Os Impropérios cântico de dor e esperança

Na liturgia da Sexta-feira Santa, enquanto os fiéis se aproximam para adorar a Cruz do Salvador, ecoa pelo recinto sagrado o cântico dos Impropérios: dolorosas e compassivas admoestações postas nos lábios de Nosso Senhor em relação aos homens que Lhe retribuem com ofensas e pecados, o benefício infinito da Redenção.
Como assevera Dr. Plinio, essas estrofes nos devem incitar ao arrependimento e à conversão, bem como alimentar em nossa alma uma firme esperança na misericórdia divina.

 

Um dos mais belos modos de se fazer a meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo consiste em analisar os Impropérios, texto inspirado nos profetas do Antigo Testamento e cantado na liturgia da Sexta-feira Santa.

Em certo sentido, exprime o que há de mais dilacerante na Paixão do Redentor, tornando patente aos nossos olhos a suprema injustiça perpetrada contra o Filho de Deus. Por outro lado, como Nosso Senhor sofreu devido aos pecados dos homens de todos os tempos, os Impropérios se aplicam a cada um de nós.

Colher sentimentos de contrição

Assim, num ato de piedade, devemos imaginar Jesus — e também Nossa Senhora, presente espiritual ou corporalmente nos vários passos da Paixão — na agonia do Horto e, mais tarde, sendo flagelado, oprimido com a cruz às costas, crucificado e morto por nosso amor. Ao rezarmos a Via Sacra, convém considerarmos que Nosso Senhor nos dirige perguntas semelhantes às dos Impropérios, e cada estação nos reserva graças especiais de compunção e arrependimento.

Desse modo, podemos tomar as diversas estrofes desse texto e aplicá-las à nossa alma, colhendo ditos sentimentos de contrição. Aos pés do Bom Jesus, nosso remorso deve ser repleto de confiança, tranqüilo, suave, e ao mesmo tempo amargo como o de São Pedro. Não agitado, perturbado e horrendo como o de Judas. Será útil um exame de consciência para nos lembrarmos de nossos pecados da vida passada, das graças recebidas e o uso que delas fizemos, pois esses dons celestiais custaram pedaços da carne e gotas do sangue de Nosso Senhor, bem como lágrimas da Santíssima Virgem.

Cabe a nós, no momento em que recebemos tantas dádivas do alto, nos perguntarmos: “Ó Deus, não haverá um recanto de minha alma que eu poderia entregar e não o fiz? Não devo pedir a Nosso Senhor que me o faça conhecer? Se conheço, preciso rogar-Lhe — pelas suas chagas, pelo seu pranto dulcíssimo, pelos seus gemidos amargos, pelo “consummatum est” da última agonia — que tenha pena de mim e me conceda coragem para entregar tudo a Ele”.

Portanto, ao meditarmos na Paixão do Salvador, supliquemos graças superabundantes, pois essa é a hora da misericórdia, na qual até o bom ladrão foi perdoado, e de malfeitor que era tornou-se santo. Peçamos e confiemos: em toda Sexta-feira Santa, Nosso Senhor nos reserva dons semelhantes e até maiores aos por Ele concedidos no dia de sua morte.

Interpelação sem resposta

Analisemos, agora, os Impropérios 1.
Povo meu, que te fiz Eu, ou em que te contristei? Responde-me!

Nosso Senhor é perfeito, não contristou nem fez mal algum a ninguém. Conhecendo o silêncio da pessoa a quem se dirige, Ele diz: “responde-me”. Ou seja, “pelo mutismo de teus lábios, note até que ponto deves te arrepender de teu pecado”.

Porque Eu te tirei da terra do Egito, preparaste uma cruz para o teu Salvador?

A migração do povo judaico — que vivia como escravo no Egito — para a Terra Prometida é um símbolo da libertação do estado de pecado original, no qual nascemos, para a ordem da graça obtida pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Simboliza, também, nossas conversões ao longo da vida.

Quando alguém comete pecado mortal, perde a vida da graça, sua alma fica como que morta. Se ele falecesse neste estado, seria condenado ao inferno. Entretanto, pelo Sacramento da Penitência, Deus se compadece dele e o tira da “terra do Egito”. Ou seja, da “sepultura” do pecado, onde sua alma como que “jazia” morta, restitui-lhe a vida da graça. Porém, se o mesmo indivíduo recai no pecado, caberia a ele a pergunta feita por Nosso Senhor aos hebreus: “Eu tirei tua alma da lepra do pecado mortal, livremente contraído por ti; por causa disto tu agora me odeias?”

É uma indagação pungente, cujo significado mais profundo é este: “Meu filho, veja o estado de tua alma, converte-te!”

A única solução: mudar de vida

Porque Eu te conduzi quarenta anos pelo deserto, te alimentei com o maná e te introduzi na terra esplêndida: preparaste uma cruz para o teu Salvador?

O maná é um símbolo da Eucaristia, O Redentor pergunta a cada um de nós: “Eu me fiz hóstia no Santíssimo Sacramento para habitar no meio dos homens e ser alimento de suas almas, e tu me persegues? Eu te introduzi numa terra esplêndida (isto é, na Santa Igreja Católica Apostólica e Romana, a instituição perfeita, a pátria de nossas almas), te concedi a maior honra e felicidade que o homem possa ter no mundo, a de ser filho da Igreja: por causa disso tu me persegues?”

Nota-se que, ponto por ponto, ao mesmo tempo a recriminação é doce e repassada de uma lógica irretorquível. A possibilidade de uma justificação de nossa parte desaparece completamente.

A única solução para cada um de nós é mudar de vida, ajoelhar-se diante de Nosso Senhor e dizer: “Pequei, tende piedade de mim! Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, lavai minha alma, extirpai minhas faltas.”

Que mais devia ter feito por ti, e não fiz?

Tudo que é para nosso bem, Jesus realizou. Entre outras coisas inapreciáveis, deu-nos como Mãe a própria Mãe d’Ele. Que mais Ele deveria ter feito? Não há resposta…

Insisto, a única atitude conveniente de nossa parte é o pranto ou a batida do nosso punho no peito. O som dessa batida é o cântico no qual o Redentor pede nossa contrição, num misto de força e doçura que exprime bem a infinita santidade de Jesus.

Não ser como uvas amargas

Eu te plantei como vinha escolhida e preciosa: e tu te tornaste excessivamente amarga para Mim; vinagre me deste a beber na minha sede, e com uma lança atravessaste o lado do teu Salvador.

Quer dizer, o povo eleito foi colocado na Terra Prometida como uma vinha de grande qualidade a qual, ao invés de produzir uvas doces, deu frutos de excessivo amargor. Quando Jesus teve sede, deram-Lhe vinagre no lugar de água e, pela lança do centurião, transpassaram o flanco de Nosso Senhor. Fato pungente: foi ferido o coração, símbolo do amor, e dele jorraram as últimas gotas de sangue. A crueldade não poderia ter ido além.

Como nas estrofes anteriores, essas palavras são figurativas e se aplicam às nossas almas. Cada um de nós é uma vinha plantada pelo Divino Salvador no solo precioso da Igreja Católica, mais valioso que dez mil terras prometidas. A Igreja é a habitação de nossa alma, e cada um de nós poderia dizer a si mesmo: “Eu deveria produzir frutos de doçura para Nosso Senhor, amá-Lo, cumprir os Mandamentos, obedecê-Lo em tudo e não praticar ato algum que me afastasse d’Ele. Porém, não foi essa minha vida; cometi ações contrárias a meu Salvador, pequei e me transformei na uva amarga que depõe contra o agricultor cuidadoso. Pior. Quando Nosso Senhor, no auge de seus tormentos, tinha sede e me pedia Lhe desse ao menos água para beber, ou seja, reparação límpida, eu pequei…”

Ou seja, em todos os momentos, devo procurar consolar Nosso Senhor pregado na cruz. Do contrário, sou tíbio, imperfeito… E se cometi algum pecado mortal, fiz como o centurião romano, ferindo o Coração de Jesus. Preciso, então, bater no peito, pedir perdão. Não é apenas a ofensa grave, mas também o ensabugamento”2″, o ficar estacionado e não progredir na vida espiritual.

Não haverá aqui um impropério de Nosso Senhor para mim, em razão dos sofrimentos que Lhe causei? É-me necessário, pois, suplicar a Ele tenha pena de mim. E, repleto de esperança, lembrar-me do que nos diz a tradição a respeito de Longinos, o soldado de César cujo golpe de lança perfurou o coração do Redentor. Segundo escreveu alguém, parece que Longinos era catacego e foi milagrosamente curado das vistas quando o precioso Sangue de Cristo jorrou da ferida e respingou sobre a sua face. Converteu-se e tornou-se um santo. Quem sabe se, durante as cerimônias da Sexta-feira Santa, ao serem entoados os Impropérios, sou eu também curado de minha cegueira espiritual? Eis uma inestimável graça que devo pedir.

Como correspondemos aos favores divinos?

Por tua causa flagelei o Egito e os seus primogênitos; e tu aos açoites me entregastes.

Para que o povo hebreu finalmente pudesse sair do Egito, Deus feriu com uma praga todos os primogênitos da maior nação do mundo de então. E, durante sua Paixão, Nosso Senhor foi açoitado… Ora, quando cometo algum pecado, eu flagelo Nosso Senhor. Trata-se, aqui, de uma censura pungente, continuando sempre numa lógica inflexível.

Eu abri o mar à tua passagem; tu me abriste o lado com uma lança.

Há benefício mais esplêndido do que abrir o mar para um povo fugitivo passar? Existe forma mais ingrata de retribuir o autor de uma dádiva, que perfurar o seu coração com uma lança?

Caminhei diante de ti em uma coluna luminosa e tu me levaste ao pretório de Pilatos.

Deus, através de uma coluna luzente, orientou o povo de Israel pelo deserto. E Nosso Senhor foi conduzido ao pretório para ser julgado por Pôncio Pilatos…

Esta lamentação de Jesus também se aplica à minha vida. Deus iluminou meus caminhos à maneira de uma coluna de luz, constituindo a alegria de minha existência. E tive a desfaçatez de pecar contra Ele!

Alimentei-te com maná no deserto: e tu me feriste com bofetadas e açoites.

O maná era um alimento delicadíssimo, possuía toda espécie de gostos e caía do céu com abundância, para todos se fartarem. Ora, como acima mencionamos, a Sagrada Eucaristia é como um maná: abundante, contém para as almas todos os sabores, a fim de saciá-las. Quando pecamos, retribuímos esse dom divino com bofetadas! Note-se, mais uma vez, a contradição flagrante. Fiz brotar da pedra a água de salvação para te saciar; e tu me deste a beber fel e vinagre.

Em determinado momento de sua peregrinação pelo deserto, os judeus desfaleciam de sede. Então Moisés bateu com seu cajado numa pedra e desta começou a jorrar água suficiente para dessedentar todo o povo. Quando ofendo Nosso Senhor, pago-Lhe com vinagre e fel os refrigérios que Ele misericordiosamente me concede…

Por tua causa feri os reis de Canaã; e tu com uma cana feriste a minha cabeça.

