Noite santa, Silenciosa…

Ao longo dos séculos da história cristã, as noites de Natal têm recordado aos homens e lhes feito compartilhar as bênçãos inefáveis do augusto momento em que o Redentor nasceu para o mundo. Sobretudo antes das festas laicas e comercializadas de hoje, as celebrações natalinas possuíam um néctar, uma poesia, um encanto, um discernimento de espírito por onde todos como que sentiam e conheciam a graça de Deus e de Cristo que desce como um orvalho do mais alto do céu, ou seja, do claustro sacratíssimo de Nossa Senhora, e sem transgredir a virgindade intacta da mãe, entra nesta terra. A Virgem teve um filho e a humanidade se extasia!

Dir-se-ia revestido de completa beleza o cenário dessa noite na Terra Santa, iluminada por estrelas reluzentes como nunca, povoada de Anjos que anunciam o nascimento do Salvador. Entretanto, como lucra em formosura o Natal, quando considerado nas manifestações de piedade e de inocência com que o festejam os povos germânicos! Imagine-se a igrejinha, a paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando 10 para a meia-noite; os aldeões que se aproximam com os tamancões grandes, porque a neve enche o caminho, e ainda cai aos flocos. A igreja, bem aquecida, acolhe generosamente os seus fiéis que entram depressa e logo se acomodam naquele pequeno palácio do Menino-Deus.

Ao longe, as casinhas da aldeia espargem cintilações douradas através de suas janelas, pontilhando de luz o imenso manto de neve com que se veste a natureza. Das chaminés escapam tufos de fumaça: é a festa de Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, atraentes e substanciosas delícias da culinária alemã postas no forno, os presentes junto à esplendorosa árvore montada na sala principal, enfim, tudo pronto para as santas alegrias que se seguem à jubilosa celebração litúrgica.

Esses vários aspectos constituem, dentro da inocência da neve, um quadro só, completado pelos sentimentos da canção natalina por excelência, o “Stille Nacht”.

“Stille Nacht! Heilige Nacht!Alles schläft, einsam wacht Nur das traute hoch heilige Paar. Holder Knabe im lockigen Haar, Schlaf in himmlischer Ruh!”

Noite silenciosa, noite Santa! Tudo dorme. Solitário, está velando O nobre e altamente santo Casal. E o Menino de cabelos cacheados, Dorme em celestial tranqüilidade!

Composta no século XIX por um modesto professor austríaco, o mundo inteiro a adotou como a música do Natal. E desde então não se compreende um 25 de dezembro em que não se entoe, nos mais diversos países e nos mais diferentes idiomas, o “Stille Nacht” é o nosso “Noite Feliz”…

Por movimentos aos quais não é alheia a mão da Providência, o consenso popular soube compreender o significado mais profundo desta canção, e daí a indiscutível primazia dela sobre as demais melodias natalinas. Que significado?

No “Stille Nacht” existe em alto grau a ideia de que os Céus se abriram, e o Menino Jesus fez um percurso gigantesco para chegar até nós. Portanto, por trás da ideia da Encarnação, e como elemento necessário para se situar inteiramente a posição do homem em face do nascimento do Verbo, está a noção de um acontecimento fabuloso, desmedido, imenso, que se deu e se converteu em intimidade e amor. E, por causa disso, em ternura, o tempo inteiro maravilhada.

É a ternura diante das fragilidades de um Deus feito homem, diante das quais nós não temos nem sabemos o que dizer. De outro lado, porém, esse mesmo Deus é o Senhor do Universo, onipotente, eterno Juiz de toda a Criação. Portanto, num sublime paradoxo, é a ternura e a compaixão para quem é infinitamente mais do que nós, extremamente delicadas, envoltas num alto critério de sentimento para serem dignas de se apresentarem Àquele que de fato merece essa compaixão, mas que é Deus. Então é a piedade humana ao mesmo tempo admirativa e súplice, é o homem que tem pena fazendo um pedido ao Deus de quem tem pena… Outro paradoxo, outra grandiosa beleza!

Paradoxos e contrastes que despertam em nossas almas toda sorte de delicadeza de emoções. Ao lado da ternura e da compaixão, a reverência, a veneração, a submissão de todo o nosso ser ao Divino recém-nascido, e um deixar-se levar a subidas cogitações às quais esse acontecimento entre todos bendito nos convida. Além disso, a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e um imenso agradecimento de quem recebe uma misericórdia sem limites, por nos sentirmos visitados e impregnados por todas as graças que Ele trouxe ao mundo, para a nossa salvação.

A todas essas boas disposições nos inclina a melodia do “Stille Nacht”, cujas notas e inflexões têm isso de próprio, que fazem um comentário do sentido da palavra cantada. Então, nos tons mais baixos, é a ternura vigilante que se debruça sobre a manjedoura, velando para que nada toque no Menino, que nada O moleste. Ele está chorando, mas a Mãe o consola… E com que incomparável desvelo!

Em outros momentos, porém, nas notas mais agudas, novamente ressalta a ideia de que este Menino de cabelos cacheados, é Deus. O Menino dorme. E a sua tranqüilidade, assim como Ele, não é da terra. É do Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Diante do Presépio

“Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita, Mãe d’Ele mas também nossa, …e São José, o varão sublime, que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades.

Ao contemplá-Los, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós…”

Plinio Corrêa de Oliveira

Como seria a música de Natal perfeita?

Esse assunto, sobre o qual me perguntam, é uma matéria abundante, com o inconveniente de que versa sobre um tema do qual não entendo muito, que é a música. Mas enfim, de algo eu posso tratar.

Um canto que considerasse a vida de Nosso Senhor

Primeiro, a respeito do que seria a música de Natal perfeita. Há uma porção de hipóteses que se entrecruzam nisso, e depois uma série de feitios de espírito que se colocam diante disso. Por exemplo: a mim pessoalmente me agradaria uma música de Natal que considerasse o mistério do Menino Jesus que se encarnou, e apareceu entre nós… O que todos sabem. E que se relacionaria, entretanto, com o futuro do Menino Jesus; de maneira que dissesse alguma coisa a respeito dos trinta e três anos de vida de Nosso Senhor. Porque o nascimento, por mais sublime que seja, é apenas o começo. E quem considera o começo de uma estrada, volta os olhos para a extensão da estrada que se desenrola a partir daquele início.

E, portanto, eu gostaria de uma música de Natal que, em determinado momento, desenvolvesse algo — um pouco que fosse — sobre os trinta anos de vida oculta, contemplativa, d’Ele com Nossa Senhora. Depois a dor da despedida, a vida pública, a Paixão, a Morte, a Ressurreição e a glória no Céu! Terminando, por exemplo, com este pensamento: “Se os anjos cantaram ‘glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade’, o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus!” Ninguém teve a boa vontade que Ele teve, em nenhum sentido, nem de longe, nem comparado com nada. E então a glória d’Ele também é superior a de qualquer outro. Quando cantaram “glória a Deus no mais alto dos Céus”, os anjos louvaram a Jesus enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E quando entoaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram a Ele enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem; e, com essa verdadeira ordem, a verdadeira paz.

Depois, a luta d’Ele em sua vida pública e a Ascensão ao Céu, porque Ele era o Homem de boa vontade por excelência, que realizou tudo o que tinha de realizar e recebeu uma glória incomparável no Céu. Essa seria uma ideia que muito me compraz.

Mas especialmente me agradaria focalizar o caráter militante da Igreja. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o “Stille Nacht”, quase um canto épico. E não seria dirigida somente para as crianças. O Natal é, a titulo especial, uma festa de criança, mas ela é uma festa para todo mundo. Nosso Senhor chegou até a idade madura, trinta e três anos. E, portanto, o normal é que essa festa seja para todas as idades.

Canções para diversos estados de alma

Eu também imaginaria de bom grado canções de Natal para diversos estados de alma. Para a alma inocente, mas que se sente imersa neste mundo e dentro da luta para manter a virtude, que tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço e que dure até o fim.

Depois, o cântico de Natal da alma penitente. Há duas espécies de penitentes.

