferecerem a Nosso Senhor sua própria imolação: “Quero unir meu sofrimento ao vosso. Se tenho de ser como uma azeitona a ser espremida para dela tirardes o óleo, ou como a uva da qual extraíreis o vinho, ou como o grão de trigo triturado para dar a hóstia, é este o meu desejo!”

Tenho a impressão de que eu diria com o Salmo: “meus ossos humilhados exultam”, se visse em nosso movimento almas chamadas por Nossa Senhora para o sofrimento e a dor.

Holocausto digno de admiração e gratidão inteiras

Em um de seus famosos escritos, Huysmans nos conta que há em Lourdes um Carmelo cujas freiras têm por missão sofrer e expiar para conseguir conversões e curas no Santuário. Porém, no momento daquelas lindas “procissões das velas”, daquelas curas miraculosas, daquelas grandes transformações morais, daquela glorificação de Nossa Senhora em meio à felicidade do povo, ninguém está se lembrando do convento das carmelitas, onde existem religiosas doentes, morrendo, sofrendo aridezes interiores e desolações tremendas, para que os outros estejam na alegria ou sendo objeto da benevolência divina. Não importa: aos olhos de Nossa Senhora, a fonte de toda essa alegria está naquele Carmelo.

O mais bonito é que as freiras assumem o compromisso de não pedir a própria cura. Pergunto: haverá na Terra algo mais digno de admiração do que essa forma de holocausto? A esse respeito, vale recordar um lindo fato da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente ser tudo na Igreja: missionário, padre, apóstolo leigo… E essa vontade intensa chegava a constituir para ela um verdadeiro suplício. Mas, a partir do instante em que entendeu o valor do sofrimento, através do qual poderia obter graças para as almas que cumpriam essas vocações, e, desse modo, atender o seu anelo de fazer tudo em todos os lugares ao mesmo tempo — ela então encontrou ânimo para sofrer e achou paz para a sua alma.

É compreensível que, diante de uma pessoa assim, nos emocionemos até o extremo que nos seja possível. E que a veneremos, respeitemos e lhe externemos nossa gratidão, em toda a medida que nos seja dado agradecer.

 

"Porta do céu, abri-vos para mim!"

Nossa Senhora é chamada a Porta do Céu. É por meio d’Ela que Nosso Senhor Jesus Cristo passou do Céu para a Terra, e é através d’Ela que os homens passam do mundo para a eterna bem-aventurança. É por essa porta que todas as nossas orações chegam até Deus, e é por meio d’Ela que obremos as graças necessárias para nossa salvação.

Assim, em todos os dias de nossa vida e, sobretudo, no momento em que estivermos para entrar na eternidade, a Ela devemos dirigir esta filial e confiante súplica: “Porta do Céu, abri-vos para mim!”

Jansenismo e consagração a Nossa Senhora

Dirigindo-se a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração solene a Nossa Senhora, segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio lhes explicou o contexto no qual  esse santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

Na França do tempo de São Luís Maria Grignion de Montfort, disseminava-se nos meios católicos uma doutrina denominada de galicanismo. Opunha-se à influência de Roma sobre a França, daí o  nome de galicanismo, alusão ao antigo nome do país: Gália. Queria, por exemplo, a independência do clero francês em relação à Santa Sé.

A esse erro somava-se outro, cujo fautor viveu no começo do século XVII: era um bispo holandês chamado Jansênio. Ele fez uma apresentação da doutrina católica que continha, disfarçadamente, muitos erros. Esses erros começaram a circular, até constituir todo um movimento religioso que atingiu a França: o jansenismo, que era uma espécie de calvinismo mitigado.

Os jansenistas queriam, por exemplo, a diminuição do culto a Nossa Senhora e ao Santíssimo Sacramento. Se tomarmos todos os pontos defendidos pelos protestantes contra os católicos ao longo do século XVI, veremos que Jansênio retomou as teses de Calvino.

Mas Jansênio apresentava essas teses de modo disfarçado. Ele não negava o culto ao Santíssimo Sacramento, mas o subestimava. Ele não negava o culto a Nossa Senhora, mas o subestimava. E  subestimar significa dar a esses cultos uma importância muito inferior ao lugar que devem ter na fidelidade católica.

São Luís Grignion de Montfort, um devoto muito especial da Santíssima Virgem, iniciou discussões com os jansenistas e tomou a resolução de desenvolver e explicitar — com especial insistência — a doutrina católica sobre Nossa Senhora, nos pontos mais característicos, que os calvinistas mais negavam.

Doutrinas e profecias de São Luís Grignion de Montfort

À sua obra de teologia marial, que é também uma obra de apologética — quer dizer, de discussão para converter os hereges —, São Luís Grignion acrescentou mais um caráter, que é a bem dizer profético: tomou a doutrina católica tal como era em seu tempo e acrescentou conclusões, tiradas logicamente dos princípios mariais então professados.

Nessa época a Imaculada Conceição ainda não era um dogma. Foi definida como tal pelo Papa Pio IX no século XIX. A infalibilidade papal, que tem ligações com o dogma da Imaculada Conceição, foi igualmente definida por Pio IX. Mas São Luís Grignion desenvolveu, já no seu tempo, quase todos esses pontos, como conseqüências deduzidas da doutrina católica. A partir dessas  concepções doutrinárias, fez uma previsão. Descreveu as condições morais de sua época, mergulhada numa grande crise, comparada por ele com a que antecedeu o dilúvio.

E descreveu as conseqüências dessa crise. Por fim, ele profetizou o “Reino de Maria” na terra.

Em resumo, sua obra é, primeiramente, de luta contra a heresia — o protestantismo disfarçado, chamado jansenismo —, e, em segundo lugar, de glorificação da Santíssima Virgem, o que constituía um aspecto dessa luta. Essa glorificação de Nossa Senhora  levou-o a tirar conseqüências de Mariologia que foram confirmadas depois pela Igreja. Em terceiro lugar, fez profecias sobre o futuro da França e da Europa, em conseqüência dos erros morais que existiam no tempo  dele, prevendo catástrofes que seriam um pouco a Revolução Francesa, um pouco também a Revolução Comunista e a situação na qual nos encontramos.

Além disso, previu o “Reino de Maria”: uma época em que a devoção à Santíssima Virgem seria levada a seu apogeu. Época também em que a santidade entre os católicos seria levada muito longe, deveria crescer muito. Dizia, por exemplo, que os santos das épocas anteriores seriam, em relação aos do “Reino de Maria”, como gramas comparadas a carvalhos.

O “Tratado”

Esse conjunto de doutrinas e profecias é o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”. São Luís acrescenta a tudo isso uma forma de devoção especial: a escravidão de amor à  Santíssima Virgem.

Do ponto de vista marial, ele faz a defesa dos privilégios da Santíssima Virgem, citando autores antigos, etc. Do ponto de vista apologético, não ataca diretamente Calvino. Mas quem lê as obras de Calvino e as de São Luís Grignion, vê que o “Tratado” é a contraposição de Calvino e, portanto, de Jansênio, um calvinista disfarçado.

Como Jansênio não se declarava inimigo da Igreja a não ser nas entrelinhas, São Luís Maria Grignion de Montfort deu a resposta nas entrelinhas também, algo inteiramente explicável do ponto de vista tático.

Garantia de ortodoxia Uma pergunta cabe aqui: qual é a ortodoxia de tudo isso? Qual a garantia de que essas doutrinas e profecias estão de acordo com a doutrina católica?

A resposta é esta: São Luís Grignion de Montfort foi canonizado. E antes disso, todos os seus escritos foram analisados por teólogos especialistas e depois passaram por um exame do Papa. Na qualidade de Chefe da Igreja, de sucessor dos Apóstolos, de pessoa que possui o carisma da infalibilidade, o Papa declarou que ele foi santo. Assim são feitas as canonizações.

Logo, todas as obras de São Luís Grignion são em princípio ortodoxas.  Quer dizer que nelas não deve ter sido encontrado nenhum erro teológico ou moral; são inteiramente conformes à doutrina da Igreja.

Isto não significa que tudo o que se encontra nas obras dele seja dogmático, mas simplesmente que nada foi encontrado aí que seja contrário à doutrina católica, tal qual ela é definida nesse momento. Mas é possível que algumas definições posteriores a ele não contenham algo que ele disse.

Sobretudo suas profecias sobre o futuro não têm a garantia da Igreja, porque esta nunca autentica revelações particulares. E São Luís Grignion não apresenta suas profecias como uma revelação, mas como conseqüências lógicas da doutrina por ele sustentada, e como conseqüências históricas  previsíveis do quadro geral da França do seu tempo.

E a Igreja apenas certifica que os escritos e as palavras dele são inteiramente conformes ao que Ela já ensinou. Mas isso é totalmente tranquilizador. Devemos, pois, usar nosso raciocínio para verificar a probabilidade de suas previsões. Eis o que se pode dizer a respeito da ortodoxia.

(Continua)

Entusiasmo e lógica

Segundo a escola de pensamento de Dr. Plinio, deve haver  junção entre teoria e exemplos. Nesta conferência, ele trata de um tema doutrinário, mas o explana apresentando diversos exemplos, que tornam a exposição leve, clara e atraente. O entusiasmo e a lógica convivem harmoniosamente na alma em ordem,  o que se obtém pela graça de Deus, sem a qual o homem  não consegue perseverar na prática do bem.

O que é propriamente entusiasmo? É o gosto por uma pessoa, um lugar, uma coisa, uma situação, uma atividade, levado a um tal grau que enche o homem a ponto de deixá-lo transbordante.