Antes de tudo, vale observar que essa estrofe contém um interessante jogo de palavras: cana e Canaã. Pois bem, Deus feriu de morte os reis de Canaã — ou seja, da Terra Prometida — para esvaziá-la de povos impuros e entregá-la aos hebreus. Jesus, por sua vez, foi coroado de espinhos e golpeado na cabeça pelos esbirros com a vara da ignomínia, aumentando suas dores.

Da Cruz de Cristo nasce a verdadeira alegria

Senhor, nós adoramos a vossa Cruz, celebramos e glorificamos a vossa santa Ressurreição porque foi pelo madeiro da cruz que veio a alegria para todo o mundo.

Percebe-se aqui o belo contraste apontado na liturgia. Esta fala da tristeza, do sofrimento representados pela cruz, e também da esperança, da alegria que ela trouxe para o mundo. E quão autêntica é a alegria católica! Pensemos no júbilo do verdadeiro Natal, não o do comercializado de hoje, e compreenderemos a felicidade que a fé católica nos proporciona. Ora, foi do sofrimento de Nosso Senhor, das lágrimas de Nossa Senhora, que nasceu a alegria genuína, fruto da virtude e não do vício.

A esse propósito, lembro-me das alegrias da Páscoa no meu tempo de moço. As cidades ainda pouco ruidosas nos permitiam ouvir, próximo ao meio-dia de sábado, o bimbalhar dos sinos anunciando a Ressurreição de Cristo. Alguns meninos saíam pelas ruas espancando bonecos que representavam Judas, e por toda a parte se cantava o Aleluia.

Iniciavam-se, então, as festas: parentes e amigos se cumprimentavam, trocavam ovos de chocolate; algumas famílias faziam piquenique nos parques, para exprimir seu contentamento. As igrejas ficavam repletas, a liturgia se revestia de imensa pompa. Essa alegria, no fundo, originou-se no episódio mais trágico da Paixão, quando Nosso Senhor, ao morrer, disse aquelas palavras lancinantes, as quais podem até parecer de desespero: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Entretanto, são essas as primeiras palavras de um salmo que, ao final, contém manifestações de alegria (cf. Sl 21), porque de fato o abandono não foi real, e de toda aquela tristeza e dor nasceu o grande júbilo da Páscoa.

Uma vez mais, é a afirmação da alegria da cruz.

Manifestação da infinita misericórdia divina

Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça resplandecer sobre nós a luz de sua face e tenha piedade de nós. Senhor, nós adoramos a vossa cruz.

A beleza dessas frases está em que os Impropérios poderiam nos causar atitude de alma quase de liquidação, de prostração, porém a liturgia nos lembra o contrário. Deus é a fonte de todas as misericórdias. Daí o reiterado pedido: Tenha piedade de nós!

Nosso Senhor se compadece de nós, mas deseja receber a nossa súplica nesse sentido. O Redentor nos salvará se soubermos recorrer a Ele por meio das lágrimas e preces de Nossa Senhora, Medianeira Universal. Portanto, tenhamos coragem, confiança e ânimo.

Termina-se essa meditação compungido, mas repleto de esperança e com alegria de alma. Em determinado momento, receberei uma graça tão insigne que serei limpo de meus pecados e defeitos espirituais. Donde a beleza do pedido: “Deus faça resplandecer sobre nós a sua face”, exprimindo o fato de que Deus, ao se alegrar com os homens, volta sua face para eles e tudo se torna fácil, suave, brilhante. Pelo contrário, nas épocas de castigo, o Altíssimo desvia seu rosto e não olha para os homens, como se o sol desaparecesse…

Nosso Senhor Jesus Cristo volta para nós sua face divina — não mais com aquele aspecto sublime e sob certo ângulo um tanto terrificante do Santo Sudário — com semblante de misericórdia, com bondade e perdão, como fitou São Pedro. E neste momento, em que também o rosto de Nossa Senhora se dirige para nós, a graça nos ilumina, sentimos piedade, devoção, como que ressurgimos e nossa vida espiritual ganha novo impulso.

Com o auxílio da Virgem, abracemos nossa própria cruz

Quando dizemos a Deus que adoramos sua cruz, podemos acrescentar uma súplica.

Peçamos-Lhe amor à nossa própria cruz. Cada um de nós gostaria de ser algo que não é, ter algo que não tem, poder algo que não pode, realizar algo que não realiza. Precisamos, então, fazer uma renúncia e aceitar a realidade concreta. É a cruz que devemos carregar.

Se possuíssemos uma relíquia do Santo Lenho, a adoraríamos, como nos ensina a liturgia. Imaginemos que alguém nos desse um pedaço de madeira o qual simbolizasse aos olhos de Deus nosso próprio sofrimento. Deveríamos amá-lo, depositá-lo sobre nosso leito, portá-lo à maneira de relíquia, rogando a Nosso Senhor que abençoasse nossos dias e nossas noites.

Aquilo que Deus pede de nós, evidentemente nos dói mais, exige maior renúncia. Importa querermos fazê-la, pois Ele merece toda nossa dedicação. Contudo, essa atitude de espírito só se alcança por meio da graça. Assim, peçamos a Nosso Senhor que pela santidade da sua Cruz, O imitemos e abracemos a nossa: com lágrimas, com carinho, embora nos custe. E, à força de rezar, cada um poderá dizer: “É isto que eu quero; tomarei esta cruz e a levarei até o alto do meu calvário!”

Estejamos certos de que Nossa Senhora nos acompanhará, como seguiu Jesus pela Via Crucis, bendizendo nosso holocausto e martírio interior, porque Ela deseja que todos carreguem a própria cruz, a exemplo de seu adorável Filho.

1) Tradução do Missal Romano de 1967.
2) Processo pelo qual o indivíduo se torna “sabugo”, ou seja, estagnado na vida interior (cf. “Dr. Plinio” número 79).

As três quedas de Nosso Senhor

Ao discorrer sobre o profundo significado das três quedas de Nosso Senhor na Via Dolorosa, Dr. Plinio estabelece tocante paralelo entre elas e os graus de cansaço do homem na sua vida espiritual e em seu esforço para alcançar o reino dos Céus. A exemplo do Divino Salvador, com o auxílio da graça, devemos sempre recobrar alento, reerguermo-nos e seguir adiante, até atingirmos o almejado objetivo.

Conforme secular tradição da igreja, a piedosa prática da Via Sacra nos recorda os últimos momentos de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua dolorosíssima Paixão. Entre as meditações, contemplamos suas três quedas no caminho do Calvário, as quais nos fazem refletir acerca do cansaço do Homem-Deus naqueles angustiantes momentos.

Nós, que sofremos o peso do cansaço quotidiano, que proveito podemos obter ao considerarmos as três quedas de Nosso Senhor Jesus Cristo? E por que foram três? Esse número não é aleatório, fortuito, mas corresponde a altas cogitações a respeito da fadiga, do sofrimento, do simbolismo envolto nesses passos da Paixão, etc., aspectos estes que não se deve ignorar.

Procurarei tecer alguma resposta, não como a daria um exegeta, mas baseado nas observações da vida feita por um homem de bom senso.

Duas formas de cansaço

Podemos distinguir duas formas de cansaço. Um, ilegítimo, procede da falta de amor a Deus e de generosidade. Alguém, desfrutando de perfeita saúde mental e física, viciou-se por exemplo em dormir nove horas durante todas as noites, e acorda pela manhã cansado, sonolento, e assim passa o resto do seu dia: é o cansaço do preguiçoso. Em Nosso Senhor, pela razão óbvia de que é Ele a própria perfeição, tal forma de exaustão não poderia caber.

Mas, existe também o cansaço do homem ativo e dedicado. Demonstra-nos a experiência que há três graus de resistência humana para se fazer o esforço necessário e, provavelmente, têm eles relação com as três quedas do Divino Redentor.

Mobilização de energias latentes

O primeiro grau de cansaço se verifica quando a pessoa, carregando um fardo, sente seu vigor comum exaurido e cai sob o peso que a acabrunha. Porém, ao se deter no caminho, ela não só consegue se recompor um tanto, mas, devido ao admirável império da alma sobre o corpo, opera uma mobilização de todas as energias mais profundas, latentes dentro dela, as quais não se manifestam na vida habitual. Então faz este raciocínio: “Que peso imenso! Não consigo prosseguir; entretanto, é necessário e quero absolutamente levar esse fardo, esse esforço, esse ato de dedicação até o último ponto”. E se pergunta: “Analisando bem, encontrarei razões para um novo alento, um novo impulso, arrancando de dentro de mim insuspeitadas energias, a fim de chegar onde desejo?!”

Nesse momento, ele recobra ânimo, ergue-se e retoma seus passos, até cair novamente. É o segundo grau de cansaço.

Ainda algo a imolar

Agora o homem pensa: “Fiz tudo quanto podia, e eis que me acho uma vez mais vergado sob o peso desta dor. Tirei de mim aquilo que não imaginava. Contudo, não quero parar, mas continuar para frente. Como é santo e nobre o que desejo! Como é digno de ser atingido o objetivo que tenho em vista! Mas, sinto um peso maior que o anterior me esmagando. É o fardo do desalento, da perplexidade. Não tenho mais energias e, por isso, rezo mais do que o fiz nas outras vezes e digo a Nossa Senhora: Minha Mãe, vedes que dei tudo quanto podia. Ou Vós me ajudais nesse instante, mais do que nas etapas anteriores, ou não serei capaz de fazer o que esperais de mim.

“Entretanto, observando-me melhor, e, por assim dizer, correndo honestamente a mão na sacola onde estão as reservas de minhas forças, encontro ainda algo a imolar.

Tenho energias por mim mesmo desconhecidas, que constituem uma suprema reserva para eu lutar. Tendo sido atendida minha oração, vejo-me também assistido por forças sobrenaturais capazes de me levar até onde desejo. Assim, levanto-me uma segunda vez e continuo, mais sustentado pelos anjos do que por meus próprios pés.

Arrasto-me mais do que ando; porém, resolvi prosseguir. Chegarei até o fim, realizarei meus anelos, mesmo que para tal seja preciso pedir a Deus um milagre completo.”

Confiança contra toda esperança

Quando o homem cai pela terceira vez, torna-se um molambo. Percebe que no farnel de energias disponíveis nada mais existe. Então ele espera contra toda esperança. Põe-se de pé e dá um passo. O resto é confiança cega, a noite escura, o despojamento total. Nesse momento, brota do seu interior algo que é realmente o último fôlego de sua alma, a mais lúcida visão de seu ideal, o ato mais completo de seu amor, sua entrega inteira. Dá mais alguns passos cambaleantes, é pregado na cruz e se deixa sacrificar.