O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, que se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José, pedindo que ele obtenha da Santíssima Virgem um olhar de compaixão. Nossa Senhora atende ao pedido, e o recebe ultra maternalmente. Ele então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus.

Ele se sente indigno de entrar na gruta, e canta do lado de fora, dizendo:
“Até o boi e o burro, com seus bafos, são dignos de ficar aí dentro, porque estão na ordem de Deus. Mas eu sou um pecador, que rompeu em determinado momento essa ordem; e não sou digno de me aproximar. Aonde os animais entram, eu não entro! Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!”

Ela o cobre, e ele, sob o manto da Santíssima Virgem, recita um “Confiteor”. E recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como o gesto instintivo de uma criança, mas tem o sentido de um perdão. E ele se retira agradecido.

Depois podia haver a canção de Natal do pecador atolado no pecado, que gostaria de sair do pecado, mas que não quer querer. Mas ao menos chega ali e, de fora, canta pedindo a Nossa Senhora que lhe mande um mensageiro, que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe uma mensagem em seu bico.

A súplica é entregue, e nesta ele diz que não é como o pecador anterior, que rompeu com a Lei de Deus, mas depois rompeu com o pecado; e, quando entrou na gruta já estava reconciliado com o Criador. Mas ele não é nem o pecador arrependido, nem o boi, nem o burro: é a serpente. Ele está em pecado mortal! E, carregado de pecados, tem tristeza e ao mesmo tempo, esperança! E pede a Nossa Senhora, de longe, que Ela remova as montanhas internas do pecado na sua alma, e faça dele um homem que afinal se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Ele é o primeiro dos visitantes para quem o Menino Jesus, quando o pecador se aproxima da Santíssima Virgem, sorri e abre os braços. O pecador pede perdão e, contrito e perdoado, sai da gruta de Belém.

Seria algo muito adequado para os vários estados de alma, que daria ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente. O Natal do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. O Natal do cruzado do século XX.

Isso é uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento. Essa seria uma canção de Natal, a meu ver, perfeita.

O ”aroma” da graça de Natal na São Paulinho

A tudo isso eu acrescento uma coisa que me parece decisiva, como elemento dentro do assunto. Os Natais de outrora tinham uma sacralidade muito maior que dos dias atuais. No meu tempo de moço, dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. E alguns homens importantes tomavam na rua um ar de quem não percebia isso, e que estavam preocupados com outras coisas. Mas tinham o cuidado de não contundir, porque seria fazer saltar uma bomba!

E o centro velho de São Paulo, formado pelas Ruas Libero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois aquele conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, era assim: apareciam mais as casas que vendiam brinquedos e tinham na vitrine um presépio. Possuíam também — como se dizia naquele tempo — gramofones, que tocavam músicas de Natal. Andava-se a pé, por exemplo, na Rua Direita, e de ponta a ponta ouviam-se músicas de Natal, em estágios diferentes de andamento.

Mas quando chegava a noite de Natal, e as famílias todas — numa hora em que costumavam estar dormindo — começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho e na paz, as ruas ficavam vazias de qualquer gente que não fosse caminhando para o templo. E de dentro da igreja saía uma luz forte, que iluminava a rua cada vez que se abria a porta; começam a cantar etc. E depois batia o sino e iniciava a Missa, com o cântico de Natal…

Tinha-se a sensação de uma graça que vinha de uma altura incomensurável, e era de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito, as quais parecem incompatíveis, mas convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime; e de outro lado a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites.

Devo dizer que a “organizadora” das nossas festas de Natal era Dona Lucilia. Mas somente muito tempo depois dessas festas natalinas, dei-me conta de que eu gostava dessas comemorações porque o espírito dela as animava. Eu talvez de nada da minha infância tenha tantas saudades quanto desse “aroma” da graça de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)

Nasceu-nos um Menino

“Puer natus est nobis, et filius datus est nobis: cujus imperium super humerum ejus: et vocabitur nomen ejus, magni consilii Angelus” — Nasceu-nos um Menino e um Filho nos foi dado; o império repousa sobre seus ombros e será chamado Anjo do Grande Conselho.

Sob o sopro do Espírito Santo, a Igreja canta o dom que Deus lhe fez. É a voz dela, o puro sol sem atravessar vitral algum. Música composta para ser entoada por todos os povos, de norte a sul, de leste a oeste da face da Terra. Em todas as latitudes e longitudes, eis a alma católica universal, serena, simples, repassada de significado e substância, exprimindo a alegria que se eleva diretamente  ao Céu, o recolhimento desprendido dos valores terrenos, o caráter profundamente religioso do nascimento de Cristo Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

A Sabedoria do Menino Jesus na Manjedoura

Será que ao dirigir-se a Jesus Menino devemos fazê-lo como a uma criança sem discernimento? Ou como a Alguém dotado de extraordinária Sabedoria? Tal Sabedoria existe na alma de uma criança? O que pedir a Ele no dia do Natal? Com profunda piedade unida à doutrina, Dr. Plinio discorrerá sobre estas e outras questões.

Diante da proximidade da festa supremamente significativa do Santo Natal de Nosso Senhor, parece-me que deveríamos nos perguntar: Como devemos nos preparar para o dia de Natal? E, sobretudo, como prepararmo-nos para o momento culminante deste dia, a Santa Missa? E ainda como nos prepararmos para os dois momentos auges dentro dela, a Consagração, e a Comunhão?

Como preparar-se para o Natal

Para esta preparação há uma dificuldade. Creio existir em muitas pessoas a ideia, apresentada pela iconografia comum, de que ao adorar o Menino Jesus, adora-se uma criança com todas as suas características e, portanto, até mesmo com a inteligência e falta de discernimento próprias a todo recém-nascido. Torna-se assim difícil a adoração de um ente em relação ao qual não se tem nenhuma comunicação de pensamento; e que sendo verdadeiro Deus é também homem, e em sua natureza humana não tem a sabedoria, a inteligência e a penetração de espírito do homem adulto. De tal maneira que a fisionomia humana que nós temos representada diante de nós, não nos convida a uma comunicação de alma como diante de uma pessoa que começa a pensar e a refletir. Por isso, a meditação clássica que se faz diante de um presépio consiste em ver o Menino Jesus tão criança, tão pequeno, tão frágil, e estabelecer o contraste entre a imensidade de Deus e aquela pequena criatura na qual Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, com a qual Ele assumiu a união hipostática.

Jesus, apesar de menino, possuía toda a inteligência e discernimento

Então se faz geralmente uma meditação a respeito da humildade de Deus, ou do desejo extremo de nos salvar que levou Nosso Senhor a Se reduzir àquela condição de frágil criatura posta numa manjedoura. Esta ordem de ideias é muito boa, ao ponto de ter se tornado comum, talvez demasiado comum. É possível, portanto, que se queira para esse Natal uma ordem de ideias mais perfeita, ao menos ao nosso modo de ver.

Deveríamos então nos perguntar se a iconografia católica, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como uma criança sem discernimento, olhando para as coisas sem ver bem o que é que são, sem entender o que está em torno de si, se essas imagens correspondem a algo de verdadeiro e, portanto, se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha essa inteligência própria à primeira infância.

A isso se deve responder o seguinte: Nosso Senhor Jesus Cristo, de algum modo, realmente teve as várias idades pelas quais Ele passou. Portanto, possuiu verdadeira alma infantil, de adolescente, de moço e de homem maduro. Porém, isso não quer dizer que Ele, em sua infância, tivesse a fraqueza e a falta de discernimento próprias a este estado.

Sapientíssimo desde o ventre materno

Ensina a Teologia que desde o momento da Encarnação, ainda mesmo no ventre de Nossa Senhora, Jesus já possuía toda a inteligência e lucidez, sendo, portanto, uma criança sapientíssima, embora a manifestação de sua sabedoria se desse de acordo com o comum de uma criança. Portanto, ainda que inteligentíssimo, Ele era realmente uma criança.

