Prece junto ao presépio

Nosso Salvador, Rei do Universo, quis vir até nós, colocando-Se na nossa proporção. Reclinado na pobre manjedoura, Ele nos olha cheio de bondade, à espera do que tenhamos a Lhe dizer. Vamos, pois. Conduzidos pelas mãos de Dr. Plinio, aproximemo-nos do presépio.

A vizinha-se mais uma vez, Senhor, a festa de vosso santo Natal. Mais uma vez, a Cristandade se apresta a Vos venerar na manjedoura de Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob a luz ainda mais clara e fulgente, dos olhos maternais e doces de Maria. A vosso lado está São José, tão absorto em Vos contemplar, que parece nem sequer perceber os animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram as nuvens, e cantam, bem visíveis, no mais alto dos Céus. Daqui a pouco, se ouvirá o tropel dos Magos que chegam, trazendo presentes de ouro, incenso e mirra no dorso de extensas caravanas guardadas por uma famulagem sem conta.

Todos os povos da terra em torno do presépio

No decurso dos séculos, outros virão venerar vosso presépio: da Índia, da Núbia, da Macedônia, de Roma, de Cartago, da Espanha, gauleses, francos, germanos, anglos, saxões, normandos. Aí estão os peregrinos e os Cruzados que vieram do Ocidente para beijar o solo da gruta em que nascestes. Vosso presépio encontra-se agora em toda a face da terra. Nas grandes catedrais góticas ou românicas, nas mesquitas conquistadas ao mouro e consagradas ao culto verdadeiro, multidões imensas se acumulam em torno de Vós, e Vos trazem presentes: ouro, prata, incenso, e sobretudo a piedade e a sinceridade de seus corações.

Abre-se o ciclo da expansão ocidental. Os benefícios de vossa Redenção jorram abundantes sobre terras novas. Incas, astecas, tupis, guaranis, negros de Angola, do Cabo ou da Mina, hindus bronzeados, chins esguios e pensativos, ágeis e pequenos nipões, todos estão em torno de vosso presépio e Vos adoram. A estrela brilha agora sobre o mundo inteiro. A promessa angélica já se fez ouvir a todos os povos, e sobre toda a terra os corações de boa vontade encontraram o tesouro inapreciável de vossa paz. Superando todos os obstáculos, a palavra evangélica se fez ouvir por fim aos povos do mundo inteiro. No meio da desolação contemporânea, esta grande afluência de homens, raças e nações em torno de Vós é, Senhor, a única consolação, a esperança que resta.

Quem somos nós?

E no meio de tantos, eis-nos aqui também. Estamos de joelhos, e Vos olhamos. Vede-nos, Senhor, e considerai-nos com compaixão. Aqui estamos, e Vos queremos falar.

Nós? Quem somos nós?

Os que não dobram os dois joelhos, e nem sequer um joelho só, diante de Baal. Os que temos a vossa Lei escrita no bronze de nossa alma, e não permitimos que as doutrinas deste século gravem seus erros sobre este bronze que sagrado vossa Redenção tornou.

Os que amamos como o mais precioso dos tesouros a pureza imaculada da ortodoxia, e que recusamos qualquer pacto com a heresia, suas obras e infiltrações.

Os que temos misericórdia para com o pecador arrependido, e que para nós mesmos, tantas vezes indignos e infiéis, imploramos vossa misericórdia, mas que não poupamos a impiedade insolente e orgulhosa de si mesma, o vício que se estadeia com ufania e escarnece a virtude.

Os que temos pena de todos os homens, mas particularmente dos bem-aventurados que sofrem perseguição por amor à vossa Igreja, que são oprimidos em toda a terra por sua fome e sede de virtude, que são abandonados, escarnecidos, traídos e vilipendiados porque se conservam fiéis à vossa Lei.

