Natal: festa na terra e no Céu

Ao meditar sobre o ambiente onde nascera o Menino Jesus, em Belém, Dr. Plinio narra saudosas recordações dos Natais que passara em seu tempo de menino.

O Natal é o primeiro passo — quão humilde, velado e discreto — que o Rei glorioso haveria de dar no caminho de sua dor, sua luta e sua vitória.

A palavra agonia, em grego, quer dizer luta. Os atletas que lutavam nos circos eram chamados agonistas. E a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo foi propriamente sua luta heroica durante a Paixão: Ele imergiu na morte para depois ressuscitar, a fim de nos salvar e podermos reinar ao seu lado no Céu.

Numa gruta em Belém…

O Natal evoca um casal colocado na situação mais triste que uma pessoa possa ter na Terra, na ordem humana dos valores.

A casa de David estava de tal maneira posta de lado, que São José era um carpinteiro pobre. Ele, príncipe da estirpe de David, vai registrar-se em Belém para obedecer às ordens de um soberano estrangeiro, César Augusto, que dominava naquele tempo a Terra Santa. O descendente dos antigos reis vencidos obedece ao decreto do imperador vencedor.

Qual a razão desse decreto de César Augusto?

Vaidade! Ele queria saber quantos homens estavam submetidos ao seu poder, e por causa disso mandou que cada um se recenseasse no lugar de onde era sua família. A de São José era originária da cidadezinha de Belém.

Podemos imaginar Nossa Senhora, na posição difícil de uma mãe que está com uma criança para nascer, montada num burrico, e São José andando a pé. Chegando a Belém, batem de porta em porta pedindo hospedagem e ninguém os acolhe. Foram então a uma gruta onde ficavam os animais.

Nessa gruta se deu o acontecimento mais importante da História: o Filho de Deus, feito carne no seio puríssimo da Virgem Maria, veio ao mundo.

Houve ali uma alegria feita de contraste: uma grande miséria, mas uma grande elevação; uma riqueza à qual nada se compara na Terra, o Filho de Deus feito Homem colocado no lugar mais pobre, numa manjedoura de animais.

A glória, à qual ninguém sabe dar valor, exceto aquele casal, está ali representada no estado de um Menino débil, frágil, que chora, tem fome e estende os bracinhos para a Mãe.

E no Céu, na maior festa até então realizada, todos os Anjos — querubins, serafins, arcanjos —, em coro magnífico com brilho extraordinário, glorificaram a Deus pelo Natal de Jesus Cristo. Esta glória impregnou a gruta discretamente, porque era preciso que somente as almas de Fé a sentissem. E, excetuando Nosso Senhor Jesus Cristo, a maior alma de toda a História — a qual vale mais do que todos os Anjos e todas as almas que houve, havia e haverá até o fim do mundo — estava ali reclinada, rezando: Maria Santíssima. E orando a Ela e ao Menino Jesus, o homem que teve a honra de ser escolhido para Seu esposo.

Vemos assim como é dentro de um quadro da maior pobreza que nasce a maior de todas as glórias.

Nossa Senhora e São José viam aquele Menino chorar, dando a entender que queria alguma coisa, ou que estava com frio. E a Santíssima Virgem O vestiu com as roupinhas que Lhe havia preparado, sabendo que Ele era o próprio Deus cheio de glória, uma só Pessoa, embora em duas naturezas. Aquela Criança era o Criador d’Ela, que Lhe abria os braços; e o dono de todo o universo, que chorava desejando receber um pouco de leite e roupa para se cobrir.

Aerologia do Natal

Tendo Ele nascido à meia-noite, podemos imaginar o que seria esse horário num lugar ermo daquelas vastidões do mundo antigo, onde tão pouca coisa se movia. Na cidade de Belém, o silêncio, todos dormiam, tudo estava escuro. Mas dentro daquela gruta, onde estava aquele casal único, havia uma luz brilhante, pois nascera um Menino que era o Rei de todos os séculos, o próprio Deus encarnado.

Isso faz parte do que poderíamos chamar aerologia do Natal, oposta à da Páscoa. Esta é uma grande vitória triunfal que se comunica a todo o mundo. O Natal é um acontecimento divino, mas que se realiza aos olhos de poucos; a maior das glórias reside num Menino e permanece escondida. De maneira que quem contempla aquela cena deseja se recolher, ficar quieto, para senti-la dentro de si, mais do que proclamá-la a grandes brados. Tem reverência enternecida, uma espécie de comiseração de Deus, porque consentiu em fazer-Se tão pequeno; ao mesmo tempo, não sabe como agradecer a honra de tocar de perto em tão alto mistério: o Verbo de Deus assumiu voluntariamente a natureza humana. E encontra dificuldade em exprimir ao mesmo tempo o respeito tão grande, que chega ao temor, e a ternura tão profunda, a qual quase liquefaz a alma.

Então, suma veneração, adoração e ternura, bem como noção de uma honra — perto da qual percebemos que nada somos — e concomitantemente de uma humilhação. Isto explica o que há de noturno no Natal. Não teria beleza abolir a Missa do galo e celebrar o Natal com uma Missa ao meio-dia. Não se compreende que essa festa não seja comemorada à noite, porque sua luz é muito discreta e pede a noite para dentro dela brilhar.

Stille Nacht, a canção natalina por excelência

A alegria do Natal é tão íntima e delicada que teme se expandir inteiramente. O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX por um simples mestre-escola, passou a ser a canção de Natal por excelência. Uma de suas genialidades está em que ela consegue exprimir essa delicadeza e intimidade. Dir-se-ia que o coro está na gruta e canta porque ficou tão emocionado, que quase não conseguiu deixar de fazê-lo. Porém, canta baixinho para não acordar o Menino e não perturbar a canção indizível e serena com que Nossa Senhora está embalando o próprio Deus.

Assim, compreendemos o papel do noturno e as mil delicadezas que vibram no Stille Nacht. Essa canção manifesta uma espécie de compaixão em relação Àquele que está sendo celebrado, como que dizendo: é tão pequeno esse Deus infinito, mas tão infinito esse Deus pequeno!

Foram necessários dezenove séculos de meditação para que desabrochasse essa canção, como uma flor dentro da Igreja Católica.

Pressa pelo Natal

Imaginemos a pressa de Maria Santíssima pelo nascimento do Redentor. Pressa que tiveram todos os profetas pela vinda d’Aquele que haveria de pôr as coisas em ordem, esmagar o demônio e os efeitos do pecado original.

Em meu tempo de moço, tal pressa era representada pela expectativa pelo Natal que havia em toda parte na pequena cidade de São Paulo. Essa expectativa — com uma dessas delicadezas de alma que somente a Igreja Católica possui —, para não ficar uma coisa teórica para as crianças, era ao mesmo tempo a pressa da vinda do Menino Deus e também da festa de Natal.

Às vésperas do nascimento de Jesus

Assim como Jesus ficou oculto antes de nascer, a comemoração do Natal se preparava no mistério para as crianças. Os mais velhos confabulavam entre si e combinavam o tamanho da árvore de Natal, seus enfeites, as mesas de doces para a criançada, o que deveria ser diferente do ano anterior, e o presépio a ser posto aos pés da árvore de Natal.

As crianças não podiam assistir a essa conversa. Sentiam que se preparava uma grande festa de alegria não só para o corpo, mas também para a alma. Mais do que isto, era uma festa religiosa: vinham graças de Deus especiais; era como se o Menino Jesus nascesse. Procurava-se ouvir as últimas palavras dos mais velhos, as quais as crianças contavam entre si para conjeturar como seria a comemoração do Natal.

E havia o mistério do presente natalino. As crianças bem novinhas acreditavam que São Nicolau trazia o presente de Natal. Os pais sondavam para saber mais ou menos o que elas queriam, mas nada diziam. E quando as crianças estavam dormindo profundamente, eles colocavam os presentes aos pés das camas.

Lembro-me que dormia na expectativa do dia seguinte. Minha cama era pintada com laca de cor branca, com figurazinhas de santos e cenas pastoris. Havia um quadrinho na parede que dava para o jardim do fundo da minha casa. Atrás desse jardim existia um terreno baldio — São Paulo não era ainda muito habitada — onde havia uma cabana, que datava, creio eu, do tempo dos índios. E dentro dessa cabana, uma quantidade enorme de grilos. Eu adormecia ouvindo os grilos… Parecia-me ser o latejar de todas as coisas à espera do Natal que viria.

