A Cruz permanece de pé

O obelisco encimado por uma cruz, colocado na Praça de São Pedro, nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

 

Na Criação existem seres de uma grande durabilidade que nos falam da eternidade de Deus, o único Ser absoluto, perfeito e eterno, em função do qual e para Quem tudo existe. Essas criaturas muito duráveis falam-nos do Criador pela sua imutabilidade e aparente ou relativa indestrutibilidade.

Símbolo da eternidade de Deus

Por sua natureza pétrea e sua integridade, o obelisco é um exemplo adequado das coisas duráveis, que nada destrói.

Nesse sentido, pareceu-me de muito bom gosto terem colocado no centro da Praça de São Pedro um obelisco encimado por uma cruz, que nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. Quer dizer, não há quem mude, quem derrube, quem abata a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela é sempre a mesma, contra ventos e tempestades.

Esse monumento monolítico enorme, com forma de agulha, encontrava-se originariamente no Egito, onde os faraós mandavam erigir grandes pedras com inscrições, contando fatos do reinado deles ou coisas do gênero, que eles queriam comunicar à posteridade.

O pagão que mandou esculpir aquele obelisco não imaginava estar esculpindo um símbolo da eternidade de um Deus que ele não conhecia, e da indestrutibilidade de uma Igreja que ainda não tinha nascido.

Uma “desobediência” heroica

Na época em que esse obelisco foi transladado ao seu atual lugar, no século XVI, não havia os meios mecânicos que temos hoje, e a suspensão era feita através de um sistema de cordas, complicadíssimo, amarrando a pedra de vários lados, de maneira a ser puxada ao mesmo tempo por várias forças.

Para não haver desordem e evitar acidentes existia uma ordem do Papa, que era o Rei de Roma naquele tempo, condenando à morte quem falasse. Era preciso que tudo fosse feito no maior silêncio, de maneira a só se ouvir, na imensidade da praça, a voz dos mestres e contramestres.

Os homens foram levantando a pedra e, em certo momento, um dos operários, o qual era um experiente marinheiro, percebeu que a corda segurada por ele estava tão quente, pela pressão exercida, que iria se incendiar. Se o fogo se ateasse, o obelisco cairia e mataria muitos dos circunstantes.

Esse homem, com o risco da própria vida, resolveu atrair sobre si a pena de morte, pedindo para trazerem água. Então ele gritou: “Acqua alle funi!”(1)

Trouxeram depressa água para o operário e, tendo ele apontado o lugar, este foi regado, salvando-se com isso a pirâmide de cordas, e o obelisco pôde ser erguido.

Terminado o trabalho, houve um decreto do Papa Sisto V recompensando com honrarias o Capitão Benedetto Bresca, contratado para a ereção daquele obelisco, pelo ato de heroísmo praticado: enfrentou a morte, desobedecendo à ordem papal. Evidentemente, aquela ordem deveria ser desobedecida, caso contrário seria a ruína da obra.

A obra onde está autenticamente a Cruz é inatingível

Com que olhos deve-se olhar para esse obelisco egípcio, no centro da Praça de São Pedro?

A meu ver, com aplauso, porque de si é uma coisa bonita. Em primeiro lugar, um monólito como aquele é uma obra-prima da natureza e do engenho humano. Mas também o símbolo que está posto ali é muito bonito.

O Egito foi a mais gloriosa das nações antigas. Colocar o obelisco no centro da praça, encimado por uma cruz simbolizando o triunfo da Igreja sobre toda a sabedoria pagã antiga, evidentemente é belo e bom, pois indica a perenidade da Esposa de Cristo no movediço de todas as circunstâncias humanas.

O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

É também a presença da verdadeira Cruz em uma obra que assegura a sua inatingibilidade. O cosmo inteiro pode abalar-se de todas as formas; onde, de modo autêntico, está a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora, ninguém e nada atingem.

 

Plini0 Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 1/9/1973 e 8/8/1979)

 

1) Do italiano: Água para as cordas!

 

Levar a cruz com ufania

Os infortúnios, nossas limitações e defeitos constituem cruzes, por vezes muito pesadas, que devemos saber carregar. Certas pessoas, sem compreenderem a beleza e a necessidade do sofrimento, procuram fugir dele por meio de um blefe. Dr. Plinio nos aponta a atitude, ao mesmo tempo ufana e equilibrada, de um verdadeiro católico face à dor.

 

“Tollat”, leve-a! E não a arraste, nem sacuda, nem reduza e, ainda menos, a esconda! Isto é: leve-a bem alto na mão, sem impaciência nem pesar, sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e sem alívio natural, sem envergonhar-se, e sem respeito humano. “Tollat”, que a coloque sobre a fronte, dizendo com São Paulo: “Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coisa que não a Cruz de meu Senhor Jesus Cristo!” (cf. Gl 6, 14). Leve-a aos ombros a exemplo de Jesus Cristo, a fim de que essa cruz se torne para ele a arma de suas conquistas e o cetro de seu império: “(imperium) principatus (ejus) super humerum ejus” (cf. Is 9, 6). Enfim, coloque-a, pelo amor, em seu coração, para torná-la numa sarça ardente que, sem consumir-se queime, noite e dia, de puro amor de Deus(1).

Sofrimentos que devemos aceitar para salvar nossas almas

Neste trecho da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, vem enunciado o princípio de que, em relação à cruz, ou seja, ao sofrimento que Nossa Senhora nos manda, não nos cabe o levarmos resignada e arrastadamente, mas conduzi-lo alto, com alegria e ufania.

Dizia o Duque de Saint-Simon que o mundo deveria ser conduzido “à la croix haute”, tomando a cruz na mão e, com ela bem alta, fazer tocar todas as coisas. Porque se nos reportarmos ao que se entende por cruz, então compreenderemos bem o que diz esse texto de São Luís.

A cruz é o conjunto dos sofrimentos que devemos aceitar para salvar as nossas almas. Em primeiro lugar, os esforços que nossa santificação exige, abrangendo o enorme domínio da ascese. Em segundo lugar, os infortúnios que nos acontecem. E em terceiro lugar, as limitações e restrições em nós mesmos, com as quais devemos nos conformar. Todo homem tem uma série de limitações, e não deve apenas arrastá-las penosamente, tristemente, tomando-as como um fato consumado, mas, ao ver outros que têm mais virtude, mais inteligência, ou qualquer coisa a mais do que ele, precisa ter satisfação, dar graças a Deus, a Nossa Senhora, e por esta forma manifestar a aceitação das próprias limitações.

Como levamos nossa cruz em matéria de ascese? Se algo me custa muito, é de bom aviso pedir graças a Nossa Senhora para entregar não apenas o que me foi pedido, mas dar mais. Porque, assim, faço uma renúncia mais completa àquele apego que me levava a sentir dores em conceder aquilo, e vou muito mais longe no caminho da cruz e da santidade, do que um outro que não segue esse princípio.

Devemos cortar as raízes de nossos defeitos

Por exemplo, uma pessoa que seja colérica e se põe como norma: “Nunca darei o meu consentimento em encolerizar-me com alguém, sem razão”. Se o defeito preponderante dela é a cólera, ela nunca ficará nesse limite. Porque, com a preocupação de ficar no mínimo, ou seja, apenas no limite da correção nos assuntos em que temos uma tendência contrária muito forte, não extirpamos a raiz, mas apenas cortamos os maus frutos que estão em nós. Resultado: esses frutos surgirão com tanta abundância, que todo nosso tempo e energia não bastarão para cortá-los continuamente.