Assim sendo, vê-se que a iconografia católica não erra, porém mostra apenas um aspecto da verdade. Com certeza, para aqueles que tratavam com o Menino Jesus, Ele deveria causar a impressão de uma criança sujeita às condições comuns de criança. Porque o milagre não podia aparecer n’Ele de um modo irrecusável. Mesmo em sua vida pública, Ele praticou numerosos milagres que não possuíam o caráter de evidência; eram milagres mais ou menos como os que se dão em Lourdes; claros o bastante para que uma pessoa de boa-fé possa crer, mas não tão manifestos que excluam a necessidade da Fé. Pois, se o Menino Jesus, posto numa manjedoura, começasse a falar e dissertar, como se fosse um homem dotado de uma sabedoria extraordinária, seria patente tratar-se de um menino inteiramente incomum, e a Fé teria que ceder lugar à certeza. Por isso, Ele possuía as aparências de criança, pois por humildade Ele quis respeitar o tempo necessário e ir gradualmente Se revelando.

Jesus veio ao mundo conhecendo todo o passado, o presente e o futuro

Quando consideramos Nosso Senhor Jesus Cristo Menino, devemos considerar este mistério: Sendo verdadeira criança, parecendo possuir apenas um discernimento pueril, tem em Si toda a sabedoria da qual a natureza humana é capaz. De maneira que aquela Criança na manjedoura tinha incomparavelmente mais inteligência, conhecimento e santidade do que tiveram todos os entes que existiram antes e depois d’Ele sobre a Terra.

Devemos por isso considerar que ali deitado na manjedoura, Nosso Senhor Jesus Cristo via tudo quanto deveria fazer na Terra. Ele conhecia tudo o que em torno d’Ele se passava. Pela vontade d’Ele, todas as coisas eram de forma tal qual Ele queria. Ao contemplar Nossa Senhora, o Menino Jesus sabia ser Ela como era por vontade sua. Enquanto Maria O adorava, Ele percebia claramente que por sua vontade Ela o fazia e correspondia a essa adoração com uma generosidade, uma bondade perfeita, que inundava Nossa Senhora de gáudio.

Por sua vez, olhando para Ele, Nossa Senhora conhecia o grau de discernimento e santidade que havia n’Ele. Travava-se assim um diálogo mudo, mil vezes mais eloquente do que um diálogo falado, diálogo maravilhoso e insondável, no qual a Virgem Mãe se comunicava com seu Filho que revelava a Ela os mistérios de sua sabedoria e santidade, deixando-A arrebatada de enlevo, e fazendo-A crescer cada vez mais em santidade.

No primeiro Natal, Jesus via todos os Natais da História

Talvez o primeiro diálogo de Nosso Senhor com Nossa Senhora tenha consistido em considerar o seguinte: Pela vontade de Jesus, que acabava de nascer, é que estavam naquele lugar pobre. Pela vontade d’Ele os pastores vieram visitá-Lo. Ele sabia, já ao encarnar-se, que deveria morrer na Cruz, e talvez naquele momento tenha oferecido ao Padre Eterno tudo quanto Ele faria nesta Terra, para o cumprimento de sua missão.

É preciso ressaltar que Ele não pensava apenas em sua vida terrena, mas pensava na missão da Igreja por todos os séculos. Ele tinha a intenção de que seu nascimento fosse o primeiro Natal, e conhecia todos os Natais que viriam depois, até o fim do mundo. Sem dúvida, sabia de todas as magníficas festas de Natal nas esplêndidas catedrais da Idade Média; nas belas e nobres festas, em tantas igrejas do “Ancien Régime”; nas comovedoras e veneráveis igrejas dos séculos passados.

Ele viu também os Natais modernos, carentes de sentido sobrenatural, e celebrados talvez com um estado de espírito oposto ao que se deveria ter. Mas, sem dúvida, viu com imenso agrado os que permaneciam fiéis ao verdadeiro espírito do Natal, mantendo-se verdadeiramente católicos apesar das perseguições, das lutas e das dificuldades.

Quem sabe se o último dia do mundo não será um Natal?

Ele previu os esplêndidos Natais do Reino de Maria, e conheceu também os tristes Natais no tempo em que a humanidade do Reino de Maria começará a decair inexoravelmente, talvez entrando pelo caminho que levará ao fim do mundo. Ele previu até mesmo o último Natal.

Como será este último e grandioso Natal?

Eu o imagino da seguinte maneira: poucos fiéis esparsos pela face da Terra, festejando sozinhos o verdadeiro Natal, talvez sem se conhecerem, e percebendo que nada mais pode durar porque a Igreja Católica está em seus últimos haustos…

Quem sabe se à meia-noite do dia vinte e quatro do último dezembro da História, quando tudo parecer completamente perdido, um raio percorrerá o céu do Oriente ao Ocidente, um terror se apoderará dos povos, os anjos aparecerão, a abóbada celeste se enrolará como um pergaminho, e virá o Filho do Homem, em toda a sua majestade, para julgar vivos e mortos. Talvez enquanto alguns poucos fiéis, ao som do “Stille Nacht”, comemoram o nascimento de Cristo Nosso Senhor, Ele volta à Terra em meio às glórias do Natal e, de repente, começa a surgir a aurora, os mortos começam a ressuscitar, os justos aclamam Nosso Senhor, Nossa Senhora aparece à frente do cortejo das almas eleitas, e começa o julgamento.

Pedir a graça de permanecer fiel ao verdadeiro espírito de Natal

E, se admitirmos essa hipótese, é conveniente deitarmos o olhar para esses últimos irmãos, vítimas da última perseguição, e procurarmos compreender o sentido profundo do Natal para os que são perseguidos, desde o Natal das catacumbas até o Natal do fim dos tempos.

De tudo isso nos devemos lembrar ao aproximarmo-nos do Santíssimo Sacramento, quando O adorarmos após o milagre da Transubstanciação e quando O recebermos na Santa Comunhão. Então, por meio de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, roguemos a Nosso Senhor que nos prepare espiritualmente para as provações que podem sobrevir.

Posto na manjedoura só para mim

Peçamos a Nosso Senhor perdão pelas faltas que tenhamos cometido, e supliquemos-Lhe que Se digne misericordiosamente fechar os olhos para nossos pecados, da mesma forma que nascendo fechou os olhos para as infidelidades do povo eleito e do mundo antigo. Roguemos que Ele assim inicie conosco uma nova era de graças, de misericórdia e de bondade, uma era de paz, na qual, inteiramente reconciliados com Ele, possamos ser os filhos que Ele nos convida a ser. Essas são algumas das orações que podemos oferecer a Ele, unidas a gemidos de arrependimento e manifestações de esperança, confiança e certeza de que, se Ele veio à Terra para salvar os homens, veio para nos salvar a nós; e que se Ele esteve na manjedoura para o bem dos homens, lá esteve para o meu bem.

Ainda que não houvesse senão um homem, e esse fosse eu, Ele teria Se encarnado e seria posto na manjedoura por amor a mim. De maneira que é legitimo imaginar que o Menino Deus lá está por causa de mim. Por isso devemos pedir a Ele que esse ato de amor maravilhoso não seja estéril em nossas almas, e que a bondade d’Ele passe por cima de nossos pecados e arrase os obstáculos edificados por nós, e, finalmente, nos converta fazendo-nos pertencer completamente a Ele. É isso que por meio de Nossa Senhora aconselho pedir na noite de Natal.

Oferecer os pedidos numa bandeja de ouro

Tenhamos em conta que bem junto ao presépio estava Nossa Senhora. Diz o Evangelho que os pastores O encontraram com Maria, indicando que só com Nossa Senhora, e junto a Ela, se encontra Nosso Senhor. Consideremos também que no momento em que veio ao mundo o Salvador, Ela conhecia que tudo quanto Ele deveria sofrer, o faria por nós. Ela pediu a Ele todas as graças necessárias para cada um de nós. E ainda agora no Céu continua a pedi-las.

Unamo-nos a esse pedido. Usando a expressão de São Luís Grignion, coloquemos nosso pedido nas mãos de Nossa Senhora, como um camponês que põe uma fruta comum numa bandeja de ouro, para oferecer ao rei. A salva de ouro são as mãos e o Imaculado Coração de Nossa Senhora. Peçamos que Ela recolha nosso pedido e o apresente a seu Divino Filho.

Com a certeza de sermos bem recebidos e atendidos, pois Nossa Senhora nunca recusa coisa alguma do que lhe peçamos, podemos transpor o Natal.

