São João Batista de la Salle e o sofrimento pelo autêntico apostolado

“O verdadeiro apóstolo tem de sofrer e dar sangue de alma pela obra que deseja realizar” — afirma Dr. Plinio, ao comentar os mais salientes aspectos da vida de São João Batista de la Salle, cujos esforços e padecimentos para estabelecer o ensino religioso nas escolas primárias, redundaram em preciosos frutos de santidade e de virtude para católicos do mundo inteiro.

 

Sobre a vida de São João Batista de la Salle nos são apresentados alguns dados biográficos, colhidos no livro Saints de France (Santos da França), de Henri Pourrat.

Organizador do ensino primário católico gratuito

São João Batista nasceu em Reims em 1651, de uma família de magistrados. Menino ainda, em meio a uma festa, sentiu uma náusea profunda de tudo quanto o rodeava. Dirigiu‑se a uma prima, que só conseguiu consolá‑lo, lendo para ele uma vida dos Santos. Com 17 anos, tornou‑se cônego, colocando‑se sob a direção de M. Tronson, conhecido como excelente diretor espiritual. Perdendo seus pais, precisou cuidar de seus irmãos.

Nesse época, em Rouen, uma senhora fundara uma escola gratuita para meninas órfãs. Em Reims, quiseram imitar esse exemplo, mas para os meninos. M. Nyel, encarregado de iniciar as suas funções de educador nessa cidade, foi hospedado por São João Batista, que escreveu então:“Se, [antes de abraçar minha vocação], eu soubesse que a simples caridade que eu tomava para com os mestres de escola, transformar‑se‑ia no dever de morar com eles, eu os teria abandonado. Porque como eu colocava abaixo de meus criados as pessoas que trabalhavam em escolas, o único pensamento de que seria obrigado a viver com eles me pareceria insuportável”.

E assim começou a missão de São João Batista. A organização do ensino primário católico gratuito, e dos Irmãos das Escolas Cristãs.

Sofrimentos e injúrias

E com isso, seus sofrimentos. Sua cidade natal, seus parentes, puseram‑se contra ele. Escrevendo suas regras para seus irmãos, quis que vivessem confiados na Providência. Seus companheiros murmuraram que isso era fácil para ele, cônego. Abandonou então a sua posição e distribuiu seus bens. Os discípulos murmuraram agora ser crime distribuir bens senão entre eles mesmos.

Organizado o Instituto e as escolas, começaram as perseguições dos mestres‑leigos. Seu hábito simples mereceu‑lhe vaias na rua e a injúria de lhe lançarem lama no rosto.

Amarguras até “entrar na terra prometida dos eleitos”

Mais tarde, difundindo a comunhão freqüente, e recebendo cheio de alegria e submissão a bula “Unigenitus”, João Batista é atacado pelos jansenistas, e abandonado pelos próprios irmãos. Idoso e alquebrado por suas austeridades, em 1717, la Salle pensa em descansar no noviciado de Saint Yon, mas o padre que o serve em suas doenças, o maltrata. E dois dias antes de sua morte, em suas querelas religiosas, o arcebispo de Rouen tira‑lhe todos os poderes, como a um padre indigno.

“Espere — diz João Batista com um sorriso — que logo serei libertado do Egito, para ser introduzido na verdadeira terra prometida dos eleitos”. E ele conseguiu isso, na Sexta‑Feira Santa de 1719.

Relaxamento do empenho apostólico

Para bem situarmos a pessoa de São João Batista de la Salle em meio às vicissitudes por ele vividas, devemos considerar que, naquela época, em virtude das guerras de religião — muito exacerbadas na França — entre protestantes e católicos, que desorganizaram profundamente a estrutura eclesiástica da Igreja Católica, de um lado; de outro, em virtude do fato de que os efeitos salutares da Contra‑ Reforma haviam passado, estava se reintroduzindo nos fiéis, e também no clero, um grave relaxamento de costumes e de empenho apostólico.

Como resultado dessa tibieza, procurava-se muito o apostolado junto aos mais ricos, aos nobres, às pessoas importantes da corte, aos magistrados, enfim, às pessoas que, a qualquer título, tivessem um situação social. Em contrapartida, desdenhava‑se o apostolado junto aos pobres e, especialmente, os meninos carentes. Noutros termos, favorecia-se antes as relações que pudessem trazer vantagens, com detrimento para a gente desprovida de recursos.

Resultado, imensa quantidade de crianças do povo crescia sem ter formação ou ensino religioso.

À procura dos abandonados

Ora, São João Batista de la Salle nascera numa família de magistrados e, portanto, de certa categoria. Além disso, tornou-se cônego, e os cônegos naquele tempo possuíam rendas. Poderia ele, portanto, seguir o movimento geral e candidatar‑se com seu título de cônego para frequentar meios mais gabaritados que os dele. Poderia almejar uma boa carreira eclesiástica, eventualmente como bispo, talvez cardeal. Entretanto, São João Batista de la Salle segue uma orientação diversa.

Pessoa modelar que era, abnegado, desinteressado dos bens desse mundo, vai procurar aqueles que estão sendo abandonados, e constituiu uma congregação religiosa de irmãos leigos, especialmente destinados a ensinar a religião para as crianças.

Catequista primoroso

Há outro aspecto que merece ainda mais nossa consideração. São João Batista de la Salle foi um exímio professor de catecismo, e desempenhou essa função santamente, ou seja, perfeitamente. Existem modos de lecionar o catecismo em nível primário, de maneira que se marque o rumo da alma para a vida inteira. E pessoas há que se mantiveram firmes na virtude e no ideal católico, ao longo de toda a sua existência, por causa de uma catequese bem dada. São João Batista de la Salle foi desses primorosos catequistas, ensinando os fundamentos do catolicismo com toda a atenção, o recolhimento e a influência que pode haver na lição de catecismo proferida por um santo.