Então, como se leva a cruz nesse caso? Dizendo: “Tenho uma tendência para estar continuamente me irritando com os outros. Portanto, não vou me limitar a não me irritar, mas serei um modelo de correção no trato com os demais. Mesmo nos casos em que fosse meu direito me encolerizar, não me encolerizarei. Só por esta forma eu mato a raiz de minha cólera. É o meu mau gênio que me leva continuamente a estar implicado e irritado com os outros. Então, tenho que descer aos porões de minha alma e fazer uma poda dolorosa”.

Devemos pedir a Nossa Senhora as graças para fazermos essa poda generosamente e com ânimo forte, isto é, fixar uma resolução e traçar um programa: “Eu chegarei, de uma vez só ou por progressivos cortes, a eliminar dentro de mim aquilo que constitui essa raiz da qual brotam os meus pecados”. Isso será com a cólera ou com um defeito oposto à cólera, que é a apatia e a falta de sensibilidade para com as ofensas profundas; será em relação a qualquer defeito preponderante. Leva-se a cruz alta, como recomenda São Luís Grignion de Montfort, quando temos a graça de operar por esta forma.

Todos os homens passam por infortúnios

O que é a aceitação dos infortúnios que nos acontecem?

Não há pessoa que não receba, de vez em quando, uma bombarda de algo que não quereria e acontece de um modo inteiramente imprevisto. Ora é a morte inopinada de alguém a quem estimávamos muito; ora é uma campanha de calúnias, ou uma amizade que desejávamos muito e não a obtivemos, ou um dinheiro, a saúde; seja o que for, mas ninguém deixa de receber o impacto de vários infortúnios.

Como levar a cruz até o fim, em relação a esses infortúnios? Preparando a alma no período de tranquilidade para que, no tempo da adversidade e das desventuras, ela seja forte.

Se logo depois de me acontecer uma coisa desagradável, de ter me aclimatado e posteriormente saído dela, eu esfrego as mãos e penso: “Graças a Deus, saí de dentro disso, e nunca mais vai me acontecer novamente!” Quando me acontecer, apanha-me fraco e desprevenido, e tenho outro drama.

Devo pensar o contrário: “Esta vida é um vale de lágrimas. Aconteceu-me isso agora e pode me suceder outra desventura daqui a dez minutos. E isto é normal, porque são as regras do jogo, não posso estranhar. Por pouco que eu olhe em torno de mim, desde que não o faça como um ingênuo, mas procure ver como é a vida dos outros, percebo que cada um tem infortúnios sérios, grandes e, portanto, é natural que eu os tenha também. Pela bondade divina, no momento não tenho, mas tê-los-ei daqui a pouco. Se vier o sofrimento, Nossa Senhora o estará mandando para o bem de minha alma, e devo estar preparado. Assim, habituo um pouco a minha imaginação de maneira a não ficar tão surpreso e não ser colhido de improviso se me acontecer alguma desventura”.

O oposto a isso é o defeito moral de muita gente que começa a imaginar situações otimistas. Isso amolece a alma, tira completamente a coragem para a luta.

O que se deve fazer? Prever o mal, não exagerando a possibilidade de ele acontecer, mas acostumando os olhos a considerá-lo de frente. E, durante o infortúnio, rezar para Nossa Senhora afastá-lo, se for a santíssima vontade d’Ela;  pedir até que seja a santíssima vontade d’Ela afastá-lo, se Ela não nos dá a sede de cruz. Rezar filialmente, pedindo isso à Virgem Maria, mas compreendendo que Ela pode não conceder, porque, por mais altos desígnios, quer que eu tenha uma cruz a carregar nesta vida.

Cada criatura tem um belo e digno lugar nos planos de Deus

No tocante às limitações que temos, deveríamos partir da ideia de que cada criatura, por menor, mais apagada e mais defeituosa que seja — e falo, sobretudo, da criatura racional —, tem um lugar nos planos de Deus. E um lugar de formosura, de dignidade. Portanto ela deve aceitar, com enlevo, e dentro de todas as suas limitações, esse destino.

Não me refiro apenas a limitações físicas, mas a defeitos nativos, por exemplo, de inteligência, de temperamento e até morais.

A pessoa deve fazer este raciocínio: Se Deus compôs para Si um universo como um diadema, no qual há pedras centrais enormes e, à medida que se distanciam do centro, as pedras vão diminuindo, até o diadema fechar-se em pedras bem pequenas; e se, para a beleza desta joia, deve haver pedrinhas e eu sou uma delas, então vou me alegrar por isso, dar graças a Nossa Senhora e aceitar de bom humor, porque componho a beleza desse conjunto.

Portanto, não vou morrer de tristeza, por haver pedras maiores do que eu. Pelo contrário, fico alegre de compor o cortejo das pedras e ser um lampejo pequeno dentro dos lampejos maiores. Uma vez que a beleza do conjunto precisa de mim, tenho um papel, uma razão de ser, e não sou uma excrescência, desde que saiba realizar o meu destino.

Um ponto fundamental nesta questão é que não se deve ter vergonha de ninguém. Por menor que eu seja, tenho uma razão para existir e, por isso, não há motivo para me desprezarem. Estou desempenhando meu papel.

Por mais rico que seja um palácio, é necessário que nele haja vassouras. O dono da residência não pode desprezar, quebrar e jogar fora a vassoura, pois ela tem uma função a exercer.

Logo, se tenho a minha razão de ser, não terei complexo ou vergonha por não ser os outros. Quererei ser eu mesmo. E se os outros quiserem pisar em mim, eu rio deles, porque a boa razão e o bom direito estão de meu lado. O próprio Deus está de meu lado. E vou ser, com toda a paz da alma, o que sou, com os meus defeitos e limitações.

Se sou pouco inteligente ou sem graça, ou tenho má memória, ou sou pequenininho; que importa? Não tenho minha razão de ser? Então eu me afirmo: sou como sou, sou o que sou, aqui estou! Desde que eu seja de acordo com a regra com a qual devo ser, não tenho vergonha de nada e me afirmo com toda a dignidade e toda a minha finalidade.

Um blefe existente hoje mais do que em qualquer outra época histórica

Como esse senso da cruz importa ao senso contrarrevolucionário! O oposto disso é o blefe, por onde o mundo de hoje está continuamente elaborando atitudes pelas quais as pessoas procuram dar a entender que são mais do que são.

Por exemplo, bancar ser mais inteligente do que é, ou então mais fino, de melhor posição social, ou ter mais dinheiro, mais importância, mais prestígio, e outros mil recursos para blefar. Acho que hoje em dia o blefe é de uma frequência maior do que em qualquer outra época histórica. Isso significa não querer carregar a cruz.

Certa vez, uma pessoa, estando em minha residência, disse-me:

— Sua casa é bonita, e tenho muito gosto em vir até aqui. Mas não teria coragem de morar nela.

— Mas por quê? — indaguei.

— Porque, neste gênero de casas, há objetos muito mais ricos e distintos do que os existentes aqui, e eu não teria coragem de habitar num ambiente que não fosse o mais bonito no gênero. Como também, na sua posição, não teria coragem de ir até a esquina e ficar “pescando” um táxi, como o senhor “pesca”. Um homem de sua idade e condição tem automóvel. E eu teria vergonha de não possuir automóvel. Jamais iria para uma esquina, por onde passa muita gente conhecida, e estar ali “pescando” um táxi. Cada um que passa dentro de um automóvel próprio e vê o senhor ali, pensa: “Está vendo? Este chegou a essa idade e não tem automóvel!”