A cerveja que transborda numa caneca de porcelana

Eis uma imagem que pode dar a ideia do que é entusiasmo: numa confeitaria ou restaurante, um garçom serve numa caneca de porcelana — própria para chope — uma cerveja espumosa. E depois de posta a cerveja até o bordo da caneca, a espuma transborda de um modo suave, digno e forma um como que tecido bonito em volta; e é agradável tomar a cerveja quando ela está nesta situação.

Assim é o entusiasmo da alma humana quando conhece algo; não é logo no primeiro momento, mas depois aquilo vai produzindo em nós um certo transbordamento. E ficamos tão encantados que precisamos falar com os outros: “Olha isto, aquilo, que bonito, que agradável, etc.!” Isto é o entusiasmo na nossa alma.

Há vários modos de ser do entusiasmo: do afeto, da admiração, o provocado por uma pessoa e também o causado por uma situação: ver, por exemplo, num vitral dois cavaleiros combatendo, armados inteiramente dos pés à cabeça.

O mar, uma carga de cavalaria, aviões de combate

O mar me entusiasma sistematicamente. Qualquer trecho de mar que eu vejo, dos menos poéticos e menos capazes de provocar entusiasmo, a mim me interessa profundamente; olho o mar com entusiasmo, e é um entusiasmo fixo de minha vida. Quase não tenho tempo de ir ao mar, mas às vezes eu descanso só em lembrar-me dele. Dizendo essas rápidas palavras sobre o mar, em cuja descrição não posso me aprofundar porque a reunião iria até não sei que horas, tenho a impressão de que o auditório gostaria que eu fizesse tal descrição. Todos veem que transborda em mim o gosto por assim dizer maior do que eu, o qual pede para se expandir como a espuma da cerveja, que se espalha num bonito filão sobre a taça de porcelana.

O entusiasmo é, portanto, algo mais do que uma plenitude, não é uma taça cheia, mas uma taça que transborda; é o transbordamento do nosso gosto por uma determinada coisa.

Esse entusiasmo pode também ser épico, que decorre das grandes lutas e das grandes ações. E há feitios de espírito que se entusiasmam extraordinariamente por todas as formas de luta, por exemplo, uma carga de cavalaria, uma onda sucessiva de aviões que avançam; todas essas coisas são bonitas e dão gosto. Outra coisa bonita é o paraquedas: o indivíduo se joga de um avião, vestido com aquela roupa camuflada, maquiagem para, ao entrar no mato, não ser visto, e com uma missão a realizar. Tudo isso entusiasma.

O paraquedista e o homem que faz um trabalho raciocinado

Dir-se-ia que o entusiasmo é contrário à lógica, pois um homem entusiasmado não tem vontade de parar para refletir. Imaginem, por exemplo, um indivíduo que saltou de paraquedas a dois mil metros de altitude; ele desceu mil e começa a ver que está se aproximando da terra. Por outro lado, está com medo de que alguma coisa no seu paraquedas funcione mal. Agita os pés e estes lhe dão uma notícia inquietante: não tem chão em baixo. O vento sopra e está levando-o para um lugar onde não quer descer; ele não sabe nadar e pode cair em alto mar, se o vento soprar errado. E, ao mesmo tempo, está entusiasmado: o ar, o vento, a natureza toda a seus pés, ele distante de todos os homens e posto numa solidão, onde ele só é racional e, portanto, rei. Que situação bonita! É um herói, e em breve vai conseguir fazer um grande feito, pois está levando uma mensagem para um Estado Maior, e quando a tiver entregue vão felicitá-lo e ele vai ser promovido.

Se nesse momento se apresentar ao paraquedista a pergunta: “Você já pensou o que significa metafisicamente estar descendo de paraquedas nessa situação?”, não seria a indagação que os presentes neste auditório gostariam de receber em tal ocasião; seria até o contrário do que apreciariam.

Então, pareceria que o raciocínio, o qual leva a aprofundar as coisas pela aplicação da inteligência, é o contrário do entusiasmo. Porque este leva a pessoa a sentir intensamente a situação, deleitar-se com a sensação, e isto parece o oposto do raciocínio.

De outro lado, um homem que precisa fazer um trabalho primorosamente raciocinado, não pode gostar que estejam perto dele coisas entusiasmantes. Ele está sentado junto à sua escrivaninha, com a cabeça entre as mãos, esforçando-se para tornar seu raciocínio convincente: Tal formulação convence ou não? Tal coisa vai bem ou não? E de repente alguém toca para ele uma linda música militar… O homem, então, diz: “Para com isso, eu quero pensar, não posso me entusiasmar, preciso ter a cabeça fria para raciocinar!”

A alma em ordem se entusiasma pelas coisas retas

Então, dir-se-ia que, falando-lhes a respeito de lógica, preguei o anti entusiasmo, e tratando do assunto entusiasmo eu exaltaria o ilogismo. E seriam convidados à seguinte escolha: O que é melhor, um homem de entusiasmo, que pega fogo e faz alguma coisa, ou um indivíduo frio, calculista, mas que tem três boas razões iguais à evidência para a conclusão a que chegou, e, portanto, ninguém lhe tira aquela convicção?

E se eu lhes pedisse para escolherem, não se sentiriam à vontade porque diriam que a escolha incomoda, e me perguntariam se não é possível colar uma coisa na outra. Portanto, ser um homem ao mesmo tempo de raciocínio e de entusiasmo. Por que razão o entusiasmo deve ser oposto ao raciocínio? Não há um jeito de pôr tudo na mesma linha?

Afirmo que quando uma alma está em ordem — aqui está toda a questão —, ela se entusiasma pelas coisas retas, e por causa disso, refletindo depois sobre o seu entusiasmo, o raciocínio chancela: “Mereceu mesmo entusiasmar-me!” E quando ela tem o raciocínio em ordem, ela compreende o valor do entusiasmo, quando este é reto; e a alma, ao sentir-se entusiasmada, a lógica lhe diz: “Muito bem, o entusiasmo é o meu irmão!”

Árvores secas

Então vamos analisar o tema detidamente, para compreendermos como esses dois elementos aparentemente opostos, o entusiasmo e o raciocínio, podem conviver numa mesma alma.

Começo por um exemplo que está ao alcance de todos os presentes neste auditório. A Rua Alagoas, onde moro, desce até o Pacaembu, e no ponto onde ela termina há uma espécie de canteiro, no qual estão plantadas algumas árvores.

Habitualmente vejo ali uma árvore morta, completamente seca. Sua seiva extinguiu-se e ela está sem nenhuma folha; é um cadáver de árvore. Entretanto, quando passo em frente sinto um certo agrado de olhar para aquela árvore.

Como se pode compreender que eu tenha tanto comprazimento em ver uma árvore seca e morta? Não parece ilógico? Pois o que é seco e morto deve logicamente determinar repulsa, horror.

Lembro-me de ter visto nos Champs Elysées, em Paris — numa época ruim do ano, em que todas as árvores ficam secas e caem suas folhas —, ter gostado enormemente daquela galharia, e pensado: “Debaixo de certo ponto de vista, gosto mais disto do que quando estão com as folhas”. Não é uma coisa irracional apreciar mais árvores secas do que as com folhagem? Então eu deveria me corrigir a mim mesmo, porque não poderia consentir neste gosto que é ilógico.

Mas percebo que é um gosto ordenado, e que há uma razão para gostar disso. E se eu descobrir esta razão, fico com o direito de apreciar árvores secas, porque é lógico; e gostar mais ainda delas do que antes. Vou dar a razão.

Proporção entre galharia e tronco

Toda árvore tem uma arquitetura, uma estrutura geral, constituída de dois elementos: o tronco e os galhos. Mas para que ela não seja monstruosa, o tronco frequentemente deve ser menos alto do que a galharia; em grande número de árvores, quando o tronco está pouco acima da terra já começa a deitar os galhos que sobem. Entretanto deve haver uma certa proporção entre a grossura do tronco e os galhos, de maneira a não dar a impressão de que a árvore está carregando os seus galhos quase como castigo, estertorando, como num purgatório; ela deve causar a impressão de que o tronco é poderoso, e carrega os galhos com facilidade e elegância. E que, por assim dizer, é uma delícia para o tronco o fato de se desprenderem dele aqueles galhos e formem, assim, um fabuloso candelabro vegetal.

Então, a proporção entre a galharia e o tronco é um elemento fundamental da beleza da árvore.

Depois de ter percebido isso, eu analiso aquela arvorezinha morta do Pacaembu e, vendo nela só o esqueleto, admiro a esplêndida proporção entre o tronco e os galhos. O que dá à árvore um vulto elegante, leve e com uma certa força. E é disto que eu, sem perceber, gostava na árvore.

O meu gosto por essa árvore seca era racional, ordenado. Eu a apreciava por causa de um elemento de ordem nela existente, e que corresponde à natureza de cada ser humano o qual, quando procura ser virtuoso e católico, é ordenado, gosta do que está em ordem. De maneira que me atrevo a dizer que é o meu senso católico que, em mim, gostava dessa árvore.

”Meu entusiasmo é filho da lógica”

O resultado é que, estando a boa ordenação da árvore de acordo com a boa ordenação do meu ser, a lógica manda que eu goste e tenha um entusiasmo, o qual também é filho da lógica. Não é filho único da lógica, pois os sentidos entram em algo; eu precisei ver, tomar conhecimento. Mas conhecendo percebi a ordem e o bem. Percebendo a ordem e o bem, eu me entusiasmei; o meu entusiasmo é filho da lógica.