Estes são os três graus de cansaço, correspondentes às etapas da dedicação humana. Na primeira, o homem despende as energias que sabe possuir e suplica o auxílio de Nossa Senhora dentro da assistência comum da graça.

Na segunda, emprega as forças que entrevia, mas não conhecia exatamente. Roga à Santíssima Virgem com maior instância que lhe conceda socorros especiais, pois pela economia normal da graça não conseguirá.

Na última, entrega uma capacidade de dedicação e de esforço que lhe era inteiramente ignorada. Caminha mais por milagre, pela fé absoluta em meio à escuridão, do que por qualquer outro motivo. E chega até o fim por um extraordinário socorro do Céu. Ou seja, ele está completamente unido ao sobrenatural.

Abnegação que atrai os outros para o bem

A alma humana, à medida que se levanta de cada prostração — não de uma queda moral — vai espargindo de si a incomparável beleza da abnegação. Para atrair os outros ao bem, cumpre que o homem seja desprendido, desapegado. Somente assim as pessoas o seguirão. Ele conquistará as almas para Deus, quando chegar no último ponto de seu desprendimento, quando tiver dado tudo quanto podia.

Embora, absolutamente falando, Nosso Senhor não precisasse se submeter a essa regra geral, quis entretanto nos deixar seu divino exemplo e, após as três quedas, estava pronto para ser mostrado do alto da cruz a todos os homens. O Redentor passara por essa imolação interior, em que tudo Lhe havia sido tirado. Por mais sublime que seja a crucifixão — não há palavras suficientes para exaltá-la — ela é um ato no qual o sacrifício já estava feito. Ele carregou a cruz até onde devia. E no alto do Calvário, com dores ainda maiores, se deixa crucificar. Sofre cada vez mais até o derradeiro momento do “consummatum est” (tudo está consumado), mas aquela imolação de levar sua própria cruz, cessa com a crucifixão. Jesus se deita sobre o madeiro; doravante, é a cruz que O carrega.

No último alento, a proclamação da vitória

Como frisamos, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo a própria perfeição, o Homem-Deus, n’Ele as coisas se passam de modo misterioso e não exatamente da maneira que se dá em relação a nós, meras criaturas. Contudo, em sua natureza humana, ter-se-á verificado algo de análogo. Assim, percorreu as três etapas do cansaço e os três graus de forças recobradas. Considerado na sua humanidade santíssima, teve Ele de desenvolver cada vez mais esforço à medida em que maior era o peso da cruz, devido ao depauperamento de seu organismo extenuado pela Paixão.

E no alto do Calvário, já pregado na cruz, o Salvador deixou registrado para todos os homens, até o fim dos tempos, que Ele sofrera tormentos inimagináveis, insondáveis até para Si próprio, ao bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. À primeira vista, tem-se a impressão de que tais palavras exprimem uma ideia de derrota.

Porém, logo depois, como verdadeiro Herói no seu último alento, Jesus acrescentou: “Tudo está consumado!”, como se dissesse: “Sofri quanto Eu devia sofrer; minha vontade não se alquebrou porque meu Pai Eterno me ajudou. Venci. A morte está aniquilada: para o homem, redimido do pecado original, abriram-se as portas do Céu. Sou o Rei da glória por todos os séculos!”

Noutros termos, quando tudo parecia perdido, Jesus proclamou sua vitória.

Aplicação à nossa vida espiritual

Ao concluirmos essas reflexões, importa considerarmos que, também nós, em nossa vida espiritual, temos de carregar a cruz, devemos passar por etapas de cansaço e de energias reavivadas. Nosso Senhor deseja que, por amor a Ele, ponhamos os sofrimentos sobre os ombros e tomemos a iniciativa de caminhar de encontro à dor, à renúncia, ao desagradável. Depois de caminharmos por nossas próprias forças, o Redentor nos socorre com o auxílio do alto, nos toma e nos crava na cruz, unindo-nos a Ele estreitamente.

Que essas considerações nos ajudem a nos dedicarmos cada vez mais ao nosso apostolado. E ao sentirmos o peso da fadiga nos vergar, lembremo-nos das três quedas de Nosso Senhor: supliquemos o amparo de Maria Santíssima e recobremos ânimo. Não há dúvida de que sairemos vitoriosos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/9/1970)

A hora do beijo

Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a semana em que se comemoram os 500 anos do descobrimento da Terra de Santa Cruz é também a semana da Cruz por excelência, a de nosso Divino Salvador. Que ela seja a luz a indicar os rumos da nação brasileira, são os nossos mais ardentes votos, ao transcrevermos alguns  comentários de Dr. Plinio sobre a Paixão e Morte de Jesus, redigidos há mais de meio século.

 

O Domingo de Ramos é o pórtico jubiloso que transpomos hoje, para entrar nas tristezas da Semana Santa. E, sempre que em terras cristãs se celebra a Paixão e Morte do Senhor, vem à lembrança dos fiéis a cena empolgante e ignominiosa, em que o filho da perdição mostra aos esbirros, com um beijo, Aquele a quem tinha vendido.

Nesta hora em que a malícia humana parecia ter atingido extremos incríveis, a misericórdia de Deus superabundava. Dizem os autores espirituais que ninguém pode calcular a intensidade da graça que Judas recebeu e rejeitou, quando ouviu da Vítima Divina o último apelo: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”? Hora de imensa  misericórdia para com o miserável vendilhão, sem dúvida. Mas hora, também, de imensa misericórdia para conosco. Os atos que o Divino Mestre praticou, nessa ocasião, são para nós ensinamentos de um valor sem limites. Paremos, para pensar neles um pouco.

Muito se tem falado sobre os trinta dinheiros, e sobre o beijo… Hoje em dia, a lembrança de tudo isto ainda é mais insistentemente aguçada porque vivemos na época da “quinta-coluna”, época em que todos os ideais espirituais e temporais têm seus “quintacolunistas”, seus “Papen” ou seus “Quislings”(1), e em que, portanto, não é possível não  lembrar o “Quinta-Colunista ” por excelência, aquele que por preço mais barato fez o serviço maior, com “êxito” mais completo. Mas, precisamente porque o tema já tem sido muito tratado, meditando a “hora do beijo” não é do beijo que vamos falar.

Quando foi preso, Nosso Senhor praticou duas ações aparentemente contraditórias, e é sobre esta contradição que queremos meditar.

Lição para nós: o Mesmo que aterroriza, consola

A contradição se resume em poucas palavras. De um lado, falou tão alto, atroou tanto os ouvidos, que os esbirros caíram por terra. De outro lado, abaixou-Se Ele mesmo até  o chão, para tomar uma orelha e a recolocar no lugar. O Mesmo que aterroriza, consola. O Mesmo que fala com voz insuportável para os tímpanos, reintegra uma orelha  cortada.

Não há nisto, para nós, algum ensinamento? Nosso Senhor é sempre infinitamente bom, e foi bom quando disse aos que O procuravam, que era Ele Jesus de Nazaré, a quem  queriam, como foi bom quando consertou a orelha de Malco. Se queremos ser bons, devemos imitar a bondade de Nosso Senhor, e aprender com Ele, que há momentos em que é preciso saber prostrar por terra com santa energia os inimigos da Fé, como há ocasiões em que é preciso saber curar os próprios males daqueles que nos fazem mal.

Por vezes, para curar é preciso gritar…

Por que falou Nosso Senhor tão alto, quando respondeu “Ego Sum”? Só para atordoar fisicamente os que O prendiam? Mas para quê, se Ele Se entregava voluntariamente à  prisão? É que Ele falou ainda mais alto a seus corações, do que a seus ouvidos, e se lhes falou alto aos ouvidos, não foi senão para lhes falar ainda mais alto aos corações. Não sabemos qual foi o proveito que aqueles homens fizeram da graça que receberam. Mas certamente o temor que tiveram, quando tombaram à voz do Mestre, lhes foi salutar como foi salutar a Saulo, quando a mesma Voz lhe gritou “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

Nosso Senhor lhes falou alto aos ouvidos. Prostrou-os por terra. Mas sua voz que abatia corpos e ensurdecia ouvidos, erguia almas que estavam prostradas, e lhes abria os  ouvidos dos espíritos, que estavam surdos. Às vezes, pois, para curar é preciso gritar.

“Senhor, que ouçamos!”

Com Malco, Nosso Senhor procedeu de outra maneira. Quando lhe restituiu a orelha cortada pela fogosidade de Pedro, Nosso Senhor certamente lhe queria fazer um bem  temporal. Mas curando-lhe o ouvido, Nosso Senhor lhe quis sobretudo abrir o ouvido da alma. E Ele que a uns curara da surdez espiritual com o estrondejar divino da sua  voz, Ele mesmo curou da mesma surdez espiritual a Malco, dizendo-lhe palavras de bondade, e restituindo-lhe a orelha que perdera.

Vivemos em um século afetado, por certo, pela mais terrível surdez espiritual. Se há época em que os homens ouvem a voz de Deus, é a nossa. Se há época em que contra ela  endurecem os corações, é por certo a nossa.

O Divino Mestre nos mostra que se queremos dissolver em nós e no próximo esta terrível surdez, é Ele só que o pode fazer, e os meios humanos em si mesmos de nada  valem.

Nesta ocasião, façamos nosso um pedido que se encontra nos Santos Evangelhos. Quando um cego viu certa vez a Nosso Senhor, lhe bradou: “Domine, ut videam” — Senhor, que eu veja! Hoje, aproveitemos as comemorações da Semana Santa para Lhe pedir que ouçamos: “Domine, ut audiam”. Não sabemos, na sabedoria de sua misericórdia, de que maneira Nosso Senhor curará nossa surdez espiritual.

Sangramos como Malco, e estamos surdos como os esbirros. Pouco nos importa que Ele queira curar-nos por este ou aquele meio: cumpra-se sua vontade divina. Fale-nos  Ele pela voz terrível das provações e dos castigos, fale-nos Ele pela voz branda das consolações, uma coisa sobretudo Lhe pedimos: Senhor, que ouçamos!

Nosso Senhor vencerá, e com Ele, a Igreja

Que pelo menos nós, católicos, ouçamos plenamente a voz de Nosso Senhor, e que, correspondendo em nossa santificação interior, de modo completo e irrestrito, às graças  que Ele nos dá, realizemos dentro de nós aquele pleno reinado de Nosso Senhor, de que os inimigos da Igreja parecem esperançados de arrancar os últimos vestígios sobre a face da terra.

Nosso Senhor prometeu indestrutibilidade à sua Igreja, e prometeu que se salvaria toda alma verdadeiramente fiel. Confortados nessa esperança, meditemos com serenidade  s tristezas destes dias de universal conturbação, como as agonias desta Semana da Paixão. Nosso Senhor é o grande Vencedor. Ele vencerá, e com Ele vencerá a  Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 659, 25/3/1945. A nota e os subtítulos são nossos.)

1) Von Papen, embaixador alemão, e Quisling, dirigente norueguês: personagens da II Guerra Mundial, cujos nomes se transformaram em sinônimo de “traidor”, por terem  favorecido, nos seus respectivos cargos, as ações criminosas do nazismo.