Eu disse:

— Meu caro, isso não me causa a menor emoção. Moro nesta casa e julgo que ela me serve de boa moldura, porque não sou, nem pretendo ser, mais do que isso. Acho, inclusive, que está de acordo com meu nível de educação e com minha posição tomar um táxi na esquina e, portanto, não me incomodo. E se eu tivesse que pegar ônibus ou bonde, também não teria vergonha, porque, se não possuo dinheiro, não adianta pensar que tenho. Se eu possuir um automóvel, darei graças a Deus; se não o tiver, estarei com a mesma fisionomia ao sol, com a mesmíssima apresentação. Aqui estou, Plinio Corrêa de Oliveira, pronto a aguentar qualquer desprezo e revidar, mantendo-me normal, sem me amargurar.

Entretanto, muitas pessoas procuram blefar até mesmo aos seus próprios olhos, quando o melhor é ver a verdade, pois a humildade é a verdade. Isso é carregar a cruz. E carregando-a, devo considerar também que posso vir a perder um pouco do que tenho e ser menos do que sou. Se isso acontecer, Deus seja bendito!

Essas são verdades conhecidas e cuja lembrança faz bem à vida espiritual.

Martírio de São Théophane Vénard

Contudo, parece-me que haveria restrições a fazer, de ordem prática, ao que eu disse. Porque, pelo nervosismo, pela debilidade de vontade, por algo de desengonçado existente nas gerações mais recentes, compreendo que esse quadro traçado assim, embora se preste a ser admirado, sua simples explicitação pode causar, em certos momentos, tremor.

Alguém me contou, outro dia, como foi o martírio do Bem-aventurado Théophane Vénard(2). Ele estava sendo preparado para ser decapitado, diante do mandarim. E o carrasco, vendo um pequeno objeto de ouro que ele possuía, disse-lhe: “Se você me der isso, eu tiro a sua cabeça de um golpe só, você nem vai sentir”. Não lembro se ele deu ou não o objeto, mas respondeu ao verdugo: “É melhor que você demore, porque quanto maior o número de pancadas, mais ocasião terei de sofrer”.

Admiro isso profundamente, mas uma coisa como essa me enregela. Se eu fosse morrer decapitado, não me passaria pela cabeça fazer isso. Eu julgaria ter cumprido inteiramente o meu dever, simplesmente deixando-me decepar. De maneira que se eu tivesse que ser martirizado, eu “tout bêtement”(3) teria que pensar em outra coisa e me entregar nas mãos da Providência. Se Nossa Senhora quiser permitir que me cortem a cabeça com vários golpes, e Ela me der forças para isso, ficarei encantado. Mas se Ela não me der forças, não há remédio, tem que ser de um golpe só, porque do contrário não aguento mesmo. O que equivale a dizer que, se for de sua vontade, Ela me dará as graças.

Esse estado de alma é um pouco o da santa mártir que tinha disposição para ser comida por qualquer fera, exceto por um leopardo. E a Providência arranjou um jeito de que não fosse um leopardo que a devorasse.

O problema da cruz e a pequena via

Esses são exemplos de uma debilidade de alma que não se pode considerar propriamente como um defeito, mas uma estrutura com sua fragilidade própria. E diante do dever descrito em toda a sua austeridade, pergunto-me se não há almas que experimentam uma constrição, uma incapacidade de realizar o sacrifício até o fim, com todas as aparências de falta de generosidade que, entretanto, não o é; trata-se apenas do indicativo de uma outra via de dentro da qual o homem pede a Nossa Senhora:

“Minha Mãe, sou fraco demais para enfrentar esses pavores. A simples perspectiva de suportá-los me faz tremer. Se quiserdes isso de mim, dai-me uma graça especial, operai na minha alma com uma rapidez, uma sublimidade, uma eficácia especial, para que ela seja capaz daquilo de que eu, pelo simples jogo da graça ordinária, não sou. E então, eu Vos peço enlevos, entusiasmos, favores e auxílios, por onde, em determinado momento, minha pobre alma se torne capaz.”

Creio ser esta uma das diferenças mais frisantes entre a grande e a pequena via; esta última conta com auxílios desses. Nossa Senhora toma a alma débil e a carrega aos ombros para fazê-la atravessar as dificuldades mais tremendas. De maneira tal que a alma faz, com toda facilidade e suavidade, coisas enormes que nunca se imaginaria capaz de realizar.

Ou, então, não faz essas coisas, porque são afastadas de seu caminho. E a Santíssima Virgem obtém para a pessoa auxílios a fim de realizar as coisas pequenas, frágeis, comuns, com tanto amor que as engrandece por esta forma.

Eis como devemos considerar esse problema da cruz na pequena via.

Muitos caminham, ora pela grande via, ora pela pequena via

O Bem-aventurado Teóphane Vénard, levado por uma grande graça no último momento de sua vida, realizou um ato da grandeza de um dos Macabeus, desses martírios mais terríveis. Mas não o fez pela ascese inaciana, com propósitos, e prevendo ponto por ponto, mas meio impelido por um vendaval da graça que o suspendeu.

A mesma coisa se deu, depois, com Santa Teresinha, grande devota dele. Ela morreu com um heroísmo que o herói da Chanson de Roland poderia invejar, ou considerar que emulou com ele. Mas ela chegou a isso pela pequena via.

Tudo quanto acima foi dito sobre a aceitação do sofrimento deve ser profundamente admirado. Mas cada alma, conforme seu caminho, toma em relação a isso alguma distância; e muitas almas, em relação a alguns pontos, ora andarão à grande via, ora à pequena via, de acordo com o feitio de cada uma e o tipo de perfeição moral que Nossa Senhora quis suscitar.

Quantas vezes, ao desvendar panoramas muito sérios e grandiosos em matéria de vida espiritual, há almas que podem se sentir alquebradas ou desanimadas e, ao mesmo tempo, empolgadas. O que fazer diante de panoramas como esses?

Devemos não só amar e admirar, mas conhecer e compreender esta outra via. Rezando bem, entenderemos como aplicá-la aos nossos próprios problemas, para transpor — suavemente, no ritmo da nossa personalidade e sem nos alquebrarmos — obstáculos para os quais de outra maneira não teríamos coragem.

Por uma via ou por outra, portanto, seguimos a Nosso Senhor Jesus Cristo com a cruz, e a levamos alto. E, guiados pelo Divino Espírito Santo, com o auxílio das graças obtidas por Nossa Senhora, seremos levados a praticar a virtude de carregar a cruz, com aquela plenitude que São Luís Maria Grignion de Montfort deseja.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/8/1967)

 

1) Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 19.

2) Jean-Théophane Vénard, presbítero e mártir (*1829 – †1861). Beatificado por São Pio X e canonizado pelo Beato João Paulo II.

3) Do francês: ingenuamente, inocentemente.

Inigualável papel da cruz na vida humana

Festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada pela Igreja no dia 14 de setembro, sempre despertou em Dr. Plinio profundos sentimentos de adoração ao Santíssimo Redentor que, ao se deixar imolar no alto do madeiro, resgatou o gênero humano e nos legou para sempre seu consolador exemplo de perfeita aceitação do sofrimento.

 

Certa feita, assim se expandiu Dr. Plinio, ao considerar a sublime importância do holocausto de Nosso Senhor no alto da Cruz: “O Evangelho nos faz ver com a maior evidência quanto a misericórdia de nosso Divino Salvador se compadece de nossas dores da alma e do corpo. Basta atentar para os milagres assombrosos de sua onipotência, praticados tantas vezes para as mitigar.