Então não é verdade que qualquer entusiasmo seja inimigo da lógica. Há uma hora de sentir, e outra hora de raciocinar. Em certos campos, primeiro se sente e depois se raciocina. É o caso da árvore; vê-se a árvore diversas vezes, depois se pergunta: “Por que gostei? O que aquilo tem de apreciável?” Então vem o raciocínio e a resposta: “Entre mim e a árvore há um nexo ordenado, e a minha lógica jubila ao mesmo tempo em que os sentidos se alegram, vendo a árvore.”

Isso que com uma arvorezinha seca num jardim é um mero comprazimento, pode ser uma deleitação muito viva, quando se tratar de algo superior.

Tomei o tema “árvores” inteiramente de improviso, para exemplificar. Não julguem, portanto, que eu penso tanto em árvores. Apenas tenho uma série de recordações de árvores que estou tirando do “baú” da memória e utilizando aqui, um pouco a esmo.

Palmeiras imperiais do Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Mas há uma espécie de árvore inteiramente diferente daquela do Pacaembu: palmeiras imperiais, das quais existe um renque magnífico no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Aquelas duas filas de palmeiras muito altas, tendo só em cima a galharia, parecem soldados apresentando armas a um rei de sonho que deve passar entre elas, e em cuja expectativa estão alinhadas para continência.

Esse renque de palmeiras é muito bonito e determina em mim movimentos orientados para o entusiasmo, muito mais do que aquela arvorezinha seca do Pacaembu com a qual tenho uma simples complacência, um simples gosto; enquanto que o renque de palmeiras é grandioso e me entusiasma.

Por que me entusiasma? Vou examinar — a pergunta já está mais precisa: se o meu entusiasmo é bom, aquilo deve agradar elementos de ordem que existem em mim.

Aquelas palmeiras altas têm algo que se aprecia muito em colunas, e que vegetalmente possuem a beleza das coisas feitas diretamente por Deus. Uma coluna não é tão bonita quando ela é um cilindro, igual desde o chão até o teto. Por exemplo, as colunas deste auditório; não vejo nelas beleza nenhuma. Porque no chão e na parte de cima são iguais, nem têm capitel; estão encostadas no teto, aguentando um fardo; cada uma é como um carregador sem poesia, que leva um peso cansativo e feio.

O tronco, a folhagem, as cores de uma palmeira

Uma coluna é bonita quando há uma proporção entre o círculo embaixo e o círculo em cima; ela vai afinando até chegar ao cume, mas sem nenhum salto, como um taco de bilhar. E aquela coluna do tronco da palmeira, como não tem folhagem, mas apenas casca, percebe-se que ela sobe com uma espécie de facilidade, de graça. E chega, digamos, a tocar as nuvens com uma naturalidade, com uma lógica que o meu senso da ordem se encanta de ver.

Uma palmeira que em cima não tem folhas é uma coisa medonha. Porque dá a impressão de um palito espetando, não tem graça. Então, depois de uma grande ascensão, muito lógica, existe a folhagem entregue à fantasia dos ventos. E é uma folhagem muito nobre, com folhas largas, e que parecem feitas para esvoaçar de todo lado, e que atestam a firmeza da árvore, porque ela não cede, e não há vento que a faça hesitar; aquele espanador de folhas se move devido aos ventos e, no meio daquela mobilidade, a palmeira é imóvel.

Percebendo esse contraste, instintivamente, intuitivamente, eu gosto porque vejo que aquilo está ordenado. E a minha natureza se alegra em observá-lo. Mas, também há diferença de cores: aquele seco, estorricado, marrom muito escuro, tendente ao preto, da coluna da palmeira, chega em cima e dá numa parte verde, atestando que a árvore não está morta; sem percebermos, do chão ao longo de sua casca escura, numa ascensão espantosa, a seiva sobe e, chegando ao alto, irriga aquela parte mais delicada que brilha ao sol. É uma coisa bonita!

A sensação de ordem existente na palmeira causa entusiasmo

Então, percebemos que a palmeira por vários lados satisfaz o nosso senso da ordem. Há uma bonita proporção de cor entre aquele verde claro, da parte palmito da palmeira, e a madeira escura; existe uma bonita sensação de ordem.

Esta sensação de ordem encanta-me vendo a palmeira, e me dá entusiasmo. Mas há uma coisa mais sutil: a palmeira, pela sua posição, só se explica inteiramente num panorama que ela domina, ou em função do qual está numa atitude de serviço.

É muito bonito ver uma palmeira no alto de um montezinho, isolada; ela cresceu meio oblíqua em relação ao solo e se agita inteira. É uma palmeira frágil que dá graça a um panorama. Mas, a palmeira durona, espetada no alto de um morro, causa susto. E posta no terreno plano ela representa alguém que está em atitude de serviço diante de outrem. Lembra um soldado em atitude de sentido, à espera do seu general, a ideia de homenagem, de disciplina, de hierarquia, de guerra; os elementos ordenados da palmeira têm qualquer coisa de militar.

Analisando a palmeira e seus reflexos em mim, percebo a ordem dela. Assim, vejo que o meu entusiasmo pela palmeira é lógico; então eu digo: “Viva o meu entusiasmo, a lógica o apoia! Viva a lógica porque o meu entusiasmo se ilumina!” Assim é feita a alma do católico.

Quando o católico é muito ordenado, logo nos primeiros movimentos ele se entusiasma muito. E não tem razão para temer, porque sente no fundo de si que nele é a ordem que se entusiasma sempre, e nunca a desordem. É um filho da luz. Nós todos somos ou precisamos querer ser filhos da luz, e só devemos nos entusiasmar com as coisas que nos provocam essa impressão da ordem.

Fazer ”pushing ball” com a ”baixa”

Mas acontece que muitas pessoas têm um temperamento cheio de calombos, cujos nervos não são perfeitamente ideais; então às vezes amanhecem na “baixa”(1). E se formos lhes descrever uma coisa bonita, elas não gostam e, pelo contrário, estão irritadiças e se entusiasmam com brigas, e querem brigar com todo o mundo. Essas pessoas têm um entusiasmo ordenado segundo a lógica? Não. Elas precisam aprender a retificar-se.

Quando um indivíduo, por exemplo, amanhece na “baixa” devo perguntar-lhe se essa “baixa” é razoável. E se ele responder:
— É. O meu médico disse que eu sofro — nem sei se isso faz sentido ou se é uma palavra no ar — de “esquisitona”, e tem uma coisa qualquer que me aperta o estômago e me causa esse mal-estar.
Eu lhe digo:
— Então você é escravo do seu estômago, não da sua cabeça? E pretende ser um filho da luz? Oh! Se você acordou na “baixa”, trate de retificá-la. Procure ver coisas que lhe deem alegria, satisfação. Passe o dia inteiro, ainda que não esteja com vontade — não sei se os que estão neste auditório conhecem, mas havia uma espécie de jogo chamado “pushing ball”, que consistia em esmurrar uma bola, que logo retribuía com um golpe na pessoa —, fazendo esse esforço.

Devemos fazer um “pushing ball” com a “baixa”, não ceder, e durante todo o tempo em que ela nos esmurra nós damos murros nela. À força de esmurrar, acaba acontecendo que a “baixa” vem menos e depois deixa de vir. Fora disso, o entusiasmo que a “baixa” poderia proporcionar é depressivo, a pessoa se irrita, fica furiosa, e briga por qualquer coisinha.

Necessidade de controlar os nervos e jugular o mau humor

Por exemplo, um indivíduo é corretor e precisa ter bons amigos para fazer proveitosos negócios. Ele tem um muito bom amigo que, sem querer, pisou no pé dele no local onde havia um calo, causando-lhe dor; por isso ele fica o dia inteiro com birra desse homem e perde o amigo, bem como uma série de negócios. O corretor é um tolo, e poderíamos dizer-lhe: “Domine-se, tenha entusiasmo pelo ato interno por onde você domina os seus nervos e jugula o seu mau humor!”

Ele dirá:
— É duro.

Respondo-lhe:
— Se um homem foge diante de uma coisa porque é dura, ele não merece o nome de homem.
— Ah! mas sofro muito.
— Mas você não é capaz de sofrer? E já pensou que Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para que você seja capaz de se dominar, e você não se domina?

Mas alguém afirmará: “Dr. Plinio, o senhor diz todas essas coisas, que me convencem, mas não me vencem; na hora dura do sacrifício, sei que não vou ter coragem, e, depois de ouvir o senhor, saio daqui mais desanimado.”

Frequência aos Sacramentos, confiança em Nossa Senhora e oração

Explico-lhe: “Se você é ateu, há uma certa lógica dentro do seu péssimo ateísmo. Mas se é católico apostólico romano, deve saber que o católico recebe uma ajuda sobrenatural de Deus, que dá ao homem de vontade fraca força para se vencer.”

Rogando a graça por meio de Nossa Senhora, sempre obtemos tudo o que pedimos de bom, conseguimos realmente a graça necessária para nos vencermos. É preciso ter essa convicção inteiramente, apaixonadamente, entusiasmadamente. Eu sou fraco, e se contar com as minhas meras forças não consigo nada. Esta é a doutrina católica. Se um homem de minha idade passasse a vida inteira no cumprimento perfeito dos Mandamentos porque a graça divina o apoiou, de repente afirmasse que fez isso pelas suas forças e não precisa da graça de Deus, ele pecaria no dia seguinte, se é que não fosse daqui a cinco minutos.