Às vezes, minha pressa de receber o presente era tão grande que eu acordava uma ou duas vezes durante a noite e, quando me virava — sempre fui de virar-me muito na cama —, sentia seu peso nos pés, pois em geral, tinha tamanho grande. E eu ficava desejoso de me sentar para ver o presente. Mas não o fazia porque desgostaria mamãe se eu acendesse a luz para olhá-lo; além disso, eu pensava de mim para comigo o seguinte: será mais gostoso ver o presente amanhã cedo e agora continuar a dormir, com a ideia de que ele já chegou e é pesadão, como estou sentindo.

É melhor fruir esta expectativa e amanhã ver o presente, do que destruí-la, brincando excitado com o presente, e depois não conseguir mais dormir. Então eu me afundava nas cobertas e continuava repousando, embalado pela certeza de ter recebido o presente.

Uma manhã de alegria plena

Na manhã seguinte havia o melhor dos acordares para mim. Assim que manifestava alguns sinais de haver despertado, ocorria o que não se dava em nenhuma outra manhã do ano — exceto se eu estivesse doente: mamãe estava — com um olhar que, ao longo de minha vida, nunca recebi igual — aos pés de minha cama, vendo meu acordar, deleitando-se com o prazer que eu iria ter com o presente dado por ela. Porém, mamãe não sabia que para mim a alegria dela era um maior presente do que aquele colocado aos pés da cama. Quando percebia que eu estava inteiramente acordado, ela estendia os braços e dizia: “Filhinho!” E eu, antes de ver o presente, ia para os braços dela, porque sua alegria e a interpenetração de nossas almas valiam mais do que o presente concedido por ela. Ao mesmo tempo em que a abraçava, eu ia olhando para o presente e depois corria para apanhá-lo.

De todos esses presentes, nenhum deixou uma recordação mais profunda em minha alma do que um de grande valor não quantitativo, mas qualitativo: Um grupo de soldadinhos de chumbo, alguns montando bonitos cavalos; tinham couraças de aço e chapéus com a crina caída, e todos com a espada na mão. Esses soldadinhos me deixaram encantado.

E já de manhã havia a distribuição de algumas boas iguarias, pão de mel com manteiga, deixando as mais saborosas para serem servidas à noite. Depois eu ia para o quarto de brinquedos.

Junto à árvore de Natal

A certa hora da noite, todos os primos estavam em nossa casa, com trajes de festa, que eram então roupas de gala para criança, e não esses vestidinhos de hoje em dia. E todos com modos mais respeitosos e elegantes uns com os outros, porque estavam em trajes de gala.

Afinal, aparecia mamãe anunciando que a festa de Natal ia começar. Então íamos para uma saleta onde nos reuníamos, dávamos-nos as mãos e descíamos uma escada externa da casa para o andar térreo, que dava diretamente para o jardim, onde havia uma árvore de Natal. Éramos umas vinte crianças, todas cantando o Stille Natch, e vínhamos trazendo uma imagem do Menino Jesus, que até hoje está em minha casa, a qual todos os anos mamãe adornava com vestidinhos diferentes.

Girando em torno da árvore, cantávamos canções de Natal, já sentindo o cheiro do chocolate com creme chantilly, com o qual iam se enchendo as xícaras; e também o do pinheiro que, ao ser um pouco queimado por algumas velas, deitava um perfume de resina especial, próprio do Natal.

Em tudo isso havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia travessura, peraltice; todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia emanar das imagens do Menino Jesus, de Nossa Senhora, de São José e, naturalmente, do boizinho e burrico que em todo presépio não podem faltar.

Essa alegria era algo que não sei exprimir. No fundo, provinha da idéia do Puer natus est nobis — foi-nos dado um Menino —, e participava da felicidade do Céu. Realizava-se como que a repetição do próprio nascimento de Jesus, e sentíamos estar vivendo as graças do primeiro Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)
Revista Dr Plinio 141 – Dezembro de 2009

O “canticum novum”

Quais as graças, as cogitações, a poesia e os cânticos que caracterizarão os Natais no Reino de Maria? A este respeito Dr. Plinio tece belos e inéditos comentários.

Gostaria de tratar de alguns aspectos do Natal a partir de conjecturas a respeito de como seria a música de Natal no Reino de Maria. Sobre isso haveria diversas hipóteses que se entrecruzam.

Uma canção natalina que abrangesse desde o Nascimento até a Ascensão de Jesus

A mim pessoalmente agradaria uma música que considerasse o mistério do Natal relacionando-o com o futuro do Menino Jesus. Assim, em determinado momento, desenvolvesse algo sobre a vida contemplativa d’Ele com Nossa Senhora durante os trinta anos vividos em Nazaré. Depois, a dor da despedida, a vida pública, Paixão, Morte, Ressurreição, glória no Céu. Terminando, por exemplo, com esse pensamento: se os Anjos cantaram “glória a Deus no mais alto dos céus e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14), o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus. Ninguém teve boa vontade como Ele, em nenhum sentido, nem de longe. Logo, a glória d’Ele não se iguala à de ninguém. Os Anjos, quando entoaram “glória a Deus no mais alto dos céus”, cantaram a Ele enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade também. E quando cantaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram-No enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem e, com esta, a verdadeira paz.

Depois a luta d’Ele e a Ascensão ao Céu, porque sendo Ele o Homem de boa vontade por excelência que realizou tudo quanto devia realizar, teve uma glória incomparável no Céu. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o Stille Nacht.

Cântico do inocente, do penitente, do pecador e do guerreiro

Eu também imaginaria de bom grado canções natalinas para estados de alma diferentes. Então, para a alma inocente que, imersa neste mundo e dentro da luta, tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço até o fim.

O cântico de Natal da alma inocente seria diferente do cântico da alma penitente. O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José dizendo não ser digno, mas pedindo ao Santo Patriarca que obtenha da Santíssima Virgem para ele um olhar e uma compaixão. Seguem-se a resposta afirmativa de São José e um apelo a Nossa Senhora. A Mãe de Deus atende e o recebe maternalmente.

O pecador arrependido então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus. Sentindo-se indigno de entrar na gruta, canta do lado de fora, dizendo: “Até o bafo do boi é digno de estar ali dentro, porque está na ordem de Deus. Mas eu sou o pecador que rompi em determinado momento essa ordem. Portanto, não sou digno de aproximar-me dali. Onde os animais entram eu não posso entrar. Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!” Ela o cobre, e coberto pelo manto, ele recita um Confiteor e recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como um movimento instintivo de uma criança, mas na realidade tem o sentido de um perdão. O penitente se retira agradecido.

Outro poderia ser o cântico natalino do pecador atolado no pecado. Que gostaria de sair desse estado, mas não o quer com toda a eficácia. Mas ao menos de longe, de fora, canta implorando a Nossa Senhora enviar-lhe um mensageiro que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe a mensagem no bico da ave.

A súplica é entregue, e nela ele diz não ser como o pecador anterior que tendo rompido com Deus, rompeu depois com o pecado. Aquele, quando entrou na gruta, após reconhecer que não merecia estar onde até o boi e o burro eram dignos, já estava reconciliado com Deus. Este, entretanto, não é nem o pecador arrependido nem o boi: ele é a serpente, pois se encontra em estado de pecado mortal. Está carregado de pecados, mas tem tristeza e esperança, e implora de longe a Nossa Senhora, cujo pedido pode obter de seu Divino Filho que um aceno de mão remova as montanhas internas do pecado na sua alma e faça dele um homem que, afinal, se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Quando o pecador se aproxima de Nossa Senhora, o Menino Jesus sorri, senta-Se e abre os braços. Diante desse gesto, ele pede perdão, é perdoado e sai contrito.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente, do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. Viriam as objeções: “Natal é festa da suavidade, da concórdia, não entra em considerações de guerra.” Mas se essa guerra é lícita, por que não cabe um lugar para ela aos pés da manjedoura onde está o Menino Jesus?