Mas, fez ele coisa muito melhor. Não apenas deu aulas, como fundou uma congregação religiosa voltada para a catequese no ensino primário. Ou seja, suscitou vocações de homens que deixaram o mundo para se consagrar exclusivamente ao ensino do catecismo. Portanto, milhares de pessoas que, desde aquela época, têm passado a maior parte de suas vidas nessa nobre tarefa.

Admirável baluarte de Contra-Revolução

A congregação de São João Batista de la Salle se estendeu por inúmeros países e, ainda hoje, é uma das pujantes instituições da Igreja Católica, tornando-se a esse título um admirável baluarte de Contra‑Revolução.

Digna de todo louvor é a pessoa que realiza de modo altíssimo aquilo a que foi chamada. São João Batista de la Salle é uma delas. Esforçou-se, empenhou-se, obteve êxito no seu apostolado. Sua congregação prosperou e fez o bem pelo mundo afora. Essa é a linha mestra do apostolado dele. Um homem chamado por Deus, atendeu ao apelo divino e realizou sua vocação.

Sofrimentos e contrariedades

Agora, em torno dessa linha mestra, de um traçado límpido como um canal, aparecem as sinuosidades dos sofrimentos, das dificuldades, das oposições que ele encontrou à sua frente. Cumpre tê-las presente, para se contemplar, na sua verdadeira perspectiva, a vida e a obra de São João Batista de la Salle. É bela a luta que ele teve de enfrentar contra tantas incompreensões, das quais as mais dolorosas vieram da parte dos seus próximos.

Uns se arrepiaram diante de um quotidiano confiado apenas à Providência, sem rendas nem patrimônios garantidos: “O senhor é cônego, tem bom ordenado, é fácil confiar na Providência quando, todos os meses, cai um montante na sua bolsa. Mas, para nós, coitados, onde está o nosso dinheiro? Queremos patrimônio!”

São João Batista de la Salle renuncia ao seus próprios bens, e a reclamação passa a ser outra. Ele diz:

— Pronto. Estou pobre como vocês.

— Que loucura! Dispensar esse dinheiro! Era só o que tínhamos! É um crime!

Ou seja, aqueles mesmos que deviam apoiá-lo e ajudá-lo na sua obra, não compreendiam todo o alcance do que ele desejava fazer. Muito lhe terá custado passar por essas adversidades, até que os horizontes se clareassem e seus seguidores se pusessem à altura do santo.

Outra contrariedade a vencer: tornar-se professor primário. Percebe-se pela narração que ele, em virtude da formação que recebera na família, não tinha em grande conta a figura de mestre-escola, “colocando-a abaixo de seus criados”. A Providência bate à porta de sua alma e lhe chama: “Meu filho, convido-o para ser professor primário e catequista”. Sem hesitação, ele deixa as honrarias e antigos hábitos, aceita o chamado e passa a viver no meio dos professores primários. Pode-se bem conjecturar que São João Batista esperasse encontrar, entre esses últimos, uma acolhida amável e um trato afetuoso. Não! Mais incompreensões, vistas limitadas, estupidezes.

Regou com o próprio sangue a árvore de sua obra

Ele adota uma vestimenta muito simples, para indicar a modéstia da profissão e das suas condições. Em lugar de respeito, as pessoas o vaiam na rua e chegam a jogar-lhe lama no rosto. Para onde se voltasse, encontrava ele recusa e maus tratos. Apesar de tudo, sua obra caminhava e prosperava.

Quer dizer, a Providência quis que ele sofresse tanto para, com os méritos dos seus padecimentos, com seu sangue, regar a semente que lhe fora confiada plantar e fazer vicejar.

Permitam-me chamar a atenção para essa regra da qual não se esquiva nenhuma obra apostólica: o apóstolo autêntico, ou sofre e dá o sangue de alma — mais dolorido e precioso que o do corpo — pelo que deseja realizar, ou absolutamente não é apóstolo.

Todo apóstolo tem de sofrer. E uma das suas aflições mais pungentes é a de se sentir, de um lado, chamado a empreender uma obra, e, de outro, perceber as ondas contrárias que parecem tornar sem sentido o chamado que recebeu. Essa coarctação da vocação, esse enfrentar obstáculos que parecem opor‑se à via do Espírito Santo, constitui uma das dilacerações mais penosas que uma alma pode sofrer.

De maneira que São João Batista de la Salle agiu como verdadeiro homem de Deus, suportando todas essas contrariedades. Por fim, a morte o libertou de tudo, e ele encontrou a sua coroa no Paraíso.

A nós cabe admirar e imitar esse modelo de santidade, de confiança e de resolução que levou a bom termo a obra para a qual a Providência o suscitou. Obra cujos frutos enriquecem e torna mais digna de nosso amor a Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 15/5/1971)

Alegrai-vos, pois o Senhor ressuscitou!

Durante os três dias em que Nosso Senhor esteve morto, aos olhos dos que O conheceram tudo parecia irremediavelmente perdido. Porém, sua gloriosa ressurreição trouxe-lhes novamente a alegria e o júbilo.

 

Comentarei a Ressurreição de Nosso Senhor, com base num texto tirado da “Concordância dos Santos Evangelhos”, de Dom Duarte Leopoldo e Silva(1).