PASSIO CHRISTI, CONFORTA ME

Em outubro de 1944, Dr. Plinio começou a comentar, em sua coluna do “Legionário”, o plano pastoral do novo Arcebispo de São Paulo, destacando como dos mais  importantes o tópico sobre a caridade.

“Atrair todos os elementos supracitados do Clero e da Ação Católica para a obra social e multifária da caridade cristã, em socorro de todas as necessidades físicas ou morais do nosso próximo, sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade ou de classes”. É este um dos itens mais importantes do plano de ação do novo Arcebispo de São Paulo.

Humildade e altivez cristãs

“Socorro das necessidades físicas ou espirituais”: é bem este o conceito das obras de misericórdia que Nosso Senhor ensinou ao mundo, e que a Santa Igreja vem realizando  ininterruptamente através dos séculos. Todo o espírito da Igreja é feito de contrastes fecundos que se resolvem em uma divina harmonia. Durante a Idade Média, viajava  pela Europa um potentado muçulmano, feito prisioneiro pelos guerreiros feudais, defensores da Fé. Encontraram-no um dia muito pensativo, e aos que lhe indagaram o  motivo, respondeu: “Não posso  compreender como constroem monumentos tão altivos, esses homens tão humildes”.

Almas humildes, construtoras de obras divinamente altivas, eis bem genuinamente representadas nesse traço as almas resgatadas pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor  Jesus Cristo. Aparentemente, entre a humildade e a altivez, há uma contradição. O mundo pagão não compreendia essa contradição, e uma das acusações que os romanos  faziam aos mártires era precisamente que sua Religião glorificava a baixeza. Eles não sabiam que admirável sementeira de almas altivas eram aquelas escuras e misteriosas  catacumbas, em que patrícios e escravos, grandes e pequenos, se confundiam em torno dos altares, aprendendo de Jesus Cristo o segredo da humildade e da altivez de que Ele nos deu em sua vida terrena tão adoráveis exemplos.

“Christianus alter Christus” (o cristão é um outro Cristo), e a humildade do cristão, ou a altivez do cristão, não é senão um reflexo da altivez e da humildade de Nosso Senhor  Jesus Cristo.

Doçura e combatividade

Outro contraste que o mundo não compreende, e que entretanto é tão harmônico e fecundo quanto o da altivez e da humildade do verdadeiro cristão, é o da doçura e da combatividade. Se o árabe de que falamos  observasse a vida dos Santos, esbarraria por certo neste mistério, e diria deles: “Não posso     compreender como almas tão pacíficas são tão belicosas, como almas tão belicosas podem ser tão pacíficas”. É que no catolicismo tudo é amor, e mesmo quando, por  necessidade, e imitando a Nosso Senhor, alguém empunha o látego que há de fustigar os erros do século, fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fá-lo com amor.

A combatividade  cristã tem o sentido exclusivo de legítima defesa. Não há para ela outra possibilidade de ser legítima. É sempre o   amor de alguma coisa ofendida que move o cristão ao  combate. Todo combate é tanto mais vigoroso quanto mais alto for o amor com que se combate.

E, por isso mesmo, não há, no católico, combatividade maior do que aquela com que ele luta pela defesa da Igreja ultrajada, negada, calcada aos pés. Por que combate ele?  Para defender os direitos das almas que se quer arrancar à Igreja. Para manter livres e desobstruídas as portas de acesso que devem permitir aos eleitos de Deus a    aproximação de sua Igreja. Para abater a insolência da impiedade, e para exaltar a Santa Madre Igreja.

Para essas coisas é que se deve bater o católico. E, quando esgotados um a um, pacientemente, irremediavelmente, todos os meios pacíficos, o católico se ergue com o valor de um novo Macabeu, incendido em zelo pela Esposa de Cristo, ele bem pode dizer que em toda a sua combatividade só há uma coisa: amor.

Abandonemos esse quadro e, em vez de olharmos para o guerreiro cristão, olhemos para a irmã de caridade. Ela que docemente se aproxima do leito em que agoniza um doente repugnante. É para ela um desconhecido, em que ela vê, entretanto, um membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica.

E, por isso, aproxima-se dele cheia de sobrenatural ternura, desata os panos que ocultam a hediondez de suas chagas e recebe em pleno rosto, mais forte do que nunca, o  odor terrível das carnes em putrefação. No rosto da irmã de caridade a impassibilidade é completa. Ela olha para as chagas como se fossem pérolas, respira o odor da  podridão como se fosse um perfume.

Sabe Deus que terríveis repugnâncias ela está esmagando em seu interior, e que luta tenaz, violenta, titânica ela tem de desenvolver para não abandonar o lugar de sacrifício em que Nosso Senhor Jesus Cristo a quer! Quanto amor! dirão os que atentarem apenas para a placidez de seu semblante e de seus gestos. Quanta combatividade! dirão os que forem mais penetrantes e desvendarem o tumulto da luta interior diante da qual a Religião não cede. Quanto amor nessa combatividade! Quanta combatividade nesse amor!

Combatividade e amor, se o mundo contemporâneo pudesse compreender como se harmonizam essas virtudes, como é preciso amar até o que se combate… e combater com as duas mãos até o que, por vezes, se ama ternamente por mais de um título justo, como estaria diversa a face da terra!

É para as santas pugnas da caridade cristã, pugnas interiores que aumentem em nós os mananciais de amor, pugnas exteriores, vitórias tanto mais jubilosas quanto mais  pacíficas, porque Cristo é o Rei da Paz, mas em todo caso vitórias que não desdouram com a energia e não perdem seu lustre se a luta aberta tiver sido o único meio para as  conseguir — é para as santas pugnas da caridade cristã que nosso Arcebispo nos conclama.

Olhando de longe para seu rebanho espiritual, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota tem palavras de ternura e compaixão que são um eco da exclamação divina:  “Misereor  super turbam” — tenho pena desta multidão. E com que razão! Pio XII, na alocução magistral que recentemente publicamos, diz que é preciso ter um heroísmo   comparável ao dos mártires, para praticar com fidelidade e esmero a Religião em nossos dias. Assim, pois, as grandes cidades modernas são verdadeiros lugares de luta e  tormenta para os “christifideles” (fiéis cristãos) de nossos dias.

No luxo dos salões aristocráticos, no conforto dos ambientes burgueses, na calma das classes pequeno-burguesas, na simplicidade das camadas operárias, na crua indigência  das classes pobres, em tudo isso se ocultam hoje terríveis tentações, cuja vitória custa e custa muito, custa sofrimento espiritual que é o sangue de alma. É preciso correr,  voar em auxílio dessas almas que sofrem para se manterem fiéis a Nosso Senhor ou para se aproximarem d’Ele. Toda demora é uma derrota, nesta tarefa, e toda negligência um crime. Por isso, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota conclama uma verdadeira cruzada para a salvação de tantas almas aflitas em nossos dias.

Socorrer sobretudo os inocentes que sofrem

Mas isso não basta. Não basta fazer aceitar às almas o jugo duro e suave da moral cristã. É preciso ainda consolar os que sofrem  misérias físicas de toda a ordem.

Para que relembrar o quadro doloroso que temos sempre diante dos olhos, os hospitais repletos que rejeitam doentes por falta de espaço, as pessoas doentes que definham por falta de dinheiro para a aquisição de remédios caríssimos, as pessoas sãs que vão imergindo lentamente no estado de doença por excesso de trabalho, necessário para a manutenção da família, ou por falta de alimentação?

Por que relembrar com terror as inúmeras pessoas que, sem Fé nem horizontes  espirituais, arrastam na sombra de suas casas ou premidas nas paredes dos hospitais uma vida de desespero e de revolta? Tudo isso corta por demais o coração, e tudo isso ainda não é tudo. Existe o problema da infância, da infância inocente, da infância promissora, da infância que o ambiente deletério das grandes cidades torna tão cedo miserável e pecadora.

Como bem acentua nosso novo Arcebispo, muito já se tem feito entre nós nesse sentido. A Cidade dos Menores da Liga das Senhoras Católicas é simplesmente uma  maravilha. Mas… quanto ainda há por fazer! E se de todos temos pena, que especialíssimo lugar ocupa em nosso coração a infância, que Jesus Cristo tão entranhadamente  amou!

É necessária a caridade cristã

É preciso muita caridade. Mas as palavras de nosso Arcebispo são muito  nítidas: do que precisamos é de  caridade cristã, e não simplesmente e uma filantropia qualquer. Por quê? Simplesmente porque sem a Igreja de Jesus Cristo não há caridade verdadeira. Não negamos que possa haver almas que vivem fora da Igreja, em nossa civilização  atual, e que fazem bem ao próximo.

Elas possuíram a Fé, e essa Fé que perderam deixou nelas um vago perfume, como o que fica no vaso de que retiramos as rosas. São  essas as palavras do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade ou é cristã ou não existe. […] E, no catolicismo, qual o maior foco da caridade? A contemplação da Paixão de  Nosso Senhor Jesus Cristo.

É na meditação minuciosa do que sofreu o “Homem das Dores”, é na rememoração afetuosa e constante daquele em quem “do alto da cabeça até a planta dos pés não havia  um só lugar que fosse são”, é tendo diante dos nossos olhos dia e noite aquele que, sob a mão violenta de seus adversários, foi desfigurado a ponto de ser “um verme e não  um homem, o opróbrio dos homens e o escárnio do povo”, que nosso coração se dilata para a comiseração para com os próximos.

Revendo em todo o sofrimento um sofrimento do próprio Cristo, em toda a chaga, uma chaga de Cristo, remediando todo sofrimento, curando toda chaga como se  debruçássemos nossa alma amorosa sobre tanta dor, como se aplicássemos com nossos próprios dedos à chaga de Cristo o bálsamo confortador, é com este meio que  verdadeiramente teremos a virtude da caridade.

Narra a História que antes de Cristo não havia hospitais nem instituições de caridade. Foi uma católica, Fabíola, quem fundou o primeiro hospital. De lá para cá, quantas  obras de caridade se têm fundado! De onde nasceram? Das chagas santíssimas de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na cruz. Foi da Paixão de Cristo que nasceu o  reconforto de tantas criaturas sofredoras.

Mas não é só. O melhor bálsamo para as dores humanas não é o remédio, é a compaixão. Compaixão, “com paixão”, é o sofrimento em união com o próximo, só porque o  próximo sofre. É o reflexo dos sofrimentos alheios em nossa própria alma. Como fazer brotar do coração humano, tão frio, tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão?

Pela meditação da Paixão de Cristo. As almas saturadas dessa meditação sabem verdadeiramente condoer-se do próximo. Só elas têm em seus gestos bastante ternura, em  sua voz bastante sinceridade, em seu procedimento bastante discrição, para instilar na alma sofredora do próximo o remédio inigualável da compaixão.