Seriam, portanto, cânticos destinados a vários estados de alma, para dar ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Acréscimo legítimo às comemorações natalinas

Contra tudo quanto acabo de dizer há uma objeção muito séria. É a defesa do não se acrescentar nada ao Natal como atualmente é comemorado. O Natal é uma festa com um significado próprio, preponderante, não de um Deus presente no mundo e já exercendo a sua missão. Mais tarde Ele perdoará os pecadores, moverá as montanhas. No momento está existindo só para Nossa Senhora e São José, e deve ser considerado apenas assim. Por causa disso, é ordenado que os espíritos retos fruam a beleza específica do Natal e mais nada. Misturar todos esses pensamentos seria tirar a especificidade dessa festa. A liturgia da Igreja tem outras comemorações reservadas ao pecador, por exemplo, a Paixão de Nosso Senhor.

O Natal é a festa da candura, da infância, da aliança de Deus com o homem, encarnando-Se e descendo à Terra. É a festa da distância fabulosa no caminho percorrido pelo Verbo de Deus, estando eternamente na Santíssima Trindade, convivendo com as outras duas Pessoas num relacionamento perfeito e ininterrupto, sem começo nem fim, e que Se faz Homem, vem para a Terra, e está ali, no Presépio, entre Maria e José. Isso tudo é tão alto e tão cheio de significado que não se deve misturar com outras considerações.

A meu ver, essa defesa tem seu sentido, mas de fato o Natal existiu não só para que Nossa Senhora, São José, os pastores e os Reis Magos contemplassem o Divino Infante, mas também todos os outros homens. Portanto, o Natal enquanto vivido por todas as outras gerações que, em certo sentido, se aproximam do Menino Jesus merece essa ampliação.

Daí não vem uma censura ao Natal atual, mas o desejo de algo a mais. Ouso esperar que no Reino de Maria esses argumentos sejam ponderados por quem de direito possa realizar esse acréscimo. Temos assim uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento, de como seriam os vários Natais do Reino de Maria.

Sacralidade dos Natais de outrora

A isso acrescento um elemento que me parece decisivo dentro do assunto. Havia nos antigos Natais um traço que eu alcancei: uma sacralidade da qual as gerações mais novas não podem fazer ideia.

No meu tempo, nos dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. No Centro velho, o triângulo formado pelas Ruas Líbero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois o conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, havia lojas que vendiam brinquedos e expunham na vitrine um presepe. Esses estabelecimentos comerciais possuíam gramofones que tocavam músicas de Natal. Então, percorrendo a pé, por exemplo, a Rua Direita, de ponta a ponta ouviam-se as melodias natalinas.
Quando chegava a noite de Natal, as famílias todas começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho, nas ruas vazias de qualquer gente que não fosse quem se dirigia para a Missa, na paz, naquele andar vagaroso de famílias que saem numa hora na qual costumam estar dormindo. Da igreja saía uma luz forte que iluminava a rua cada vez que se abria a porta, e lá dentro estavam começando a cantar. Em certo momento batia o sino e começava a Missa.

Tinha-se a sensação de uma graça vinda de uma altura, mas de uma altura…! Graça de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito aparentemente incompatíveis, mas que convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites. Talvez de nada da minha infância eu tenha tantas saudades quanto desse aroma e dessa graça de Natal.

A graça de Natal no Reino de Maria

Como será essa graça no Reino de Maria? Estou certo de que ela se reapresentará. Porém, ninguém pode prever qual vai ser sua magnificência e esplendor. Lendo o que São Luís Grignion escreve a respeito desse assunto, notamos que ele prevê em palavras magníficas a vinda do Reino de Maria, mas não o descreve, porque tem qualquer coisa superior a tudo quanto poderíamos imaginar.
É compreensível, pois o tormento dos justos na época em que estamos é superior a tudo quanto poderíamos conceber. E se esse foi o tormento dos justos, foi também o sofrimento de Maria, que previu e padeceu com tudo isso. Portanto, a um tormento sem proporções com nada deve seguir-se uma glorificação e um gáudio sem proporções com nada.

Eu pergunto: Aos que formos fiéis até a hora do Reino de Maria, não é verdade que a alegria do primeiro Natal deverá ser com graças que ninguém imagina? Mais ainda: às vezes tenho me perguntado se o primeiro dia do Reino de Maria não será um dia de Natal. Quer dizer, na véspera o demônio é derrotado, seu reino acaba e os Anjos levam umas tantas horas para limpar a Terra dos vestígios dos pecadores. A própria natureza torna-se diferente. Tem-se a impressão de que do alto do céu, mas também do fundo da terra saem bênçãos, evolam-se graças, é tudo tão diverso… É a primeira noite de Natal, nasceu o Reino de Maria! É uma possibilidade, não digo que seja certo. É uma hipótese entre outras, e é legítimo fazer hipóteses.

O nascimento de uma nova melodia natalina

Compreende-se como nascem as grandes coisas. Nessa noite uma pessoa dotada de dons poéticos, caminhando rumo à igreja, sussurra aos ouvidos de um companheiro: “Está vindo à cabeça uma poesia em louvor do Menino-Deus e de Nossa Senhora!” E recita um poema que ele mesmo não percebe ser admirável. Isso se espalha, e uma pessoa com dotes musicais começa a cantar, ali mesmo na rua. A certa altura, todos aprenderam a melodia e entram na igreja entoando esse cântico.

Nasceu mais uma música natalina para todos os séculos. O Anticristo, quando vier, ainda encontrará essa canção sendo entoada. Os últimos fiéis, na escuridão de alguma catacumba, ainda cantarão a mesma melodia no último Natal da História. Qual será a surpresa deles quando perceberem que alguém canta muito melhor do que eles essa música, do lado de cima da terra. Eles ficam comovidos e delegam alguém para subir, pé ante pé, e ver o que está acontecendo. Ele volta correndo e extasiado: são os Anjos que estão cantando no céu!

Um gênero de poesia livre da rima e da métrica

Como serão essa música e essa poesia? Vem aqui uma conjectura, mais uma vez toda ela pessoal: A poesia como ela existe hoje, e mesmo como os clássicos romanos e gregos a conheceram, eu admiro muito, é muito bonita. Mas ela tem qualquer coisa que me dá a impressão do que sentiria um homem ao usar um colete para corrigir a desvio na espinha dorsal ou algo semelhante. Aquele sistema métrico, aquela rima que deve bater com a outra… Parece-me que o pensamento e o sentimento ficam meio algemados dentro daquilo.

E eu gostaria de imaginar um gênero de poesia liberta desses entraves, e que fizesse exprimir toda a sua beleza sem a obrigação desse pesadelo da rima e da métrica. Eu, tão desconfiado com a espontaneidade, nesse ponto advogo uma certa espontaneidade. Assim, eu imaginaria algum gênero de composição que fosse poético muito mais pelo pensamento, pelo sentimento, do que pela forma literária. Como seria isso? Também não sei. A canção de gesta tem um pouco disso.

O verdadeiro espírito poético e o “canticum novum”

Como se forma o espírito poético? Nós estamos tão deformados pela Revolução que quando se fala de espírito poético vem à mente a ideia da canção sentimental, com a eterna lenga-lenga do rapaz que queria a moça e ela não queria o rapaz ou vice-versa. Então sai um choro mole, triste, que por vezes dá numa reconciliação, e fica no puro choro e acabou-se. É a última lágrima, o último ponto final da poesia.

Não é isso. O espírito poético verdadeiro é de quem não tem na alma esses vapores tóxicos do sentimentalismo. É uma alma limpa do vício da pena de si mesmo, e que não quer cantar as suas aspirações, a sua vida interna, mas os ideais para os quais vive. Quer dizer, é o cântico da alma generosa que compreende o elevado, o sublime, e quer cantar a sublimidade. Uma poesia onde possivelmente não figure sequer a palavra “eu”, nada egocêntrica. Não canta a sua dor, canta aquilo que adora.

Quem cantou o grande Carlos, quem compôs a canção de gesta? Discute-se. Uma das hipóteses é que um anônimo tenha cantado pela primeira vez, e depois as multidões começaram a repetir, acrescentando episódios, trovas, etc. É quase um imenso autor anônimo que não se preocupou em deixar seu nome para a posteridade, mas desinteressadamente se preocupou em cantar os pares de Carlos Magno. Essas são as almas capazes de poesia.

Na América Latina há mil criatividades à espera da hora da graça, e que Deus não quis que se gastassem na época da Revolução. Estão reservadas para glorificar a Mãe d’Ele quando Ela reinar. Serão o canticum novum(1) que este continente, descoberto pela Europa e povoado muito preponderantemente por filhos daquelas terras, acrescentará ao lindíssimo, ao admirável canticum antigo que a Europa entoou, e que ela conservará e legará para o futuro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)
Revista Dr Plinio 237 – Dezembro de 2017

1) Do latim: cântico novo.