A narração da Ressurreição

Na noite do sábado, quando já raiava o primeiro dia da semana, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ir embalsamar a Jesus.

No primeiro dia da semana, partindo muito cedinho, estando ainda escuro, chegaram elas ao sepulcro ao levantar do Sol, trazendo os perfumes que tinham preparado. E diziam entre si: “Quem nos há de afastar a pedra da entrada do sepulcro?” Porque ela era muito grande.

Eis que houve um grande terremoto, porque um Anjo do Senhor desceu do Céu e, aproximando-se, rolou a pedra e sentou-se sobre ela. O seu aspecto era como o relâmpago e suas vestes como a neve.

De medo dele, assustaram-se os guardas e ficaram como mortos.

Maria viu a pedra afastada do sepulcro e foi correndo ter com Simão Pedro e com o outro discípulo que Jesus amava, e lhes disse: “Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram”. As outras mulheres viram também a pedra afastada do sepulcro e, entrando, não encontraram o Corpo do Senhor Jesus.

E aconteceu que, estando elas consternadas por esse motivo, se apresentaram junto delas dois homens vestidos de roupas deslumbrantes. E como elas se atemorizassem e baixassem os olhos para o chão, disseram-lhes eles: “Não temais, porque sei que procurais a Jesus que foi crucificado. Por que procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, mas ressuscitou como tinha dito. Recordai-vos do que vos disse Ele quando estava ainda na Galileia: ‘É preciso que o Filho do Homem seja entregue nas mãos dos pecadores, que seja crucificado e ressuscite ao terceiro dia’.

Vinde ver o lugar onde foi posto o Senhor, e ide prontamente dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele ressuscitou e vai adiante de vós para a Galileia. Aí O vereis, como Ele vos disse. Eis que eu vos preveni”.

Então, recordaram-se elas das palavras de Jesus e, saindo, fugiram do sepulcro, porque as tinham acometido o tremor e o pavor, e a ninguém disseram coisa alguma por estarem possuídas de medo.

Entretanto, saíram Pedro e aquele outro discípulo, e vieram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas aquele outro discípulo correu mais apressado do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro.

Inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, mas não entrou. Chegou, depois, Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro e viu os lençóis postos no chão. Mas o sudário, que estivera sobre a cabeça de Jesus, não estava posto com os lençóis, senão que estava dobrado num lugar à parte.

Então, pois, entrou também aquele discípulo que primeiro tinha chegado ao sepulcro: e viu e acreditou.

E os discípulos voltaram de novo para casa.

Jesus aparece a Maria Madalena

Tendo Jesus ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios.

Ora, estava Maria junto ao sepulcro, na parte de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se, olhou para o sepulcro e viu dois Anjos vestidos de branco, sentados, um à cabeceira, outro aos pés, onde tinha sido posto o Corpo de Jesus.

Disseram-lhe eles: “Mulher, por que choras?” Respondeu-lhes ela: “Porque tiraram o meu Senhor e não sei onde O puseram”.

Dizendo isto, voltou-se para trás e viu a Jesus, de pé, mas não sabia quem Ele era.

Disse-lhe Jesus: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” Julgando ela que fosse o jardineiro, disse-lhe: “Senhor, se O tiraste, dize-me onde O puseste e eu O levarei”.

Disse-lhe então Jesus: “Maria!” Voltando-se, disse-Lhe ela: “Raboni!”, o que quer dizer “Mestre!”

Disse-lhe Jesus: “Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai dizer aos meus irmãos que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”.

* * *

Como a linha geral deste lindíssimo texto dos Evangelhos sobre a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo é bastante conhecida, julgo mais interessante irmos comentando um ou outro pormenor mais ilustrativo.

Aquela sobre a qual todas as alegrias e as glórias da Ressurreição convergiram

Na noite de sábado, quando já raiava o primeiro dia da semana, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para vir embalsamar a Jesus.

São citadas duas Marias; onde está a outra Maria, Nossa Senhora? Percebe-se que a dor, o recolhimento, a esperança d’Ela eram tão grandes, que a Virgem Santíssima pairava acima de todas as circunstâncias e providências concretas, mesmo as mais augustas, que dissessem respeito ao Corpo de seu Divino Filho. Por causa disso, as outras A serviam e faziam, por mediação, instigação e pelas ordens de Nossa Senhora, aquilo que Ela mesma quisera realizar.

Tal era o grau excelso de recolhimento de Maria Santíssima, que toda a dor, todo o júbilo e toda a esperança da Igreja estavam n’Ela concentrados, para depois serem distribuídos a todos os fiéis ao longo de todos os tempos. Todas as alegrias e glórias da Ressurreição de Nosso Senhor convergiram, como num foco central, sobre a Virgem Maria; d’Ela não se diz nenhuma palavra, porque Nossa Senhora é superior a todo louvor, a qualquer menção. Ela paira acima de tudo. Cabe-nos apenas pensar nisto e continuar, reverentes, a narração, porque na soleira da porta do quarto onde estava Nossa Senhora não penetrou o cronista do Evangelho, e também nós não somos dignos de entrar. Podemos apenas sentir esses perfumes da devoção a Maria Santíssima do lado de fora, e nos enlevarmos ao passar. Essa é a razão do silêncio dos Evangelhos a respeito de Nossa Senhora, quando falam da Ressurreição.

O caráter matinal da alegria pascal

No primeiro dia da semana, partindo muito cedinho, estando ainda escuro, chegaram elas ao sepulcro ao levantar do Sol, trazendo os perfumes que tinham preparado. E diziam entre si: “Quem nos há de afastar a pedra da entrada do sepulcro?” Porque ela era muito grande.