A fonte da perseverança do homem no bem não reside principalmente na sua vontade. Esta é indispensável, mas ele só tem força quando sobre essa vontade pousa a graça de Deus; pela graça divina o homem é capaz, tem meios, forças para fazer toda espécie de sacrifícios.

Então, essa coesão entre a lógica, de um lado, e o entusiasmo, do outro lado, se obtém, sobretudo, pela graça de Deus que penetra em nós e nos torna retos. Quando os nossos sentidos, nossos impulsos são bons, e queremos aquilo que é reto, pedindo a Nossa Senhora obtém-se essa retidão. E no homem reto o entusiasmo e a lógica são irmãos.

Tudo isso conflui para a frequência aos Sacramentos, a oração intensa, o desejo ardente de que Nossa Senhora nos ajude. E para uma confiança muito grande n’Ela. Rezamos para a Santíssima Virgem, mas abusamos da graça que Ela nos consegue e pecamos. Sabemos que, pedindo perdão, a Mãe de Deus perdoa sempre, e atende o nosso pedido de outras graças. Assim Ela vai sempre nos atendendo, até um certo dia em que as graças são tantas que nós nos levantamos e declaramos com alegria: “Eu agora sinto que não vou mais pecar”.

Nenhum homem tem o direito de ser ilógico para cultivar o entusiasmo, nem estrangular o entusiasmo para ser lógico. O homem deve encontrar esse fio de ouro, que faz o nexo entre o entusiasmo ordenado e a lógica. Dessa forma, quanto mais entusiasmado será mais lógico, quanto mais lógico, mais entusiasmado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1987)

1) “Baixa”: depressão, desânimo.

Admiração: substância da vida interior

Mais do que analisar esses ou aqueles monumentos que são “luzes da Civilização Cristã”, Dr. Plinio nos descortina um panorama grandioso da Criação do mundo visível e invisível, penetrando inclusive no sobrenatural, fazendo sapienciais comentários a respeito da admiração.

 

Quando estudamos a História da Idade Média, consideramos com muita frequência os grandes personagens que nos parecem os mais característicos daquela época histórica, e temos toda a razão nisso.

Então, estuda-se Carlos Magno, São Luís IX, São Fernando de Castela, São Tomás de Aquino, São Gregório VII, de modo eminente. Mas, de fato, esses grandes personagens não esgotavam toda a Idade Média.

Tendência contínua para o mais perfeito, mais santo, mais elevado

Havia naquela época um espírito de Fé em toda a massa da população, que fazia com que qualquer pessoa, um homem da rua, tivesse uma mentalidade construída fundamentalmente de modo diverso da mentalidade do homem contemporâneo, e que se refletia em todo o teor de vida, no modo de pensar e de viver do medievo.

No que estava essa diferença de mentalidade? O homem medieval, ainda que inculto, muitas vezes analfabeto, tinha o espírito formado de tal maneira que, a propósito de qualquer coisa que encontrasse diante de si, ele procurava o mais elevado.

Imaginemos um homem modesto, um copista, um calígrafo, que tivesse sobre uma mesa pergaminho, material geral para sua arte, canivetes afiados para cortar pergaminho, e uma sineta para chamar o empregado, a mulher, os filhos. O normal da alma dele era ser feito de tal maneira que ele gostasse que todos esses objetos o levassem a considerações de um caráter mais alto.

E então, se olhando espontaneamente para a sineta ele notasse que era feia, seu espírito tinha uma forma de elevação que, quando desse acordo de si, estava com um canivete esculpindo o cabo de madeira da sineta para ficar bonitinha. Se visse um canivete para cortar pergaminho, ele normalmente se comprazia em fazer com que fosse afiado de maneira que a beleza do metal aparecesse inteiramente; e que o cabo do canivete não fosse apenas prático, mas bonito, no qual estivesse esculpida a figura de um Santo. E no alto da sineta houvesse uma cruz.

Quando ele fosse escrever uma coisa caligrafada, não se limitava a fazer letras para aquilo ser lido, mas pensava em desenhar uma iluminura: a letra inicial maiúscula bonita, com um pássaro voando, ou um Santo dentro com halo de santidade, rezando, ou com o Rosário entrelaçado nas letras “O” ou “A”.

Quer dizer, mesmo os mais humildes homens do povo em tudo manifestavam uma tendência para o mais perfeito, mais santo, mais belo, continuamente. Uma espécie de insaciabilidade não intemperante, mas uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor, o mais perfeito, debaixo de todos os pontos de vista. Isso indicava um movimento da alma de nunca se contentar com aquilo que tem, mas sempre, a propósito do que vê, procurar algo mais elevado.

Dois movimentos ascensionais

Uma tendência, portanto, para a elevação em dois sentidos: pegar um objeto e adorná-lo mais ou arranjar um objeto melhor; tomar a linguagem que está falando e torná-la aos poucos mais nobre, mais elevada. Daí o progresso da língua corrente na Idade Média, que deu origem aos grandes idiomas europeus contemporâneos: o francês, o inglês, o espanhol, o alemão, o português, o italiano. Todas essas línguas nasceram na Idade Média, de um contínuo aperfeiçoamento para uma forma mais bela, para uma expressão mais rica.

Porém, mais do que isso: uma tendência para o sobrenatural. A ideia de, por esse mesmo movimento de espírito, procurar cada vez mais o verdadeiro, o virtuoso; a noção de que acima dos seres visíveis, uns mais belos do que os outros, havia seres invisíveis, mais nobres e belos do que os visíveis. E que no alto da pirâmide dos seres invisíveis ou espirituais estava Deus Nosso Senhor, a suma Perfeição.

Então, dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas na procura da perfeição delas; e outro a fim de, através das coisas terrenas, caminhar rumo a Deus. O que significava, na alma do homem medieval, uma tendência fundamental para o elevado e uma necessidade profunda da alma de admirar, de procurar e conhecer continuamente coisas que lhe provocassem admiração.

Daí surgiram as canções de gesta, que são  a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. E também as narrações, que às vezes eram apenas lendas, a respeito da vida de Santos, mas que era a glorificação deles. A “Légende Dorée”, por exemplo, de Jacques de Voragine, tem magnificências nesse sentido. Daí, sobretudo, a admiração dos Santos com suas vidas autênticas, a hagiografia verdadeira como era ensinada e decretada pela Igreja, a arte sacra e tudo o mais. Era uma tendência para cima a fim de admirar, venerar e alcançar com o olhar, afinal, a culminância suprema de toda ordem do ser que é Deus Nosso Senhor.

Essa tendência corresponde ao estímulo contínuo que o Criador comunicou à Criação. Não julguemos que esse estado de alma é pura e simplesmente um movimento que os medievais tiveram, mas que é lícito a outros não terem. Não é verdade. Esta é a orientação de alma que, em virtude do Primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

O ponto terminal de qualquer estudo ou arte é a admiração

Vemos bem isso ao considerarmos a ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo. Por mais que o examinemos, não encontramos um ponto que não seja suscetível de um aprofundamento. E no fundo desse aprofundamento, não achamos nada que não dê numa espécie de maravilhamento. O universo foi todo construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Tomem a coisa mais terra a terra, por exemplo, a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata é uma coisa feia. Mas se um cientista for estudá-la encontra ali uma ordenação, uma estrutura, enfim, diversas razões pelas quais um verdadeiro especialista acabaria concluindo o que um artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista afirmaria que é hedionda, mas o cientista dirá: “Nesse hediondo, que maravilha!”

Assim, na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda parte encontramos, no fim de tudo, algo de admirável. O maravilhar-se, o admirar é a postura de alma que é o ponto terminal da peregrinação do homem em toda espécie de estudos ou elucubrações, em qualquer campo: artístico, científico, cultural.

Bem no centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, encontramos a ordem sobrenatural, a Igreja Católica Apostólica Romana. E nela o mesmo se dá. Na menor coisa da Igreja Católica que vamos procurar, vemos uma verdadeira maravilha.

Eu tomo o mais corrente dos exemplos, o meio que a Igreja inventou para chamar os fiéis à oração: o sino. Tão prático! Colocado no alto de uma torre, ele toca…  Mas a torre da igreja, quanta maravilha, os sinos na torre, quantas maravilhas! A Ave-Maria, que é tocada na aurora ou na hora do pôr do sol, que maravilha! O sino que repica alegre para anunciar a Missa, que maravilha! O sino que dobra finados quando o cadáver é levado para a igreja a fim de receber a bênção, que maravilha!

“Coisinhas” da vida da Igreja que são sóis

Eu estava um dia comentando com um companheiro as coisas feitas pela Igreja, as quais são tão naturais que ninguém se lembra de achá-las bonitas. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra na igreja um cadáver carregado por pessoas. Antigamente isso era muito comum: vem um caixão, a família o leva para dentro da igreja, abre o féretro, vem o padre, dá a absolvição, etc., e segue para o enterro. Todo mundo com aquele respeito: “Coitado, faleceu, mas dizem que morreu bem, está com bom aspecto; antes de falecer abençoou os filhos, recebeu os sacramentos, despediu-se da esposa!” De repente o coro canta: “Requiem æternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei”. 

É a dúvida da Igreja: “Ele deve ter pecados para pagar, pelo menos pecados veniais, e o normal é que passe por um Purgatório bem ardente. Meu Deus, dai-lhe o descanso, e que a luz perpétua brilhe para ele!” E ainda depois o coro canta: “Requiescat in pace; e embaixo todos entoam: Amen”.