O menino do tambor

Há mais de dois mil anos, nos imensos e longínquos arenais da Arábia, vivia um menino muito pobre, que possuía tão somente um pequeno tambor. Órfão de mãe desde muito pequeno, vivia sozinho com seu pai, guardião de um oásis, cujas águas eram abundantes e cristalinas.

Numa fria noite de inverno, enquanto o menino tocava seu tambor, apareceu no céu uma estrela que brilhava mais do que todas as outras. Contemplando o luminoso astro, logo compreendeu que ele prenunciava um feliz e grandioso acontecimento.

Na manhã seguinte, o menino divisou no horizonte uma longa fila de homens e animais. Percebeu não se tratar de uma caravana comum, pois até o menor dos servos vestia-se ricamente. No fim do longo cortejo, sentados no alto de vigorosos dromedários, vinham três nobres senhores, vestidos com trajes coloridos e turbantes de seda. Um deles era um ancião de longa barba, outro um homem maduro de vivos olhos e ruivos cabelos, o terceiro um vigoroso árabe de pele escura. Dir-se-ia que os três eram poderosos reis.

Ao se aproximar a caravana, curioso, o menino dirigiu-se aos reis: “Senhores, perdoem meu atrevimento, mas a que se deve a presença de tão ilustres pessoas nestas desoladas paragens?”

Um dos reis sorriu e explicou-lhe que vinham de muito longe e que seguiam uma estrela que haveria de guiá-los até o local onde nasceria o Messias, o Salvador da humanidade, anunciado pelos profetas. “Então, tomamos ouro, incenso e mirra e pusemo-nos a caminho, a fim de prestar-Lhe homenagens”.

O menino sentiu um irresistível desejo de ir conhecer o Messias prometido e, com a permissão de seu pai, juntou-se aos viajantes.

Alguns dias depois, a caravana fazia sua entrada em Belém de Judá e numa humilde casa, sobre a qual se detivera a milagrosa estrela, os três nobres senhores encontraram um inocente Menino nos braços de uma bela Senhora. Logo compreenderam que aquele lindo Infante era o esperado Messias. Prosternaram-se, adorando-O e Lhe ofereceram ouro, incenso e mirra.

Mas, eis que ouve-se o rufar de um tamborzinho e uma harmoniosa e pueril voz:

Eu quisera pôr a vossos pés
Algum presente que vos agrade, Senhor!
Mas Vós sabeis que eu sou pobre também,
E não possuo mais do que um velho tambor!

Era o “menino do tambor” que cantava para o Salvador uma humilde e bela canção, acompanhada pelos graves acentos de seu tambor. E a face do Menino Jesus iluminou-se com um belo sorriso.

Salve, luz pura!

Nossa Senhora é aquela que gerou luz do mundo: Jesus Cristo, Senhor nosso. Ela é o foco dessa luz que nas trevas não conseguiram envolver e impedir que fosse vista pelos homens.

Ela é o canal por meio do qual a luz do Salvador chega até nós.

E Maria tanto resplandece da luz de seu Divino Filho que dir-se-ia ser Ela a mesma luz. Por isso podemos cantar com a Igreja: “Salve radix, salve porta, ex qua mundo lux est ort – Salve, ó raiz, ó porta, pela qual jorrou a luz no mundo” (da antífona Ave Regina Carlorum).

Devemos pedir a Santíssima Virgem que encha nossas almas dessa luz que fende as trevas e chega até os homens, libertando-os do erro, do vício do crime do mal.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 33 – Dezembro de 2000

Reflexões do Divino Infante

Numa “palavrinha” para discípulos mais jovens, Dr. Plinio imagina como seriam as cogitações do Menino-Deus na Gruta de Belém, na noite de Natal. E nos faz admirar, especialmente, como o Verbo Encarnado possuía a suma ciência, tudo compreendia, e sobre nós se debruçava com amor, ao surgir neste mundo.

Como ponto de partida para nossa meditação sobre o Natal, consideremos o seguinte aspecto. Em geral, a iconografia católica nos apresenta o Menino Jesus com as características de uma criança recém-nascida, ainda sem o uso da razão, possuindo todas as limitações inerentes à primeira infância.

Uma criança com pleno uso da inteligência

Essa representação é justa, não encerra nada de censurável, porque o Divino Infante habitualmente se mostrava assim às pessoas com as quais tinha contato. Porém, tais ilustrações não nos propiciam a noção completa da realidade d’Ele na noite de Natal, e por isso algumas raras imagens do Menino-Deus no-Lo mostram com uma fisionomia bem diversa: séria, serena, pensativa, meditativa.

Quer dizer, apesar da exterioridade de uma criança tão terna, o Menino Jesus já possuía o pleno uso de sua inteligência, e desde o primeiro instante de seu ser, no recinto sagrado de Nossa Senhora, Ele já pensava e tinha o conhecimento de tudo.

Primeiros encantos com Nossa Senhora

Assim sendo, poderíamos nos perguntar quais seriam suas cogitações e reflexões naquela ocasião.

Antes de tudo, pensava Ele no Pai Eterno, no Espírito Santo, nos esplendores da Santíssima Trindade, da qual é a Segunda Pessoa em união hipostática com a natureza humana. Ao mesmo tempo, deveria refletir sobre Nossa Senhora, obra-prima de toda a criação. Sem dúvida, constituía para Jesus um profundo deleite considerar Maria Santíssima naquele momento, em atitude de conhecer, adorar, analisar e acariciar o próprio Filho. Alegrava-O vê-La guardar todas as coisas no seu coração, meditando-as, perscrutando nos traços fisionômicos do Menino as correlações com tudo o que Ela, pelo dom da sabedoria, aprendera nas Escrituras acerca do Messias.

Nossa Senhora estabelecia essas ligações com sumo respeito e insondável adoração para com o Divino Infante, que os recebia com verdadeiro encanto, prazer e intenso amor por sua Mãe.

Ali estava também São José, e a Santíssima Virgem já exercia sua mediação, apresentando ao Menino Jesus as orações de seu esposo, pai adotivo d’Ele. Embora não fosse o progenitor segundo a carne, tinha um autêntico direito sobre o fruto das entranhas sagradas de Maria e, portanto, sobre o Recém-nascido.

São José adorava o Menino Deus, agradecia a honra de ser seu pai e Lhe apresentava suas preces por meio de Nossa Senhora.

Vistas proféticas sobre a História

Mas o Verbo Encarnado não circunscrevia suas considerações a esse quadro radioso. Ele pensava igualmente nos anjos, nos pastores que vinham adorá-Lo, e nos Reis Magos, os quais se aproximavam de Belém e logo se prostrariam a seus pés. Além disso, podemos supor que refletia a respeito das razões que O levaram a tomar nossa natureza humana e nascer para o tempo. Esses motivos se estendiam, com vistas proféticas, ao longo de toda a História. E foi exatamente esta a meditação feita por Ele, trinta e três anos depois, no alto da cruz: durante a existência da humanidade, sofreria muitas ingratidões, mas também suscitaria incontáveis atos de adoração.

No presépio, Ele via então todos os Natais da História, até o fim do mundo, com os mais diversos modos de se prestar veneração e reconhecimento ao Filho de Deus. Contemplou, por exemplo, São Luís Rei que, maravilhado diante de uma imagem do Menino Jesus, foi o primeiro — acredita-se — a se inclinar quando entoadas as palavras do Credo: “… e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”. Como considerou a todos nós que, à imitação daquele grande monarca francês, fazemos o mesmo gesto ao rezarmos essa passagem do Símbolo dos Apóstolos.

Quiçá terá antevisto os poucos ­fiéis no fim do mundo — antes de Ele retornar à Terra em sua pompa e majestade — cantando pela última vez o Credo, e se inclinando ao pronunciarem aquelas palavras.

Ponderava, enfim, todos os relacionamentos de alma dos homens com Ele e com Maria Santíssima, a propósito do Natal.

Peçamos graças para cumprirmos nossa vocação

E já no seu pobre berço, sofria ao prever a incredulidade e a impiedade se espalhando em tantos lugares da Terra, diante da apatia e indiferença de muitos que se pretendem seguidores d’Ele. Mas, por outro lado, o Menino Jesus contemplou também todas as almas católicas, zelosas da glória e do serviço de Deus, vivendo e batalhando para o triunfo da virtude, sofrendo com os pecados e as ofensas que os homens cometem contra Ele, reparando-as com penitências e espírito de ascese.