Elas chegaram ao sepulcro quando raiava o dia. De fato, a alegria pascal tem qualquer coisa de matinal. Nosso Senhor, que sai de dentro da morte, é simbolizado pelo Sol que se levanta do interior da noite.

Como deve ter sido a primeira noite de Adão, quando viu descerem as trevas sobre o mundo, e depois ele adormeceu? O medo de que nunca mais as coisas se restaurassem e voltassem ao que eram… E, vendo o Sol surgir de novo de dentro da noite, Adão observou esse esplendor que evocava o pensamento da ressurreição. Nosso Senhor era o Sol que saía de dentro da escuridão da morte, e aquelas que foram tomar conhecimento d’Ele chegaram ao sepulcro exatamente no momento em que o símbolo figurava a realidade que se tinha passado.

Vemos aqui como Nosso Senhor ama a natureza que Ele criou, gosta de fazer todas as coisas em consonância com essa natureza e dando valor ao símbolo de que Ele mesmo é o Autor.

Compreendemos também porque, adequadamente, o Evangelho menciona essa hora. Todas essas coisas têm muitos sentidos místicos, alegóricos, reais. Aqui está um desses significados.

Assim como afastaram a pedra do Santo Sepulcro, os Anjos removerão as pedras de nossos caminhos

As santas mulheres levavam perfumes que tinham preparado, fazendo-nos lembrar das palavras de Jesus, quando recebeu o perfume daquela mulher: o Corpo d’Ele já estava sendo preparado para a sepultura. Os cadáveres eram aromatizados com perfumes. Elas estavam tão esquecidas da profecia da Ressurreição, e tão certas de que Nosso Senhor não tinha ressuscitado, que levavam todos os unguentos perfumados para ungir o cadáver; chegam lá e encontram um Deus ressuscitado!

Vemos como era razoável que Nossa Senhora pairasse acima dos acontecimentos. Ela sabia que Jesus não seria encontrado lá, mas tinha que incentivar o ato de piedade delas, embora dele não pudesse participar. Então, elas lá foram com os seus perfumes, que eram uma expressão das almas delas. Quem oferece perfumes é porque tem amor e gostaria que sua alma subisse a Deus como um aroma de um odor suave.

De outro lado, notemos a confiança dessas mulheres. Elas sabiam que havia uma pedra muito pesada no sepulcro, podiam temer perseguições e a tarefa que pretendiam fazer era impossível, mas nada as deteve. Elas confiaram que, obedecendo à voz interior da graça, não seria uma pedra que lhes haveria de atrapalhar o cumprimento da missão. Que maravilhosa lição para nós! Quantas vezes a graça nos chama para alguma coisa, mas nós dizemos: “E quem tirará uma pedra tão pesada de nosso caminho?” A resposta é esta: “Contemos com Nosso Senhor, porque se a graça nos chama para algo, não há pedra que alguém não afaste”.

No caso concreto, os Anjos afastaram a pedra. Quantas vezes os Anjos têm afastado pedras dos nossos caminhos! Precisamos ter confiança e caminhar de encontro a todas as pedras, porque os Anjos as removerão, por ordem de Nossa Senhora.

Harmonia entre dois terremotos: o do castigo e o da graça

Eis que houve um grande terremoto, porque um Anjo do Senhor desceu do Céu e, aproximando-se, rolou a pedra e sentou-se sobre ela. Seu aspecto era como o relâmpago e suas vestes como a neve.

Sinto muito por não ter o mínimo talento para a pintura, pois eu gostaria de saber pintar isto, que representa para mim umas das imagens que faço de um Anjo. É um Anjo descrito pelo próprio Espírito Santo. Pode haver uma coisa mais gloriosa, mais espiritual, mais casta, mais forte, do que um espírito que é como um relâmpago, mas vestido como a neve?

A presença do Anjo causou um terremoto, porque é tal a superioridade da natureza do Anjo, tal a sua grandeza, que há uma espécie de incongruência entre ele e os seres materiais. E compreende-se que na proximidade de certos Anjos com a matéria, a fragilidade desta estremeça. Mas, bendita a terra que tremeu pela presença do Anjo! Bendito o Anjo que fez tremer a terra! Essa é a terra que treme para dar glória a Deus, depois de ter tremido de indignação por causa do deicídio que tinha sido realizado. Entre os dois terremotos, há uma espécie de harmonia, de simetria: o terremoto do castigo, mas depois o terremoto da graça, da presença do Anjo, da reconciliação e da aliança. Foram dois fatos tão grandes, que eram dignos de serem celebrados por terremotos.

Senso hierárquico de Santa Maria Madalena

De medo dele, assustaram-se os guardas e ficaram como mortos.

Maria viu a pedra afastada do sepulcro e foi correndo ter com Simão Pedro e o outro discípulo que Jesus amava. Ela disse: “Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram”.
É bonito que o primeiro pensamento tenha sido orientado para São Pedro.

Tem-se a impressão de que Maria Madalena não sentiu o terremoto. E nem viu o Anjo na sua natureza angélica, mas notou que o sepulcro estava aberto. Entre as santas mulheres, aquela de quem o Espírito Santo, no Evangelho, mais fala que amava Nosso Senhor é Maria Madalena. Em vez de ter a coragem de entrar no sepulcro, ela entendeu que o fato era tão augusto que não lhe cumpria fazer isso. Que coisa bonita! É o senso hierárquico e anti-igualitário da Igreja, que se manifesta desde esses albores. Maria Madalena vai correndo falar com o chefe da Igreja, conta-lhe o que ela viu, para que ele tome as providências que as circunstâncias pedem.