Aqueles que sofrem sem que a literatura contemporânea se lembre de exaltar a beleza de seus sofrimentos: a mãe cristã que reza hoje sozinha diante de seu presépio, no lar abandonado pelos filhos que profanam em orgias o dia de vosso Natal; o esposo austero e forte que pela fidelidade a vosso Espírito se tornou incompreendido e antipático aos seus; a esposa fiel que suporta as agruras da solidão da alma e do coração, enquanto a leviandade dos costumes arrastou ao adultério aquele que deveria ser para ela a coluna do lar, a metade de sua alma, “um outro eu mesmo”; o filho ou a filha piedosa, que durante o Natal, enquanto os lares cristãos estão em festa, sente mais do que nunca o gelo com que o egoísmo, a sede dos prazeres, o mundanismo paralisou e matou em seu próprio lar a vida de família. O aluno abandonado e vilipendiado pelos seus colegas, porque permanece fiel a Vós. O mestre detestado por seus discípulos, porque não pactua com seus erros. O Pároco, o Bispo, que sente erguer-se em torno de si a muralha sombria da incompreensão ou da indiferença, porque se recusa a consentir na deterioração do depósito de doutrina que lhe foi confiado. O homem honesto que ficou reduzido à penúria porque não roubou.

O dom mais excelente que se pode oferecer ao Senhor

Estes são, Senhor, os que no momento presente, dispersos, isolados, ignorando-se uns aos outros, entretanto, agora, se acercam de Vós para oferecer o seu dom, e apresentar a sua prece.Dom tão esplêndido na verdade que se eles Vos pudessem dar o sol e todas as estrelas, o mar e todas as suas riquezas, a terra e todo o seu esplendor, não Vos dariam dom igual.

É o dom de si, íntegro e feito com fidelidade. Quando eles preferem a ortodoxia completa às palmas dos fariseus; quando escolhem a honestidade de preferência ao ouro; quando preferem a pureza à popularidade entre os ímpios; quando permanecem na vossa Lei ainda que por isto percam cargos e glória, praticam o amor de Deus sobre todas as coisas, e atingem a perfeição espiritual, rija e verdadeira dileção. Não, por certo, do amor como o entende o século, amor todo feito de sensibilidade esparramada e ilógica, de afetos nebulosos e sem base na razão, de obscuras condescendências consigo mesmo, e escusas acomodações de consciência. Mas o amor verdadeiro, iluminado pela Fé, justificado pela razão, sério, casto, reto, perseverante; em uma palavra, o amor de Deus.

Prece pela Igreja e pelo Papa

E eles Vos formulam uma prece. Prece, antes de tudo, por aquilo que mais amam no mundo, que é a vossa Igreja santa e imaculada. Pelos pastores e pelo rebanho. Sobretudo pelo Pastor dos Pastores e do rebanho, isto é, por Pedro que hoje se chama Pio. Que vossa Igreja, que geme cativa nas masmorras desta civilização anticristã, triunfe por fim deste século de pecado, e plasme para vossa maior glória uma nova civilização. Pelos santos, para que sejam cada vez mais santos. Pelos bons, para que se santifiquem. Pelos pecadores, para que se tornem bons, pelo ímpios, para que se convertam. Que os impenitentes, refratários à graça e nocivos às almas, sejam dispersados por vossa punição. Que as almas do Purgatório quanto antes subam ao Céu.

Prece, depois, por si mesmos. Que os façais mais exigentes na ortodoxia, mais severos na pureza, mais fiéis na adversidade, mais altivos nas humilhações, mais enérgicos nos combates, mais terríveis para com os ímpios, mais compassivos para com os que, envergonhando-se de seus pecados, louvam de público a virtude e se esforçam seriamente por a conquistar.

Prece, por fim, para que vossa Graça, sem a qual nenhuma vontade persevera duravelmente no bem e nenhuma alma se salva, seja para eles tanto mais abundante quanto mais numerosas forem suas misérias e infidelidades.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr. Plinio 45 – Dezembro de 2001

(Transcrito de “O Legionário”, nº 750, de 22/12/1946. Título e subtítulos nossos.)

Um Natal na São Paulo de outrora

Nas suas reminiscências do tempo de menino, Dr. Plinio se comprazia em recordar as celebrações natalinas vividas por ele na “São Paulinho” do início do século passado, e mais especialmente em seu próprio lar, sob o carinhoso e maternal olhar de Dona Lucilia…

Para descrever uma noite de Natal na pequena São Paulo daquela época, é preciso fazer uma distinção entre as comemorações nas casas e as que se faziam no centro da cidade.

Preparativos para a magna festa

Nas residências, quatro ou cinco dias antes já se começava a sentir a alegria própria dessa data. Grandes pacotes chegavam das lojas, acolhidos e “confiscados” sumariamente pelos adultos, furtando os assim da curiosidade das crianças. Eram presentes, objetos para a árvore de Natal, enfeites destinados a chamar a atenção para o Nascimento do Menino Jesus, de um modo deleitável.

