Quadros impregnados de sobrenatural

Ao aplicar seu dom do discernimento dos espíritos na análise de alguns quadros de Giotto, Dr. Plinio descreve, além de traços das almas de diversos personagens, a atmosfera inocente e sobrenatural que os envolve.

Giotto é um pintor italiano do fim da Idade Média, quase Renascença, admirável. Não sei se ele foi um santo como o Beato Angelico — que é o magnata da pintura da graça —, desconfio que sim e desconfio que não. Porque na literatura comum — a que chegou a meu alcance, nunca tive tempo de procurar um livro especial sobre ele — há um silêncio sobre sua pessoa. Ou porque ele foi muito bom, e os maus querem esconder; ou foi muito ruim, e os bons desejam ocultar. Mas há qualquer coisa que não está clara. Enfim, Giotto pintou muitos quadros, a meu ver intensamente impregnados de sobrenatural.

Inocência e dignidade ante a hipocrisia dos prevaricadores

Em Pádua, na Cappella degli Scrovegni, aparecem cenas caracterizadas por uma inocência ainda toda medieval, numa atmosfera sobrenatural magnífica.

Essa famosa capela situa-se num parque muito bem cuidado. Dentro, o chão é todo de mármore esplêndido, com um desenho agradável, um jogo de cores bonito. De um lado e de outro, vemos  estalas reservadas com uma espécie de gradeado de mármore também, muito bonito e bem trabalhado.

São Joaquim e Sant’Ana são os pais de Nossa Senhora. A construção dos fundos simboliza vagamente o que Giotto imaginava como Templo de Jerusalém, mas é muito mais algo medieval com  reminiscências românicas, ou com prenúncios renascentistas, do que qualquer outra coisa. Na primeira fileira, vemos um personagem vestido de cor-de-rosa que conversa com outro; ambos usam hábitos à maneira de batinas, o que era corrente para todo o mundo na Antiguidade. A cor de um desses trajes seria um pouquinho verde-ervilha, misturada com um pouco de dourado. Vejam  como a cor-de-rosa é muito delicada. Um desses deve ser sacerdote judaico; e ao lado do estandarte está São Joaquim.

Ele e Sant’Ana não tinham filhos e isso era considerado uma vergonha, porque quem não possuía filhos estava condenado a renunciar à esperança de ser um antepassado do Messias. A grande alegria era viver com os olhos voltados para o futuro, à espera do Messias que viria salvar o mundo, e seria o centro da História de Israel e da Humanidade. São Joaquim está sendo conduzido para fora, e vê-se na atitude dele uma certa vergonha.

Ele quer resistir um pouco, argumentar porque se sente inocente, mas o outro, muito mais corpulento do que ele e com a autoridade de sacerdote, parece dizer-lhe que não tem remédio e vá  embora. Atrás, um personagem muito mais graduado, com uma capa vermelha sobre uma túnica que parece meio dourada, o qual olha a cena como quem faz executar as suas ordens por um sacerdote de posição inferior. É a humilhação deste homem, que seria um antepassado do Messias.

Notem a cor do céu, a luz espalhada é inocente, não tem nada de comum com a poluição da luz nas babéis modernas, nem com a luz do Sol de hoje em dia. É uma luz diáfana, bonita, encantadora, que parece perpetuamente matutina.

São Joaquim, na humilhação em que ele está, parece muito virginal, muito digno. O sacerdote, meio misterioso. Vê-se que São Joaquim é um homem limpo, até fisicamente. Quanto ao sacerdote, tem-se a impressão de que, por debaixo dessas batinas, há sujeira. E mais suja é a figura de vermelho ali atrás. São Joaquim representa a doçura da Nova Lei, os outros exprimem a hipocrisia e a dureza do sacerdócio prevaricador, no fim do Antigo Testamento.

São Joaquim faz penitência

São Joaquim achou que tinha faltas. Era geralmente admitido que sobre quem não tivesse filhos pesava o castigo de ser estéril para o Messias. Então, ele vai fazer penitência, num lugar ermo, deserto. Vemo-lo aí numa atitude muito digna, triste, confrangida, de quem está fazendo um exame de consciência inútil, porque ele não consegue encontrar a sua falta.

E dois pastores vêm falar com ele. Notem como se vestia um pastor daquele tempo! Como estão bem trajados, e é acertada a escolha de cores nesse quadro penitencial! São Joaquim mais uma vez de cor-de-rosa. Um homem velho, cujo cabelo está entre louro e grisalho, profundamente compenetrado e envergonhado, pedindo perdão das faltas que ele não praticou. Ele não sabia, mas assim expiava as faltas que os outros têm, mas não querem reconhecer. E os pastores com certeza estão querendo oferecer alguma coisa para ele. No chão há umas ovelhas e na frente um cão pastor.