Notemos, de um lado, toda a beleza do papel do sexo feminino: o amor com que as santas mulheres levam o unguento, e o significado deste na Igreja; e, de outro lado, a jurisdição de São Pedro, da hierarquia. Maria Madalena, que estava com o coração transbordante de amor, vai falar com ele. Mesmo dentro da efervescência da hora, não se perdeu a distância psíquica e manteve-se o senso de hierarquia.

As outras mulheres viram também a pedra afastada do sepulcro, e entrando não encontraram o Corpo do Senhor.

Elas tiveram menos a ideia da hierarquia, então entraram.

Anjos com roupas deslumbrantes, e não como as usadas hoje

E aconteceu que, estando elas consternadas por esse motivo, eis que se apresentaram junto delas dois homens vestidos de roupas deslumbrantes.

Quer dizer, os Anjos tomaram a forma de homens. E para compreendermos o que eram essas roupas deslumbrantes, temos que nos lembrar dos trajes daquele tempo. Não podemos imaginar dois Anjos vestidos com paletós e calças e, muito menos, com suéteres e outras roupas de hoje. Porque é inimaginável um Anjo aparecer de paletó refulgente e de gravata deslumbrante, para não falar das outras roupas…

Há uma tal vilania nos trajes atuais que não ousamos fazer monumentos de homens vestidos com calça, paletozinho, bengalinha. Naquele tempo se usavam túnicas, as quais têm dignidade. Então, apareceram dois Anjos com forma de homem, de modo alvinitente, brilhante, e eles se põem a falar.

É muito bonito que os dois falam como um só. Eles representam, evidentemente, todos os Coros dos Anjos. E naturalmente as vozes deles não seriam iguais, mas harmoniosas. O Evangelho não fala em música, nem em canto; eles faziam uma proclamação, eram dois arautos que anunciavam esse fato. E eles falam no singular, tal é o uníssono deles, tal é a união das almas que amam a Deus. Eis a mensagem dos Anjos:

Não temais, porque sei que procurais a Jesus que foi crucificado. Por que procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, mas ressuscitou como tinha dito. Recordai-vos do que vos disse Ele, quando estava ainda na Galileia.

“Recordai-vos”. Há certa censura àquela insuficiência de Fé que, com exceção de Nossa Senhora, todos os outros tiveram. Então, os Anjos citam as palavras de Nosso Senhor: “É preciso que o Filho do Homem seja entregue nas mãos dos pecadores, que seja crucificado e ressuscite ao terceiro dia”.

Como quem declara: “Essas foram as palavras de Jesus, lembrai-vos agora e confundi-vos”. Mas isso era dito de tal maneira que, sendo uma lição, não era, entretanto, para produzir no momento uma contrição. Tanto é assim que, em vez de contrição, as santas mulheres sentiram alegria.

“Vinde ver o lugar onde foi posto o Senhor, e ide prontamente dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele ressuscitou…

Os Anjos confirmam: a missão delas não era igual à missão de Madalena, a qual era dizer que o sepulcro estava vazio. Elas deveriam informar que dois Anjos apareceram e anunciaram a Ressurreição.

Por que os Anjos não falaram a Pedro? Pode-se fazer a conjectura: aquelas que foram fiéis ao pé da Cruz receberam a mensagem. Aquele que era o Papa, o Príncipe dos Apóstolos, não estava lá presente e não recebeu a mensagem. Alguém me dirá: “Mas por que não a São João Evangelista, que estava presente?” Veremos que ele fez questão de dar preeminência a São Pedro. …e vai adiante de vós para a Galileia. Aí O vereis”. Então, recordaram-se elas das palavras de Jesus e, saindo, fugiram do sepulcro, porque as tinham acometido o tremor e o pavor, e a ninguém disseram coisa alguma, por estarem possuídas de medo.

Mas não é um medo de castigo. Entrevê-se que é devido ao contato com a coisa augusta, enorme. E ficaram quietas. Agiram bem ou agiram mal? Eu não encontro no Evangelho esclarecimentos para isso.

Espírito hierárquico da Igreja

Entretanto, saíram Pedro e aquele outro discípulo e vieram ao sepulcro.

Eles tinham recebido a notícia, transmitida por Maria Madalena, de que o sepulcro estava vazio.

Ambos corriam juntos, mas aquele outro discípulo…

O discípulo a quem Jesus amava.

…correu mais apressado do que Pedro.

Compreende-se porque São Pedro era mais velho, mas o fato é que quem amava mais corria mais.

E chegou primeiro ao sepulcro. Inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, mas não entrou.

O amor levou-o a ir depressa, mas é o mesmo amor que o fez dar precedência àquele a quem Nosso Senhor tinha dado a precedência. Ele não entrou, esperou que São Pedro entrasse. Vemos aqui o espírito hierárquico da Igreja e como o correr de São João não era sem distância psíquica, mas um correr cheio de ordem; era uma pressa cheia de falta de pressa; ele era tão equilibrado, tão santo, que chegando ao sepulcro ele espera São Pedro. Quanto respeito, quanta reverência! E tudo passou para a História.

Chegou, depois, Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro e viu os lençóis postos no chão. Mas o sudário, que estivera sobre a cabeça de Jesus, não estava posto com os lençóis, senão estava dobrado e num lugar à parte.