Oração para o momento da Transubstanciação

No auge do Natal, no momento da Transubstanciação, para mim a oração ideal é a “Salve Regina” ou o “Memorare”, pedindo a Nossa Senhora que me torne bem consciente de que nunca se ouviu dizer que Ela tenha recusado um pedido, e, portanto, naquela hora sacrossanta não recusaria o meu. E então peço a graça de ser inteiramente d’Ela. Apesar dos meus defeitos e ingratidões, que Ela tome conta de mim, e me faça inteiramente d’Ela, para eu ser o herói e o santo que Ela quer que eu seja. Esta é, em especial, a oração que nós devemos fazer na noite de Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1971)

Gloriosa noite coroada de contradições

Senhor Jesus, com quantas contradições quisestes coroar a noite mil vezes gloriosa de vosso Santo Natal!

“Coroa” sim, é bem este o vocábulo que convém a esse conjunto de circunstâncias com que quisestes cercar a hora tão rica em símbolos de glória e de dor, na qual, nascendo do seio da Virgem Mãe, iniciastes a caminhada esplendorosa que, conduzindo-Vos da gruta de Belém até o alto do Tabor, e deste último ao Calvário, haveria de ter seu termo final no momento glorioso e terrível em que destruireis o Anticristo, encerrareis por um terrível decreto de extermínio a História da humanidade e baixareis à Terra para iniciar o julgamento de todos os homens!

Contemplando essas cenas de dor e de vitória, de glorificação suprema como de condenação inexorável e extrema, situamos a Festa de vosso Santo Natal em sua plena perspectiva histórica. Sim, uma perspectiva na qual Deus e o demônio, o Céu e o Inferno, num contraste implacável, em uma luta suprema, haveriam de desfechar os seus golpes até o momento em que, cessada a História, só restariam em confronto os bons e os maus, uns votados pela Justiça eterna para a felicidade inteira, perfeita, gloriosa e sem fim, e outros para o abismo perpétuo e insondável de dores, de opróbrios e de vergonha, onde tudo não é senão derrota, insucesso, gemido e revolta perfeitamente inútil.

Na Noite Feliz os Anjos cantaram “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e na Terra paz aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Sim, aos homens de boa vontade. Porém, já havia também sob a abóbada celeste, constelada de estrelas, homens de má vontade. Certamente não era para eles – os malditos, os precitos – o precônio da paz, mas o da inexorável e total desgraça.

Vós quisestes que rodeassem vosso Presépio não só as glórias de aturdir, que Vos tocam na infinitude de vossa Santidade, mas as doçuras insondáveis do perfeito Coração de Mãe que Vos adorou desde o primeiro instante de vossa concepção.

É no ápice de todas essas perfeições que nossos olhos Vos contemplam hoje, na noite de Natal. De tantas contradições ao mesmo tempo magníficas e supremas, deslumbrantes e terríveis decorre um ensinamento que, súplices, Vos pedimos marqueis em nossos corações.

Também o mundo contemporâneo está imerso na contradição entre a verdade e o erro, o bem e o mal, a beleza e a hediondez. De um lado, contemplamos-Vos, Senhor Jesus, e vossa Santa Mãe, junto a quem refulge a santidade de José; e de outro, vemos o oceano das ignomínias, dos crimes, das abjeções nas quais vai se precipitando o mundo “totus in maligno positus est” (1Jo 5, 19).

Para onde quer que nos voltemos, algo vemos ou ouvimos que Vos ofende, ultraja e conspira contra Vós. Não há o que não se volte para Vos escarnecer, golpear, fazer sangrar e arrastar à Cruz. Em torno de Vós tudo é contradição, no sentido de que quase não há senão mal, e este é essencialmente contraditório.

Senhora das Dores, fazei que compreendamos esta hora de contradição, mantendo-nos genuflexos aos pés da Cruz, mas ao mesmo tempo eretos e destemidos como guerreiros, como Anjos em pleno campo de batalha. Combatentes implacáveis, de coração abrasado de amor a Vós e a vosso Divino Filho, para esmagarmos o mal, destroçarmos as contradições, elevar-Vos ao fastígio da glória de vosso Reino, ó Maria!(*)

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

* Conferência de 23/12/1993.

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei, a quem devemos obedecer, conhecendo a sua vontade e executando o que Ele nos manda com amorosa e pormenorizada exatidão.

Para isto, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos, por nossas boas obras, pela vida interior. Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.

ENCONTRO COM O CORAÇÃO EUCARÍSTICO DE JESUS

Certa vez perguntaram a Napoleão Bonaparte qual havia sido o dia mais feliz de sua vida. Apesar de toda a glória que lhe obtiveram seus ribombantes triunfos militares e políticos, ele não hesitou  em responder: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”. Este é um exemplo muito ilustrativo de quanto uma alma fica marcada, de modo indelével, pelo momento em que se abre para ela o  convívio com Nosso Senhor sacramentado. Tal se passou também com Dr. Plinio, naquele 19 de novembro de 1917, quando se aproximou pela primeira vez da Sagrada Eucaristia. Décadas mais  tarde, ele se comprazeria em recordar essa inesquecível data:

 

A atmosfera que cercava as Primeiras Comunhões, no meu tempo de menino, era muito especial, porque fora organizada segundo a doutrina e a mentalidade de São Pio X, o Pontífice das Primeiras Comunhões. Antes dele, a tendência corrente era de que uma pessoa só se aproximasse da Santa Mesa quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças a recebam, pois não têm critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

O que importa é o grau de inocência

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque, se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E, mesmo nesse início da vida de pensamento, as graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé. É esse um dos motivos primordiais pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia.

Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, quando ela passa a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Trajes especiais

São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. Datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas nessas ocasiões, e os trajes  cerimoniosos com os quais meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus sacramentado, símbolos do coração inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Recordo-me de que, na minha época (e talvez esse costume se conserve até hoje), as meninas apareciam diante de Nosso Senhor, o Divino Esposo das almas, trajadas de noiva, com vestido longo,  o véu cingido na fronte por uma grinalda de flores brancas, e brancos também os sapatos.

Por sua vez, os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto o permitiam as posses de seus pais. Aqueles com mais recursos mandavam confeccionar uma roupa especial para a ocasião. E no meu tempo, o hábito de Primeira Comunhão masculino era a cópia do uniforme solene de um dos colégios mais famosos do mundo — o “Eaton”, da Inglaterra: uma roupa muito pomposa, consistente em paletó e calça de casimira inglesa e corte elegante, camisa engomada, de colarinho duro, gravata escura. No braço esquerdo fixava- se um laço de fita branca, em cujas pontas brilhavam pingentes dourados. O branco simbolizava a castidade e a virgindade do menino; o dourado lembrava a sua fé.

Depois da cerimônia, a festa No dia da Primeira Comunhão, após o ato na igreja (comumente realizado pela manhã), as respectivas famílias costumavam se reunir nas casas dos meninos, onde as  mães haviam preparado uma grande festa para celebrar a data memorável. Além dos parentes, eram convidadas todas as crianças com quem o filho ou a filha tinha relações, não sendo raro  ajuntarem-se vinte ou trinta pimpolhos, em torno de uma lauta mesa. Naqueles idos de 1917, a maravilha que fazia a alegria da meninada era o prato de chocolate com o que chamavam de creme “chantilly”. Como São Paulo era, entretanto, uma cidade ainda nos primórdios de seu desenvolvimento, não se conhecia o verdadeiro “chantilly”, mas apenas uma deliciosa imitação feita com clara de ovo batida. Então vinham aquelas copiosas porções de chocolates sob o “creme francês”, e as crianças se regalavam. O passo seguinte era fazer as honras às frutas, sorvetes, refrescos e toda espécie de sanduíches e doces.

Terminado o banquete, começava a correria pelo jardim da casa, tanto maior quanto mais extenso fosse o terreno à disposição dos infatigáveis meninos. O cansaço só se apresentava à noite, quando se aprontavam para dormir, depois de terem rezado.