Entretanto, não imaginemos que esse combate à dor tenha sido o maior benefício por Ele feito aos homens, nesta vida terrena. Não compreenderia a missão de Cristo ante os homens quem fechasse os olhos para o fato central de que Ele é nosso Redentor, e de que quis padecer dores crudelíssimas para nos remir. Até na culminância de sua Paixão, Nosso Senhor poderia ter feito cessar instantaneamente todas essas dores, por um mero ato de sua vontade divina. Desde o primeiro instante de sua Paixão até o último, Ele poderia ter ordenado que suas chagas se fechassem, seu sangue precioso deixasse de correr, os golpes por Ele recebidos deixassem de manter cicatrizes no seu corpo divino e, por fim, uma vitória brilhante e jubilosa cortasse o passo, bruscamente, à perseguição que O ia arrastando até a morte.

Porém, Ele não o quis. Pelo contrário, Ele quis deixar-se arrastar pela via dolorosa até o alto do Gólgota, quis ver sua Mãe Santíssima entregue ao auge da dor e, por fim, quis bradar, de maneira a que O ouvissem até o fim dos séculos, as palavras lancinantes: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46). Nesses fatos compreendemos que, dando-nos a graça de sermos chamados com Ele para padecermos cada qual um quinhão da sua Paixão, Ele tornava claro o papel inigualável da cruz na vida dos homens, na História do mundo e na sua glorificação. Não pensemos que, convidando-nos a padecer as dores da vida presente, Ele tenha querido dispensar-nos de pronunciar, cada qual, no transe da morte, o seu ‘consummatum est’ (cfr. Jo 19,30).

Sem a compreensão da cruz, sem o amor à cruz, sem ter passado cada qual por sua “via crucis”, não teremos cumprido a nosso respeito os desígnios da Providência. (…) Com tal amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo tudo conseguiremos, ainda que nos pese o fardo sagrado da pureza e de outras virtudes, os ataques e os escárnios incessantes dos inimigos da Fé, as traições dos falsos amigos.

O grande alicerce, o máximo alicerce da Civilização Cristã está em que todos os homens exercitem generosamente o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que a tanto nos ajude Maria, e teremos reconquistado para o Divino Filho d’Ela o Reino de Deus, hoje tão bruxuleante no coração dos homens.”

  • * *

Há 10 anos, precisamente no dia 1º de setembro de 1995, Dr. Plinio era internado no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. Ao longo daquele mês, esse insigne varão católico provaria o seu edificante amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, encetando com resignação — e inteira confiança na misericórdia da Santíssima Virgem — os derradeiros passos de sua própria “via crucis”.

Façamos nossa, a prece que Dr. Plinio costumava recitar diante de um Crucifixo:

“Nós vos adoramos, ó Cristo, e vos bendizemos, porque por vossa santa Cruz redimistes o mundo. Mãe Dolorosa, rogai por nós. Vós, que tivestes pena de vosso Filho no alto da Cruz, tende compaixão de cada um de nós, nos fundos vales de nossa existência cotidiana. Amém.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A Cruz, glorioso símbolo da vitória

As  festas litúrgicas, sabiamente instituídas pela Santa Igreja, nunca carecem de profundo significado e inestimável riqueza. Dessa forma, a doutrina católica explica que mais valem as cerimônias do que até mesmo os documentos pontifícios, alegando serem elas mais marcantes e benéficas às almas que nelas tomam parte.

Entre tais cerimônias, distingue-se a da Exaltação da Santa Cruz. A cruz, na qual morriam os condenados por graves delitos, era por esse motivo símbolo de ignomínia e repulsa por parte dos antigos, como bem expressou São Paulo em sua carta aos Coríntios: “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cf. Cor. 1,23). Foi esse o instrumento pelo qual o Redentor abriu ao gênero humano as portas do Céu, transformando-a em sinal de nossa Fé.

Vejamos o significado e a riqueza dessa festa, como explica Dr. Plinio a seguir:

“Hoje, 14 de setembro, comemora-se uma das mais bonitas festas como título e significado: a Exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Exaltar quer dizer tornar alto. E neste dia a Igreja proclama e lembra ao mundo que Ela levanta acima de todas as coisas, pondo na maior de todas as alturas possíveis, a Cruz de Nosso Senhor.

“A Cruz é o símbolo da Paixão de Cristo, de todo sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em união com o Redentor, as portas dos Céus.

“Colocar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo no ponto mais alto foi uma constante preocupação da Civilização Cristã. Antigamente, os edifícios mais elevados de uma cidade eram as igrejas, em cujas torres colocava-se a cruz; o mesmo se fazia no alto das coroas dos reis. Quando se queria elaborar um documento muito importante, em seu início se inscrevia a cruz. Enfim, em tudo aquilo que o homem concebia de mais elevado, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual trazia consigo a ideia de que a missão d’Ele, não se esgotando na Cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central; e entre todas as coisas que o Divino Salvador tinha feito, o mais admirável e adorável era ter sofrido e morrido na Cruz.

“A aceitação do sofrimento é uma imolação e representa um ato de fidelidade do homem à sua própria vocação, em função da qual ele enfrenta as lutas, os tormentos e as dificuldades.

“Nosso Senhor Jesus Cristo, para redimir o gênero humano, aceitou a morte. Manteve a luta no Horto das Oliveiras, depois caminhou até o alto do Calvário e foi crucificado, para realizar a sua missão. E a Cruz é a afirmação de que nós, católicos, aceitamos ser humilhados, odiados, combatidos, isolados, escarnecidos, perseguidos de todos os modos, não como um armazém de pancadas, mas caminhando de encontro ao sofrimento como um cruzado.

“A verdadeira alegria da vida não consiste em ter prazeres, mas sim na sensação de limpeza da alma que temos quando olhamos nossa cruz de frente, e dizemos “sim” para ela. Fazemos, assim, como Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual não apenas permitiu que o tormento caísse sobre Ele, mas caminhou em direção ao tormento. O Redentor previu, entregou-se porque quis e, com passo valoroso, levou sua Cruz até o alto do Calvário e ali se deixou crucificar.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/9/1964)

A exaltação da Santa Cruz

Em todos os episódios da Paixão, nota-se o desejo de humilhar Nosso Senhor. A Cruz, de modo especial, representa as humilhações que Ele sofreu. Ela é a primeira das humilhações que, até o fim do mundo, todos os católicos haverão de sofrer por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por esta razão, a Cruz foi tomada como sinal de honra de tudo quanto há de mais sagrado e de mais santo, pois a honra não consiste em não sermos humilhados, mas, isto sim, em receber a humilhação com ufania.

Ter presente a contínua exaltação da Cruz é a graça que devemos pedir na festa da Exaltação da Santa Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 14/9/1965)

Glorifiquemos a Cruz com ufania!

Dr. Plinio nunca deixou de denunciar um catolicismo sentimental que se afasta da Cruz, pretendendo que os cristãos vivam uma vida de langor que não segue as vias do Divino Mestre. A festa da Exaltação da Santa Cruz, comemorada a 14 de setembro, deu-lhe certa feita o ensejo para uma dessas importantes admoestações.

 

A cruz era um instrumento de suplício, usado na antiguidade, que representava uma ignomínia para toda pessoa que fosse crucificada. Era uma vergonha tanto para o sentenciado como para sua família.

Os cidadãos romanos não eram sujeitos à crucifixão, por isso São Paulo, tendo direito às honras de cidadão romano, foi em seu martírio decapitado e não crucificado.

A cruz representou o auge de todas humilhações sofridas por Nosso Senhor

Nosso Senhor recebeu tremendas humilhações durante sua vida terrena. Essas correspondiam a um ódio crescente contra ele, e desfecharam na maior de todas as humilhações possíveis, que foi o  sacrifício da Cruz.

Durante a Paixão, a intenção de humilhar a Nosso Senhor ficou evidente, por exemplo, na coroação de espinhos, na túnica de irrisão com que O cobriram e na cana que lhe puseram na mão à guisa de cetro.