Quer dizer, o modo pelo qual a Igreja convida a humanidade a reconhecer a realidade do pecado, no homem que ela está honrando assim. É um equilíbrio fantástico. Mais. Isto é feito até nas exéquias dos dignatários da Igreja, dos Bispos, Arcebispos, Cardeais, do Papa. E lá sai o “requiem æternam dona ei, Domine…”

Antigamente, quando um Papa era entronizado, levavam-no em triunfo pela Basílica de São Pedro até ser coroado, e depois ele voltava na sedia gestatoria. Um homem ao lado dele, um dignatário eclesiástico, de vez em quando acendia uma estopa e dizia: “Sanctissime pater, sicut transit gloriam mundi”; depois de alguns passos acendia outra estopa e repetia essa frase “Santíssimo padre, assim passa a glória do mundo!” Como quem diz: “Vós sois Papa, é uma grande coisa, mas o demônio da vaidade pode tomar conta de vós; Santíssimo padre, olhai como passa a glória do mundo!”

Essas “coisinhas” dentro da vida da Igreja são sóis! Esses sóis indicam que a Igreja também nos convida continuamente a uma impostação de admiração, e que esta avidez de admirar está em tudo quanto Deus fez, coroa tudo, envolve tudo, quer na ordem natural, quer na sobrenatural.

Devemos considerar, pois, que na Idade Média o fiel, isto é, qualquer um que passasse pela rua, tendo apenas a grande glória – e como é grande essa glória! – de ser batizado, dotado, portanto, de espírito católico, possuía essa tendência a procurar e a realizar, em tudo, coisas admiráveis. Ele não era invejoso; encontrando alguém admirável, se alegrava e dava graças a Deus por ter encontrado, elogiava, aplaudia e procurava torná-lo conhecido. Não era igualitário, não procurava colocar-se no nível dos outros, mas desejava que quem fosse superior a ele recebesse mais e fosse mais glorificado.

A tendência de espírito dessa época tem como corolário que, por causa da admiração, os que eram menos aprendiam dos que eram mais. Por causa disso, exercia-se uma influência das classes mais cultas e aprimoradas sobre as mais modestas. A moda descia, e era um contínuo imitar dos mais perfeitos pelos menos perfeitos. Era essa a orientação desses séculos. Quem estava embaixo procurava imitar o que havia de mais alto. E assim se constituía o governo de Deus, supremo, sobre toda a humanidade.

A base de todas as virtudes é o espírito admirativo

Estas considerações nos ajudam a fazer a crítica exata do mundo que nos rodeia. Ou o círculo social ao qual pertencemos é todo voltado para o admirável, tem o espírito admirativo, gosta de comentar e considerar sempre o mais alto, o mais perfeito, e por aí tende para Deus, ou é um espírito ateu, porque faz abstração do Criador completamente, e das coisas intermediárias que nos conduzem a Ele.

São João tem aquela frase famosa: “Quem não ama o próximo a quem vê, não poderá amar a Deus a Quem não vê” (cf. 1 Jo 4, 20). Então, também é verdade que essa posição de admiração pelas coisas terrenas retas é uma condição para admirarmos a Deus, porque o mesmo princípio pode-se aplicar: “Se vós não admirais as coisas que vedes, como podereis admirar a Deus que não vedes?” Portanto, essa tendência para a admiração, essa prontidão de espírito para respeitar, se alegrar com o que é elevado, superior, nobre, deve ser de todas as classes sociais, desde a mais modesta até a mais alta. É segundo essa tendência que devemos julgar o valor religioso de um ambiente que frequentamos.

Quando o espírito é assim, ficam criadas as condições para praticar a virtude; ama a pureza e tem horror à impureza, facilmente será honesto, etc. Se um espírito não é assim, ele pensa só nisto: “Pecar contra a castidade é muito gostoso, mas Deus proibiu e, portanto, não posso fazer”. Então ele se mantém na castidade com uma espécie de tristeza de ter que ser casto, porque não compreende a beleza da virtude que pratica. E não compreende porque não foi educado para admirar coisa alguma. Resultado, a própria santidade católica ele não admira também. Se não admira, aquilo para ele torna-se um fardo que, a qualquer hora, joga à beira do caminho.

Nós só perseveramos na virtude quando a admiramos; e só admiramos a virtude quando temos essa base de todas as virtudes que é o espírito admirativo, o qual nos leva até Deus Nosso Senhor.

Uma civilização que perdeu a beleza e a admiração torna-se ateia

Se analisarmos as construções do mundo contemporâneo, não encontramos a menor vontade de alguma coisa mais elevada. Não é por falta de dinheiro, mas por um estado de espírito. Porque na Idade Média até mesmo as habitações mais pobres eram ornadas.

Mas é tal esse estado de espírito que, se formos ascendendo na escala social, veremos que a mentalidade é a mesma. Se é verdade que há cada vez mais conforto, entretanto existe cada vez menos beleza. O “pulchrum” vai desertando do interior dos lares ricos. E essa fuga do belo e do elevado vai se generalizando cada vez mais, sobretudo nas camadas superiores da sociedade, a ponto de estarmos numa inversão: os modos de ser da classe mais baixa são imitados pelas mais altas. Castigo de quem perdeu o espírito de admiração, não compreendeu que deve respeitar-se, admirar-se e fazer-se admirar, para o bem dos outros, mas que apenas procura o gozo da vida.

Temos, então, uma civilização sem admiração, sem beleza que, porque perdeu a beleza e a admiração, é uma civilização ateia.

Isso deve ser levado muito a sério, pois para sermos autênticos contrarrevolucionários, ou fazemos a crítica das almas e dos ambientes sem admiração, ou a Revolução acaba nos devorando também. É preciso, portanto, um verdadeiro exame de consciência contínuo para mantermos em nós esse espírito de admiração.

Alguém poderia objetar:

– Dr. Plinio, não é uma coisa inventada pelo senhor? Não vejo isso ser dito em nenhum manual católico.

Eu respondo:

– Todos dizem, desde que sejam bem lidos e entendidos.

Quando a Sagrada Escritura afirma que os céus e a Terra narram a glória de Deus (cf. Sl 18), o que quer dizer isso? A glória é um objeto de admiração. Portanto, os céus e a Terra narram o que em Deus há de admirável, de glorioso. O céu e a Terra não foram feitos para conhecermos a Deus? Se narram a glória d’Ele, então devemos ter um espírito ávido de admirar a glória em tudo. É claro, evidente!

Consideremos as catedrais feitas pela Igreja, admiráveis todas elas. Por quê? Porque a Igreja quer modelar pela admiração os seus filhos. Então os vitrais, os órgãos, a Liturgia, a música sacra, tudo tende para a admiração. A alma verdadeiramente católica deve procurar o admirável em tudo, ainda que seja uma pessoa de uma cultura e de uma inteligência muito comuns, sua alma deve voltar-se para isso.

Estamos numa ilha porque em torno de nós só há abismos

Por vezes, noto nas pessoas com quem convivo que algo disso há no espírito, mas coexistindo com certos hábitos mentais por onde elas gostam do vulgar, banal, da chanchada, do desordenado, e acham que isso é o normal porque em todas as épocas do mundo os homens foram assim. E que ser diferente é vivermos num píncaro quase inumano, de tão alto. É o contrário. O mundo atual está no fundo de um abismo, de um precipício de vulgaridade, de feiura, de imoralidade e de erro; e nós estamos numa ilha que é um monumento porque em torno de nós só há abismos. Não é que essa nossa posição seja extraordinariamente alta; mas porque o mundo desceu muito e Nossa Senhora nos concedeu a graça de não descermos tanto, parecemos muito alto. Mas esse é o rés do chão para o Reino de Maria.

Não devemos, portanto, ter a ideia de que a graça nos pede uma elevação de espírito quase impossível, e que somos mais ou menos como um macaco que consegue ficar de pé sobre duas patas durante algum tempo, mas depois já vai voltando para o chão e andando como quadrúpede. Não é essa a nossa alma. O normal é estarmos eretos na posição de admiração e voltados para o Céu, procurando admirar tudo quanto é admirável e execrar tudo quanto é execrável. Eis a posição verdadeira, normal de nossa alma. Isso não é extraordinário. Houve séculos e séculos em que a normalidade dos homens foi essa.

O estado de espírito oposto começou a se infiltrar no fim da Idade Média; na Revolução Francesa começou a dominar; no Comunismo atingiu o seu paroxismo.

O que acabo de afirmar é um exercício de transcendência que deve ser comum, corrente na vida do homem, e corresponde à prática da presença de Deus de que fala Dom Chautard. Ver Deus presente em tudo é isto. Esta é a substância da vida interior, de acordo com a Doutrina Católica.

Deixo aqui este apelo para que levantemos nossas almas e corações, e mudemos o nosso modo de ser.

Uma senhora que se encantava vendo as sombras de uma árvore

Conheci o caso de uma senhora que morava numa casa em São Paulo, perto da qual crescia uma árvore comum, mas frondosa e cuja copa coincidia com a janela dessa residência. À noite, por causa dos lampadários da iluminação pública, penetrava a luz de fora em um dos cômodos e o enchia com mil sombras daquela folhagem. Numa ocasião, foi necessário serrar essa árvore e derrubá-la, por razões de segurança. Quando a senhora entrou e viu que a árvore estava serrada, perguntou:

– Mas como, o que aconteceu com a árvore?