Assim transcorria o dia da Primeira Comunhão. “Hoje, pensem apenas no Santíssimo Sacramento” Para mim, minha irmã e uma prima que fez a Primeira Comunhão conosco, as coisas se passaram de modo diferente. Dª Lucilia, exímia organizadora de tudo, entendia que a comemoração em família não deveria acontecer na volta da igreja.

Julgava ela que, se realizada a festa no mesmo dia, poderia haver o risco de a criança, levada pela imaginação infantil, amanhecer pensando mais nos festejos do que na Sagrada Eucaristia. Então, com seu afeto e cuidado todo especial, mamãe nos chamou alguns dias antes para nos colocar a par do programa.

Disse-nos: — Vocês devem entender que a festa não vai ser no mesmo dia. Nessa data vocês devem se preocupar somente com a Primeira Comunhão. É como se fosse um feriado: não vão estudar nem se entregar a atividades muito dispersivas. Devem passar o dia vestidos com o hábito de Primeira Comunhão e terem atividades tranquilas, dentro de casa, sem ir ao jardim, e evitar de olhar pelas janelas, para não se distraírem com o movimento da rua. Passeiem de uma sala para outra, de um quarto para outro, andem pelos corredores, rezando e procurando lembrar-se do que se deu com vocês nessa ocasião. Quer dizer, pensem e concentrem a atenção no Santíssimo Sacramento. Depois, no dia seguinte, faremos a comemoração em grande estilo.

Um passo muito sério a ser dado

Nós três havíamos tido um curso de catecismo particular, ministrado por um padre amigo da família. Durante algumas semanas, ele nos explicou os pontos essenciais da Doutrina Católica, contou-nos a História Sagrada, etc., preparando-nos dessa forma para o solene encontro com Nosso Senhor Eucarístico. Dª Lucilia, por seu lado, também nos predispôs para a Primeira Comunhão, antes e mais do que tudo pelo ambiente que ela criava em casa, todo feito de piedade, de inocência, de inteira e ilimitada confiança nela, bem como de imenso afeto. Além disso,  mamãe nos ajudava a entender melhor as lições recebidas do padre, e nos fazia ter uma alta ideia do que significava a graça da Primeira Comunhão. É supérfluo dizer que a materna e zelosa  assistência dela nos foi de imenso proveito.

Assim, a preparação feita com muito cuidado pelo padre, somada às explicações de Dª Lucilia, que completavam os ensinamentos do sacerdote, e depois o programa traçado por ela dias antes da  Primeira Comunhão, fez-nos ver como era sério o passo que íamos dar. Evidentemente, esse ambiente criado em torno de nós era próprio a determinar todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu, particularmente, fiquei muito compenetrado e fiz o propósito de observar esse recolhimento quanto me fosse possível, nos meus nove anos. Depois de termos sido examinados, e verificado que  sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma turma de Primeira Comunhão da paróquia de Santa Cecília. Foi um mundo de crianças, vestidas de acordo com a situação financeira dos pais. Algumas estavam ricamente trajadas, levando nas mãos lindos rosários e livrinhos de oração encadernados com forro de madrepérola. Os de certas meninas eram até recamados de pérolas nas bordaduras. Outros eram impressos com várias cores e também muito bonitos.

A primeira confissão…

Antes desse grande dia, porém, fiz a minha primeira confissão. Tomei-a com tanta seriedade que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados na hora de dizê-los ao padre, fiz uma lista deles. Imagine-se o que podiam ser as faltas de um menino de nove anos… Entretanto, apesar da pouca gravidade que elas poderiam encerrar, tive de me arrepender a duras penas por havê-las cometido! Pois a Fräulein Mathilde, a governanta alemã que nos levara para confessar, era muito exigente. Antes de eu me dirigir ao confessionário, ela me perguntou: — Você está arrependido de seus pecados?

Eu entendia que estar arrependido era sentir vontade de chorar pelas faltas cometidas. Como tal sentimento não me viera, respondi: — Não!

Inflexível, a alemã (de quem conservo saudosa e boa recordação) replicou, num tom imperativo: — Faça uma Via-Sacra! Achei que, para uma alma dura como a minha, que não se arrependia dos seus pecados, a solução era mesmo rezar a Via-Sacra… Foi o que fiz com toda a convicção. Quando voltei para junto da “Fräulein”, ela me perguntou de novo: — Está arrependido? — Não! Creio que fiz umas duas ou três Vias-Sacras… Afinal, Nossa Senhora teve pena de mim e me concedeu algo vagamente parecido com uma tendência a chorar pelas faltas cometidas.

A governanta voltou à carga: — Você sente agora verdadeiro pesar?

Pensei: “As lágrimas estão vindo… ” Respondi então: “Sinto!” Ela imediatamente ordenou: — Vá fazer a confissão! Entrei no confessionário, puxei a lista dos meus pecados e a li para o sacerdote. Ele ouviu tudo com muita bondade e me deu a absolvição. Na saída, tomado pela importância do momento, não me dei conta de ter deixado cair aquela folha de papel. Quando já havia voltado para casa, mexendo nos bolsos dei pela falta dele. Então procurei Dª Lucilia e lhe disse: — Mamãe, eu preciso voltar à igreja para pegar tal papel, porque se alguém encontrar a lista dos meus pecados, ficarei em má situação.

Ela logo percebeu que era coisa de criança, mas ficou satisfeita ao ver como eu tinha levado a sério a minha primeira confissão. Enquanto nós dois conversávamos, aproximou-se uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, piedosa, chamada Madalena. Ela vinha trazendo umas roupas dobradas para guardar num armário e, naturalmente, prestou atenção na nossa conversa.

A Madalena achou graça na minha aflição de menino, e, voltando-se para mamãe, disse: — Ah, eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Então, Dª Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou  depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio!

Eu fiquei ultrajado ao extremo, mas vi que mamãe não tomou ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E eu, sabendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato. A  Madalena foi à igreja e não encontrou a lista.

Com certeza um sacristão, ou alguma faxineira limpando o recinto sagrado, encontrou aquilo e jogou fora. Estava acabado. Eram já não sei mais que pecados, mentirinhas não sei de que tamanho. Creio, porém, que os ter relacionado para não deixar de acusar nenhum e pedir perdão a Deus por todos, demonstra a compenetração com que me preparei para o Sacramento da Penitência, enquanto prelúdio da Primeira Comunhão.

Alegria por vestir o “Eaton”

Numa outra ordem de preparação, também tive de experimentar o famoso “Eaton” que usaria no dia solene. Obrigação para mim bastante enfadonha, pois toda a minha vida tive não pequeno desagrado em experimentar roupas: põe-se alfinete, tira alfinete, vira de cá, vira de lá, traçam-se marcas de giz… Nunca gostei disso. Enfim, o alfaiate contratado por Dª Lucilia fez os ajustes necessários, e chegou à conclusão de que o “Eaton” estava muito bom. Foi essa igualmente a opinião de mamãe, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eaton mal cortado. O  alfaiate seria muito bem tratado, receberia o justo pagamento pelo trabalho que fez, mas sob a condição de este estar perfeito. Ela achou que estava.

O encontro com Jesus Sacramentado

Na manhã seguinte, minha irmã, minha prima e eu nos dirigimos à Igreja de Santa Cecília, levando nossas velas que, assim como as das outras crianças, seriam acesas em determinado momento da Missa. O Santo Sacrifício, um tanto longo, dado que solene e cantado, foi seguido por mim com muita atenção, embora eu não soubesse ainda tudo quanto a Missa significa. Porém, o simples fato de estar presente a uma cerimônia da Igreja, pela qual eu já nutria imensa veneração, era o bastante para me fazer assistir àquilo com espírito de oração, com enlevo e profundo respeito.

Afinal, chegou o momento da Comunhão. Formaram-se, separadamente, a fila das meninas e a dos meninos que, pela primeira vez, receberiam em suas almas a visita de Nosso Senhor Sacramentado. Pelo favor de Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e procurei fazer minha ação de graças com intenso fervor e devoção.

Quando, terminada a celebração litúrgica, eu retornava para casa, estava radiante de contentamento. Junto com minha irmã e minha prima, passei o dia em recolhimento, conforme o programa estabelecido por Dª Lucilia. No dia seguinte houve uma festa soberba, com guloseimas de toda espécie, as costumeiras correrias pelo jardim, etc.