As pessoas que O maltratavam revelavam o desejo de atormentá-Lo na sua Alma Santíssima, e não apenas no seu Corpo Puríssimo.

Sendo por fim crucificado, Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu uma humilhação tremenda, pois com esse tipo de morte proclamava-se que Ele era um bandido, um ladrão, do mesmo gênero que os dois outros facínoras com os quais Ele foi crucificado.

E é neste sentido que a cruz não foi uma humilhação a mais, mas foi o auge de todas as outras humilhações que Ele sofreu durante a sua existência terrena. A cruz inaugurou também todas as  humilhações que até o fim do mundo os católicos haveriam de sofrer por causa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não há um só católico bom que não tenha sido humilhado por causa de sua fidelidade a Nosso Senhor. Mas isso é uma honra, é exatamente uma das bem-aventuranças: ser perseguido por amor a Jesus Cristo.

Nós, católicos, sofremos essas humilhações e havemos de sofrê-las até o fim do mundo, porque a impiedade nunca cessará de ultrajar a Deus.

Símbolo de glória, para reivindicar a honra de Jesus Cristo

Mas a honra de Deus, a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo foi reivindicada pela Igreja. Os católicos adotaram a Cruz como um símbolo de glória, como o símbolo de quanto há de mais sagrado e  santo, e assim tivemos as três manifestações características dos tempos de Fé: a Cruz colocada no alto das coroas; a Cruz como sinal heráldico dos mais nobres galardões das famílias da alta  aristocracia e a Cruz colocada como insígnia das condecorações.

Foi uma exaltação da Cruz o que se deu, para revidar aquela humilhação, e revidá-la com ufania cavalheiresca, com ufania sobrenatural. A honra consiste em receber a humilhação com ufania O aparecimento da Cruz a Constantino na Ponte Mílvia e a promessa: “Com este sinal vencerás!”, significava isto: a Cruz se levantava no céu e ia definitivamente se incorporar ao horizonte do  undo, humilhando por sua vez os ímpios e os demônios.

E ao mesmo tempo, a Cruz passaria a ser o sinal da honra dos católicos. Nossa honra não consiste em não sermos humilhados, mas consiste em receber a humilhação com ufania, gabando-se da humilhação e, mais ainda, com espírito de desafio. Em face daqueles que nos humilham, nós revidamos como cavalheiros e proclamamos com ufania ainda maior a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A exaltação é a proclamação da glória da Cruz com ufania

Exaltação é propriamente isto: é a proclamação da glória da Cruz, com tal ufania que aniquila as humilhações que o adversário procura mover contra Cristo. Daí vem a palavra exaltar. “Exaltare”, de  ex (em direção a) e “altus” (alto), levar para o alto, ou seja, pôr no alto aquilo que estava humilhado, que estava rebaixado.

A exaltação da cruz é a glorificação da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A causa de Deus precisa ser defendida com espírito de Cavalaria. Portanto, se alguém injuria a Cruz diante de nós, devemos redarguir com energia. Porém, não como quem defende a própria honra, porque honra pessoal é coisa muito insignificante, mas como quem defende a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo. O amor pela contínua exaltação da Cruz, com esta espécie de espírito de cavaleiro, que está lutando continuamente pela glória da Cruz, é a graça que devemos pedir na festa da Exaltação da Santa Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira

A exaltação da Santa Cruz, em nós e fora de nós

Cada um tome sua Cruz e siga-Me”. Nestas palavras de Nosso Se- nhor estava, para Dr. Plinio, a chave da felicidade humana. Só quem amorosamente aceita as cruzes que Deus lhe envia, encontra paz de espírito. Tema apropriado para este mês em que se comemora a exaltação da Cruz por excelência – a de Cristo.

 

A exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma das mais belas festas da Igreja, como título e como significado.

Consideremos, antes de tudo, o que a palavra “exaltação” traz consigo.

Segundo a linguagem comum, impregnada de pieguice, o indivíduo exaltado é aquele que facilmente se irrita, derramando sua bílis sobre os outros. A verdadeira exaltação, porém, nada tem a ver com o mau gênio. Do latim “exaltere”, significa tornar-se alto, elevar-se, subir.

A exaltação da Santa Cruz de Nosso Senhor é, portanto, a festa pela qual a Igreja recorda e proclama aos olhos do mundo que ela ergue o símbolo da Redenção acima de todas as coisas, colocando-o na sua devida e suprema altura.

O auge das humilhações sofridas por Jesus

Este louvor se reveste de grandeza e de júbilo ainda maiores, quando consideramos que a cruz, originalmente, era um instrumento de suplício usado em toda a antiguidade, que representava a ignomínia e a vergonha para toda pessoa que sofresse a pena da crucifixão.

Por isso, ao ser pregado na cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu tremenda humilhação. Esta equivalia a dizer que Ele morria como um bandido, um ladrão, equiparado aos dois facínoras com os quais foi crucificado no alto do Gólgota.

Neste sentido, a cruz representa o auge de todos os desprezos e escárnios que Jesus padeceu na sua vida pública, sobretudo nos trágicos dias da Paixão. Essas humilhações correspondiam ao desejo dos algozes de acrescentar aos tormentos físicos um martírio moral, ainda mais doloroso. Então, a coroa de espinhos, a túnica de bobo, a cana à guisa de cetro, as bofetadas, etc., na intenção de atormentar a alma adorável de Nosso Senhor, e não apenas o seu corpo santíssimo.

Mas, sendo verdade que a Cruz de Nosso Senhor foi o ápice de todas as humilhações sofridas por Ele, ela é também o começo de todos os desprezos que até o fim do mundo todos os católicos haveriam de suportar em nome do Filho de Deus. Porque a impiedade não se desarma nunca. Ela visa sempre menosprezar e abater a autêntica moral cristã. Raros, se não inexistentes, são os católicos que não tenham sido humilhados, de uma forma ou de outra, por causa de sua fidelidade a Jesus Cristo. O que constitui, aliás, uma bem-aventurança, pois significa ser perseguido por amor à justiça divina, contra a qual continuamente se erguem os ímpios.

Cumpre, porém, frisar que a Cruz de Cristo, e as cruzes que por Ele carregamos, são igualmente símbolos de nossa honra. Esta consiste em recebermos a humilhação com ufania, gabando-se dela. Mais: com um espírito de desafio. Em face daqueles que nos injuriam, proclamamos com brio e júbilo ainda maiores o supremo símbolo de nossa religião. O que corresponde inteiramente à ideia de exaltação: manifestar a glória da Cruz, com uma altaneria que esmague os ultrajes que os adversários procuram fazer a Cristo.

Vem a propósito recordar que essa ufania já fora ratificada nos primeiros séculos do Cristianismo quando, às vésperas da batalha de Ponte Mílvia, o Imperador Constantino teve uma visão da Cruz, circundada pelas palavras: “In hoc signo vinces — com este sinal vencerás!” Era um anúncio de que a Cruz se levantava no céu e iria ficar definitivamente no horizonte do mundo, humilhando por sua vez os maus.

Essa galhardia é o que falta ao católico piegas. Este, diante de qualquer humilhação, mostra uma cara preguiçosa, baba e foge. Enche de vergonha a causa que deveria proteger. Nossa religião precisa ser defendida com espírito de luta e, portanto, se alguém injuria a Cruz em nossa presença, devemos redarguir com destemor e bravura. Não como quem resguarda a própria honra, mas como quem responde pela honra infinitamente mais preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo e, em união com a d’Ele, a da Santíssima Virgem.