É interessante o seguinte: os pastores estão com trajes meio róseos; os rochedos, que indicam uma natureza um tanto desértica, têm qualquer coisa de róseo também. E a ingenuidade das arvorezinhas que nascem do rochedo é encantadora. Uma criança inocente, que fosse pintar arvorezinhas, pintaria assim, e nós sorrimos encantados com o frescor de alma que elas exprimem.

Mais ainda: o jeito desse cão pastor — que deveria atacar o lobo —, diante desse verdadeiro cordeiro que era São Joaquim, tem simpatia, se sente contente. Observem o salto desse cachorro, o jeito com que deseja ter uma carícia de São Joaquim, que não presta muita atenção nele porque está meditando.

No próprio cão há qualquer coisa de puro. Uma alma virginal que fosse pintar um cão pastor pulando, pintá-lo-ia assim. Essa candura toda agrada enormemente a quem gosta da inocência. O azul do céu contrasta com esse cor-de-rosa com uma harmonia magnífica! Um fato bonito e nobre Vem então a primeira gota de luz, no meio dessas trevas. Sant’Ana está rezando sozinha num  quartinho — que o autor procurou imaginar como seria naquela época — e recebe uma revelação, na qual lhe é dito que ela vai ser a antepassada do Messias, e então sua tristeza vai se transformar em super alegria. Uma criada está do lado de fora com uma espécie de roca — é frequente ver isso em coisas medievais — e alheia à cena. O modo pelo qual Giotto apresenta Sant’Ana inteiramente entretida na revelação, e a criada completamente alheia — esta é terra a terra, pensando nos seus fios, e aquela no terceiro Céu — é muito bonito.

É interessante notar também a ingenuidade do desenho: o quarto de Sant’Ana, um toldozinho de alvenaria, e em cima um terracinho para as noites quentes. Embaixo a criada trabalha. O Arcanjo São Gabriel, que foi quem avisou Nossa Senhora da Encarnação do Verbo, fala a São Joaquim e explica- lhe o que sucederá. O Santo, então, está oferecendo um sacrifício a Deus para agradecer essa grande dádiva, esse grande dom que ele está recebendo. Mas se vê que está com a fisionomia mais animada, mais alegre, e que ele é um sacrificador sério. E se tem a impressão que um bom número da bicharada que está perto dele vai perecer.

São Joaquim teve um sonho a respeito do futuro nascimento de Nossa Senhora. Não é um sonho na casa dele, mas ao ar livre; o teto é a abóboda celeste. Um Anjo desce e comunica-lhe o  nascimento de uma filha. E aqui está o mistério: o direito de primogenitura e os direitos  sucessórios na Casa de Davi se transmitiam entre homens, não entre mulheres; como é que ele, tendo uma  filha e não um filho, seria o avô do Messias? Mas lhe foi revelado, ele crê.

Perto de São Joaquim estão pastores, camponeses, vestidos exatamente como nas iluminuras medievais. É muito bonito o tom que ele dá para o céu, um azul que não é dia, mas uma espécie de claridade noturna que também não é luar, e que circunda um fato tão bonito e tão nobre quanto esse.

Jerusalém era fortificada, como todas as cidades daquele tempo, com ameias um pouquinho à medieval. São Joaquim e Sant’Ana se encontram na Porta de Ouro.

Nascimento de Nossa Senhora

Maria Santíssima nasceu e é apresentada pelas assessoras. Essa vestida meio de verde parece ser uma mulher especializada em assistir senhoras em lances desses; atrás será alguém da família que também está assistindo. E Sant’Ana recebe essa Menina que ela sabe ser a Mãe do Messias. Daí ela acolher a Menina, não como tantas mães recebem uma filha — uma bonequinha e começam a brincar com ela —, mas com profunda seriedade, contemplativa, olhando para a Menina.

A Menina está toda enrolada. De acordo com o hábito, deve ter sido banhada e depois apresentada a Sant’Ana, mas já com o aro de santidade em torno da cabeça. Porque como Ela foi concebida sem pecado original, e recebeu desde o primeiro instante de seu ser uma inteligência muito superior à de todos nós — de São Tomás de Aquino, de Santo Antônio de Pádua, de quem quiserem —, já tem em grau eminentíssimo a santidade. E Sant’Ana está recebendo Aquela que é o Vaso de Eleição, o Vaso Sagrado de toda espécie de graças, e ela olha como quem diz: “Desta nascerá o Messias esperado pelas gerações.”