Vemos aqui a beleza do respeito ao Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Há uma dignidade da cabeça, da fronte, da face, que é algo de especial no homem; e, por causa disto, o sudário, que tocou na Face, não estava colocado junto com os outros panos. Mais ainda: os panos estavam no chão; o sudário, num lugar à parte. Entrevê-se que era um lugar mais distinto, talvez uma anfractuosidade da pedra.

Cristo ressuscitado apareceu primeiro a Nossa Senhora

Então, pois, entrou também aquele discípulo que primeiro tinha chegado ao sepulcro.

O Evangelho repisa bem: só depois entrou o discípulo fiel. São João, caso fosse orgulhoso, diria: “Bem, São Pedro é o chefe, mas eu tenho direito. Quem estava ao pé da Cruz não era eu? Agora chegou minha vez.” Aquele que ama não quer o primeiro lugar, quer amar. E ainda que aquele a quem ele ama queira dar o primeiro lugar a outrem, ele assim o deseja. Que lição para nós!

E viu e acreditou.

Fica-se pasmo. São João deixa entender que, com todo o amor dele, foi naquela hora que ele acreditou. E era o discípulo amado…

E os discípulos voltaram de novo para casa.

Voltaram porque Nosso Senhor disse que ia aparecer-lhes na Galileia.

Tendo Jesus ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios.

Como é curiosa essa referência! Nesta hora lembrar isso! É que a vitória de Jesus sobre o demônio faz a identificação daquela para quem Ele fez tão grande bem, tão grande maravilha. Vemos a beleza da contrição e do perdão: primeiro o Redentor apareceu para Maria Madalena; mas houve um momento super-primeiro. Quem foi A primeira a quem Ele apareceu? Na primeira hora, o primeiro raio de beleza evidentemente foi para Nossa Senhora. Costuma-se contemplar o encontro de Nosso Senhor com Nossa Senhora na “Via Crucis”. Eu não conheço coisa mais bonita, mas há algo tão bonito: é o encontro d’Ela com Ele ressuscitado. O que terá sido a alegria de Maria Santíssima, o “Magnificat” d’Ela? Só no Céu poderemos saber.

Afeto de Nosso Senhor pelos Apóstolos e discípulos

Ora, estava Maria junto ao sepulcro, na parte de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se, olhou para o sepulcro e viu dois Anjos vestidos de branco, sentados, um à cabeceira, outro aos pés, onde tinha sido posto o Corpo de Jesus.

Disseram-lhe eles: “Mulher, por que choras?” Respondeu-lhes ela: “Porque tiraram o meu Senhor e não sei onde O puseram.” Dizendo isto, voltou-se para trás e viu a Jesus, de pé, mas não sabia quem Ele era.

Disse-lhe Jesus: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” Julgando ela que fosse o jardineiro, disse-Lhe: “Senhor, se O tiraste, dize-me onde O puseste e eu O levarei”.

Disse-lhe então Jesus: “Maria!” Voltando-se, disse-Lhe ela: “Raboni!”, o que quer dizer “Mestre!”

Que beleza de cena! De quanta coisa ela se lembrou quando Ele falou-lhe: “Maria”? As mil vezes em que Nosso Senhor lhe disse, com afeto, “Maria”; tudo isso acordou na alma dela. Então, ela entendeu. E, como certamente mil vezes tinha ela dito para Ele em vida, Madalena exclamou: “Mestre!”, “Raboni!”

Disse-lhe Jesus: “Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai dizer aos meus irmãos que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”.

Nota-se que Maria Madalena queria ir de encontro a Ele. Que linda intimidade dela com Jesus! Com certeza, quis segurá-Lo, beijar suas mãos ou seus pés. E Ele disse-lhe essas palavras: “Não Me toques”, e deu a razão: “porque ainda não subi para meu Pai”.

Razão para mim um tanto misteriosa, mas sublime. Há uma grandeza nisso, toda a distância entre esta e a outra vida: “Eu não subi ainda para meu Pai, mas já estou do outro lado do rio da morte, o qual continua a correr entre nós, embora Eu esteja ressuscitado. Eu não estou ressuscitado para esta vida. Já estou ressuscitado para o Céu. Não Me toques, mas vai dizer aos meus irmãos –– observem o afeto, chamando os Apóstolos, os discípulos, de irmãos –– que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”. Estava pronunciado o perdão, e as coisas continuavam no diapasão da alegria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/4/1969)

 

1) Silva, Duarte Leopoldo da. Concordância dos Santos Evangelhos. 7 ª. ed. São Paulo: LTr, 1998. pp 439-441.

Considerações sobre o Brasil Império – II

Durante o extenso reinado de Dom Pedro II, o Brasil teve muitas décadas de paz e prosperou colossalmente. Governando a nação como um pai, o Imperador viajou pelo País inteiro, tornando-se íntimo de todos. Visitou a cidade de Pirassununga, onde os avós maternos de Dr. Plinio o receberam em casa. Vendo a menina Lucilia, o monarca afagou-a e chamou-a de “minha filha”.

 

O governo de Dom Pedro II foi um longo reinado patriarcal. Tanto mais patriarcal quanto mais as suas longas barbas iam ficando brancas. Aquela barba concorria bem para a popularidade dele. Por certo, nenhum publicitário lhe recomendaria raspá-la ou reduzi-la a um bigode faceiro. A ideia até desagrada. Aquela grande barba patriarcal tinha um sentido muito afim com o modo pelo qual os brasileiros gostam de ser governados.