No alto das torres e das coroas

Paralelamente, essa honra do Homem-Deus é também reivindicada pela Igreja. E, por causa disto, os católicos tomaram a Cruz como sinal de distinção, como símbolo de tudo quanto há de mais sagrado e santo. E o colocá-la no alto de todas as coisas foi uma preocupação constante da Civilização Cristã. Vieram então as manifestações características dos tempos de Fé: a Cruz encimando as elevadas torres das igrejas e catedrais; a Cruz no topo das coroas de reis e imperadores, ou adornando os mais nobres galardões das famílias da primeira aristocracia, ou servindo de insígnia nas condecorações. E quando se queria significar a magna importância de um documento, iniciava-o com uma cruz. Enfim, em tudo quanto o homem concebia de supremo, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, trazendo consigo a ideia de que, entre todas as maravilhas por Ele operadas neste mundo, o mais admirável e o mais adorável era o ter sofrido e morrido naquele instrumento de vergonha. Trazendo consigo, ainda, o revide a essa humilhação, um revide cavalheiresco e sobrenatural a exaltação da Santa Cruz!

A Cruz glorificada em nosso interior

Outro ensinamento há, porém, que encontramos na Cruz.

Nosso Senhor Jesus Cristo é o Redentor do gênero humano. Ele tinha de redimi-lo aceitando a morte. Por isto suportou a agonia no Horto das Oliveiras e os flagelos da Paixão, caminhou até o alto do Calvário e se deixou crucificar, a fim de cumprir a missão que O trouxe ao mundo.

A partir desse momento, a Cruz tornou-se a afirmação dos sofrimentos, dos tormentos e das dificuldades que o homem aceita para realizar os desígnios de Deus sobre ele na terra. Então enfrenta tudo, a exemplo de Nosso Senhor, para seguir a superior vontade divina. Tal é a lição que nos dá a Cruz: abraçar a dor, o sacrifício, o holocausto, num ato de fidelidade do homem à sua própria vocação.

Fidelidade esta que implica não só na luta de uma vida inteira para que a religião católica vença e a Cruz de Nosso Senhor seja elevada sobre todas as coisas, como também na vitória em nossos combates interiores. Com efeito, continuamente travamos uma batalha dentro de nossas almas, na qual se opõem virtudes e pecados. Este antagonismo redunda num atrito e numa fricção interna que, em determinados momentos, chega a ser pungente. Pois bem, esta luta, é preciso que a olhemos de frente, e que tenhamos sempre a iniciativa audaciosa de derrotar o pecado. Esta batalha é, de certo modo, a glorificação da Cruz de Nosso Senhor dentro de nós.

A verdadeira alegria está na Cruz

Essa consideração encerra um importante corolário.

Desde os primórdios do cristianismo, os homens se batizaram à sombra da Cruz, casaram-se sob a proteção dela, a colocaram no melhor lugar de seus lares, e, chegados ao derradeiro instante de suas vidas, morreram olhando para ela. Quer dizer, a Cruz tem marcado toda a existência do católico. É mais uma expressão da ideia

fundamental de que o cotidiano terreno foi feito para o sofrimento e para o heroísmo. E quem fala em heroísmo, fala em cruz.

A verdadeira alegria da vida não consiste em desfrutar prazeres grandes ou pequenos, em ter fartura no comer e no beber, nem qualquer outra espécie de conforto. A autêntica satisfação da vida é aquela sensação de limpeza de alma que se possui quando fitamos de frente a nossa cruz e dizemos “sim” a ela. Desse modo, agimos como Nosso Senhor Jesus Cristo que, sem esperar a chegada do sofrimento, previu-o e se dirigiu ao lugar onde haveria de encontrá-lo. Ele se entregou porque quis, e, com passo valoroso, carregou sua Cruz até o cimo da montanha onde seria imolado. Portanto, evitemos a ilusão das alegrias efêmeras, e muitas vezes falsas, que nos prometem as diversões mundanas, as vaidades e os êxitos temporais, porque não constituem a verdadeira essência de nossa existência. “Mititia est vita hominis super terram” a vida do homem é um constante combate, dizia o santo Jó . Como afirmamos, a essência da vida é uma luta dentro e fora de si, aceitando o sofrimento de frente e fazendo dele a sua alegria. Isto é verdadeiramente a exaltação da Cruz em nós.

E não há católico sincero que não seja um ardoroso amigo da Cruz. Que, confiante na misericordiosa assistência de Maria Santíssima, não compreenda e não fique feliz em saber que as dificuldades e penas ocupam parte saliente no seu peregrinar por esta terra de exílio. É conhecendo e aceitando essa condição de batalhador contra seus próprios defeitos, assim como contra a impiedade -, é unindo-se aos méritos infinitamente preciosos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ele abrirá para si as portas da eterna bem-aventurança.

Imitemos Aquela que mais amou a Cruz

Tudo o que acabamos de considerar constitui o espírito de cruz, pelo qual se concebe crucificadamente todas as coisas, pelo qual batalhamos e vencemos, pois os grandes guerreiros da vida foram os que se revestiram desse espírito, desse amor à Cruz, dessa naturalidade no sofrimento, que caracteriza o genuíno filho da Santa Igreja e seguidor de Cristo.

Para adquirirmos esse espírito, nada melhor poderíamos fazer do que suplicá-lo a Nossa Senhora, pedir-Lhe que nos conceda o amor que Ela mesma teve à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Podemos imaginar, sem ferir os ensinamentos da ortodoxia católica, que passados os tormentosos dias da Paixão, vividas as alegrias da Ressurreição e após a gloriosa partida de Jesus deste mundo duas grandes felicidades restaram a Nossa Senhora na terra: uma, a da presença de seu Divino Filho na Eucaristia; outra, a meditação da Cruz. Que pensamentos, que cogitações e preces fazia a Co-Redentora nas suas horas de solidão e recolhimento, recordando o patíbulo em que se imolou o Cordeiro de Deus?! Quanto Ela reverenciou aquela cruz! Quanto Ela a honrou! E que meditações sublimíssimas Ela fez aos pés do Madeiro, no próprio instante em que nele morria o Salvador! E a que alto grau, inimaginável, elevou-se n’Ela o espírito de sofrimento o espírito de cruz -, tornando-se para nós um luminoso exemplo de alma crucificada! Então, devemos pedir a Maria, em nome dessas meditações solitárias d’Ela diante da Cruz, nas quais talvez Ela tenha tido em vista a cada um de nós, esse mesmo espírito de cruz. Que nos incuta esse respeito, essa admiração e esse entusiasmo pelo verdadeiro sofrimento e, mais ainda, esse desejo heroico de sofrer, que é o característico do verdadeiro católico. Numa palavra, roguemos a Ela a graça dessa contínua exaltação da Santa Cruz em nós, para a exaltarmos continuamente fora de nós.

Errata: Por um problema técnico, no artigo de agosto desta seção faltaram as duas últimas linhas: “… segundo a promessa que fiz em Fátima o Meu Coração Imaculado triunfou!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Requinte e amor à Cruz

Por falta de amor à Cruz, as modas começaram a visar apenas o gozo da vida e foram perdendo a pompa e a majestade. Passaram do majestoso para o “raffiné”, do “raffiné” para o gracioso, do gracioso para o vulgar. A decadência da civilização se deu, no fundo, devido ao excesso de moleza que se projetou na arte, na literatura, na moda, na vida social.

 

Temos aqui um texto tirado da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, no qual São Luís Grignion, com uma linguagem inflamada, inculca mais especialmente a ideia das tribulações, por ver quanto o homem é tendente a fugir delas.