Notem uns pormenores bem curiosos: a combinação de cores da cobertura de Sant’Ana é bonita? Tem qualquer coisa de contemporâneo. E, dentro de um quadro atual, o preto tomaria um realce que não possui no quadro aqui apresentado. E é agradável de olhar. Posta num ambiente moderno, esta cobertura me daria a impressão de meio modernosa.

Embaixo está a cena. É sucessiva, como história em quadrinhos: um quadrinho no fundo, um em cima e outro embaixo. Nossa Senhora vai ser deitada numa espécie de berço. Então há uma criada que está embalando — ou é um bercinho que deve fazer um pouco de “ninna nanna”, com certeza —, e outra criada faz com que Ela engula algum alimento. A mulher que se encontra no ângulo está com as mãos postas, rezando; ela percebe algo do extraordinário da cena. A profissional tem uma cara profissional, apenas muito atenta ao que está se passando.

São José, modesto, humilde, recolhido e calmo

Maria Santíssima vai ser apresentada no Templo. Essa construção é uma idealização de como esse homem imaginava a parte do Templo onde Nossa Senhora ia ser apresentada. Sant’Ana é essa de vermelho que está carregando a Ela. E São Joaquim me parece ser aquele que está no fundo, vestido com uma roupa um pouco violácea, com as mãos postas e um aro de santidade na cabeça, com barba, etc. Ambos são velhos e vão apresentar no Templo Nossa Senhora.

Mas o que importa especialmente no caso é o seguinte: fazer notar o escândalo dos que falavam contra eles porque não podiam ter filhos. Mas ao mesmo tempo ceticismo: “É verdade, afinal tiveram uma filha. Mas o que adiantava ter uma filha mulher?” De maneira que para eles era uma vitória, porém uma vitória que não dava em nada. Eles estão apresentando calmamente Nossa Senhora que já anda com os próprios pés, é uma mocinha.

Tudo no Templo era muito ornado com ouro, mármores, etc. Vemos ali candidatos à mão de Maria Santíssima, que se apresentam ao rabino levando ramos secos. Aquele cujo ramo florir é quem deve casar-se com Nossa Senhora.

Encontramos São José à esquerda. Aquele cujo ramo de fato vai florir está colocado de lado, é o último. Ele é modesto, humilde, tem o halo da santidade, mas não quer sobressair. Os outros desejam salientar-se e estão apresentando o ramo seco quase como cheques, pois julgam que vão vencer. São José está recolhido e calmo.

Evidentemente só o ramo dele florirá. Ele é quem vai ficar com a mão da Santíssima Virgem. Sua fisionomia é apresentada com certa perplexidade. Por quê? Porque ele tinha feito voto de ser virgem. Ele recebera uma revelação de que deveria casar-se com Nossa Senhora, mas não sabia como seria isso. Mas obedeceu e levou o seu ramo também. Podemos imaginar a surpresa dele quando o seu ramo floresceu.

“Sou muito sensível às cores”

Eu queria chamar a atenção para este ponto particular: eu sou — como já disse, é um modo de ser legítimo como outros — muito sensível a cores. E as harmonias de cores me interessam  especialmente. Giotto joga predominantemente com duas espécies de recursos cromáticos: algumas são cores muito clarinhas, delicadas. Vejam o verde bonito do primeiro portador de ramo. Um que deve ser ajudante do sacerdote tem uma túnica lilás e uma espécie de capa ligeiramente esverdeada, mas combinando muito bem. E atrás há outro portador de ramo cujo traje é de uma cor  que não sei definir, mas é feita de cores muito claras. São José está vestido com cores um pouco mais escuras, mas ainda são bastante claras. Entre eles há um com uma cor mais escura, ou melhor, bem menos clara. Seria uma composição de cor bordeaux com um pouco de azulado. As cores dos outros trajes quase não se distinguem, porque aparecem pedaços pequenos de roupa.

O rabino está com um traje de uma cor um pouco parecida com a daquele personagem de roupa mais escura. Há uma espécie de radicalidade nisso. É a radicalidade no claro e a radicalidade no carregado, que forma no todo um contraste interessante. Imaginem que esse sacerdote estivesse com uma cor clarinha, e o outro que está atrás também. Como ficaria tudo insípido! Esse tom escuro confere uma nota de seriedade ao clarinho, e é um equilíbrio de cores muito bonito.

A cena é tão característica, tão expressiva! Há uma espécie de empenho da parte dos pretendentes a se casarem com Nossa Senhora. Era nobre querer isso. Pode-se desejar alguém melhor do que Maria Santíssima? Entre as hipóteses  possíveis, no momento me alegra imaginar que todos os pretendentes rejeitados eram levados pela graça, e que depois se tornaram grandes devotos de  Nossa Senhora.