Desse modo, a mente e o coração sagrados do divino Recém-nascido, desde aquela ocasião, voltava-se para os católicos fervorosos, e implorava ao Pai Eterno, em favor deles, as forças necessárias para perseverarem no bom combate que devem travar pelo bem e pela Santa Igreja.

Então, acerquemo-nos do Presépio, e por meio de Nossa Senhora, São José, dos anjos, dos pastores e dos Reis Magos, peçamos a Jesus que aceite nosso desejo de sermos conforme seus divinos desígnios para conosco, o nosso anelo de nos unirmos às cogitações, às meditações e às considerações proféticas que fez na manjedoura, para vivermos o Natal em uníssono com Ele.

Roguemos ao Menino Jesus nos conceda o mesmo amor que Ele teve a tudo quanto hoje existe de bom sobre a face da Terra, próximo a nós, em nosso movimento, assim como ao bem que almas esparsas pelo mundo estarão realizando, por perseverarem no cumprimento da Lei de Deus, nos ensinamentos da doutrina católica apostólica romana.

“Dai-me tudo que de Vós me aproxima…”

São estas algumas das importantes intenções que devemos formular no Santo Natal, e assim implorarmos uma inteira união de alma com o Divino Infante, de maneira a que tudo quanto exista no coração d’Ele esteja no nosso; tudo quanto palpite no Imaculado Coração de Maria lateje também no nosso, e que o Natal celebrado por nós reflita exatamente o sentido de tudo quanto Jesus e Maria experimentaram naquela noite mil vezes bendita nas montanhas de Belém.

Alguém poderia lembrar: “Não posso pedir algo para mim, de caráter pessoal e material?”

Sem dúvida, é uma petição inteiramente legítima. Se tivermos as vistas postas, antes de tudo, nos bens espirituais, em nossa santificação e salvação eterna, suplicada para nós e pelos outros, é lícito que contemplemos também nossas necessidades temporais, uma vez que não comprometam em nada o interesse maior da alma.

Nesse sentido, convém nos lembrarmos da bela e concisa oração formulada por São Nicolau de Flue: “Meu Deus, dai-me tudo que de Vós me aproxima; tirai-me tudo que de Vós me afasta”. Eis um excelente pedido para apresentarmos ao Menino Jesus, a rogos de Maria Santíssima e São José.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 93 – Dezembro de 2005

Diante do Menino-Deus, a maternal admiração de Nossa Senhora

Dr. Plinio tinha o propósito de sempre, em suas conferências, palestras, reuniões, inserir em certo momento alguma referência a Nossa Senhora. E havendo oportunidade, dedicava a Ela todo o tempo da reunião, notando-se seu júbilo de alma em fazer reluzir, nos seus comentários, as excelências da Mãe de Deus. Enquanto fundador e mestre de uma família de almas, Dr. Plinio visava também, com tais reflexões, afervorar seus seguidores na devoção a Maria Santíssima, assim como alentá-los no cumprimento da vocação a que foram chamados. Exemplo disso é a meditação que a seguir transcrevemos, feita por ele numa véspera de Natal.

Nada mais oportuno, em torno do santo nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, do que considerarmos o afeto, o amor e a admiração indizíveis de Maria, a Mãe celeste, para com seu Filho único e incomparável.

Embora sabendo-se o ápice e a mais eleita de todas as meras criaturas, Nossa Senhora é também modelo de humildade, e tem pleno conhecimento da infinita distância que A separa de seu Criador. Trata-se, portanto, de uma humildade teocêntrica, isto é, mais ainda do que a sua condição limitada de ser humano, tem Ela em vista a inabarcável grandeza de Deus.

Tomando em conta essa perfeitíssima disposição de alma, é compreensível que, no sublime e augusto momento em que a Virgem Mãe trouxe ao mundo o Divino Salvador, tenha Ela, em primeiro lugar, manifestado todo o respeito, toda a admiração e toda a adoração que Ele merece. E somente num movimento posterior passasse a externar seu incomensurável amor pelo Menino Jesus. Há nisso uma ordenação lógica de sentimentos e atitudes. De fato, quando queremos muito bem a alguém, devemos começar por admirá-lo, porque a admiração é o fundamento do amor.

Ora, no caso concreto da Santíssima Virgem, tinha Ela para amar Aquele que, enquanto Homem-Deus, é o mais admirável ser da Criação, hipostaticamente unido à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E Maria sabia, por revelação divina, que o fruto gerado em suas entranhas era Este que se encontra acima de tudo, o Verbo Encarnado. Havia, portanto, para essa admiração e esse amor, razões que excediam o fato de o Filho recém-nascido ser sumamente belo e gracioso. Então, o primeiro pensamento dEla é para Deus, no que Ele tem de magnificente: “Tão fraco, tão pequenino, entretanto o Altíssimo, na sua infinita grandeza, na sua incomensurável admirabilidade, aí está!”

Em seguida, Ela mede a profundidade dessa União Hipostática, e a glória que tal União faz derivar, a torrentes solares, sobre a natureza humana de seu Filho. Depois, começa a analisar o Menino, mas com todo o afeto de mãe: contempla aqueles olhos nos quais reluz o brilho da luz divina; toca-lhe os tenros braços, os pezinhos, e vai assim manifestando para com Jesus recém-nascido sua insondável ternura materna.

Quando qualquer mãe se enternece com seu bebê, no subconsciente dela está a seguinte reflexão: “Eis aqui um novo homem (ou uma nova mulher). Que grandeza há numa criatura humana, chamada a levar uma vida de extensa duração, a cumprir deveres graves, os deveres da paternidade, os da maternidade, mas, sobretudo, os deveres para com Deus, a ser boa filha ou bom filho da Igreja Católica, dominar as suas paixões, santificar-se e ir para o Céu por toda a eternidade! Esse como que projeto de anjo que está aqui, que coisa extraordinária! E como eu fico enternecida vendo como algo tão grande cabe em tão pouco!”

Depois, quando ela considera que aquele é seu próprio filho, ainda aí entra uma ternura muito grande, mas também uma imensa admiração: “Que mistério admirável pelo qual eu, criatura humana, gerei outra criatura humana! Que coisa misteriosa, profunda! Este menino nasceu de mim, foi alimentado por mim, formou-se no meu claustro, eu o liberei para a vida e aqui está, tão pequenino, tão minúsculo e, entretanto, para ele existir, realizou-se um vasto mistério, semeado de aspectos fascinantes”.

De um lado, o belíssimo prodígio pelo qual de um ser humano nasce novo ser humano. Mas, depois, essa outra misteriosa maravilha: o instante no qual Deus, debruçando-se sobre aquele embrião que começa a se formar, infunde nele uma alma. E lhe dá algo que a mãe não gerou, que não veio do ato nupcial, e sim da infinita bondade do Criador. Mais ainda. Por ser espiritual, essa alma confere àquele embrião uma participação na natureza dos próprios anjos. Que coisa magnífica!

Horizontes que se abrem para a nova vida

Assim, na ternura de uma mãe verdadeira, da mãe bem orientada para com seu filho, transparece a consciência que ela tem de toda essa série de mistérios que se formaram nela: a carne da carne, o sangue do sangue, um “outro eu mesmo” dela, ao qual se somou a obra divina, tão imensamente maior, soprando no novo ser uma alma imortal.

E para essa alma, que horizontes se abrem, ainda que consideremos apenas sua vida nesta terra! Horizontes de luta, de batalha, de abnegação, como também de alegria, de vitória, de momentos em que se tem a impressão de estar tocando o Céu com as mãos. Mas ainda, horizontes de tristeza, de abatimento, de desfalecimento, em que se tem de pedir a Deus graças para continuar a percorrer o caminho.

Tal reflexão faz surgir aos nossos olhos outro aspecto do nascimento de uma criança. É que, segundo a Igreja, a vida de toda criatura humana é comparável ao combate de um gladiador. Este, antes de entrar na arena, prepara-se com exercícios, fricções, óleos, etc., a fim de que toda a sua musculatura esteja em condições de enfrentar as feras ou outros lutadores. Em seguida, munindo-se de suas armas e escudo, penetra na cena da batalha. Quem, antes de ele ser chamado para a imensa contenda, o visse sentado, tranqüilo, preparado para entrar na arena, não poderia deixar de admirá-lo.