Se, da Paixão de Cristo, brota a misericórdia, brotam as obras de misericórdia, brota a consolação, que jaculatória mais adequada para todos os que se aprestam a atender à grande mobilização da misericórdia cristã que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota promoverá, senão esta: “Passio Christi, conforta me” (Paixão de Cristo, confortai- me)?

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, 22/10/1944. Subtítulos nossos.)

Santa Ceia

Nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo e de gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Santa Ceia. Somente uma inteligência divina poderia excogitar a Sagrada Eucaristia, e imaginar esse Sacramento santíssimo como um meio de Jesus permanecer presente neste mundo, depois de sua gloriosa Ascensão.

Mais ainda: de estabelecer um convívio íntimo e inexcedível, todos os dias, com todos os homens que O queiram receber nos seus corações. Sim, só mesmo Deus poderia realizar esse mistério tão maravilhoso, essa obra de misericórdia prodigiosa para com suas humanas criaturas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Dar muito não basta, é preciso dar tudo!

Nosso Senhor Jesus Cristo não deu muito por nós, mas deu tudo, e de um modo inimaginável!

Depois de estendido na Cruz, Ele morreu. Dir-se-ia que estava completo o sacrifício.

Não! Ele quis que um resto de água com sangue que havia no seu Corpo ainda fosse derramado por nós.

Veio, então, o soldado Longinus com a lança e transpassou o Coração d’Ele. O Redentor quis, portanto, que o seu Coração, símbolo do amor d’Ele por nós, ainda fosse transpassado por uma lança, símbolo dos pecados dos homens.

Uma oração que eu recomendo muito a vocês rezarem é “Anima Christi”. Há nessa oração uma invocação muito bonita: “Aqua lateris Christi, lava me”. Água que jorrou do lado de Cristo, lava-me. Quer dizer, todos nós temos defeitos e pecados. Essa água que jorrou do lado sacratíssimo de Jesus, água misturada com sangue, derradeiro tributo dado por Ele para a salvação dos homens, que essa água seja capaz de vencer as nossas últimas infidelidades e nos desapegar dos últimos falsos tesouros a que nosso egoísmo se agarra.

Eu gosto muito dessa invocação: “Aqua lateris Christi, lava me”. Jesus Cristo, que com tanta propriedade é chamado o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, quando deu tudo, brotou de seu flanco sagrado uma água que limpa os homens!

Nosso Senhor Jesus Cristo deu tudo! E a Quem deu tudo por nós, ou damos tudo por Ele ou não valemos nada!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1986)

Paixão – O mais doloroso adeus

Quando Maria Santíssima levou o Menino Jesus ao Templo a fim de apresentá-lo ao Senhor, Simeão, dirigindo-se a Ela, profetizou que um gládio de dor Lhe transpassaria a alma.
Ao meditar na Paixão de Cristo, Dr. Plinio contempla o cumprimento deste prenúncio e a extrema angústia de Maria ao ver o padecimento de seu Divino Filho.

 

A Lei do Antigo Testamento estabelecia que, completados quarenta dias do nascimento de um filho primogênito, este deveria ser levado ao Templo a fim de ser resgatado; também a mãe da criança deveria ser purificada na mesma ocasião.

Apesar de ser Mãe do Homem-Deus e concebida sem o pecado original — portanto, isenta de tal obrigação —, Nossa Senhora, por respeito à Lei e à tradição, desejou apresentar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade no Templo de Jerusalém.

A apresentação do Menino Jesus no Templo

Lá se deu o episódio mais marcante da história do Templo: o próprio Deus encarnado visita aquele ambiente de oração e recolhimento. Naquele instante, os anjos, cheios de alegria, pervadiram o edifício sagrado.

Porém, Nossa Senhora ali entrou sem que ninguém notasse tão grande presença.

Simeão, o Profeta escolhido por Deus para esta ocasião, recebendo o Menino nos braços, louvou a Deus, dizendo: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos”.

Maria Santíssima ouvia as palavras daquele ancião que, profetizando o futuro do Menino, acrescentou: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”.

Também Ana, a Profetisa, cantara as glórias do Divino-Menino. Por inspiração, ambos souberam o que somente São José e a Virgem Maria sabiam: o Menino era o Filho de Deus.

Coração de Maria, transpassado por um gládio de dor!

Pois bem, passaram-se os anos e o cumprimento da profecia de Simeão se aproximava — “uma espada transpassará a tua alma”…

Chegou, enfim, o momento em que Ele — já homem maduro, aos trinta anos de idade — despediu-se de sua Mãe e partiu para pregar a bondade, maravilhar os homens, e… por eles ser crucificado! Era o doloroso adeus!

Pode-se imaginar o que foi esse adeus: Nossa Senhora, indo à porta da casa e fitando-O; com o olhar, Ela acompanha seu Filho afastar-Se pela estrada.

A partir daquele instante Ela permaneceu sozinha. Para consolá-La, os anjos cantavam. Mas, de que valiam essas canções em comparação com um olhar ou uma manifestação do carinho de Jesus por sua Mãe? Ouvir o eco de seus pés divinos sobre o pobre assoalho da casa santa enchia a alma de Maria de contentamento mais do que qualquer concerto angélico!

Quem haveria de remediar essa ausência?

A criatura zelando pelo Criador

Outro episódio doloroso ainda se daria: o encontro de Maria com Jesus no caminho do Calvário. Apesar de não ser narrado pelos Evangelistas, creio ser o mais pungente que houve na Terra! A vocação de ser a Mãe do Verbo encarnado, pedia de Nossa Senhora uma perfeita aceitação das dores e angústias como as que Ela sofreu nesse doloroso encontro.

Maria Santíssima recebeu do Padre Eterno a missão de conceber o Verbo de Deus — o que Ela realizou esplendidamente. Porém, a missão de concebê-Lo compreendia também a de gestá-Lo. E grande foi o cuidado que Ela dispensou a seu Divino Filho, para que tudo se realizasse de forma adequada, conveniente e santa.

Pode-se imaginar o gáudio de Maria Santíssima ao sentir em Si mesma o Filho de Deus que se movimentava ainda antes de nascer; a santa comunicação existente entre ambos realizava-se através das inúmeras orações e meditações feitas por Ela, incessantemente. Nosso Senhor estava no interior d’Ela assim como está em alguém que O recebe condignamente no Santíssimo Sacramento.

O período iniciado pela primeira reflexão de Nossa Senhora a respeito do Salvador, chegou a seu termo no momento em que Ele nasceu e, pela primeira vez, os olhares d’Eles se cruzaram. O rosto d’Ele era ainda pequeno, cheio de inocência, mas já com semblante de Rei e Mestre. Tal era a intensidade de sobrenatural que se irradiava ao seu redor, que à sua proximidade qualquer enfermo de corpo ou de alma poderia sanar-se imediatamente.

Quando Adão e Eva pecaram, comendo o fruto proibido, seus olhos se abriram e Deus teve de confeccionar para eles os primeiros trajes. Entretanto, quando o Menino Jesus nasceu, Maria Santíssima vestiu o Criador: agora, era a criatura humana quem vestia o próprio Deus!

Por que me abandonaste?

Após o nascimento do Menino-Deus, Nossa Senhora tinha como missão educá-Lo e formá-Lo até que Ele chegasse à maturidade. Mas isto não bastava: quando Jesus atingiu a idade perfeita, Ela teve de acompanhá-Lo ao Calvário para, aos pés da Cruz, receber o último olhar d’Ele.

Ao cabo dos trinta e três anos de maravilhamento de Maria por seu Divino Filho, e de adoração cada vez mais ardorosa e incessante, tudo desfechou na paixão e morte d’Ele.

No momento em que Nosso Senhor rendeu seu espírito ao Padre Eterno, dizendo “meus Deus, meus Deus, por que me abandonaste?”, Maria, estando presente, certamente O ouviu. Qual não terá sido a repercussão desse sofrimento no coração de uma mãe? Sobretudo, d’Aquela Mãe para com Aquele Filho. Momentos depois, Ele inclinou a cabeça e rendeu seu espírito.

Nossa Senhora viu o Corpo de seu Filho repleto de feridas, já não mais trajando aquela túnica inocentíssima — que se diria feita de raios de luz — que Ela mesma confeccionara. Imaginemos a dor da Mãe contemplando o Filho que sofria tão grande despojamento!

Enquanto José de Arimateia e Nicodemos preparavam os bálsamos para cobrir as feridas do Divino Mestre, Maria Santíssima O sustentava em seus braços virginais.

Paz em meio à amargura

Ela viu a realização do desejo de Jesus de entregar a última gota de seu Sangue pela humanidade, quando a lança de Longinos penetrou o lado do Salvador. Nossa Senhora contemplou aquele flanco ferido e, certamente, rezou: “Coração de Jesus perfurado pela lança, tende piedade e nós!”

Como era costume entre os judeus, envolveram o Corpo Sagrado de Jesus num sudário. Finda a preparação do cadáver, aquele divino Corpo foi depositado na sepultura. Rolaram a lápide que fechava a sepultura; tudo estava acabado, a morte reinava!

Após esses momentos de extrema dor, Nossa Senhora voltou para casa acompanhada por seu novo filho, o Apóstolo virgem. As santas mulheres que A seguiam não se continham em prantos, e Ela, ao invés de ser consolada, precisava consolá-las.

Imagino que, acompanhados por Nossa Senhora, os Apóstolos e discípulos dirigiram-se para o cenáculo. Lá rezavam e choravam. Maria Santíssima deve ter permanecido em silêncio, pacífica e serenamente lembrando-se dos fatos ocorridos. Assim se cumpriam as palavras proféticas do livro de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amaríssima — Eis na paz a minha amargura enormemente amarga”.

Comparados com o tamanho da amargura de Maria, os oceanos são pequenos, o suficiente para caberem na concha de uma mão!

Para que se faça a vossa Vontade

Em meio a tantas dores pelas quais Ela passava, havia uma consolação: Quem obteve a redenção para o gênero humano senão o Filho que Ela concebeu? Ele — o Redentor e fonte de toda Graça — caso não tivesse morrido na Cruz, não redimiria a pobre humanidade pecadora.

Essa torrente de Graças que jorra sobre a humanidade abriu-se para os homens a partir do momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!”; e abundou sobre o mundo quando Maria deu seu consentimento a fim de que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Revista Dr Plinio (Março de 2010)

 

O caminho da dor – I

A trajetória de um homem que ao longo de sua vida procura santificar-se é repleta de sofrimentos. Quem, à semelhança de Nosso Senhor, abraça com amor e resignação as cruzes que lhe advêm adquire têmpera moral, corrige-se de seus defeitos e chega à glória eterna.

 

Quais são as dores que uma pessoa precisa sofrer ao longo da vida?

A Providência permite que alguém, em determinado momento, sofra dores extraordinárias. Por exemplo, ser caluniado injustamente e, por causa disso, passar anos mal visto por todos aqueles a quem mais se admira.