Além disso, nós, os pequenos, víamos as senhoras sair à rua e retornar com diversos embrulhos, não sem procurarmos nos lembrar do que havíamos pedido a São Nicolau que nos trouxesse. E este sempre os mandava o anelado presente!

Na verdade, não me recordo de uma só vez em que São Nicolau tenha trazido menos do que eu solicitara, e em várias ocasiões enviou mais do que o esperado por mim. Meu São Nicolau não era rico. Possuía apenas o suficiente para atender as minhas petições. Porém, era muito afetivo, e se percebia que ele fizera algum sacrifício para, de vez em quando, superar a minha própria encomenda!

A grande festa se aproximava, e um aroma de pão de mel, mesclado com o de chocolate, invadia as dependências da casa.

As crianças, que naquela época formavam um “submundo”, trocavam telefonemas — nós ligávamos para os nossos primos, e vice-versa —, contando as “últimas novidades” dos preparativos.

Ambiente da véspera e Missa do Galo

O dia 24 já amanhecia completamente diferente. Alguns cômodos estavam interditados para os meninos, os quais eram relegados para o jardim, se o clima o permitisse. Se não, para um quarto de brinquedos ou outro de crianças, onde devíamos passar o tempo. A partir de certo momento, nem neste último podíamos entrar, pois ali também estavam aprontando delícias.

Às 5 ou 6 horas da tarde, o movimento das ruas começava a declinar. Nas residências se acendiam todas as lâmpadas, o que conferia um ar mais festivo aos ambientes. Às vezes, as salas da frente — em geral, de cerimônia, e habitualmente fechadas nos dias comuns — tinham suas janelas abertas de par em par, permitindo ao cintilar das luzes refulgir no exterior, e aos transeuntes perceberem uma ou outra árvore de Natal erguidas lá, cá, e acolá.

Por volta das 9 horas da noite a expectativa da Missa do Galo era tão viva que a molecada na rua começava a bater com paus nos postes (então de ferro e ocos por dentro), ocasionando muito barulho, numa rudimentar imitação dos sinos das Igrejas. Estas começavam a se abrir a partir das dez horas, e logo chegavam os fiéis que desejavam obter um bom lugar para participar da cerimônia.

Aos poucos, ia se formando o público todo, e o templo sagrado se enchia. Em certo momento, o sino se punha a tocar para festejar o Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Todos se levantavam, cânticos natalinos eram entoados. Revestido com paramentos solenes, o sacerdote entrava portando a imagem do Divino Infante, a qual, depositada no Presépio, era venerada pelo público.

Terminada essa homenagem, o padre se dirigia para o altarmor e dava início à celebração da Missa do Galo.

A comemoração em casa

Ao voltarmos da Igreja, as crianças eram reunidas numa ou duas salas da parte da frente da casa, intensamente iluminadas. Nós, vestidos de gala, aguardávamos em meio a animadas conversas, enquanto terminavam os últimos arranjos para a festa. Afinal, quando tudo se achava pronto, nossos pais e as governantas nos vinham buscar. Era então organizada uma descida pela escadaria externa da casa, passando pelo jardim, todos de mãos dadas e cantando músicas de Natal — bem entendido, em alemão.

Em seguida, entrávamos no quarto de brinquedos, agora completamente transformado: no centro, erguia-se uma grande árvore de Natal, toda recoberta de enfeites, e em cujo topo brilhava uma estrela prateada ou dourada, ornada com uma figura de Anjo. Aos pés da árvore, um lindo e tocante Presépio.

Nos cantos do quarto estavam dispostas as mesas com toda espécie de iguarias. Mas, recomendação formal: “não comer nem beber nada antes de ter rezado para comemorar o Nascimento de Nosso Senhor”. Eu, sempre afeito às delícias do paladar, procurava ver o que haviam preparado. Não ousava me desviar do meu lugar (mamãe não o toleraria!), mas, de quando em vez, lançava furtivas olhadelas para aqueles lados…

Dando prosseguimento às comemorações, todos se ajoelhavam junto ao Presépio e Dona Lucilia recitava algumas orações, creio que compostas por ela na hora. Eram dirigidas ao Menino-Deus, a Nossa Senhora e a São Jo-sé, pedindo abundantes graças para cada um de nós e para a família inteira. Ela rezava de modo suave, com muita seriedade e piedade profunda, procurando nos incutir os mesmos sentimentos que a animavam.