Ora, assim é uma criança que entra no mundo. Ela está no pórtico de uma imensa batalha. E seja ela menina, seja menino, poderá a mãe dizer: “Batalhador! Batalhadora! Eu te admiro porque és combatente do bom combate! Teu dever é este. Uma vez que recebas o Batismo, a graça te chamará. E a partir desse momento, começará uma vida sobrenatural em ti”.

Estes devem ser alguns dos movimentos de afeto e admiração de uma mãe em re-lação a seu filho recém-nascido.

Nossa Senhora em face do Menino Jesus

Se assim ocorre com as mães comuns, que dizer da Mãe das mães, Maria Santíssima, diante do Menino Jesus?

Sem dúvida, a alma dEla transbordava de admiração e de carinho para com seu Divino Filho. Ela tinha o conhecimento do mistério da Encarnação do Verbo, e bem sabia que aquele Ser, gerado em suas imaculadas entranhas por obra do Espírito Santo, representava a remissão do gênero humano. Ele era seu Filho, seu Deus, seu Redentor! E como tal Ela O amava e venerava na Gruta de Belém.

Só na Gruta de Belém? Evidentemente, não.

Junto ao presépio, existe já todo o desenvolvimento de uma história. Da história de ambos, Jesus e Maria. Do período que Ele passou recolhido ao lado dEla e de São José. Do tempo em que, após a morte do glorioso Patriarca, Ele prestava assistência à sua Mãe Santíssima, num sublime convívio que extasiava os Anjos. Podemos imaginar os dois, sozinhos na casa em Nazaré, à noite, após uma refeição que fora sóbria mas cheia de agrado, porque estavam juntos, olhavam-se e se queriam bem. Que indizível felicidade o estarem unidos, conversarem, trocarem pensamentos e desejos de alma!

Depois, em certas horas, enquanto Jesus executava seus trabalhos de carpinteiro, Nossa Senhora meditava no que aconteceria com Eles; vislumbrava aquele momento em que os Anjos haveriam de elevar aos ares a santa casa de Nazaré e transportá-la para um lugar chamado Loreto. E que ali, um incontável número de peregrinos, provavelmente até o fim do mundo, iria venerar as paredes sagradas onde ecoaram essas conversas; onde se ouviram os risos cândidos e cristalinos do Menino Jesus; onde se ouviu a voz grave, paterna e afetuosa de São José; onde se ouviu a voz modelada quase ao infinito como um órgão, de Nossa Senhora, exprimindo adoração, manifestando veneração, em todos os seus graus e modalidades. Em tudo isso Ela pensava.

Como pensava também nos milagres que Nosso Senhor praticaria na sua vida pública, nas almas que Ele iria conquistar, converter e salvar. Pensava em como toda essa bondade divina seria recusada pelos judeus, em como Ele teria de sofrer o esquecimento e a covardia dos Apóstolos, a traição de Judas e a morte na Cruz.

Ela pensava em Pentecostes, na dilatação da Igreja pela bacia do Mediterrâneo e por tantos lugares aonde chegariam os discípulos de seu adorável Filho.

Com vistas proféticas, Nossa Senhora considerava o reluzimento da Santa Igreja, saída vitoriosa das perseguições e brilhando sobre a face do mundo. Ela pensou na extraordinária figura de São Bento apartando-se da sociedade decadente do fim do Império Romano, fixando-se nas grutas de Subiaco e dando início, ali, a uma vida espiritual da qual nasceriam a Idade Média e a Civilização Cristã.

Mas, Nossa Senhora via também o processo de derrocada e ruína dessa Cristandade e todos os seus desdobramentos até os dias de hoje, lançando a humanidade na grave crise moral e religiosa que a Santíssima Virgem haveria de censurar em Fátima.

E por que não imaginarmos que Nossa Senhora considerou igualmente o triunfo de seu Imaculado Coração, por Ela prometido na Cova da Iria?

E essa meditação em torno do Santo Natal estende-se na consideração também da história individual de cada um dos que participam dos nossos ideais. Do caminho que a graça percorreu nas almas de todos, os altos e baixos, as correspondências e as infidelidades, as vitórias sobre si mesmo, às vezes as derrotas, e novamente a vitória e a misericórdia de Deus.

“Não me tireis os dias na metade da minha obra”

Tudo isso nós devemos considerar quando estivermos ante o presépio. E ao nos aproximarmos para venerar a maternal e enlevada figura da Santíssima Virgem, a respeitosa e protetora figura de São José, e, sobretudo, a imagem dAquele que é, segundo a Escritura, a pedra de escândalo que divide a História ao meio — e tudo quanto está com Ele é bom, tudo quanto é contra Ele é mau — façamos esta prece:

Eis-me aqui, Senhor Jesus Cristo, ajoelhado a vossos pés, antes de tudo para Vos agradecer.

Agradeço a vida que me destes. Agradeço o plano eterno que tínheis a respeito de mim, como de qualquer homem, um plano determinado e individual. Agradeço-Vos por terdes posto uma luta no meu caminho. Agradeço-Vos a força que me destes para resistir, para combater e para rezar.

Grato Vos sou por tudo isso, Senhor. Porém, há mais. Agradeço-Vos todos os anos de minha vida que já se foram e que se tenham passado na vossa graça. Agradeço-Vos também os anos que se foram e que não se passaram em vossa graça, porque Vós os encerrastes num determinado momento, e eu abandonei o caminho da desgraça, para entrar novamente na vossa graça.

Agradeço-Vos, ó Divino Infante, ó Menino Jesus, pelas mãos de Maria Santíssima e de São José, agradeço-Vos o momento em que eu disse “sim” ao vosso chamado e comecei a travar o bom combate por Vós.

Agradeço-Vos todo o auxílio que me destes para eu vencer os meus defeitos. Agradeço-Vos por não Vos terdes impacientado comigo, e por haverdes me conservado vivo para que eu ainda tivesse tempo de corrigi-los.

E se uma prece eu Vos posso fazer nesta noite de Natal, Senhor Jesus, formulá-la-ei inspirado nas palavras do Salmista, que Vos disse: Não me chames na metade dos meus dias (Sal. 101). E eu Vos digo: Não me tireis os dias na metade da minha obra, e ajudai-me para que meus olhos não se cerrem pela morte, meus músculos não percam seu vigor, minha alma não fique privada de sua força e sua agilidade, antes que eu tenha, por vosso louvor, em mim vencido todos os meus defeitos, galgado todas as alturas interiores às quais me destinastes, e que no vosso campo de batalha tenha eu, por feitos heroicos, prestado a Vós toda a glória que esperáveis de mim quando me criastes. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr. Plinio 09 – Dezembro de 1998

Uma meditação para o homem de hoje

Numa conferência para jovens, no tempo de Natal, Dr. Plinio fez duas meditações, de tipos diferentes, a fim de verificar qual delas mais tocava o coração de seus ouvintes. A primeira, seguindo o método de Santo Inácio de Loyola, com pouco apelo ao sentimento. Improvisou em seguida a outra, com pensamentos formulados mais de acordo com as novas gerações. Transcrevemos aqui o cerne da segunda meditação.

A bordo agora o tema por um prisma inteiramente diferente do da escola de Santo Inácio de Loyola. Isso servirá para verificar que tipo de meditação mais toca a geração dos que estão aqui.

Fundo de quadro

Imaginem-se vendo chegar os Reis Magos com suas caravanas, os animais carregados de tesouros, a estrela, etc., e esses Reis oferecendo ao Menino Jesus, em atitude de adoração, ouro, incenso e mirra.

Retendo na imaginação tal fundo de quadro, qual das cenas que vou descrever causaria a cada um dos que aqui estão mais alegria de alma? Por qual delas sentir-se-iam mais próximos do Menino Jesus?

N’Ele poderíamos considerar, entre outros aspectos, a infinita grandeza, de um lado; a infinita acessibilidade, de outro lado; e também sua infinita compaixão.

Grandeza do Menino Jesus e de Nossa Senhora

Ao considerar a infinita grandeza, podemos imaginar uma gruta alta, grande quase como uma catedral, que não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas onde o movimento das pedras nos fizesse pressentir vagamente as ogivas de uma catedral da futura Idade Média.