Sacerdote caluniado por jansenistas

São Luís Grignion de Montfort, em uma de suas obras, menciona um padre, grande devoto de Nossa Senhora — para mim isso tem um luzimento parecido com o de uma canonização; ser elogiado por São Luís Grignion, enquanto grande devoto de Maria, é o auge dos auges.

Esse homem, que era muito bom padre, estava certo dia na sacristia para atender o público, quando lá entrou um dos meninos que serviam à igreja, o qual mexeu numa coisa qualquer, saiu correndo e dirigiu-se a uma rua ou praça, situada junto ao templo, gritando uma calúnia medonha, dizendo que o sacerdote tinha querido atentar contra a pureza dele.

Bastou esse menino, sem outras testemunhas, gritar na via pública tal calúnia, que se produziu na cidade uma emoção extraordinária. Embora esse padre fosse de vida muito digna, todos acreditaram na calúnia. O Bispo o privou dos cargos eclesiásticos, e o sacerdote, que possuía alguma coisinha para subsistir, durante dez anos viveu no horror e na rejeição de todo mundo. Dez anos se passaram, mas podia-se temer que isso durasse uma vida inteira…

Determinado dia, o Bispo se apresenta e lhe diz amavelmente: “Meu padre, faz favor, venha cá.” Ele se aproximou para beijar o anel do Bispo, o qual o abraçou. Vieram também outras pessoas as quais contaram que aquele menino, que se tornara moço, havia morrido. E, antes de falecer, diante de testemunhas, declarou que ele tinha feito aquela calúnia, pago por uma corrente teológica, na aparência católica, chamada jansenista, existente naquele local e que, aliás, tinha se espalhado como uma lepra por toda a Europa. Para difamar esse padre, que criticava muito aquela corrente, um dos seus chefes deu dinheiro ao menino.

Creio que a corrente interessada nisso — é opinião minha — mandou colocar gente próximo à igreja naquela hora, para acreditar imediatamente: “Oh! que horror! Mas imagine…”, e assim dar corpo à calúnia, a qual se difundiu como um mar sobre a cidade. E somente quando a Providência dispôs que esse menino, depois moço, mal à morte, dissesse a verdade — ele sabia que não podia ir para o Céu se não se retificasse, morreria em estado de pecado mortal e, com o inferno diante de si, acabou confessando —, o padre foi reabilitado. Mas foram dez anos terríveis.

Então, sobre um homem que levava sua vida normal de padre, com os sacrifícios inerentes à vida de sacerdote, de repente caiu como que um raio e estraçalhou-o durante algum tempo.

Madre Mariana de Jesus Torres padeceu tormentos do inferno

Creio que já narrei aqui a história da Madre Mariana de Jesus Torres, religiosa diante da qual se deu o milagre primeiro de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Quito, no Equador. Tendo sido eleita abadessa do seu convento, ela começou a governar com muita bondade — era uma pessoa de virtudes eminentes; espero que seja canonizada. Havia ali algumas freiras novas, que eram descendentes de índios. Como manda a Igreja, com toda a sabedoria e razão, não fazer segregação racial, essas filhas ou netas de índios foram recebidas no convento.

Entretanto, uma delas, que tinha vontade de ser abadessa, tramou a destituição de Madre Mariana de Jesus Torres e a substituição por ela mesma, criando um choque entre as freiras índias e as freiras espanholas ou descendentes de espanhóis. Houve então uma divisão entre as religiosas, e afinal de contas tornou-se abadessa essa revoltosa, ou uma freira dependente da revoltosa. E a primeira coisa que fez foi mandar prender Madre Mariana de Jesus Torres na prisão do convento, porque naquele tempo os conventos tinham cárceres. E Madre Mariana ficou muito tempo presa, injustamente.

Durante esse período, vivendo a pão e água, com toda a serenidade, ela rezava pela alma de sua perseguidora. E a Providência deu-lhe a entender que essa freira era tão ruim, estava tão comprometida que só havia um jeito de salvá-la: Madre Mariana de Jesus Torres deveria oferecer-se para, em espírito, passar cinco anos sofrendo, inclusive fisicamente, as chamas infernais. Uma coisa horrorosa!

Ela contou depois que, às vezes, durante esse tempo, pensava estar condenada de fato; mas ao mesmo tempo tinha a ideia um tanto contraditória de que ela sofria isto para salvar a alma da outra.

Ela então dizia: “Se eu estou condenada, que minha condenação sirva pelo menos para salvar minha inimiga. Considero meu sofrimento por bem empregado”. É belíssimo!

Durante esses cinco anos, Madre Mariana sofreu barbaramente. Terminado o prazo, foi libertada, saiu do inferno, voltou a paz para sua alma e ela foi reeleita abadessa.

A freira revoltosa adoeceu, e Madre Mariana tratou-a com a maior bondade possível, de maneira que aquela freira acabou reconhecendo que tinha andado mal, pediu perdão e faleceu. E Madre Mariana de Jesus Torres recebeu a revelação de que a alma dessa freira foi para o purgatório, onde deveria ficar por um prazo longuíssimo, se não me engano, até o fim do mundo. Uma coisa de assustar! Assim ela salvou essa alma.

Foi um sofrimento que a Providência pediu a Madre Mariana e ela aguentou.

Médico famoso que ficou cego repentinamente

Lembro-me de um médico de São Paulo, que era famoso e rico. Ele estava assistindo a corridas de cavalos; pôs o binóculo e começou a acompanhar o percurso dos equinos na pista. Em certo momento, não viu mais nada. Achou esquisito, tirou o binóculo e nada enxergava. Ficou cego de repente, devido a um deslocamento de retina.

Como era muito rico, ele contratou o melhor oculista de São Paulo para ir com ele à Europa — os grandes centros médicos, naquele tempo, eram exclusivamente os europeus; a América do Norte ainda tinha se destacado muito menos –, a fim de consultar os maiores oculistas. Para abreviar, não tinha mais solução; ele continuou cego e morreu vinte anos depois.

A vida de um verdadeiro católico é repleta de sofrimentos

Mas não é propriamente desses sofrimentos que vou tratar. Isso é fácil compreender; são episódios que ocorrem na vida de uma pessoa.

O problema é diferente: todo homem, mesmo que não lhe aconteçam coisas dessas, deve sofrer muito na vida. O curso comum da existência de um homem verdadeiramente católico, apostólico, romano, praticante, é cheio de sofrimento, primeiro ponto.

Segundo ponto: com esse sofrimento o homem atinge a têmpera moral que deve possuir. Terceiro: ele se corrige dos seus defeitos. Quarto: com isto pode chegar até a santidade.

De maneira que essas grandes tragédias, esses grandes sofrimentos, com frequência acontecem na vida dos santos. Um teólogo do século XIX fazia uma afirmação interessante: “Dai-me um frade que cumpre simplesmente a regra de sua Ordem e eu vos darei um santo”. Como? Sofrendo coisas extraordinárias? Não. Aguentando o duro da vida, como Deus quer.

Como é esse duro da vida? Como os presentes neste auditório estão mais próximos do começo da vida do que do fim, e as suas memórias só versam sobre esse início, falemos dele.

Uma criança desobedece a seus pais…

Desde pequena, a criança começa a ser partilhada entre dois impulsos contrários. Por um lado, ela quer muito bem a seus pais, gosta de ser acariciada por eles, etc. Mas, de outro lado, os progenitores lhe dão ordens: não faça tal coisa, faça tal outra.

No momento em que os pais lhe dão uma ordem, põe-se para ela um problema: “Se você quer realmente bem a seu pai e sua mãe, não fará o que eles estão proibindo; se fizer, vão ficar tristes. Mas ninguém proíbe uma pessoa de fazer algo que não seja gostoso. Porque, se não é gostoso, ela não faz, e se faz é porque acha gostoso. Você recebeu uma proibição… Como é isso?” É um não gostoso que se põe no caminho da criança. Então vem a questão da escolha.

Imaginemos o seguinte:
O pai ou a mãe diz à criança: “Somente suba na cadeira, para pegar o brinquedo que está em cima do armário, se houver uma pessoa mais velha para ajudá-la. Do contrário, não dou licença”. É-lhe explicada a razão evidente: se subir sozinha, terá que fazer certo esforço para alcançar o objeto, digamos um boneco, poderá cair e se machucar. A criança mais ou menos entende isso.

Seus pais saem de casa, a criança fica só e sente o desejo de apanhar o boneco para brincar com ele. Surge, então, em sua cabeça uma porção de pensamentos: “Meus pais não estão aqui; quando voltarem vão me ver brincar com o boneco… Mas eles não mais se lembrarão se o boneco estava em cima ou embaixo. Subo na cadeira, pego o boneco e depois coloco a cadeira no lugar em que estava; posso passar um bom tempo brincando com o boneco, porque eles me disseram que eu ficaria trancado neste quarto umas duas horas, até que voltassem”.

Em certo momento, a vontade de brincar com o boneco é tão grande que a criança empurra a cadeira, sobe e pega o boneco; e na hora de descer da cadeira, com o boneco nas mãos, a cadeira cambaleia, a criança tem um susto enorme, quase cai, mas dá um jeito e se equilibra.

…e vêm à sua mente algumas questões…

Ela começa a brincar e, depois do primeiro momento, vem à sua mente uma questão: “Eu deveria ter feito o que fiz?”

E uma reflexão desagradável: “Mamãe, chegando, ao ver que estou com o boneco aqui, é capaz de lembrar-se que ele estava em cima do armário, e notará minha desobediência. Quem sabe se seria melhor, para evitar o castigo, eu desobedecer uma segunda vez, subir na cadeira novamente e pôr o boneco lá em cima? Já andei mal uma vez… Quando faltar mais ou menos meia hora para meus pais voltarem, colocarei o boneco no lugar em que estava”.

Mas o pensamento continua: “Agora que você andou mal, aguente. Brinque com o boneco e quando eles chegarem você dirá: ‘Olha, me perdoem, eu peguei o boneco’. Eles vão se zangar com você, será uma coisa desagradável”.

A criança cessa de brincar e diz a si mesma: “Por que pensar nisso tudo? Falta uma hora e meia para eles voltarem. Quando faltar quinze minutos, vou resolver esse problema. Agora vou brincar”.

Ficam, então, na cabeça da criança três convites. Primeiro: agir bem, quer dizer, contar para os pais o que ela fez; segundo: agir mal, desobedecer mais uma vez e colocar o boneco em cima do armário; terceiro: não pensar no problema, a não ser no último momento, e brincar, ou seja, gozar a vida.

É possível que, conforme a psicologia da criança, esse problema do boneco estrague a tarde dela. Ela pode ainda pensar: “Seria melhor eu não ter desobedecido. Nunca mais vou desobedecer”, Mas depois lhe ocorre esta ideia: “Mas a vida fica tão cacete se eu nunca mais desobedecer que, de vez em quando, desobedecerei”.