Deus nos visita por meio dos sofrimentos

[24] Não vos ufanais, caros amigos da Cruz, de serdes amigos de Deus ou de tal poderdes vos tornar? Resolvei, pois, beber o cálice que é preciso necessariamente beber para se tornar amigo de Deus. “Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt(1)”. O bem-amado Benjamin teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o frumento (cf. Gn 44, 1-12). O grande favorito de Jesus Cristo, [São João Evangelista], teve seu coração, subiu o Calvário e bebeu o cálice. “Potestis bibere calicem?(2)” É bom desejar a glória de Deus, mas desejá-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante: “Nescitis quid petatis(3)”.

“Per multas tribulationes oportet nos intrare in Regnum Dei” (At 14, 21): é preciso, “oportet”; é necessidade, é coisa indispensável, é preciso que entremos no Reino dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.

[25] Gloriai-vos com razão de ser filhos de Deus. Gloriai-vos, pois, das chicotadas que esse bom Pai vos deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia os seus filhos.

Como a ideia de um Deus que chicoteia seus filhos é destoante e pouco afeita à falsa piedade sentimental! Mas Ele chicoteia por meio das provações e das tribulações. Evidentemente temos que nos resignar a essa ideia de que são presentes dos melhores que Ele dá quando nos faz sofrer. Devemos permitir que Deus nos castigue, flagele, exatamente por ser o que convém aos homens.

Havia na linguagem portuguesa antiga uma expressão muito bonita que me lembro de ainda ter ouvido as beatas da Igreja do Coração de Jesus usarem. Então, uma velha conversando com outra diz: “Deus tem me visitado…” Eu era ainda menino e pensava: “Será que ela teve uma visão?” Mas a expressão ficou-me na memória e indica uma coisa muito bonita: cada dor que nos vem é uma visita de Deus. Ou então, Ele nos visitou por meio de alguém que nos fez sofrer. Esta é a visita de Deus; devemos recebê-la de boa vontade, abrir a porta para ela, amá-la, manter a nossa alma em alegria enquanto durar essa visita.

Essa ideia de que Deus visita alguém nós a encontramos no Antigo Testamento, quando das visitas que o Todo-Poderoso faz ao povo de Israel por meio de profetas. Mas há outra coisa que é essa visita de Deus pelo sofrimento. Então, a expressão me parece muito bonita.

Quem não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si

Se não sois do número de seus filhos bem-amados, sois – oh! que desgraça, que golpe fulminante! –, como o diz Santo Agostinho, do número dos réprobos. Aquele que não geme neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro como cidadão do Céu, diz o mesmo Santo Agostinho. Se Deus Pai não vos enviar, de tempos em tempos, algumas boas cruzes, é que já não Se preocupa convosco, está irado contra vós, olha-vos tão somente como a um estrangeiro fora de sua casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo que, não merecendo sua porção na herança de seu pai, não merece da parte d’Ele nem cuidados nem correção.

No Antigo Testamento acreditava-se que quando uma pessoa sofria era por ter cometido algum pecado. Portanto, sobre o sofredor recaía a suspeita de ser uma pessoa má. Pelo contrário, quem era feliz nesta Terra considerava-se como sendo bom, porque Deus estava premiando as boas ações que a pessoa tinha praticado.

Porém, aos poucos foi-se tornando mais explícita no Antigo Testamento a revelação de que havia uma vida eterna. Com isso, essa impostação foi-se modificando.

Já no Novo Testamento encontramos a ideia contrária: o homem sofredor é o amado por Deus, enquanto aquele que não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si.

Esse pensamento é muito importante, porque a maior parte das pessoas têm admiração por quem não sofre e um certo desprezo por quem padece. Essa é uma visão errada, pois quem é sofredor merece admiração, mas aquele que não sofre nada merece desconfiança, ou em breve Deus irá visitá-lo com o sofrimento.

Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria

[26] Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da Cruz é desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos. É, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em vão, em todas as academias da Antiguidade, um filósofo que o haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.

Isto é bem verdade. Nós encontramos alguma coisa histórica a respeito do sofrimento, mas é uma impostação diversa, uma espécie de faquirismo. Não é tomar a Cruz como Nosso Senhor Jesus Cristo a recebeu e, sobretudo, a graça para desejar a Cruz, pois sem a graça não se compreende isso. É uma coisa toda sobrenatural.

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre, e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente.

Este é um ponto fundamental para se entender essa sabedoria. Quem tem horror ao sofrimento, o espírito desmortificado, não é capaz de ter sabedoria. Pode participar de um curso sobre a sabedoria, fazer o que quiser, não adianta. Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria. Vou dizer mais: toda forma de aquisição intelectual ou de vitória moral, sem sofrimento, não tem valor nenhum. A única coisa que dá a isso algum valor é exatamente a Cruz.

Senhoras que transmitiam ao lar um perfume moral

É a Cruz a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa pedra filosofal que muda pela paciência os metais mais grosseiros em metais preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas em riquezas, as humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que melhor sabe levar a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B, é o mais sábio de todos.

Antigamente se encontrava um estilo de velha senhora sofredora. Às vezes, casada com um marido péssimo, colérico, que perdia a fortuna e o filho fazia coisas más. Muitas delas eram beatas de igreja, mas com estilo diferente das beatas sentimentais. Eram mulheres piedosas, que iam muito à igreja em dias de semana. Olhava-se para algumas delas e via-se que possuíam verdadeiramente uma resignação, uma dignidade de alma de chamar a atenção. Esse tipo de mulheres tinha sua respeitabilidade pelo fato de serem sofredoras. Assim, procurava-se bordar a mulher com a ideia de que ela deve sofrer, que habitualmente o casamento é um martírio, pois com frequência os maridos são ruins. Isso não é uma coisa normal, embora seja habitual. É justo que a mulher sofra com isso e ela deve aceitar esse sofrimento. A condição dela é, dentro de casa, levar todas as cruzes para dar ao lar a dignidade que a má conduta do marido não proporcione. Essa era a impostação de espírito existente em um bom número de senhoras, antigamente.

Então essas senhoras tinham uma dignidade de alma e uma elevação de vistas que excedia imensamente aos maridos. Eram elas que davam ao lar um perfume moral, um recolhimento, um recato, uma atração de que não se tem ideia mais hoje em dia. Mas é porque o espírito de sofrimento desapareceu. O pressuposto da ideia errada é justamente de que a mulher não deve mais sofrer, jogando de lado a Cruz de Jesus Cristo. Entretanto, o tipo feminino anterior a isso era, às vezes, de comover de tanta dignidade.

Alguém me contou o caso de uma senhora de minha geração que tinha um irmão sem-vergonha. Ambos eram solteiros. E ela aguentou o irmão a vida inteira, sendo ele, ao que parece, desse tipo de homens que chega bêbado em casa, derrubando objetos. De tanto beber, ele arruinou a família completamente e acabou morrendo. Pouco antes de falecer, o irmão chamou um criado muito fiel a ele e lhe disse: “Eu vou morrer. Logo após a minha morte, a primeira coisa que você deve fazer é ir à casa de minha irmã, ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe que mandei agradecer tudo o que ela fez por mim. E que eu até nem tenho palavras para agradecer tantos benefícios, e por isso mandei você ajoelhar para prestar esse ato de gratidão”.

A atitude desse homem, esta sim, dá uma certa esperança de que ele tenha se arrependido nos seus últimos instantes, e ainda tenha tido um último perdão antes de morrer. Terá sido, então,  a graça do perdão obtida por uma das tais mulheres a quem os maridos sem-vergonha, antes de morrer, pediam perdão, e os filhos, ao vê-la falecer, imploravam perdão também e levavam, chorando, o caixão dela para o cemitério.