– Foi preciso serrar – responderam.

Para não a assustar, não se mencionou o problema de segurança. E ela disse:

– Vocês tiveram a crueldade de acabar com as sombras lindíssimas que enchiam esta sala durante a noite?!

Via-se que era um verdadeiro golpe para ela que, com sua cultura e sua inteligência comuns de uma boa dona de casa, ficava cheia de admiração por aquilo, reportando a Deus Nosso Senhor.

Coisa tão comum: uma árvore, um revérbero de iluminação elétrica e uma sala apagada. Só não era comum a alma que tão intensamente sentia isso.

Isso é um dos mil exemplos que se poderia contar, tirados da vida normal das pessoas da Civilização Cristã, e que indicam bem qual é a mentalidade católica tendente a ver o maravilhoso em tudo, porque ele existe por toda parte, é só querer encontrá-lo.       v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

Conhecendo e amando Nosso Senhor

Desde criança, analisando a fisionomia de Nosso Senhor representada em belas imagens, Dr. Plinio discernia sua Alma e procurava compor como deveria ser a mentalidade correspondente àquele semblante. Ao tomar conhecimento dos episódios narrados nos Evangelhos, compreendeu que eles condiziam inteiramente com aquela mentalidade.

 

Amor e compreensão

Ao considerar as narrações dos Evangelhos, percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham convívio com Nosso Senhor — excetuando naturalmente Nossa Senhora — não haviam entendido bem o Redentor.

Com o curso do tempo, depois dos primeiros equívocos, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito de d’Ele. Mas nota-se que eles não tinham uma ideia exata de como era a Pessoa de Nosso Senhor.

Essa compreensão era de uma importância transcendental para eles O amarem como deviam ter amado. Em contrapartida, se tivessem amado como deviam, teriam compreendido tanto quanto podiam. Ora, eles compreenderam menos do que podiam, e também não O amaram o quanto deviam. Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor. O resultado é que custou para eles reconhecê-Lo como Deus.

Nosso Senhor perguntou-lhes: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16, 15). São Pedro disse que Ele era o Filho de Deus. Então Nosso Senhor manifestou seu agrado com São Pedro, constituindo-o fundamento da Igreja e estabelecendo o Papado. Pelo que me parece, nessa ocasião ele reconheceram a Nosso Senhor Jesus Cristo como Filho de Deus. Mas antes…

A voz, os olhares, os gestos de Nosso Senhor

Quem é Nosso Senhor Jesus Cristo?

Ele forma com o Verbo de Deus uma só Pessoa. Não há duas pessoas, a do homem e a do Verbo de Deus, ligadas de algum modo. Não é isso. É uma só Pessoa, que tem duas naturezas: a divina e a humana.

Há, portanto, n’Ele uma verdadeira Alma, um verdadeiro Corpo, unidos entre si como o estão a alma e o corpo em cada um de nós. Mas essa Alma e esse Corpo estão unidos hipostaticamente à natureza divina, constituindo uma só Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Portanto, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus quem falava; cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus quem olhava; cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era reflexo da natureza divina na natureza humana o mais perfeito que se possa imaginar.

Manifestava, assim, uma santidade, uma perfeição, uma superioridade da qual não podemos ter ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus.

Se formássemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… que espelho eram da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco isso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver equívocos, amando-O como Ele não é. Porque se amarmos Nosso Senhor como Ele não é, acabaríamos um pouco amando quem Ele não é. Todos compreendemos o perigo disso.

Esse é um trabalho muito delicado e, se não fosse com a ajuda da graça, não se faria na alma de ninguém. Porque é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Além disso, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo extraordinário para recompor. Naturalmente não se pode exigir isso de uma pessoa como condição da salvação.

Analisando uma imagem do Sagrado Coração de Jesus

Então, por causa disso, tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma primeira noção d’Ele, que vai se aprimorando com o tempo.

Por exemplo, posso me lembrar de como essa noção foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, tomei como ponto de partida que a fisionomia habitualmente apresentada pelas imagens de Nosso Senhor era fiel. Aquele era o rosto que Ele teve na vida terrena. E, portanto, aquela fisionomia já queria dizer alguma coisa.

Lembro-me de que, dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava, por longos períodos, a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus que há no oratório do quarto de mamãe.

Longa, atenta e meticulosamente — quanto possa caber na mente de uma criança — eu a examinava. E isso condizia com as imagens existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, num altar lateral e no teto também, e formava uma resultante, uma espécie de figura central correspondente ao essencial dessas várias imagens, e era como eu imaginava, mais ou menos, a Ele.

Ao tomar conhecimento dos episódios da vida de Nosso Senhor, eu procurava me perguntar se condiziam com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas tomavam um realce extraordinário, imaginando os predicados daquele Varão, com aquela fisionomia e aquela atitude. Aquele rosto explicava o episódio, o episódio explicava o rosto. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Depois eu procurava ver também na Igreja: dado que Ele possuía tal fisionomia correspondente a tal personalidade, se Ele tivesse que fazer a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E eu chegava à conclusão de que sim, era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde uma confirmação da Fé originária que recebi, pela bondade de Nossa Senhora, logo ao ser batizado. Com o Batismo tornamo-nos templos do Espírito Santo, a graça habita em nós. Isso ajuda enormemente para a formação religiosa vista como um todo e, por sua vez, favorece o amor, o qual auxilia a conhecer melhor.

Fusão das virtudes opostas, formando uma harmonia extraordinária

Antes de tudo, a impressão causada em mim por Nosso Senhor, ao ver sua humanidade santíssima, é a de estar Ele envolto em cogitações enormemente superiores a tudo quanto se possa imaginar, de uma elevação sem proporção com nada. Entretanto, sem poder chegar com o pensamento, nem de longe, até onde Ele chegava, alguma luz dessas cogitações se fazia brilhar n’Ele, e eu como que via a Alma de Nosso Senhor inundada dessas luzes das quais Ele estava repleto.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas vê do lado de fora que ela está com as lâmpadas acesas em seu interior. Ele olha, portanto, os vitrais iluminados, aproxima-se e ouve a música, avizinha-se ainda mais e o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde ele não entra. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza. Assim seríamos nós — ao menos eu — com Ele.

Percebia dessa forma qualquer coisa de uma elevação prodigiosa; porém, desde o primeiro momento, pelo ponto mais profundo pelo qual eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

Por exemplo, uma força incomparável e, ao mesmo tempo, uma bondade sem par; uma severidade inquebrantável e um perdão de uma doçura infinita; um poder de tranquilizar extraordinário aliado uma capacidade insuperável de mover para a luta; uma transcendência divina com a possibilidade de descer à última pessoa, e até a um cachorrinho, e fazer um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele Se alegraria com isso.

Tudo isso indica a superioridade e a imensidade maravilhosas de Nosso Senhor, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau sumo, possam caber n’Ele com tanta harmonia.

Nessa harmonia estaria exatamente o que melhor o meu olhar podia captar dos reflexos da graça divina transparecendo na natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Com isso e por isso, também muita gravidade e uma seriedade enorme! Seria impossível imaginá-Lo falando uma coisa banal ou mesmo dizendo algo que não tivesse por detrás uma razão infinitamente elevada e perfeita.

Variedades do modo de ser do Redentor

Mesmo quando Ele dormia, seu sono era de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, com tal poder de manifestação de toda sua santidade, que se uma pessoa, entendendo quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Ele possuía a natureza humana na sua perfeição e inundada pela união hipostática, com favores divinos insondáveis. Portanto, Ele olhando para cada um de nós conhecia inteiramente como era, e sabia como tratar. De tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentia vista até o fundo da alma nos lados ruins ou nos aspectos bons.

Os lados ruins, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado. Os aspectos bons, com uma atração tal que a pessoa desejaria multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de início!

No entanto, por uma bondosa condescendência para com os homens, Ele não olhava inteiramente nem de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida de Nosso Senhor são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este, aquele ou aquele outro episódio quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Um brado majestoso que fende a sepultura e ressuscita Lázaro

Por exemplo, durante toda minha vida me impressionou a majestade d’Ele diante do sepulcro de Lázaro. Em primeiro lugar, a bondade com a qual Ele chorou junto ao sepulcro porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43), com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura. E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Marta: “Senhor, se tivésseis vindo antes, meu irmão não teria morrido…” (cf. Jo 11, 21). Parece estar insinuado que, pela relação de amizade existente entre os dois, Jesus tinha a obrigação de evitar a morte de Lázaro. E talvez tivesse mesmo… Entretanto, Ele fez algo melhor do que salvá-lo da morte: tirou-o da morte!

Naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Marta ligeiramente tisnado de culpa… E como Nosso Senhor Se portou nessa ocasião, em que Ele não deu a ela nenhuma satisfação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura dela, chorando.

Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Vós chorais a morte que poderíeis ter evitado? Que pranto é este?

Ele, então, faz Lázaro ressuscitar, deixando Marta extasiada! Essas coisas não comportam comentário.

Depois, a cena dos fariseus dizendo que Ele precisava ser morto (cf. Jo 11, 50-53). A primeira vez em que eles falaram em matar Jesus foi quando viram Lázaro ser ressuscitado. E Ele conhecia tudo isso.

Podemos imaginar também Nosso Senhor vendo Marta, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Deverias ter compreendido que não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.” Em seguida, passar perto dos fariseus e lançar um olhar… Que olhar! Não se consegue imaginar; podemos apenas ter vislumbres disso.