Preparação para uma vida de amor à Igreja Para concluir essas reminiscências de uma data que me é tão cara, gostaria de frisar um ponto que responde à seguinte pergunta: de que me serviu a Primeira Comunhão? Sendo o marco inaugural de uma série de comunhões, ela preparou e fortaleceu minha alma para enfrentar os combates que, dali a pouco, eu teria de travar pelo bem e pela virtude. Ajudou meu espírito a ter o vigor necessário para opor resistência — dolorida, mas forte e decidida — às solicitações más, e quantas vezes pecaminosas, que se apresentam a todo adolescente e a todo jovem.

Ela me preparou para uma vida que, graças à Santíssima Virgem, procurou se fazer sempre de piedade, de vontade de cumprir perfeitamente os mandamentos, e de entranhado amor à Igreja, para  cujos serviço e triunfo eu quis dedicar continuamente todos os meus esforços.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 20 (Novembro de 1999)

Jesus Cristo Rei, Profeta e Sacerdote

Seria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas várias atitudes do Divino Salvador, se Ele está agindo como Rei, Profeta ou Sacerdote. Maria Santíssima tem, como ninguém, uma correlação com cada um desses títulos. Também os acontecimentos da História, o mundo angélico e mesmo o mundo visível poderiam ser analisados sob esse prisma.

A Francisco Lecaros respeito da trilogia “Rei, Sacerdote e Profeta” aplicada a Nosso Senhor Jesus Cristo eu gostaria de expor algumas considerações, começando por tratar da ordenação interna desses três títulos, isto é, sobre como eles se relacionam.

Rei da História

A qual deles pertence o primado: é Ele como Rei, como Sacerdote ou como Profeta?

Tenho a impressão de que, na ordem lógica, o primado fundamental é d’Ele como Rei; e o primado na ordem final é como Sacerdote. O Profeta quase faz uma ponte entre os outros dois. Ele é o Rei da História no seguinte sentido: Deus teve as suas intenções com a História, que são as do Homem-Deus. E suas intenções foram um plano que Ele concebeu, o qual a humanidade segue ou não, cumpre ou não cumpre. Esse plano é, provavelmente, relacionado com a atitude do homem perante Deus, com a atitude religiosa do homem, no senti-do mais lato da palavra.

Em segundo lugar, é um plano da ordenação das coisas como corolário, como o homem deve ordenar, desde que ame Deus. De maneira tal que a ordenação dos homens traz uma ordenação dos acontecimentos, e uma ordenação destes acarreta uma ordenação das coisas materiais. Então as civilizações, as culturas, as obras de arte, os arranjos no mundo etc., também correspondem ao plano de Deus.

Nosso Senhor intenciona fazer isso, mas dá liberdade ao homem de realizar uma coisa ou outra; entretanto, o plano d’Ele, de um modo ou de outro, acaba se cumprindo no que tem de essencial, e por uma imposição d’Ele. Porque Nosso Senhor, como Rei, faz realizar-se a glória que Ele queria. Ele manda e, portanto, é um Rei que governa de fato os acontecimentos, por mais que estes pareçam desgovernados.

Um exemplo característico seria com a vida de Jesus. Dir-se-ia que havia um plano que era de Ele vir à Terra e converter o gênero humano. E entrou um plano B em que — não é verdade, mas dir-se-ia — houve a morte e Ele resgatou o gênero humano. De fato, Ele resgatou e cumpriu mais a fundo o plano de levar a humanidade até o Céu. E Nosso Senhor é Rei fundamentalmente por essa condução forte dos acontecimentos. Ele tem o plano, o direito e o poder de mandar. Jesus Cristo tem o mando efetivo. E com esses ou aqueles desvios, as coisas se realizam como Ele quer.

A própria liberdade que o homem possui e, portanto, pode usá-la contra Ele, é dada por Nosso Senhor. Porque, se Ele quisesse, não criava o homem. Ele quis e, no fundo, é a bondade d’Ele que está sendo feita. Ele é o Rei.

Rei-Profeta que sabe tudo quanto irá acontecer

No elemento terminal da trilogia, Jesus é Sacerdote no sentido de que aquilo que Ele fez e ordenou, Ele oferece ao Padre Eterno.

Nosso Senhor é Profeta na acepção de que Ele, como Rei, sabe o que vai acontecer. Não é como os reis da Terra que conjecturam, mas pode não acontecer o que queriam, e suceder o que não previram. Mas Ele sabe tudo quanto vai acontecer e anuncia. E depois Ele leva à condução o que Ele disse.

O dom profético em Nosso Senhor é o conhecimento que Ele tem da própria vontade e do poder; de como e em que medida os fatos, dentro dos planos d’Ele, se ajustarão de maneira a realizar os seus desígnios. E enquanto revelador, porque o profeta revela. Assim eu concebo a trilogia.

Impostação das almas face a Nosso Senhor

Por comodidade de expressão eu disse Rei, Sacerdote, Profeta. Mas cada um desses títulos poderia ser tomado por outra ordem na qual um dos elementos da trilogia teria a dianteira sobre os outros.

Poder-se-ia dizer, por exemplo, que Ele, como Profeta, é o Profeta-Rei: Ele previu, Ele fará, Ele oferecerá. Por qualquer das pontas pode-se ver o triedro todo.

Caráter fundamentalmente moral do plano de Deus

E o que faz dentro disso o plano moral?

Não que o plano moral esteja numa posição secundária à vista disso, mas é uma outra coisa. Ele tem uma amplitude, um senso lato e até latíssimo que ultrapassa a mera interpretação mais estrita do exame de consciência individual, mesmo quando transposto para a clave dos povos, se esta equivale apenas a uma soma de mortificações que os homens têm que oferecer para alcançar a vida eterna.

A realidade moral a que me refiro é a impostação total da alma humana, atingindo, portanto, a disposição da vontade, da inteligência e da sensibilidade, o cumprimento do Primeiro Mandamento em toda a sua amplitude pelo homem. Mas numa amplitude tal que não fica apenas o preceito a ser cumprido, mas um voo da alma para Deus, que se realiza, por assim dizer, independente do preceito, por uma propriedade da alma que vai para o Criador.

Fundamentalmente, é a impostação das almas em face d’Ele, não só para que todas vão para o Céu e sejam felizes, mas é para que possam ordenar para a glória de Deus esta Terra, teatro de bata-lha esplendoroso da glória d’Ele.

Nosso Senhor Jesus Cristo amará a Terra mesmo depois de destruída pelo incêndio, por ocasião do Juízo, como um general preza um campo de batalha no qual ganhou um grande embate. Se depois houve um homem que ateou fogo e liquidou com as gramas do campo de batalha; para o general isso é uma coisa muito secundária. O importante é que ele venceu a batalha naquele campo. Assim também a Terra. Os homens bons, os justos tornaram-na sagrada pela batalha que venceram com Nosso Senhor Jesus Cristo.

É nessa amplitude que se pode falar do caráter fundamentalmente moral desse plano.

Um só todo na ordem moral

Ao estudar certas correntes teológicas, vi que faziam uma distinção entre o plano moral e o ontológico. Entretanto, não me parecia adequado distinguir o plano moral do ontológico daquela maneira, porque a raiz da Moral está na Ontologia. A boa Ontologia das coisas é o fundamento, o ponto de partida da Moral, pois a ordem das coisas está na natureza das mesmas coisas, é um imperativo desta natureza.

“…devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo Sacerdote: oferecendo esse imenso ‘bonum, verum’, pulchrum” que o precioso Sangue d’Ele tornou possível.”

Na época, eu li aquilo, percebi que estava errado e não sabia refutar. Com o curso dos anos, fui refletindo e conseguindo explicitar.

Ademais, a ordem moral “latu sensu” é intimamente vinculada à ordem moral em seu sentido estrito. Elas se condicionam mutuamente. De maneira que não pode haver uma ordem moral sem verdadeiro “pulchrum”, sem um autêntico “verum”; e não pode haver um autêntico “verum” sem “pulchrum”; os três elementos do triângulo por sua vez se revertem uns nos outros e constituem um só todo no qual, entretanto, podem-se fazer distinções. Então, um mundo pulcro, acontecimentos pulcros, almas pulcras, uma História pulcra, tudo isso faz parte desse conjunto moral ao qual me refiro.