Um dos monarcas mais cultos de seu tempo

Dom Pedro II tornou-se Imperador em 1830 e foi deposto em 1889. Portanto, foram quase sessenta anos de reinado. Foi de longe o homem que mais longamente governou o Brasil. Creio, aliás, que a essa sobrevivência da monarquia – um pouco como Moisés vogando num bercinho no Nilo, assim Dom Pedro II nas suas almofadas nos braços incertos de José Bonifácio – deveu-se não só a unidade do Brasil, mas o fato deste País não ter caído no regime dos “pronunciamentos” das repúblicas espanholas da América do Sul, nas quais, “por dá cá aquela palha”, eclodiam brigas – um tanto herdadas do temperamento “caliente” da madre pátria – logo puxadas a tiros. Depõem um presidente, colocam outro… lá vai aquela coisa.

Dado nosso feitio, nós, brasileiros, custamos a entrar na briga, mas para sair depois também não é fácil. Apaixonamo-nos pelas brigas e aquilo vai até onde for…

O Brasil teve praticamente – exagerando um pouco – cinquenta anos de paz. Houve alguns golpes de Estado e outros episódios análogos, mas que não tocaram na pessoa do monarca nem no poder central. Foram pequenos golpes regionais, coisas desse gênero. Dom Pedro II foi um símbolo de união e de paz no Brasil.

Ele parece ter compreendido isso perfeitamente, e desde o começo colocou-se numa posição assim. José Bonifácio despertou nele um ardente desejo de desenvolver-se intelectualmente. Para mim, não há dúvida de que ele foi um dos monarcas mais cultos de seu tempo. Não sei se ele era tão inteligente, pois não conheço um lance de grande inteligência dele. Mas era um homem que lia muitíssimo e tinha a ambição de ser conhecido no mundo inteiro como um grande intelectual. E foi. Se buscarmos na enciclopédia Larousse os “Pedros” do Brasil, encontraremos referências a Pedro II como sendo um sábio que se distinguiu entre os sábios. Correspondia-se com Victor Hugo e com outros grandes intelectuais daquele tempo. Quando ele ia à Europa, recebia visitas dessa gente e assim teve para si uma espécie de carreira intelectual ao lado da política. Essa carreira intelectual dava-lhe prestígio no Brasil, porque ter um imperador considerado sábio no mundo inteiro dava cotação, e a sua projeção internacional neste sentido era maior do que a de qualquer brasileiro. Ele pairava nas nuvens…

Patriarca da grande família chamada Brasil

De outro lado, pela Constituição brasileira, o seu papel era de não entrar em partido político e não tomar a defesa de nenhum, mantendo uma espécie de equilíbrio entre os partidos. E ele se atinha estritamente à Constituição. Enquanto seu pai era despótico e cheio de venetas, ele, de um temperamento bom, pachorrento, amável, muito cordial, cumpria a Constituição à risca.

Entretanto, Dom Pedro II encontrou uma saída para dominar a política: seu prestígio pessoal sobre os políticos era tão grande que, embora tenha exercido com sobriedade as atribuições de Imperador, as de conselheiro extraoficial dos políticos exerceu-as largamente. Inclusive, faziam-lhe a acusação de que mandava mais no Brasil por seu prestígio pessoal do que como monarca. Queriam ver nisso uma inversão da Constituição, mas ficava-lhe fácil argumentar: “Não. Qual foi o artigo que eu violei? Aconselhar-se comigo numa ação privada? Eles podem se aconselhar com quem quer que seja, só não podem aconselhar-se com o Imperador?”

Imaginem homens, vindos de qualquer ponto do Brasil, que vão exercer suas funções governamentais no Rio de Janeiro e encontram um monarca que está governando há cinquenta anos… Com uma memória prodigiosa, conhece tudo como se deu, como foi, como não foi, e sabe aconselhar para além de suas atribuições. De maneira que ele ajuda os ministros a acertarem. Não pediriam conselhos a esse homem?

Ademais, com o jeitão dele – de bom pai de família, papai de todos os ministros mais novos que chegavam, conselheiro de todo o mundo que queria dele um bom aviso, uma boa ponderação, uma boa sugestão, acima de todos os outros como imperador, como sábio, como homem que tinha no Brasil uma bela fortuna – ele estava quase invulnerável, por cima das nuvens e numa posição meio de patriarca desta grande família chamada Brasil, e meio de chefe de Estado. Um rei que governa como pai dá licenças e conselhos a todo o mundo.

Isso proporcionava uma grande concórdia nacional dentro das paixões regionais que havia: contendas entre partidos, saía porrete, falsificação de eleições…  Contudo nunca eram brigas profundas, mas superficiais. No fundo, reinava uma grande tranquilidade, perturbada apenas pela Guerra do Paraguai.

Nessa guerra, Dom Pedro II se empenhou de tal maneira que quando ela se iniciou, ele era ainda mocetão; quando acabou, as barbas dele tinham ficado brancas. Provavelmente, ele compreendia que se perdesse a guerra perdia o trono. Então, agarrou-se à vitória do Brasil com toda a força, foi lá, lutou, entrou na história, mandou o Conde d’Eu, genro dele, batalhar também, deu todo o apoio a Caxias. Participou intensamente da guerra até Solano Lopes ser derrubado. Um ano depois de ter vencido a guerra, mais ou menos, mandou um oficio ao parlamento pedindo, nos termos da Constituição, licença para se afastar do Brasil para descansar por causa da guerra.

O Brasil teve a segunda esquadra mercante do mundo

A viagem de um monarca naquele tempo, de navio, era lenta, levava mais ou menos um ano. Acrescentando que, com as economias que tinha feito, ele estava em condições de pagar todo o gasto da viagem e não precisava o Tesouro brasileiro entrar com um tostão.