Nenhuma criança se atreveria a soltar uma lamúria porque a oração se prolongava, nem ousaria se levantar para pegar alguma guloseima antes da hora. A ordem estava mantida pela simples presença de Dona Lucilia, de um modo irrepreensível. Mas, por via das dúvidas as Fräuleins vigiavam seus pupilos, e não fariam a mínima cerimônia em reprimir severamente aquele que desobedecesse.

Após a recitação das preces, todos se levantavam, davam-se novamente as mãos e se punham a cantar e a girar junto à árvore de Natal. Pouco depois era servido o lanche.

De longe chegava o som dos sinos bimbalhando. De longe, também, vinham ecos de outras casas onde igualmente se cantava e outras crianças tinham o seu Natal. Quase nenhum barulho nas ruas. Toda a festa era das famílias, nos lares, voltada para o Menino Jesus.

Mais delícias natalinas

O Natal ainda nos reservava algumas delícias. Uma delas, o repouso.

Terminadas as comemorações, os visitantes se retiravam para suas respectivas residências, e podíamos, afinal, descansar um pouco. Na casa voltava a reinar a tranqüilidade e um certo silêncio, posto que nós, meninos, juntos provocávamos uma tremenda barulheira. Agora éramos apenas minha irmã, uma prima que morava conosco, e eu.

Subia para meu quarto e, sob o ordenativo olhar da Fräulein, aprontava-me para dormir e me deitava. Uma vez na cama, pensava: “Ah! O repouso! Como é gostoso descansar! Como o travesseiro está bom, a roupa de cama fresca, a fronha aconchegante, o colchão macio!”

Mas, eu sabia que algo de melhor me esperava. Com efeito, na noite de 24 para 25 vinha São Nicolau, e deixava sobre os nossos sapatos, ou aos pés da cama, os presentes que nos eram destinados. Como já disse, aqueles mesmos que havíamos pedido. São Nicolau era muito exato…

Não será difícil imaginar como eu ficava na espreita de ver os meus novos brinquedos. Era-me muito agradável acordar de madrugada, pela expectativa, e sentir o peso dos presentes colocados junto aos meus pés. Eu dizia para mim mesmo: “Vou beber aos golinhos esta boa surpresa. Sei que acordarei várias vezes durante a noite, mas quero sentir o peso delicioso dos presentes a cada despertar, e depois adormecer de novo. Quando amanhecer, então será a hora de eu me lançar sobre os embrulhos!”

“No dia seguinte à festa de Reis a árvore era desmontada. Mais um Natal havia terminado…”

E assim, na manhã do dia 25, as alegrias natalinas se redobravam, diante dos maravilhosos presentes que tanto desejávamos.

O “enterro dos ossos” e o “Natal dos Pobres”

Também nesse dia havia o que no meu tempo se denominava “o enterro dos ossos”. Tratava-se do costume de comer o que sobrara da ceia, mas conservando uma parte importante desses restos, tendo em vista o “Natal dos pobres” celebrado no dia de Ano Bom. Então, os pacotes de alimentos que não tinham sido utilizados, o que ainda era novo e podia ser oferecido a uma criança indigente, separava-se e guardava-se para aquela ocasião, acrescidos de mais iguarias que se mandava comprar.

Na noite de 31 de dezembro procedíamos ao mesmo cerimonial de Natal, a descida da escada até a sala adornada para a ceia, etc., sob o olhar dos pobres. Estes entravam conosco na sala, acompanhavam as orações, e em seguida nós os estimulávamos a terem liberdade de se servir do lanche. Como, naturalmente, eram muito acanhados, lhes dizíamos: “Pegue isto, tome aquilo”, etc., para deixá-los à vontade.

Dessa vez, as crianças da família estavam severamente proibidas de comer mais do que os pobres. A comemoração era deles, não nossa, e por isso devíamos nos contentar com o que sobrasse. A árvore de Natal permanecia no quarto de brinquedos até a festa de Reis. No dia seguinte, acontecia o que sempre sucede com as coisas neste mundo: era o fim. A árvore era desmontada, mamãe guardava os enfeites e o Presépio.

Mais um Natal havia terminado…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 69 – Dezembro de 2003