É assim também que devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo Sacerdote: oferecendo esse imenso “bonum, verum, pulchrum” que o precioso Sangue d’Ele tornou possível.

Enquanto Rei, Ele tinha o plano de fazer com que a História apresentasse um “verum, bonum, pulchrum” resplandecente, e que a Terra fosse mais bela, depois de ter vencido a prova e as tentações do demônio, do que seria se ao demônio não fosse dada a oportunidade de tentar.

Pensemos nas naus de Vasco da Gama procurando atravessar o cabo da Boa Esperança. Aquilo tem um “pulchrum” em si que é o “pulchrum” da tormenta e o do homem procurando enfrentá-la. Tem uma beleza própria da luta do homem contra os elementos.

Maior ainda é a beleza da luta do homem contra o homem. E uma batalha — que é a luta de muitos contra muitos — tem uma beleza muito maior do que a luta de um contra outro.

Reflexos da trilogia no mundo angélico

Reportando ao mundo angélico, eu seria propenso a achar que os elementos dessas três manifestações de glória de Nosso Senhor — Rei, Sacerdote e Profeta — se encontram refletidos na ordem angélica, de maneira que há Anjos chamados, por sua natureza, a glorificá-Lo mais enquanto Rei, Anjos mais glorificativos do Sacerdote, e outros mais glorificativos do Profeta.

Em torno dessa hipótese — que submeto inteiramente ao ensinamento da Igreja — haveria temas muito “suculentos” a abordar como, por exemplo: Qual é o coro mais alto?

Absolutamente falando, o que é mais elevado: a realeza ou o sacerdócio? Ou será, em algum sentido, o profetismo? Uma vez que o profeta, enquanto recebendo uma comunicação de Deus, introduz nesta ordem algo superior a ela, não é mais do que o rei e do que o sacerdote?

Seria muito bonito, à luz dessas considerações, classificar os coros angélicos existentes, e imaginá-los constituídos assim, reluzindo e cantando a Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, como Profeta e como Sacerdote de maneiras diferentes.

Reluzimentos no mundo visível

Nasceria daí uma pergunta que me encanta, mas para a qual não tenho senão vislumbres de resposta:  Poder-se-ia num mundo sensível, visível, como também no mundo das almas, imaginar almas mais voltadas a contemplar a Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, outras como Sacerdote e outras como Profeta?

A consideração de Nosso Senhor  Jesus Cristo como  Guerreiro cabe  evidentemente no  rei. Cristo gladífero seria Ele enquanto Rei, que avança de gládio em punho  para mandar, etc.

A consideração de Nosso Senhor Jesus Cristo como Guerreiro cabe evidentemente no rei. O general ato, a condição de guerreiro é própria ao rei. O rei, quando não é obedecido ou se lhe transgride a vontade em qualquer coisa, é o que luta, faz a guerra para impor a sua vontade. É conforme a ordem e o direito. De maneira que é essencial à função de rei. Cristo gladífero seria Ele enquanto Rei, que avança de gládio em punho para mandar, etc.

Então nesta Terra nós não poderíamos considerar vislumbres disso, por exemplo, no pai de família? Ele não tem um pouco do sacerdote, do rei e do profeta? Reluzimentos ele possui.

É conhecido o aforismo: “O pai é rei de seus filhos, o rei é pai dos pais.” Realmente, a presença do pai só é plena na casa quando ele é majestoso, o atrativo e a movimentação da residência. Ele enche a casa com o movimento forte e o pulsar de sua alma.

De outro lado, o pai tem qualquer coisa de sacerdotal. A missão sacerdotal foi toda absorvida pelo sacerdócio sobrenatural e pertence a uma classe instituída por Nosso Senhor. Mas não deixa de ser verdade que o pai de família conserva residualmente uma representação da família junto a Deus. E por causa disso é ele que consagra a família ao Sagrado Coração de Jesus, não é necessariamente o sacerdote; ele pode rezar, dar bênção, tem certas funções de intermediário natural junto a Deus, que não desapareceram.

Certa ocasião, um bispo me disse que a oração do pai e da mãe, Deus atende muito mais especialmente do que qualquer outra prece. Porque aquele é o pai, aquela é a mãe; embora uma pessoa possa rezar por um determinado filho de outrem com mais fervor, com mais virtude, se é o pai que está pedindo, Deus toma em consideração especial a oração do pai. Não quer dizer que Ele leve mais em conta a oração do pai do que a de um Santo, mas que é um título especial próprio para ser atendido. De maneira que um mau pai que faça uma boa oração a favor de seu filho tem condições especiais de ser atendido. A “fortiori” se for bom pai. Há uma qualquer coisa de sacerdotal nisso, e a família vive suas horas augustas desse modo.

Profeta. Não se pode negar que muito difusamente se encontra daqui, de lá e de acolá, além da função de guia, própria ao profetismo, uma certa capacidade de precognição do futuro em determinados pais e mães: “Olha, cuidado, vai acontecer assim…” Ou então quando dizem: “Bom filho, tu vais ser abençoado, Deus vai te dar tais graças…”; e, de um modo ou outro, Deus concede. É um complemento harmonioso da autoridade paterna.

Nós não teremos uma obrigação de desenvolver esse tríplice aspecto de nossa personalidade? E no Reino de Maria esses três lados não vão reluzir muito mais nos homens, embora nas proporções da vocação de cada um? Eu acredito que sim.

Por exemplo, Santo Inácio de Loyola era um verdadeiro rei, sacerdote e profeta para os seus filhos espirituais.

Distinguindo esta trilogia nos acontecimentos da História

Poder-se-ia fazer uma História que procurasse distinguir os aspectos “régios”, “proféticos” e “sacerdotais” presentes em todo exercício de poder de alguém e na história de alguém ao longo da vida. Assim, todos os acontecimentos históricos dariam glória a Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Rei, Profeta e Sacerdote, na medida em que, nesses acontecimentos, esses aspectos fossem mais salientes.

Então, por exemplo, a batalha de Lepanto não é uma glorificação da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, no que ela tem de mais quintessenciado, que é a realeza de Nossa Senhora? A meu ver, pode-se e deve-se achar isso.

Considerados sob este prisma, os acontecimentos da História, à medida que se desenrolassem, glorificariam a Nosso Senhor Jesus Cristo, à Santíssima Trindade por meio de Nossa Senhora, pois todas as graças e favores espargidos ao longo da História por Deus vieram porque Ela pediu. Compreende-se assim a onipotência suplicante d’Ela, conseguindo que a roda da História se movesse no sentido da glória de Deus.

Tudo isso ponderado, no Juízo Final reluziriam sucessivamente essas três luzes com aclamações e esplendores em que, nunca deixando de brilhar, cintilassem ora mais, ora menos, considerando a História do conjunto da humanidade. Então, diante de tal acontecimento preponderantemente régio, sacerdotal ou profético, ora as almas régias, ora as sacerdotais, ora as proféticas clamariam de um modo especial e dariam à Santíssima Trindade, ao Verbo Encarnado, a Nossa Senhora uma glória especial àquele título.

A instituição da Igreja foi um ato de realeza do Redentor

Maria Santíssima teria, como ninguém, uma correlação com cada um desses três títulos, na devida proporção e de modo uniforme. Ela é “Regina Prophetarum” e a Co-Redentora do gênero humano.

Rei, Sacerdote e Profeta no Evangelho

Constituiria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas várias atitudes de Nosso Senhor, se Ele está agindo como Rei, como Profeta ou como Sacerdote. E, tomando a figura do Santo Sudário, imaginá-la animada, falando e exprimindo-se conforme as diversas cenas evangélicas.

Vemos, então, que o conceito de realeza, sendo a d’Ele, toma uma amplitude diversa da que nossa inteligência humana seria levada a conceber. Desde logo os limites se rasgam. Por exemplo, o poder que Ele tinha de fazer milagres, creio que Ele o exercia como Rei: mandar aplacar a tempestade, expulsar os vendilhões do Templo são caracteristicamente atos de realeza.