Podemos considerá-Lo em outra circunstância, indo a Betânia descansar. Então imaginá-Lo afável, repousando no convívio com Marta, Maria, Lázaro, os Apóstolos, Nossa Senhora, na vida cotidiana da residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade. Como tudo isso devia consolá-Lo de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude.

Essas várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, deixam-me especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1984)

OBRA-PRIMA DA PIEDADE CATÓLICA

No vasto e rico universo da arte católica, dois modos existem de representar a boa pintura religiosa, aquela em que os mestres dos pincéis se superam ao imprimir nas telas as luzes e as cores de seu talento. Uns procuram representar seus temas o mais possível de acordo com os aspectos comuns da vida, abstraindo daquilo que se nota muitas vezes no cotidiano católico, que é a  transparência da graça nas pessoas ou nos ambientes.

Cumpre dizer: tais pintores são primorosos no retratar o que é comum. Outros, porém, procuram envolver suas pinturas com essa espécie de imponderável místico que permite perceber na cena
a presença da graça. Exemplo paradigmático dessa categoria de artistas foi o Beato Angélico, o “magnata” da pintura da graça, cujos belíssimos afrescos constituem um dos maiores tesouros da iconografia da Santa Igreja.

Não menos admirável, porém, é o talento de outro pintor italiano, que viveu entre o fim da Idade Média e o início da Renascença, o célebre Giotto. Como o extraordinário frade-artista de Florença, também ele deixou-nos quadros e afrescos impregnados — a meu ver, intensamente impregnados — de  sobrenatural. Fra Angélico escolheu como “telas” as paredes do Convento de São Marcos, na urbe florentina; Giotto, as da chamada Capella degli Scrovegni, em Pádua.

Trata-se de uma famosa capela, edificada anexa ao palácio da influente família dos Scrovegni, hoje completa ofícios, reservadas numa espécie de gradim de mármore também muito bonito e bem trabalhado. Ao fundo, o pequeno altar de linhas singelas, sob uma abóbada de arcarias ogivais, emoldurado por estalas de madeira envelhecida, gasta, e por colunas ricas em lavores e coloridos do mesmo tipo de pedra que adorna toda a capela.

Nas paredes, harmônicas com o teto abaulado, vê-se a maior beleza, a principal atração desse exíguo e inestimável recinto católico: as cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, pintadas por Giotto. Caracterizadas, de um lado, por uma inocência ainda toda medieval; e, de outro, pela transparência daquela atmosfera sobrenatural magnífica.

*

Sou particularmente sensível à harmonia das cores. Em vista da predominância dos recursos cromáticos utilizados por Giotto, sinto especial agrado por alguns desses afrescos. Por exemplo, a cena do Casamento de Nossa Senhora com São José, em que aparece uma espécie de radicalidade nos tons claros e a mesma radicalidade nos tons carregados, resultando num contraste muito interessante. Há matizes de verde, azul e lilás delicados, postos em realce pela combinação de vermelhos, carmins e laranjas bem profundos. A força destes tons escuros confere uma nota de seriedade ao claro, e constrói um equilíbrio de cores superiormente belo.

O quadro tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação de Giotto, seria uma parte do Templo de Jerusalém. O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, e de uma túnica que vai até o chão. É um velho de cabelos já brancos, abundantemente barbado, numa atitude digna, cheio de piedade e de recolhimento. São José traz na mão esquerda o bastão florido, que indicava ser ele o esposo escolhido pela Providência para se casar com Maria Santíssima. Na mão direita, segura a aliança que simboliza essa maravilhosa união. De acordo com uma velha tradição, Giotto representa São José muito mais velho que Nossa Senhora. Ela, ainda mocinha, tem o recato e a compostura de uma pessoa toda virginal. Como traje, leva uma túnica de cor muito clara, que fala de pureza, de delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. O seu porte é ereto, imaculado.

Outro afresco muito bonito é o que retrata a Apresentação do Menino Jesus no Templo. De um lado, Nossa Senhora e São José; de outro, o Profeta Simeão e a Profetisa Ana. Embora a parte central seja concebida em termos medievais, a ideia é mais uma vez a de que a cena se passa numa dependência do Templo de Jerusalém. Nessa pintura, o fato de maior interesse é a atitude dos santos esposos. Nossa Senhora apresentou o Menino ao Profeta, e aparece com as mãos no gesto de quem acabou de O entregar, ou de quem O receberá de volta. São José, modestamente recolhido a segundo plano, acompanha a cena. É notável a atmosfera de santidade e de pureza que domina o quadro inteiro, de maneira que o próprio templozinho possui algo de esguio e de virginal. Tudo é posto por Giotto sobre um fundo meio azulado, com folhagens e vegetações hoje apagadas, confundindo-se com um céu também de azul profundo. O colorido mais escuro confere particular relevo à parte central do tema: o Divino Infante — sob uma espécie de foco de luz —, o Profeta Simeão e Nossa Senhora (sob luminosidade menor), São José e a Profetisa Ana.

Na Fuga para o Egito, Nossa Senhora vai montada num simples burrico, e toda a Sagrada Família denota os sinais exteriores da pobreza. Mas a dignidade d’Ela é de uma princesa! Um porte retilíneo, as costas sem arcadura nem inflexão, a fronte alta, e a resolução com que enfrenta a viagem, os riscos, denotam a majestade da Mãe do Rei do Universo. São José caminha na frente, atentíssimo para o que possa acontecer com a Mãe e o Menino.

Ela confia em Deus e no esposo. Portanto, vai recolhida em oração, abraçando o Filho em seu colo. Giotto exprime de modo extraordinário a celestial intimidade dos dois. Certamente Ela reza a Jesus, pedindo por aqueles que estão contemplando o quadro…

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Noutro ciclo de afrescos surge o Domingo de Ramos, em cuja composição muito transparece aquela inocência de que atrás falamos. Nosso Senhor entra montado num burrinho, e abençoa o povo à sua frente.

Mas sua fisionomia é de tristeza, o rosto varonil, uma abundância extraordinária de barba, e uma atitude de Prelado de altíssimo poder, ou de Chefe da religião verdadeira. Muito mais do que isso, de Messias. No meio da multidão que o acompanhava, percebe-se uma ou outra pessoa com a auréola da santidade. O próprio Jesus está coroado por um aro muito definido. É, em grau infinito, o primeiro e o maior de todos os Santos, fonte e causa de todas as santificações.

Mais adiante, depois de lindíssimas pinturas como a Ressurreição de Lázaro, vem a Crucifixão e Morte de Nosso Senhor, o quinto mistério doloroso do Rosário. Jesus, pregado ao madeiro, está lívido, tendo exalado seu último suspiro. Santa Maria Madalena, identificada pelos longos cabelos soltos, oscula-Lhe os pés. A um canto vê-se Nossa Senhora, amparada por São João Evangelista e por uma das santas mulheres. No lado oposto aparece uma parte da multidão que deseja assistir ao acontecimento. O céu está povoado de Anjos cantando a glória do Divino Redentor. E enquanto os outros presentes sentem apenas dor e vergonha, Maria Santíssima, embora abalada, permanece de pé, com força e determinação. Imaculada, cheia de graça e de amor a Deus, era capaz de refrear em alguma medida sua própria dor, de maneira a servir de consolo e sustentação para os que, neste momento sumamente trágico, claudicassem na fé e na certeza da Ressurreição.

São alguns episódios da Paixão segundo Giotto, uma das obras-primas da piedade católica.

Para mim, esse face-a-face entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado. Nosso Senhor está sério e olhando Judas até o fundo da alma. E este procura mentir. É a verdade eterna e subsistente, encarnada, que olha para um homem falso. E Judas, que procura tornar a mentira dele aceitável, abraça Nosso Senhor e O olha com ares de quem pretende ser um grande amigo. Nosso Senhor o fita e lhe diz: “Judas, é com um ósculo que trais o Filho do Homem?” Nosso Senhor recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado  provavelmente de um mau odor asqueroso, cheiro do inferno. Judas nada responde à pungente pergunta do Mestre. Ele trai o Filho de Deus. Depois disso, se porá a delirar e a correr de um lado para outro, até cometer o suicídio.

Nesta cena, Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o sumo de todos os predicados intelectuais e morais. E em Judas, o sumo de todas as abjeções. Daí os recursos de que ele se serviu. Primeiro, a diferença entre as duas cabeças. A de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, digna, composta, sem espalhafato. A de Judas, pelo contrário, está coberta com uma grenha suja, abundante, que ele procurou pentear bem antes de cometer seu crime infame, a fim de que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ia fazer. Era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então, ele se enfeitou. Mas é patente a desordem capilar dele em contraste com a proporção e a ordenação adequada dos cabelos de Nosso Senhor. A barba do Divino Mestre é de boas dimensões, dispondo-se belamente em cima da pele, com muita mesura e harmonia. O mesmo deve-se dizer do bigode. Já a barba de Judas é feita de uns fios raros, formando arquipélagos peludos em certos lugares do rosto, confundindo-se com a própria carnatura, e mais nada. Além disso, a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice sórdida e horrorosa. Nosso Senhor, a de uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.

 

Misercordes oculos ad nos converte

Quando menino, aos doze anos de idade, diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada na Igreja  do Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio foi “contemplado” pelo misericordioso e compassivo olhar de Maria Santíssima.  A graça recebida nessa ocasião marcou profundamente sua vida.