O verdadeiro apóstolo é uma alma crucificada

Não há nada num ambiente que valha o tesouro da presença de uma alma resignada a sofrer. Esse gênero de pessoas dá bons conselhos. Pode até ser gente simples, sem experiência e, mesmo sendo a última da família, os outros a ela se dirigem na hora de uma crise moral para pedir um conselho. Almas assim são sempre, no fundo, as mais alegres do lar, e são elas que consolam as outras pessoas da família.

Já vi gente nadando em felicidade e dinheiro chorar junto desse tipo de pessoa, e pedir consolação. Esse é o fascínio, essa é a influência sem nome, a ação prestigiosa da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o tesouro das famílias. E porque acabou até isso, a família praticamente morreu.

Queira ou não queira, quando a alma aceita bem o sofrimento ela toma uma tal autoridade que se diria ser a pessoa crucificada um outro Crucificado. Quer dizer, diante da pessoa que aceita o sofrimento seriamente até o fim, os outros se alteram. Pode durar mais tempo ou menos, mas eleva a alma a uma grandeza que lhe dá uma força divina, e exerce uma influência sobre as almas que arrasta tudo.

Tome-se, por exemplo, um padre que seja verdadeiramente um penitente, um homem que carrega a cruz do sacerdócio de um modo sério. Pode ser o último padrezinho do interior, de batina já rota, esmolambada. Ele entra num ambiente, sente-se ser um sacerdote que aceita contente o papel de vítima. Podem rir dele e até matá-lo, ele dominou a situação. Na alma que tenha aceito a sua própria cruz há qualquer coisa de divino que nos leva a pensar o seguinte: o apostolado verdadeiramente vem do fato de que uma alma resolve e aceita sofrer. Aí se prepara o campo para os melhores discursos, as mais bonitas tiradas, as melhores coisas que sejam feitas. Mas é preciso que se trate de uma alma crucificada.

Isso nós precisamos sempre lembrar. No Reino de Maria, se não houver numerosas almas crucificadas, ele morre. Porque o prestígio da Igreja e a força da Civilização Cristã vêm das almas que sofrem.

O pobre que sofre alegremente e o doutor da Sorbonne

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre…

Escutai o grande São Paulo que, ao voltar do terceiro céu onde conheceu mistérios ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer pregar senão Jesus Cristo crucificado.

Regozijai-vos, pobre ignorante ou pobre mulher sem espírito e sem ciência: se souberdes sofrer alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne, que não soube sofrer tão bem quanto vós.

Podem imaginar o que era, naquela época, um professor da Sorbonne e qual o desafio que uma coisa dessas representava! Era a época em que os formados, já não digo os empossados no cargo, na maior parte das cidades onde havia universidade, eram montados num animal, acompanhados pelos parentes e toda a cidade em desfile. Vestidos de um traje de formatura, de alguém que está por cima, o doutor passeando no meio de todo mundo. E um membro da classe profissional era ainda muito mais. Chegar a dizer que o pobre ignorante é mais do que um doutor da Sorbonne…  Se os doutores da Sorbonne fossem levar a sério o que São Luís dizia, que injúria! É um desafio atirado ao espírito mundano.

[27] Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disso! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfume? A cabeça não tem um travesseiro para repousar, e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminhos? Seria uma monstruosidade inaudita.

Não, não, meus caros companheiros da Cruz, não vos enganeis, estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos, nem verdadeiros membros de Jesus crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ah, meu Deus! Quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são de coração seus inimigos. Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, Cruz – porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma coroa de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Isso deve ser visto como dito àquela gente de um século que levou o “raffinement(4)” o mais longe possível. E como merecido por eles por causa exatamente do sentido de gozo desse “raffinement”. Era um requinte que não vinha acompanhado de espírito de Cruz e, como resultado, causava horror à Cruz verdadeira. E que, por isso mesmo, dava em decadência. Cada vez mais, as modas iam sendo feitas apenas para o gozo da vida e perdendo a pompa e a majestade, passando do majestoso para o “raffiné, do raffiné” ao gracioso, do gracioso ao vulgar. Realmente, a decadência da civilização se deu, no fundo, devido a esse excesso de moleza dentro da arte, da literatura, da moda, da vida social.

Vemos, assim, em São Luís Maria Grignion de Montfort um homem que possivelmente não era um sociólogo, mas que percebia de longe coisas que homens de seu tempo não sabiam ver. Por quê? Não por ser ele muito inteligente, mas porque era um amigo da Cruz. A Cruz dá a possibilidade de ver as coisas que os outros não sabem ver.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1967)

 

1) Do latim: Beberam o cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus (da antífona de entrada na Solenidade de São Pedro e São Paulo).

2) Do latim: Podeis beber o cálice? (Mt 20, 22).

3) Do latim: Não sabeis o que estais pedindo (Mt 20, 22).

4) Do francês: requinte.

 

Sob o signo da Cruz

E a vida e obra de Dr. Plinio, tanto em seu labor apostólico quanto nos combates pela Fé, encontraremos a inspirá-lo um acendrado amor à verdadeira Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como podemos atestar pelos pronunciamentos selecionados a seguir, ele concebia o trabalho e a luta sempre sob o signo da Cruz.

Professor de História que sou, habituado desde minha remota juventude a me debruçar sobre os fatos históricos à procura das Leis com que Deus pauta a existência, o porvir dos povos, e neles inscreve os sinais de sua misericórdia e de sua justiça, sempre me chamou a atenção um fato que tem a sua projeção sobre a realidade natural, até mesmo no mundo animal e vegetal.

Não é verdade que atinge a grandeza efetiva, durável e plena o povo que apenas trabalhou pela sua própria grandeza. A grandeza verdadeira se adquire quando, ademais, o homem, tomando conhecimento de que ele encontrará em seu caminho o adversário a agredi-lo na justiça de suas vias e na santidade de seus propósitos, prepara-se para a luta, enfrenta-a, confia na Providência e vence nessa luta.

Os povos que sabem aliar a luta ao trabalho, sob o signo da Cruz, tornam-se verdadeiramente grandes.

Quando o Brasil tomar para si esse dever de aliar luta e trabalho, qual será a sua grandeza? Ninguém poderá dizê-lo. Ele terá a grandeza de alma proporcionada ao vigor da luta que as circunstâncias lhe tenham imposto e ele saiba travar.

Sobre ele, eterno, imutável, brilhará o Cruzeiro do Sul, que já Pedro Álvares Cabral viu quando as naus com o signo de Cristo vieram aportar em nosso território. E o Brasil de hoje, voltando o olhar para o Brasil de ontem, e enlevado com o Brasil de amanhã, poderá exclamar: “Vivemos dias amargos, mas, pela graça de Deus, soubemos ser grandes, à altura de nosso povo, de nosso território, do Sinal da Cruz esculpido nos nossos céus!”

Contudo, em nossos dias, mais do que nunca, a grande cruz do homem é a espada. Ser combativo até o fim, com toda a energia, sem nenhuma tolerância podre, sem qualquer defecção, nem recuo medroso, isto é carregar a nossa cruz. Por vezes, devemos representar dentro da Igreja a espada.

Há, por assim dizer, três seções da Igreja: a Igreja gloriosa está no Céu, ela já venceu tudo, está na glória de Deus por toda a eternidade; a Igreja penitente está no Purgatório; a Igreja militante está na Terra, no combate. Se deixa de combater, não é militante. E se não é militante, não é Igreja Católica.

O desabrochar de uma alma não é um processo pacífico como o de uma flor. As almas desabrocham crucificando-se. A cruz para nós tem forma de espada. Nossa cruz é lutar!