…cuja solução significa um programa para sua vida

Conforme a decisão dessa criança, que pode ter quatro ou cinco anos de idade, ela traçou um programa para sua própria vida: Ela escolheu o prazer ou a dor.

Digamos que a criança desobedeça e coloque o boneco novamente em cima do armário; os pais regressam, nada percebem e encontram a criança alegre, a mãe trouxe-lhe um docinho, e o pai, uma revista para ela ver. Agradam a criança e a vida continua.

Mais tarde a criança pensa: “Valeu bem a pena enganá-los. Fiz o que eu não devia, ganhei presentes e passei uma tarde gostosa. Em alguns casos, talvez minha atitude dê errado, mas tantas vezes dará certo que vou fazer assim.”

E pode começar a existir uma dobra no espírito da criança, devido à qual vai ficando cada vez mais difícil para ela andar direito, e mais fácil andar mal. Ela vai inventando jeitos, habilidades para desobedecer, ideias novas, outras travessuras para fazer coisas mais gostosas; quer dizer, desobediências ainda maiores, por onde, praticando uma falta venial, pecado de criança, ela compra um prazer. E essa dobra vai se marcando cada vez mais.

A grande batalha pela castidade

Imaginemos dois tipos de crianças. Uma, que sempre pratica o bem e nunca desobedece aos pais. Outra, fazendo sempre o mal e desobedecendo de duas maneiras: ou pensando: “Eu quero fazer o mal”, ou não pensando, mas no fundo praticando o mal.

Elas chegam aos dez anos de idade, mais ou menos, quando começa a crise da puberdade e se apresenta a primeira tentação contra a pureza. Qual das duas crianças está preparada para travar a grande batalha pela castidade? A criança da travessura, que seguiu a escola do prazer? Ou a séria, que pensa nas coisas retamente, ama a verdade? Esta última, quando se lhe apresenta a tentação da impureza, diz: “Isso não pode ser!” Ela reage e não peca.

Mas quanto à outra criança, há noventa e nove probabilidades sobre cem de que, se lhe apresentando o prazer da impureza, ela peque. Ela está habituada a não se recusar nenhum prazer. No momento em que aparece um prazer que seduz os homens muito mais do que brinquedos de criança, ela está muito menos preparada para resistir àquela pressão. Resultado: ela cai. E vai ser um homem impuro, porque foi uma criança que não quis a dor.

Essa criança deveria ter sido séria e não ter levado as coisas na brincadeira; precisaria ter raciocinado: “Eu não quero o mal, mas o bem. Percebo que estou indo por uma via ruim que vai me conduzir para o inferno; não quero isso. Amo aos meus pais, mas sobretudo amo a Deus, a Nossa Senhora, não quero ofendê-los. E, por causa disso, não vou fazer uma ação má”. Então, ela começa uma luta.

Lutando contra si, ela se torna forte. Se a criança vence a crise da pureza, ao cabo de ter feito a batalha da castidade, ela se torna um herói. O homem que nunca pecou contra a pureza pode dizer: “Graças a Nossa Senhora, pelo favor que Ela me obteve de Deus, sou um herói”.

Se ela pecou contra a pureza, mas se arrepende, poderá dizer: “Sou um pecador regenerado e a graça de Deus pousou sobre mim, arrancou-me do charco imundo onde eu estava, levantou-me; minha alma hoje é pura, graças a Deus. Nossa Senhora, Virgem Puríssima, rogai por mim!”

Um osso partido, quando se consolida, fica mais forte no local da fratura do que nos outros pontos. Assim também, a pessoa que caiu em matéria de pureza, arrependeu-se e depois praticou a castidade, torna-se mais forte.

Dizer não para si mesmo e sim à voz da graça

Ao fim de uma longa existência, oitenta, noventa anos, se a pessoa viveu sempre assim, ao morrer, os braços de Deus estão abertos para ela. Nosso Senhor Jesus Cristo lhe sorri, ela vê no peito do Redentor o Sagrado Coração que pulsa de amor por ela. Nossa Senhora a afaga e a conduz junto ao Divino Salvador. Seu Anjo da guarda canta, há uma alegria em toda a corte celeste por uma alma que entra para o Céu. O objeto dessa alegria é ela, porque no fundo compreendeu que toda a prática da virtude é um dizer não para si mesmo, e sim à voz da graça, a qual nos convida a cumprir o dever.

A graça diz no interior da criança: “Obedeça a seu pai, a sua mãe; obedeça a Deus que ordenou honrar pai e mãe.” Sendo fiel à graça, ela vai se fortificando e resistindo a outras tentações. Por exemplo, uma criança que aprende a não brincar com os brinquedos não permitidos, aprende também a estudar nas horas em que deve. É claro, porque uma coisa é reversível na outra.

Aprendendo a estudar nas horas em que precisa estudar, ela vence a preguiça de pensa, a preguiça do trabalho mental, e se torna uma pessoa que gosta de ler um livro, estudar uma doutrina, e pode ser um homem inteligente e até célebre. Pode tornar-se um defensor da Fé.

Se a criança não estuda, fica com preguiça de estudar. No tempo de minha infância, conheci um menino que às vezes batia na testa e dizia: “Eu sou burro! Mas não tenho culpa de ser burro.” E pedia aos colegas para fazerem redação para ele, a fim de ele copiar com a letra dele e passar no exame. Os colegas o atendiam, mas eu, que o conhecia bem, sabia que ele era burro de preguiça, mas se fizesse esforço poderia tornar-se uma pessoa razoável. Entretanto, devido à preguiça, ficou fadado a ser burro a vida inteira.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1986)

As dores de Nossa Senhora

Depois de descrever a fisionomia moral da Mãe de Deus, Dr. Plinio considera os sofrimentos pelos quais passou a “Mulier dolorum” ao longo de toda a sua existência, em união com seu Unigênito. Tais considerações nos convidam a um exame de consciência feito com paz e inteira confiança na misericórdia divina.

 

Hoje é um dia muito significativo para nós, pois é a Festa das Sete Dores de Nossa Senhora.

Parece-me que não podemos deixar passar a ocasião sem dizer uma palavra a respeito.

”Mulier dolorum”

O que nós podemos considerar a respeito de Nossa Senhora e de suas dores, fundamentalmente, é o seguinte:
Enganam-se aqueles que julgam que a Virgem Maria teve em sua vida uma única ocasião de dor correspondente à Paixão e Morte de seu divino Filho. Esse momento foi realmente de uma dor suprema, a maior que jamais se tenha sentido no universo, abaixo da dor insondável de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua humanidade santíssima.

Foi uma dor tão grande que recapitulou todas as dores do universo. Tudo quanto os homens sofreram desde a queda de Adão e sofrerão até o último instante em que houver homens vivos na Terra, vai ser incomparavelmente menor do que a dor que Nossa Senhora sofreu.

Contudo, erraria quem pensasse que Ela padeceu essas dores durante a Paixão, mas fora daquele período não teria sofrido mais. E, portanto, sua vida viria transcorrendo calma, satisfeita, inundada pelo contentamento de ser Mãe do Salvador quando, de repente, chegou aquela dor lancinante que durou até a Ressurreição de Nosso Senhor, mas depois passou o sofrimento e Ela teve novamente uma vida alegre.

Na realidade isso não se deu e é um modo completamente equivocado de considerar as dores de Nossa Senhora.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi chamado por um dos profetas — se não me engano, o profeta Isaías(1) — de “Vir dolorum”: o Varão das dores; o homem ao qual era próprio sofrer, que está cheio de dores e que trazia essas dores na sua alma santíssima durante toda a sua existência.

De maneira que a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo não foi um fato isolado na sua vida, mas o ápice de uma sequência enorme de dores que começaram desde o primeiro instante de seu ser e foram até o momento em que Ele exalou, num dilúvio de dores, o terrível “Consummatum est”(2). Durante todo esse tempo Ele continuamente sofreu.

Ora, como Nossa Senhora é o espelho da sabedoria, é espelho da justiça e Ela reflete em Si tudo o que é de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve-se dizer de Nossa Senhora que Ela foi a “Mulier dolorum”, a Mulher, a Dama das dores e que também Ela teve a sua vida inteira pervadida pela dor, pelo sofrimento.

É certo que essa dor teve proporção com as forças incalculáveis que a graça Lhe dava. Sem dúvida, foi uma dor imposta pela Providência e, portanto, por mais lancinante que tenha sido, não era dessas dores que produzem turbulência e provações que devastam e sujam a alma.

Eram dores imensas, mas muito arquitetônicas, muito sábias, recebidas com uma serenidade de alma admirável! De maneira que, assim como se atribui a Nosso Senhor essas palavras de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amarissima”(3) — “Eis na paz a minha amargura muito amarga” —, também de Nossa Senhora se pode dizer: “Eis na paz a minha amargura amaríssima”. No meio de um oceano de dor, aquilo tudo equilibrado, raciocinado, refletido e suportado com amor e com estabilidade de alma incomparável, sem emoções exageradas.

Entrelaçamento das mais tremendas dores com as mais excelsas alegrias

Portanto, com uma quase infinidade de sofrimentos padecidos sem torcida, sem pânicos, mas com muito medo, com muita angústia e, em certas circunstâncias, até com um peso de dor que chegava quase a estraçalhar, a Santíssima Virgem foi durante a vida inteira uma grande sofredora. Entretanto, uma sofredora que teve momentos de alegria e, mais do que isso, Ela teve uma grande felicidade ao longo de toda a sua existência.

Ela também teve gáudios como nunca pessoa alguma teve. E todas as alegrias do mundo, desde o primeiro instante em que o homem foi criado no Paraíso, até o último momento em que haja homens na Terra, todas somadas não darão as grandes alegrias de Nossa Senhora.

Mas essas dores e alegrias se entrelaçavam continuamente e Ela vivia suportando o fardo dos mais tremendos padecimentos e, ao mesmo tempo, aliviada pelo bálsamo das mais excelsas alegrias. Assim vista a fisionomia moral insondavelmente santa de Maria, convém nos atermos especialmente às suas dores. Quais foram as dores de Nossa Senhora?

O tormento ao considerar os pecados dos homens

Antes mesmo de saber que seria a Mãe de Deus, Ela começou a sofrer uma dor que para uma alma zelosa é imensa e que atormentou incontáveis santos — creio ter afligido todos os santos ao longo da história — e que Nossa Senhora, naturalmente, teve em grau superlativo.

Concebida sem o pecado original, desde o primeiro instante do uso da razão, a Santíssima Virgem já iniciou sua vida mística. E teve conhecimento do pecado e de toda a infelicidade dos homens. Nutrindo pela glória de Deus tal zelo que daria mil vidas para evitar um pecado mortal, Ela passava por essa dor tremenda de ver a humanidade inteira imersa em pecados. Sofria ao considerar aquelas pessoas que morriam e cujas almas, em número enorme, caíam no inferno, ou então, quando não se condenavam, iam para a triste morada do “Sheol”, onde muitas já se encontravam há dezenas de séculos à espera de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além disso, Nossa Senhora viu os pecados cometidos por ocasião da vinda do Messias, e os que viriam depois do Salvador até o fim do mundo. E isso causava a Ela um tormento do qual não podemos ter ideia.