 

Procurando fazer melhor explicitação a respeito de Nossa Senhora, recentemente encontrei uma figura que, embora muito simples, exprime bem meu pensamento. Não sei se ela, em Geometria, é inteiramente exata, pois, como todos sabem, meus conhecimentos nessa matéria são os mais sumários e desinteressados possíveis.

Imaginemos um poliedro, um corpo com várias faces — esta é a ideia muito primitiva que tenho de um poliedro —, bem construído. Se suas faces são triangulares, olhando-se para uma delas, se vê de certo modo as outras, pois todas têm a forma de um triângulo.

Assim é a Mãe de Deus, cuja perfeição é supereminente, e a Quem a Igreja vota o culto de hiperdulia. Considerando-se uma de suas altíssimas qualidades, percebe-se que Ela tem igualmente todas as outras virtudes de que uma criatura humana seja capaz. Conhecida, por exemplo, sua fé, se entende sua esperança e sua caridade. Vendo-se um lado do poliedro, se intui como são todos os outros, com suas dimensões. Se, conforme a Geometria, o poliedro não é exatamente assim, essa figura serve ao menos como metáfora.

Compaixão de Nossa Senhora

O que mais me tocou, primeiramente, em Nossa Senhora não foi tanto sua santidade virginal e régia, mas a compaixão com que Ela olha para quem não é santo, atendendo com pena e solícita em dar, em suma, uma misericórdia que tem as mesmas dimensões das outras qualidades. Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca ter um suspiro de cansaço, de extenuação, de impaciência, mas sempre disposta não só a repetir sua bondade, mas a superar-se a Si própria. De maneira que feita tal misericórdia, embora mal correspondida, vem outra maior. Por assim dizer, nossos abismos vão atraindo sua luz. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as graças por Ela obtidas se prolongam e se iluminam em nossa direção.

“Um olhar que me deixou calmo para a vida inteira”

Comparemos o miosótis com o sol. Entre nós e a Santíssima Virgem a diferença transcende ainda mais. Embora seja Ela mera criatura, sua ação poderia ser comparada com o efeito do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, que O renegou durante a Paixão e o galo cantou. Quando o Redentor o fitou, ele se sentiu tomado por inteiro. O Apóstolo havia sido testemunha direta ou tivera repercussão imediata de tudo quanto os Evangelhos narram, e conhecia Nosso Senhor perfeitamente. Naquele olhar ele recebeu uma comunicação de tudo quanto sabia, mas com tal acento e esplendor, que derrubou sua ingratidão: “Et flevit amare — E chorou amargamente” (Lc 22, 62). A grande contrição de Pedro é um dos fatos mais bonitos da história dos santos.

Quando menino, tendo ido à Igreja do Coração de Jesus e, pela primeira vez, atinado com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, não tive nenhuma visão, êxtase ou revelação. Mas me senti como se a imagem me olhasse, e tive conhecimento como que pessoal dessa bondade insondável que me envolvia totalmente. Ainda que eu quisesse fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou Eu!”, fazendo-me entender a profundidade dessa misericórdia.

Em primeiro lugar, fiquei calmo para a vida inteira. De fato, por maiores que sejam as dificuldades, se estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar; porque no fundo, para quem não é brutalmente insensível, mas se volta à Virgem Maria, Ela acaba arranjando todas as coisas. E, notem bem, uma das coisas que — dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto eu tinha bem claro mais me enlevaram, foi que isso não era um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em querer tratar-me como um privilegiado; porém, tive cognição do contrário: Para todas as pessoas que existiram e existem, todos os pecadores que estão nas ruas, nas casas, nos bondes, nos automóveis, etc., Ela é exatamente assim. Porém, muitos A rejeitam.

Tenho muita pena quando vejo alguém — um “enjolras”(1), por exemplo — nervoso e com problemas; penso: “Por que não posso comunicar-lhe um olhar como o que recebi de Nossa Senhora? Ele ficaria calmo para a vida inteira.”

Não consigo exprimir completamente como foi essa graça. Quando rezo o trecho do Magnificat “et misericórdia eius a progenie in progenies timentibus eum”, quer dizer, a misericórdia de Deus vai de geração em geração a todos os que O temem, sempre pensei: “É bem verdade, e por meio de Maria Santíssima. Ela é a misericórdia insaciável, que não acaba, mas se multiplica solícita, bondosa, tomando nossa dimensão e, por compaixão, faz-se até menor do que nós para nos acolher”.

Muitos pensam que eu sou uma fera, não tenho pena dos outros. Eles não têm ideia do que é essa cognição da misericórdia de Nossa Senhora, a qual penetrou em minha alma.

Misericórdia, pureza, fortaleza e sabedoria de Nossa Senhora

Considerando essa misericórdia, vem-nos à ideia a virginalidade de Maria Santíssima, porque essas noções, por assim dizer, se contêm umas nas outras. Ela é pura, com um grau de pureza indizível. Conhecida a misericórdia se conhece a pureza; é novamente a figura do poliedro. Qualquer castidade que se possa conceber não se compara à pureza d’Ela, toda feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um jorro de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém, um “élan” inteiro, de uma força, integridade, um desejo de Absoluto, que não se pode medir.

A pureza de Nossa Senhora, comparada à de outras pessoas, é como a alvura da neve em relação ao carvão.

E, na perspectiva em que me coloco, a pureza traz consigo a ideia da fortaleza, a qual não significa que nada quebra. É algo diferente: ante o que a Mãe de Deus, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte pela força da vontade d’Ela; é um ímpeto, uma resolução, uma ausência de possibilidade de resistência de qualquer pessoa ou coisa que seja, uma soberania, um domínio numa tal dimensão que não há palavras humanas para exprimi-la.

Hoje se fala de obuses e outras armas. Na realidade, são simples caranguejolas inofensivas e ridículas em comparação com um ato de vontade, uma preferência da Santíssima Virgem.

Por sua vez, essa fortaleza, misericórdia e pureza trazem uma ideia de sua sabedoria lúcida, adamantina, dispositiva de todas as coisas, nunca tendo qualquer dúvida, mas somente certezas. Quer dizer, Ela conhece todas as coisas, suas inter-relações, e penetra até as entranhas de todo ser. O universo é tão grande! Pelo fato de Nossa Senhora compreender a ordem do universo e o seu ponto ápice, mais uma vez vislumbramos qual é a imensidade de sua pureza, fortaleza e misericórdia.

Essas são as virtudes que, de momento, mais me chamam a atenção quando me lembro do olhar de Nossa Senhora Auxiliadora na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, Eu te quero”— “Minha Mãe, eu sou vosso”

Poder-se-ia perguntar-me: “O senhor recebeu esse olhar quando menino, com onze, doze anos; e nunca mais houve algo semelhante?”

Essa graça me foi dada de tal maneira que ficou como um sol para a vida inteira. O fato parece ter ocorrido ontem. A Santíssima Virgem como que me disse: “Meu filho, Eu te quero”. E eu declarei: “Minha Mãe, eu sou vosso”.

Alguém indagaria: “Mas nessas considerações onde o senhor coloca a Nosso Senhor Jesus Cristo?” Respondo: “Em tudo!” É a ideia que São Luís Grignion desenvolve muito: Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está o Redentor, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Imaginem Nossa Senhora no período em que, no seu corpo virginal, estava se formando o Menino Jesus, por ação do Espírito Santo, e que alguém quisesse adorar ao Messias, abstraindo d’Ela. Seria uma estupidez, não teria sentido!

Sei que estarei mais unido a Nosso Senhor quanto mais estiver unido a Maria Santíssima.

Naturalmente, daí decorre que minha devoção a Ele passa por Ela. Creio que mesmo nas ocasiões de maior cansaço — espero, pelo menos —, quando faço referência à adoração devida a Nosso Senhor, logo depois falo de sua Mãe Virginal. É sistemático.

Dir-se-á: “Mas muitas vezes o senhor fala sobre Ela sem se referir a Ele.” Sim, porque Ele é infinitamente maior do que Ela. Assim, falando d’Ela, Ele está implicitamente contido. Mas, tratando a respeito d’Ele, Ela não está implicitamente contida. Por isso, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, se Nossa Senhora me ajudar, farei isto até morrer. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)

 

1) Palavra afetuosa utilizada por Dr. Plinio para designar seus jovens discípulos, surgidos aproximadamente a partir de 1970. Havia neles acentuado grau de debilidade, se comparados com aqueles que os antecederam, os da “geração nova” (cf. “Dr. Plinio” número 81, p. 17).

 

Paraíso do “Novo Adão”

O Paraíso Terrestre era um lugar de maravilhas, de esplendores e de imensa felicidade, no qual Deus introduziu nosso primeiro pai, Adão, para que este desfrutasse de todas as delícias que o Criador ali havia depositado. Porém, Adão e Eva prevaricaram, e foram expulsos daquele mirífico Éden.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo é considerado, a justo título, o segundo Adão, isto é, Aquele que veio resgatar a humanidade das sombras da morte e restabelecê-la no estado de graça, através da imolação que Ele fez de Si mesmo no alto da Cruz.

E assim como o primeiro Adão, também o segundo teve seu jardim de delícias. Esse Paraíso do novo Adão era Nossa Senhora. Tudo aquilo que o Paraíso Terrestre tinha de belo e de esplêndido na sua realidade material, Nossa Senhora o tinha, ainda mais belo e mais esplêndido, na sua realidade espiritual.

E Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo nas castíssimas entranhas de Maria Virgem, teve aí incomparavelmente mais felicidade e contentamento, do que Adão no Éden.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/6/1972)