Podemos imaginar ainda a lapa onde ficava o berço do Menino colocada num ponto majestoso da encruzilhada dessas várias naves laterais naturais, com uma luz celeste, toda de ouro, pairando  sobre Ele naquele momento.

O Menino Jesus, com majestade de verdadeiro rei, embora deitado em seu presépio e sendo ainda uma criança. Ele, rei de toda majestade e de toda glória. O criador do Céu e da terra, Deus  encarnado feito homem. Ele, desde o primeiro instante de seu ser — portanto já no claustro materno de Nossa Senhora —, tendo mais majestade, mais grandeza, mais manifestações de força e de  poder que todos os homens que existiram e existirão na terra.

Ele, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão ou Alexandre. Ele, conhecedor de todas as coisas, sabendo  incomparavelmente mais do que qualquer cientista moderno. Ele, manifestando na fisionomia sempre variável essa majestade feita de sabedoria, de santidade, de ciência e de poder.

Imaginem-se, portanto, encontrando isso misteriosamente expresso na fisionomia desse Menino. Ele às vezes movendo-se, e no movimento aparecendo o seu lado de Rei. Abrindo os olhos, e no olhar aparecendo um fulgor de tal profundidade que fizesse ver n’Ele um grande sábio.

Estando rodeado por uma atmosfera tal que nimbasse de santidade todos os que d’Ele se acercassem. Uma atmosfera de pureza tal que as pessoas não se aproximassem sem antes pedir perdão por seus pecados, mas ao mesmo tempo se sentissem atraídas a se corrigirem, pela santidade que emanava do local.

Imaginem ali, ainda, Nossa Senhora aos pés do Menino Jesus, também Ela como verdadeira Rainha, com uma dignidade e imponência tais, que não precisava nem de roupas nobres nem de  tecidos de qualidade para se fazer valer.

Conta-se de Santa Teresinha que ela era tão imponente, que o pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro do carmelo contou, no processo de canonização, que viu certa vez uma freira, de costas, fazer alguma coisa, e essa freira era Santa Teresinha. O “advogado do diabo” então perguntou: “Como é que, vendo-a de costas, o senhor sabia que ela era Santa Teresinha?” Ele respondeu: “Pela majestade dela. Ninguém tinha a mesma majestade”.

Se assim foi Santa Teresinha, o que seria Nossa Senhora? Imaginem, portanto, Nossa Senhora majestosíssima, transcendente, puríssima, rezando ao Menino Jesus. E os anjos, invisíveis, cantando hinos de glorificação, com toda a atmosfera reinante saturada de valores tais que se diria haver naquela pobreza e naquela miséria uma atmosfera de corte.

Imaginem-se aproximando e sentindo a grandeza do Menino-Deus, e adorando-O pelos seus aspectos nobres, belos, santos, intransigentes e combativos. Adorando esse Menino que atrai para junto de si todas as formas de grandeza, todas as formas de pureza, todas as formas de santidade que d’Ele dimanam, e que não são senão participação  da santidade d’Ele; e que, ao mesmo tempo, rechaçando para longe de si o pecado, o erro, a desordem, o caos, a Revolução¹, deixa-os no chão, de longe, sem nem sequer ousar levantar os olhos para aquela cena magnífica em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor dominam completamente.

Enorme acessibilidade

Imaginemos, agora, o Menino Jesus imensamente acessível. Esse Rei tão cheio de majestade em certo momento abre para nós os olhos. Notamos que seu olhar puríssimo, inteligentíssimo, lucidíssimo, penetra em nossos olhos até o mais fundo. Vê o mais fundo de nossos defeitos, como também o melhor de nossas qualidades, e toca nesse momento a nossa alma, como tocou, 33 anos depois, a de São Pedro.

Conta-nos o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor para São Pedro foi tal que este saiu e chorou amargamente. Chorou a vida inteira. E esse olhar provoca em nós uma tristeza profunda por  nossos pecados. Dá-nos horror aos nossos defeitos.

Mas também, penetrando em nós, mostra-nos seu amor não só às nossas qualidades, mas também à condição de criaturas feitas por Ele. Um amor a nós, apesar de nossos defeitos, por sermos destinados a um grau de santidade e de perfeição que Ele conhece e ama enquanto podendo existir em nós.

E, quando o pecador menos espera, por um rogo amável de Nossa Senhora, o Menino sorri. E com esse sorriso, apesar de toda a sua majestade, sentimos as distâncias desaparecerem, o perdão  invadir nossa alma, uma qualquer coisa nos atrair. E, assim atraídos, caminhamos para junto d’Ele. Ele afetuosamente nos abraça e pronuncia nosso nome. — Fulano! Eu te quis tanto e te quero tanto! Desejo para ti tantas coisas e perdoo-te tantas outras. Não penses mais nos teus pecados! Pensa apenas, daqui por diante, em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida, quando tiveres alguma dúvida, lembra-te desta condescendência, desta amabilidade, deste beneplácito que agora te faço, e recorre a Mim por meio de minha Mãe, que atender-te-ei. Serei teu amparo e tua força,  e esse amparo e essa força hão de te levar ao Céu para ali reinar ao meu lado por toda a Eternidade.

Essa seria, portanto, a meditação enfocada pelo prisma da acessibilidade do Menino Jesus.

Infinita compaixão para com todos os homens

Imaginem, agora, a misericórdia do Menino Jesus, não só enquanto visando ao nosso bem e ao que há em nós de bom e de mau, mas olhando para a condição miserável de todo homem na terra.

Olhando, portanto, para nossa tristeza, para o sofrimento que cada um traz em si, passado, presente e futuro, que Ele já conhece porque é Deus. Olhando, inclusive, para o risco que nossa alma corre de ir para o Inferno. Pois o homem, enquanto está  na terra, arrisca-se a se condenar.

Imaginem, ainda, o Menino Jesus olhando o Purgatório e os tormentos que ali nos aguardam se não formos inteiramente fiéis. Brota n’Ele, então, um olhar de pena, de participação profunda na nossa dor, um desejo de remover esta dor em toda a medida que for possível para nossa santificação um desejo de nos dar forças para suportar essa dor na medida em que ela for necessária para nos santificarmos.

Notamos n’Ele, então, aquilo que tanto consola o homem, e que Ele não encontrou quando chegou sua hora de sofrer: a compaixão perfeita. Está na natureza humana — e é uma coisa reta — de se consolar na hora do sofrimento pelo fato de ter alguém que nos tenha pena. A pena divide o sofrimento. O homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre e comunica sua alegria, ele dobra essa alegria; quando está triste e comunica sua tristeza, divide essa tristeza. “A fortiori” somos nós assim em relação ao Menino Jesus, ao encontrarmos n’Ele a compaixão perfeita.

Em todos os sofrimentos de nossa vida, portanto, quando a taça a beber for muito amarga, devemos repetir por meio de Nossa Senhora a oração d’Ele: “Meu Pai, se for possível, afaste-se de mim este cálice; mas faça-se a vossa vontade e não a minha”. Quer dizer, em todos os momentos pediríamos que a dor passasse; mas se fosse da vontade d’Ele que ela viesse sobre nós, teríamos certeza de que durante a dor encontraríamos a dor compassível d’Ele: “Meu filho, Eu sofro contigo! Soframos juntos, porque Eu sofri por ti. Há de chegar o momento em que tu participarás eternamente  de minha alegria”. E nós podemos ter a certeza de que o olhar compassível de Jesus não nos abandonará um momento sequer de nossa existência.

Ao longo das vicissitudes da existência quotidiana deveríamos reter esta tríplice lembrança: a da majestade infinita, a da acessibilidade infinita, e a da compaixão sem limites do Menino Jesus em  relação a nós. E esta deveria ser uma lembrança sensível, pois procuraríamos compor em nossa imaginação o quadro tal qual ele nos toca.

Uma objeção

Uma objeção que se poderia fazer é que o presépio não pode conter ao mesmo tempo esses três aspectos. Não é verdade. Em Nosso Senhor, enquanto natureza humana, as perfeições, os estados de alma, também todos eles perfeitos, existiam em graus diversos ao mesmo tempo, conforme as circunstâncias de sua vida. Existiam, e Ele foi cheio de majestade, de acessibilidade, de exorabilidade, de compaixão para com os homens desde o momento em que veio à terra. É natural que, apesar de Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora aparecesse um aspecto, ora outro.