Houve um santo — eu não sei se foi Santo Inácio de Loyola — que disse o seguinte: se ele tivesse de viver a vida inteira simplesmente para evitar um pecado mortal de uma pessoa que depois fosse para o inferno, ele daria por bem empregados todos os sofrimentos de sua existência. Portanto, não para salvar aquela alma, mas para impedir de ser feita a Deus uma ofensa grave, de tal maneira o pecado mortal é um mal insondável.

Mas se era esse o pensamento de um santo, o que pensava Nossa Senhora, perto da Qual o maior santo é menos do que uma gota d’água comparada a todos os mares do mundo, menor que um grão de poeira em comparação a todos os universos? A santidade da Virgem Maria não tem proporção com nada. Nós não podemos fazer o cômputo da desproporção entre a santidade d’Ela e a de todos os anjos e santos reunidos. Assim, que tormento os pecados dos homens constituíam para Ela!

Dor diante da perspectiva e da realização da Paixão

A Santíssima Virgem recebeu, depois, a magnífica notícia de que seria a Mãe do Verbo encarnado. Podemos imaginar sua alegria ao adorar Jesus no primeiro momento em que Ela O concebeu por obra do Espírito Santo! Mas também sua dor ao pensar ser esse Messias o homem sofredor de que falara o profeta Isaías…

Segundo a opinião de alguns, antes dos trágicos acontecimentos da Paixão a Santíssima Virgem não tinha conhecimento da morte de Nosso Senhor na Cruz, e soube apenas no momento em que esta se deu. Eu não discuto a questão. É fora de dúvida que Ela, pelo profeta Isaías, sabia que seu Filho deveria sofrer dores inenarráveis.

Maria de Ágreda(4) conta que havia na casa de Nazaré um oratório onde, várias vezes, Nossa Senhora encontrou Jesus ajoelhado e suando sangue, na previsão de sua Paixão e da ingratidão com que os homens a receberiam.

Diante disso, que é tão verossímil, podemos imaginar a dor de Nossa Senhora vendo uma criança de cinco anos, depois de dez, mais tarde de quinze, depois um moço de vinte e, por fim, um homem já feito de vinte e cinco, e de trinta anos, ajoelhado frequentemente, a sofrer e a transpirar sangue face à perspectiva dos tormentos que viriam? Tanto mais Ela que amava Jesus, não apenas como uma mãe ama seu filho, mas como uma mãe ama seu Filho que é Deus!

Com certeza, Ela se prostrava perto de Nosso Senhor e sofria das dores d’Ele. E não é de admirar que Ela tenha suado sangue como Ele.

Ao iniciar-se a vida pública de Jesus, Nossa Senhora passa pela dor da separação. Começam os milagres, vêm as vitórias, é o momento da alegria. Mas, pouco depois, surge a ingratidão e prepara-se a tempestade de injustiças que desfechou na Paixão. Com tudo isso Ela sofria de um modo inenarrável! Se houve santos que desmaiaram ao receberem a revelação dos padecimentos do Salvador, podemos imaginar o que representava para Nossa Senhora o mínimo episódio da Paixão.

Por amor a nós, quis sacrificar o seu Filho Unigênito

Afinal, chega o momento da crucifixão, e as dores de Nosso Senhor atingem o seu paroxismo. E Maria Santíssima fica nessa alternativa: de um lado, desejar que Ele morra logo para diminuir as dores; de outro, que sua vida ainda se prolongue, em primeiro lugar porque toda mãe anseia por prolongar a vida de seu filho e, em segundo lugar, pela ideia de que assim Ele sofreria mais e os pobres pecadores seriam mais favorecidos.

Ela, então, concorda com o prolongamento desse sofrimento e firma o propósito de aceitar que Nosso Senhor seja imolado apenas naquela hora extrema, com todas as dores que Ele tivesse de sofrer.

Ela, Rainha do Céu e da Terra, com uma palavra poderia encerrar todos os sofrimentos expulsando os demônios e toda aquela gente que estava lá. Mas, para a salvação das nossas almas, Ela quis deixar aqueles algozes ali.

Apenas uma ou outra situação extrema Ela evitou. Conta Maria de Ágreda que o demônio havia arquitetado o seguinte projeto: quando Nosso Senhor fosse erguido no alto da Cruz e começasse a sua agonia, em determinado momento, derrubar a Cruz no chão, de maneira que a Sagrada Face batesse na terra e se despedaçasse. Mas Nossa Senhora, diante do excesso de ignominia de uma intenção como essa, proibiu o demônio de realizá-la.

Agora, por que Ela deixou o demônio fazer todo o resto? Porque amava tanto a salvação de nossas almas — mas da alma de cada um de nós — a ponto de querer que o Filho d’Ela passasse por tudo aquilo para, por exemplo, eu não ir para o inferno. E Ela ama de tal maneira a minha alma e a de cada um dos senhores que, ainda que houvesse um só dos senhores para ser salvo naquele dilúvio de dores, Ela quereria que seu divino Filho sofresse aqueles tormentos para salvar essa alma.

Imaginem, por exemplo, Nossa Senhora vendo a coroa de espinhos penetrar na fronte sagrada de Nosso Senhor e produzir lesões nervosas que faziam o seu Corpo estremecer em meio a todas aquelas dores que Ele já padecia. Contemplar o Sangue escorrendo de todos os lados, a sede tremenda, a febre altíssima, os estertores de todo o Corpo.

A Santíssima Virgem conhecia e media tudo isso. Entretanto, queria que fosse assim. Ela era como um sacerdote que imolava a Vítima divina no alto do Calvário. E se era esse o preço de uma alma, Ela desejava que o Filho d’Ela sofresse o que estava sofrendo para conquistar uma alma.

A grandeza de Nossa Senhora não está tanto na enormidade das dores padecidas, quanto no fato de ter Ela querido sofrer o que sofreu. Ela quis que o Filho d’Ela realizasse esse sacrifício tremendo e admirável, e fez isso por amor a nós. Porque Deus nos amou a ponto de querer sacrificar o seu Unigênito, Ela nos amou tanto que aderiu a essa função sacrifical, e quis sacrificar por cada um de nós o seu Filho Unigênito.

Um exame de consciência

A Semana Santa está se aproximando e é o momento de cada um de nós fazer, individualmente, uma meditação a esse respeito. Por mais que o homem pense, ele não pode deixar de se nutrir dessa reflexão que nunca deve bastar para a alma católica.

Colocar-se, portanto, sozinho frente a um Crucifixo ou diante de uma imagem de Nossa Senhora das Dores, e esquecer o restante do mundo. Porque diante de Deus, o mundo inteiro para mim não existe. E então fazer-me esta pergunta: Eu, Plinio, tenho consciência do preço da minha salvação? Todas as graças que eu tenho recebido, eu faço ideia dos gemidos e das dores que elas custaram e do que causaram no Coração Imaculado de Maria?

Eu tenho ideia de que tudo quanto se passou no Gólgota de tal maneira visava a minha salvação que se teria realizado ainda que eu fosse o único beneficiado?

Eu estou compenetrado de que no alto da Cruz Nosso Senhor Jesus Cristo pensou nominalmente em cada homem, desde o começo do mundo até aqui? E que, portanto, passou pela mente divina d’Ele, com pensamento de misericórdia, de bondade e de salvação, o nome de Plinio Corrêa de Oliveira? E que Ele teve em vista não apenas meu nome, mas viu minha alma, minha pessoa, o meu ser, e amou o meu ser por Ele criado e, num ato de amor a meu ser, fez aquele sacrifício para eu ir para o Céu?

Dou-me conta de que a minha salvação custou tudo isso?!

E como tenho eu correspondido a tantos benefícios? Qual tem sido minha ingratidão? Quantas faltas cometidas, muitas vezes por imprudência! Simplesmente por não querer evitar uma ocasião, por não fazer uma pequena mortificação, eu peguei o Sangue de Cristo e o joguei na sarjeta! Apesar desse Sangue derramado em meu favor, eu me pus em condição de perdição.

Entretanto, Deus me tolerou nessa vida, me suportou e me esperou com outras graças ainda maiores do que aquelas já recebidas.

A Semana Santa é uma ocasião de graças para cada um de nós. O flanco de Nosso Senhor Jesus Cristo está aberto, jorrando misericórdia para todos nós e nos chamando à contrição, à penitência, à reconciliação magnífica com Ele. Há uma efusão de bondades e de carinho para conosco como jamais poderíamos imaginar!

Portanto, minha primeira preocupação na Semana Santa deve ser a de pensar em minha alma. Pensar sem temor, sem pânico, porque Deus é Pai de misericórdia e Nossa Senhora é a Mãe e o canal de todas as misericórdias. Mas pensar com seriedade, a fundo, colocar-me diante desse Sangue de Cristo que corre e perguntar-me: O que fiz eu desse Sangue?

Junto à Cruz como São João Evangelista

Nosso Senhor pensou em tantas almas que haviam de desprezar o Sangue d’Ele levianamente, estupidamente, a propósito de uma ninharia, de uma bagatela: pela risada de uma criada, como São Pedro, por trinta dinheiros como Judas, por preguiça e vontade de dormir como os outros Apóstolos, por medo, por oportunismo, por sensualidade, enfim, por quantas coisas as almas haveriam de rejeitá-Lo!

Mas isso ainda é pouco. Nosso Senhor teve em vista, e Nossa Senhora também, todas as traições, todos os abandonos, tudo quanto almas sacerdotais O fariam sofrer.

Davi tem essa queixa em relação a um amigo que fez mal a ele: “Se outrem me fizesse isso eu não me queixaria. Mas tu, um outro eu mesmo, que comigo comias doces alimentos?!”(5)

Tudo isso foi visto. Mas também foram considerados com amor aqueles que, por uma graça especial conquistada por esse Sangue infinitamente precioso, seriam fiéis e estariam junto à Cruz como São João Evangelista.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1967)

1) Is 53, 3.
2) Jo 19, 30.
3) Is 38, 17 (Vulgata).
4) Maria de Jesus de Ágreda (1602-1665). Religiosa e mística espanhola da Ordem da Imaculada Conceição. Em uma de suas principais obras, “Mística ciudad de Dios”, narra as revelações recebidas da Virgem Santíssima.
5) Cf. Sl 54, 13-15 (Vulgata).

Pela dor do santo Encontro…

Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria perguntar por que chorais? Nem a terra, nem o mar, nem todo o firmamento poderiam servir de termo de comparação à Vossa dor. Dai-me, minha Mãe, um pouco, pelo menos, dessa dor. Dai-me a graça de chorar a Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda:

“Ó minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado, precisamente como O vistes neste passo da Paixão.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Da Via-Sacra composta por Dr. Plinio em 1951).