Mas o eleito já estava determinado por Deus, que operou o milagre na vara carregada pelo homem casto por excelência.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/11/1988)

OBRA-PRIMA DA PIEDADE CATÓLICA

No vasto e rico universo da arte católica, dois modos existem de representar a boa pintura religiosa, aquela em que os mestres dos pincéis se superam ao imprimir nas telas as luzes e as cores de seu talento. Uns procuram representar seus temas o mais possível de acordo com os aspectos comuns da vida, abstraindo daquilo que se nota muitas vezes no cotidiano católico, que é a  transparência da graça nas pessoas ou nos ambientes.

Cumpre dizer: tais pintores são primorosos no retratar o que é comum. Outros, porém, procuram envolver suas pinturas com essa espécie de imponderável místico que permite perceber na cena
a presença da graça. Exemplo paradigmático dessa categoria de artistas foi o Beato Angélico, o “magnata” da pintura da graça, cujos belíssimos afrescos constituem um dos maiores tesouros da iconografia da Santa Igreja.

Não menos admirável, porém, é o talento de outro pintor italiano, que viveu entre o fim da Idade Média e o início da Renascença, o célebre Giotto. Como o extraordinário frade-artista de Florença, também ele deixou-nos quadros e afrescos impregnados — a meu ver, intensamente impregnados — de  sobrenatural. Fra Angélico escolheu como “telas” as paredes do Convento de São Marcos, na urbe florentina; Giotto, as da chamada Capella degli Scrovegni, em Pádua.

Trata-se de uma famosa capela, edificada anexa ao palácio da influente família dos Scrovegni, hoje completa ofícios, reservadas numa espécie de gradim de mármore também muito bonito e bem trabalhado. Ao fundo, o pequeno altar de linhas singelas, sob uma abóbada de arcarias ogivais, emoldurado por estalas de madeira envelhecida, gasta, e por colunas ricas em lavores e coloridos do mesmo tipo de pedra que adorna toda a capela.

Nas paredes, harmônicas com o teto abaulado, vê-se a maior beleza, a principal atração desse exíguo e inestimável recinto católico: as cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, pintadas por Giotto. Caracterizadas, de um lado, por uma inocência ainda toda medieval; e, de outro, pela transparência daquela atmosfera sobrenatural magnífica.

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Sou particularmente sensível à harmonia das cores. Em vista da predominância dos recursos cromáticos utilizados por Giotto, sinto especial agrado por alguns desses afrescos. Por exemplo, a cena do Casamento de Nossa Senhora com São José, em que aparece uma espécie de radicalidade nos tons claros e a mesma radicalidade nos tons carregados, resultando num contraste muito interessante. Há matizes de verde, azul e lilás delicados, postos em realce pela combinação de vermelhos, carmins e laranjas bem profundos. A força destes tons escuros confere uma nota de seriedade ao claro, e constrói um equilíbrio de cores superiormente belo.

O quadro tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação de Giotto, seria uma parte do Templo de Jerusalém. O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, e de uma túnica que vai até o chão. É um velho de cabelos já brancos, abundantemente barbado, numa atitude digna, cheio de piedade e de recolhimento. São José traz na mão esquerda o bastão florido, que indicava ser ele o esposo escolhido pela Providência para se casar com Maria Santíssima. Na mão direita, segura a aliança que simboliza essa maravilhosa união. De acordo com uma velha tradição, Giotto representa São José muito mais velho que Nossa Senhora. Ela, ainda mocinha, tem o recato e a compostura de uma pessoa toda virginal. Como traje, leva uma túnica de cor muito clara, que fala de pureza, de delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. O seu porte é ereto, imaculado.

Outro afresco muito bonito é o que retrata a Apresentação do Menino Jesus no Templo. De um lado, Nossa Senhora e São José; de outro, o Profeta Simeão e a Profetisa Ana. Embora a parte central seja concebida em termos medievais, a ideia é mais uma vez a de que a cena se passa numa dependência do Templo de Jerusalém. Nessa pintura, o fato de maior interesse é a atitude dos santos esposos. Nossa Senhora apresentou o Menino ao Profeta, e aparece com as mãos no gesto de quem acabou de O entregar, ou de quem O receberá de volta. São José, modestamente recolhido a segundo plano, acompanha a cena. É notável a atmosfera de santidade e de pureza que domina o quadro inteiro, de maneira que o próprio templozinho possui algo de esguio e de virginal. Tudo é posto por Giotto sobre um fundo meio azulado, com folhagens e vegetações hoje apagadas, confundindo-se com um céu também de azul profundo. O colorido mais escuro confere particular relevo à parte central do tema: o Divino Infante — sob uma espécie de foco de luz —, o Profeta Simeão e Nossa Senhora (sob luminosidade menor), São José e a Profetisa Ana.