Escola de pintura especializada nos olhares

Seria muito bonito se numa igreja, em vez de um só, houvesse três presépios em três altares diferentes, nos quais as figuras e toda a ambientação representassem cada um desses aspectos,  facilitando assim a cada alma a meditação que mais lhe tocasse.

Como eu gostaria de ter entre nós pintores ou desenhistas que soubessem, por exemplo, pintar três presépios de acordo com essa concepção! Ou seja, presépio ostentando toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, ou toda a compaixão de Nosso Senhor. Como Seria bonito!

O difícil seria pintar aquilo que é o centro do presépio: um Menino recém-nascido que, sem perder as características  de Menino, tivesse tudo isso. E tivesse sobretudo um olhar. Como pintar um olhar infantil capaz de exprimir  tais coisas? Antes de pintor, esse artista deveria ser psicólogo, para primeiro imaginar esse olhar, e depois  pintá-lo.

Se alguém se sente propenso a pintar olhares, esse seria o pintor que iniciaria a nossa escola. Tenho a impressão de que, no pintar expressão de olhar, nossa escola estaria largamente  representada.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002

Luz, o grande presente

Ora, naquela mesma região havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. E eis que apareceu junto deles um Anjo do Senhor, e a claridade de Deus os envolveu, e tiveram grande temor. Porém o Anjo disse-lhes: Não temais; porque eis que vos anuncio uma grande alegria, que terá todo o povo. Nasceu-vos hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é o Cristo  Senhor (S. Lucas II, 8 a 11).

A noite ia em seu meio. As trevas tinham chegado ao auge de sua densidade. Tudo em torno dos rebanhos era interrogação e perigo. Quiçá alguns pastores, relaxados ou vencidos pelo cansaço,  estivessem dormindo.

Entretanto, outros havia a quem o zelo e o senso do dever não consentiam o sono. Vigiavam. E presumivelmente oravam também, para que Deus afastasse os perigos que rondavam. Subitamente, uma luz apareceu para eles e os envolveu: “a claridade de Deus os envolveu”. Toda a sensação de perigo se desfez. E lhes foi anunciada a solução para todos os problemas e todos os riscos. Muito mais do que os problemas e os riscos de alguns pobres rebanhos ou de um pequeno punhado de pastores. Muito mais do que os problemas e os riscos que põem em contínuo perigo todos os interesses terrenos. Sim, foi-lhes anunciada a solução para os problemas e riscos que afetam o que os homens têm de mais nobre e mais precioso, isto é, a alma. Os problemas e os riscos que ameaçam, não os bens desta vida, que, cedo ou tarde, perecerão, mas a vida eterna, na qual tanto o êxito quanto a derrota não têm fim.

Sem a menor pretensão de fazer o que se poderia chamar uma exegese do Texto Sagrado, não posso deixar de notar que esses pastores e esses rebanhos e essas trevas fazem lembrar a situação do  mundo no dia do primeiro Natal.

Numerosas fontes históricas daquele tempo longínquo nos relatam que se apoderara de muitos homens a sensação de que o mundo havia chegado a um fracasso irremediável, de que um emaranhado inextricável de problemas fatais lhes fechava o caminho, de que estavam em um fim de linha além do qual só se divisava o caos e a aniquilação.

Olhando para o caminho percorrido desde os primeiros dias até então, os homens podiam sentir uma compreensível ufania. Estavam num auge de cultura, de riqueza e de poder. Quanto distavam as grande nações do Ano 1 de nossa era — e mais do que todas o superestado Romano — das tribos primitivas que vagueavam pelas vastidões, entregues à barbárie e açoitadas por fatores adversos de toda ordem! Aos poucos, haviam surgido as nações. Essas tinham tomado fisionomia própria, engendrado culturas típicas, criado instituições inteligentes e práticas, rasgado estradas, iniciado a navegação e difundido por toda parte, tanto os produtos da terra, quanto os da indústria nascente. Abusos e desordens, havia-os por certo. Mas os homens não os notavam inteiramente. Pois cada  geração sofre de uma insensibilidade surpreendente para com os males de seu tempo.

O mais cruciante da situação em que  se encontrava o Mundo Antigo não estava, pois, em que os homens não tivessem o que queriam. Consistia em que “grosso modo” dispunham do que desejavam, mas depois de ter feito laboriosamente a aquisição desses instrumentos de felicidade, não sabiam o que fazer deles. De fato, tudo quanto haviam desejado ao longo de tanto tempo e de tantos esforços, lhes deixava na alma um terrível vazio.

Mais ainda, não raras vezes atormentava-os. Pois o poder e a riqueza de que não se sabe tirar proveito servem tão-só para dar trabalho e produzir aflição. Assim, em torno dos homens, tudo eram trevas. — E nessas trevas, o que faziam eles? — O que fazem os homens sempre que baixa a noite. Uns correm para as orgias, outros afundam no sono.

Outros, por fim — e quão poucos — fazem como os pastores. Vigiam, à espreita dos inimigos que saltam no escuro para agredir. Aprestam-se para lhes dar rudes combates. Oram com as vistas postas no céu escuro, e as almas confortadas pela certeza de que o sol raiará por fim, espancará todas as trevas, eliminará ou fará voltar a seus antros todos os inimigos que a escuridão acoberta e convida ao crime. 

No Mundo Antigo, entre os milhões de homens esmagados pelo peso da cultura e da opulência inúteis, havia homens de escol que percebiam toda a densidade das trevas, toda a corrupção dos costumes, toda a inautenticidade da ordem, todos os riscos que rondavam em torno do homem, e sobretudo todo o “non sense” a  que conduziam as civilizações baseadas na idolatria.

Estas almas de escol não eram necessariamente pessoas de uma instrução ou de uma inteligência privilegiadas. Pois a lucidez para perceber os grandes horizontes, as grandes crises e as grandes  soluções, vem menos da penetração da inteligência do que da retidão da alma. Davam-se conta da situação os homens retos, para os quais a verdade é a verdade, e o erro é o erro. O bem é o bem, e o mal é o mal. As almas que não pactuam com os desmandos do tempo, acovardadas pelo riso ou pelo isolamento com que o mundo cerca os inconformados.

Eram almas deste quilate, raras e  esparsas um pouco por toda parte, entre senhores e servos, anciãos e crianças, sábios e analfabetos, que vigiavam na noite, oravam, lutavam e esperavam a  Salvação.

Esta começou por vir para os pastores fiéis. Mas, passado tudo quanto o Evangelho nos conta, ela extravasou dos exíguos confins de Israel e se apresentou como uma grande luz, para todos os que, no mundo inteiro, recusavam como solução a fuga na orgia ou no sono estúpido e mole.

Quando virgens, crianças e velhos, centuriões, senadores e filósofos, escravos, viúvas e potentados começaram a se converter, baixou sobre eles o ciclo das perseguições. Nenhuma violência, porém, os fazia vergar. E quando, na arena, fitavam serenos e altaneiros os césares, as massas ululantes e as feras, os Anjos do Céu cantavam: Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade.

Este cântico evangélico, nenhum ouvido o ouvia. Mas ele comovia as almas. O sangue desses serenos e inquebrantáveis heróis se transforma, assim, em semente de novos cristãos. O velho mundo, adorador da carne, do ouro, e dos ídolos, morria. Um mundo novo nascia, baseado na Fé, na pureza, na ascese, na esperança do Céu. Nosso Senhor Jesus Cristo, resolverá tudo.

* * *

Há ainda hoje homens de boa vontade autênticos, que vigiam nas trevas, que lutam no anonimato, que fitam o Céu esperando com inquebrantável certeza a luz que voltará?

— Sim, precisamente como no tempo dos pastores. […] A esses autênticos homens de boa vontade, a esses genuínos continuadores dos pastores de Belém, proponho que entendam como dirigidas a eles as palavras do Anjo: “Não temais, porque eis que vos anuncio uma grande alegria, que terá todo o povo”!

Palavras proféticas, que encontram seu eco na promessa marial de Fátima. Poderá o comunismo espalhar seus erros por toda a parte. Poderá fazer sofrer os justos. Mas, por fim — profetizou Nossa Senhora na Cova da Iria — o seu “Imaculado Coração triunfará”.

Esta é a grande luz que, como precioso presente de Natal, desejo para todos os leitores, e mais especialmente, para os genuínos homens de boa vontade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito da “Folha de S. Paulo”, 26/12/71)