Também quando Ele instituiu a Igreja foi um ato de realeza. Porque é próprio ao rei fazer uma instituição. De algum modo a realeza antecede ao reino, o rei funda o reino. Nosso Senhor Jesus Cristo, fundando a Igreja, num sentido mais especial, funda o Reino d’Ele. Então: “Tu és Pedro e sobre esta pedra… Eu te darei as chaves do Reino do Céu…” (cf. Mt 16, 18-19), tem uma majestade!

Coroado de espinhos, Ele era Rei. O Rei que reina do fundo do infortúnio.

Entretanto, notem que coisa bonita: durante toda a Paixão, Ele fez, ao mesmo tempo, o papel de Rei, de Sacerdote e de Profeta. Porque Nosso Senhor profetizou durante toda a Paixão a vitória d’Ele.

A divina altivez, uma das notas da presença d’Ele durante toda a Paixão, é a profecia da vitória. Ele, como Rei, coroado de espinhos, entretanto sabia muito bem que have-ria um momento em que o portador da mais alta coroa da Terra, em certo sentido, a da França, faria uma cape-la para conter um espinho da Coroa d’Ele. Apesar daqueles verdugos es-tarem caçoando, havia n’Ele a segurança do Profeta. Quando Ele disse “Destruí este templo e Eu o reconstruirei em três dias” (Jo 2, 19), falava de Si mesmo como templo, e que ressuscitaria ao cabo de três dias. Entra aí o Sacerdote, em termos magníficos, falando de Si mesmo como se fosse um templo: Pontífice e Vítima. Porque Ele como Vítima é Ele como Sacerdote. Quer dizer, as coisas se entrecruzaram.

Nosso Senhor, com uma vara na mão, o cetro de irrisão da realeza, e a túnica de bobo, sabendo, entretanto, que todos os doutores iriam analisar ponto por ponto o que Ele tinha dito e encontrariam abismos de sabedoria onde aqueles boçais estavam fazendo o que estavam fazendo. É um profetismo de sabedoria.

Nenhum rei ousaria empunhar essa cana! Vou dizer mais: nenhum Papa ousaria empunhá-la. No máximo consideraria uma glória imensa possuir um fragmentozinho dessa cana.

No total, Ele é que foi Rei! E sabia que aquilo proclamava a grandeza d’Ele. Quer dizer, era Profeta, um Rei que profetizava, e que Se oferecia com Vítima. Ele era, pois, na Paixão, o Rei, o Profeta e o Sacerdote. É uma verdadeira beleza!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/11/1982)

“Tu o dizes, Eu sou Rei”

Presente em todos os sacrários da Terra, Nosso Senhor Jesus Cristo exerce uma realeza efetiva sobre toda a História, por meio da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi ora aclamado, ora ridicularizado como Rei, coroado de espinhos e, por fim, no alto da Cruz onde Ele foi imolado colocaram a inscrição: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. O que havia de autêntico na realeza d’Ele, e qual a relação de sua Paixão com essa realeza?

Realeza incompreensível para os ímpios

Interrogado durante a Paixão, por Pôncio Pilatos, sobre se Ele era rei, Nosso Senhor Jesus Cristo respondeu: “Tu o dizes, Eu sou Rei”.

Entretanto, pouco antes Ele afirmara que seu Reino não é deste mundo. Declaração incompreensível para aqueles bandidos que O atacavam. Do que adianta ser rei para não o ser deste mundo? Há fora deste mundo um reino no qual se possa reinar? Ora, um rei sem reino, é um ex-rei. Donde é, pois, esse reino?

Para debicar de sua realeza, aqueles algozes Lhe puseram uma coroa de espinhos, uma túnica escarlate e uma vara de bobo na mão, à guisa de cetro; e O esbofeteavam, dizendo: “Ave, Rei dos judeus!”

Uma nação ímpia, um governador romano ímpio também, insensíveis ou refratários à verdadeira realeza d’Ele que se irradiava como a luz do Sol, resolveram atender às vontades da plebe e do Sinédrio que queriam matá-Lo por torpes ambições, quiçá, por ódio à santidade d’Ele. E para provar que Ele não tinha poder, nem sabedoria, nem divindade, nem realeza, colocaram-Lhe uma coroa de espinhos sobre a cabeça.

Misto de humilhações e vitórias

O seu Corpo verte Sangue abundantemente, e Ele Se torna purpúreo como se estivesse revestido de um manto imperial, cujo valor é infinito. Abandonado pelos Apóstolos, rejeitado pelo povo eleito, sentado sobre um banquinho ou uma pedra qualquer e levando bofetadas, mantém Ele a mansidão de um Cordeiro com a altaneria de um Leão e a dignidade de um Rei em seu trono, num misto de dor lancinante e de triunfo, que O acompanharão até o Calvário.

Do alto da Cruz, pouco antes de morrer, como um Rei que premia um herói, Ele reabilita um ladrão e canoniza-o, dizendo: “Hoje, tu estarás comigo no Paraíso!”

Assim é a vida do católico, a vida da Igreja: cheia de humilhações e de vitórias. Humilhações tão profundas que se diria nunca mais poder reerguer-se delas; vitórias tão grandes que julgaríamos irreversíveis.

Entretanto, como uma nau que navega levada pelas ondas a alturas e profundidades vertiginosas, assim a barca de São Pedro vai percorrendo a História: com todas as honras, mas também com todas as dores e humilhações de Cristo coroado.

Três espinhos dessa coroa sagrada foram parar em mãos de São Luís IX, Rei de França, que para abrigá-los devidamente mandou construir um dos mais belos monumentos da arte medieval e, portanto, de toda a História: a Sainte-Chapelle, verdadeira caixa de cristal com nervuras de granito, onde se celebra o Santo Sacrifício.

Um Reino que não é deste mundo

Sim, Nosso Senhor Jesus Cristo é verdadeiramente Rei, antes de tudo por ser Ele Quem é: o Verbo de Deus encarnado. Deus é Rei, porque é Deus! Logo, Jesus Cristo é plenamente Rei por sua divindade. Se houve, portanto, alguém digno deste título na Terra, este foi, continua a ser e será Ele, até o fim do mundo.

Assim, quando Lhe perguntaram se era Rei, Ele tinha toda a razão em responder: “Verdadeiramente, tu o dizes, Eu sou Rei!”

Ele fizera inúmeros milagres, convertera os homens, viera para, por sua Paixão e Morte, resgatar do pecado o gênero humano. Não Lhe faltavam, pois, títulos para a realeza.

Os milagres, a santidade e a profundidade incomparável de sua doutrina, o testemunho da Sagrada Escritura, tudo levava a reconhecê-Lo como o Messias.

O Antigo Testamento falava que o Messias, descendente de Davi, seria o Rei de Israel cujo Reino eterno se estenderia sobre o universo inteiro.

Os judeus esperavam, portanto, a vinda de um príncipe da Casa de Davi, um conquistador, um político e um militar extraordinário que brilhasse como um potentado terreno e pusesse longe os romanos conquistadores, tomando conta de Jerusalém para estabelecer um reinado de glória, perto do qual o de Salomão não teria sido senão um tímido prefácio.

Ora, Jesus veio e não conquistou nada, reconheceu a autoridade de César, e disse não pertencer a este mundo o seu Reino.

Reinando de dentro de todos os sacrários da Terra

Contudo, sendo Homem-Deus, não só conhecia, mas dispunha do futuro. O domínio de todos os acontecimentos da História Lhe pertence. Ele sabia que o seu Reino chamar-se-ia Igreja Católica Apostólica Romana.

Não é um reino deste mundo, constituído para ter exércitos e fazer política. É o reino estabelecido para difundir o nome e a mensagem d’Ele a todos os homens, e para que a Lei d’Ele viesse a vigorar, um dia, em todo o orbe.

Grande mistério: Ele reinaria de dentro de todos os sacrários da Terra! Quem poderia compreender uma coisa dessas? Mas Ele tinha razão: “Tu o dizes, Eu sou Rei!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/4/1984)