Na Fuga para o Egito, Nossa Senhora vai montada num simples burrico, e toda a Sagrada Família denota os sinais exteriores da pobreza. Mas a dignidade d’Ela é de uma princesa! Um porte retilíneo, as costas sem arcadura nem inflexão, a fronte alta, e a resolução com que enfrenta a viagem, os riscos, denotam a majestade da Mãe do Rei do Universo. São José caminha na frente, atentíssimo para o que possa acontecer com a Mãe e o Menino.

Ela confia em Deus e no esposo. Portanto, vai recolhida em oração, abraçando o Filho em seu colo. Giotto exprime de modo extraordinário a celestial intimidade dos dois. Certamente Ela reza a Jesus, pedindo por aqueles que estão contemplando o quadro…

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Noutro ciclo de afrescos surge o Domingo de Ramos, em cuja composição muito transparece aquela inocência de que atrás falamos. Nosso Senhor entra montado num burrinho, e abençoa o povo à sua frente.

Mas sua fisionomia é de tristeza, o rosto varonil, uma abundância extraordinária de barba, e uma atitude de Prelado de altíssimo poder, ou de Chefe da religião verdadeira. Muito mais do que isso, de Messias. No meio da multidão que o acompanhava, percebe-se uma ou outra pessoa com a auréola da santidade. O próprio Jesus está coroado por um aro muito definido. É, em grau infinito, o primeiro e o maior de todos os Santos, fonte e causa de todas as santificações.

Mais adiante, depois de lindíssimas pinturas como a Ressurreição de Lázaro, vem a Crucifixão e Morte de Nosso Senhor, o quinto mistério doloroso do Rosário. Jesus, pregado ao madeiro, está lívido, tendo exalado seu último suspiro. Santa Maria Madalena, identificada pelos longos cabelos soltos, oscula-Lhe os pés. A um canto vê-se Nossa Senhora, amparada por São João Evangelista e por uma das santas mulheres. No lado oposto aparece uma parte da multidão que deseja assistir ao acontecimento. O céu está povoado de Anjos cantando a glória do Divino Redentor. E enquanto os outros presentes sentem apenas dor e vergonha, Maria Santíssima, embora abalada, permanece de pé, com força e determinação. Imaculada, cheia de graça e de amor a Deus, era capaz de refrear em alguma medida sua própria dor, de maneira a servir de consolo e sustentação para os que, neste momento sumamente trágico, claudicassem na fé e na certeza da Ressurreição.

São alguns episódios da Paixão segundo Giotto, uma das obras-primas da piedade católica.

Para mim, esse face-a-face entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado. Nosso Senhor está sério e olhando Judas até o fundo da alma. E este procura mentir. É a verdade eterna e subsistente, encarnada, que olha para um homem falso. E Judas, que procura tornar a mentira dele aceitável, abraça Nosso Senhor e O olha com ares de quem pretende ser um grande amigo. Nosso Senhor o fita e lhe diz: “Judas, é com um ósculo que trais o Filho do Homem?” Nosso Senhor recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado  provavelmente de um mau odor asqueroso, cheiro do inferno. Judas nada responde à pungente pergunta do Mestre. Ele trai o Filho de Deus. Depois disso, se porá a delirar e a correr de um lado para outro, até cometer o suicídio.

Nesta cena, Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o sumo de todos os predicados intelectuais e morais. E em Judas, o sumo de todas as abjeções. Daí os recursos de que ele se serviu. Primeiro, a diferença entre as duas cabeças. A de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, digna, composta, sem espalhafato. A de Judas, pelo contrário, está coberta com uma grenha suja, abundante, que ele procurou pentear bem antes de cometer seu crime infame, a fim de que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ia fazer. Era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então, ele se enfeitou. Mas é patente a desordem capilar dele em contraste com a proporção e a ordenação adequada dos cabelos de Nosso Senhor. A barba do Divino Mestre é de boas dimensões, dispondo-se belamente em cima da pele, com muita mesura e harmonia. O mesmo deve-se dizer do bigode. Já a barba de Judas é feita de uns fios raros, formando arquipélagos peludos em certos lugares do rosto, confundindo-se com a própria carnatura, e mais nada. Além disso, a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice sórdida e horrorosa. Nosso Senhor, a de uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.