Nesse período, o Brasil próspero e tranquilo estendeu muito suas fronteiras interiores, quer dizer, a parte do solo brasileiro cultivada cresceu muito. Não foi preciso fazer reforma agrária. Tirava do Estado, é claro. Ali não tem dono, os fazendeiros entravam, abriam fazenda, aquilo passava a pertencer a eles e estava acabado!

Assim, o Brasil passou a produzir grande quantidade de víveres, dos quais os principais eram o café e o fumo. Aliás, no brasão de armas do Brasil daquele tempo notam-se ramos de café e de fumo.

O Brasil precisou e teve ele próprio a sua esquadra mercante. Constituída de navios construídos com madeira das florestas brasileiras, chegou a ser a segunda do mundo. Explica-se: os mercados consumidores – os Estados Unidos, um pouco o Canadá e as várias nações da Europa – eram muito distantes. O Brasil com o litoral enorme precisava fazer navegação de cabotagem, porque as estradas internas eram muito raras; então ficava mais fácil realizar a comunicação por meio do mar. Sem muitos navios não era possível conseguir isso. O Brasil ficou com uma esquadra mercante colossal.

As finanças estavam prósperas

Qual era o estado das finanças? Nas notas do tempo do Império estava escrito o seguinte: “Mediante a apresentação desta cédula, encontrará Vossa Senhoria no Tesouro Nacional equivalente quantidade em ouro.” E era verdade. Bastava a pessoa chegar no Tesouro e dizer “Eu quero isto em ouro”, que eles davam.

Mas, como é muito mais fácil transportar papel do que ouro, acontecia que os comerciantes pagavam um tanto para receber em papel e não em ouro. É claro, porque como valia exatamente o mesmo tanto uma coisa quanto outra, para quem precisa ir, por exemplo, de São Paulo ao Rio de Janeiro carregando cem mil réis em ouro, tinha de levar um saco; enquanto que a mesma quantia em papel cabia numa bolsa. Resultado, pagava-se um acréscimo para receber o papel moeda que, por isso, valia ligeiramente mais do que o ouro, de tal maneira as finanças estavam prósperas. Era o ouro extraído das próprias minas do Brasil.

Havia inflação? Não propriamente. Tirava-se do chão o ouro e a prata, cunhava-se e distribuía-se. Hoje, aperta-se um botão, a máquina gira e saem as notas. Naquele tempo não era assim. As notas valiam, de fato, o correspondente em ouro e prata, e isso em qualquer mercado do mundo.

Com isso o Brasil prosperou colossalmente. Principalmente duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, se tornaram centros animados de contato com o exterior.

Houve apenas uma zona do Brasil que decaiu: o Nordeste. Por que decaiu? Toda a sua economia girava em torno do plantio de cana-de-açúcar. Ora, os alemães inventaram um modo de fabricar açúcar com beterraba. Era um direito deles… Resultado: caiu vertiginosamente o preço do açúcar. E as famílias de plantadores de cana empobreceram muito. Eis a causa remota, e não única, de um certo atraso do Nordeste. É que a fonte de sua riqueza naquele tempo caiu de repente.

Fatores que corroíam o trono de Dom Pedro II

Durante esse tempo, Dom Pedro II viajou prodigiosamente pelo Brasil. Era um homem forte, muito robusto e fazia longas viagens pelo interior, às vezes no lombo de burro e de cavalo. Visitou o País inteiro e tomava notas. Ele tinha um famoso caderno preto, onde registrava todos os abusos que notava. Chegando ao Rio de Janeiro, ele mandava chamar os ministros e pedia interferência contra tal juiz que era ladrão, tal outro não sei o quê…  Esse caderno era misterioso, ninguém lia, só ele.

Nesse regime, esse homem conhecedor e conhecido do Brasil inteiro, palmo a palmo, tornou-se íntimo de todo o mundo. Isso ainda firmou mais a influência dele.

Contudo, alguns fatores corroíam seu trono. Quais eram esses fatores? Primeiro, o fato de que ele era o único monarca do continente americano. A monarquia parecia uma forma de governo velha, que não pegava em terras novas. A tentativa de instaurar uma monarquia no México, com o Imperador Maximiliano, deu numa tragédia em Querétaro. Foi uma coisa efêmera, não pegou, e constituiu para os olhos do espírito liberal daquele tempo mais uma prova da incapacidade de a monarquia germinar na América. Havia, pois, uma certa vergonha do Brasil estar fora de moda, sendo monarquia, porque a república era a forma de governo elegante do tempo. A França e a América do Norte eram repúblicas. A Inglaterra, apesar de não ser republicana, era a mais liberal das monarquias da Europa. De maneira que tudo isso fazia com que o Imperador parecesse uma excrescência que o curso dos tempos teria que eliminar.

Por outro lado, também concorreu muito para a queda da monarquia a atitude de Dom Pedro II na questão religiosa com Dom Vital, que não é o momento de tratar.

Outra circunstância foi a seguinte: o Imperador, ele próprio, extremamente liberal, proporcionou todas as facilidades possíveis para a república entrar. O Partido Republicano gozava de toda a liberdade.

Um caso ocorrido na minha família mostra bem isso. Minha avó tinha um irmão que fez concurso para a Faculdade de Direito e passou. Ele devia ser nomeado pelo Imperador a quem escreveu uma carta, dizendo: “Eu previno Vossa Majestade que sou republicano e que, como professor da Faculdade de Direito de São Paulo, trabalharei pela proclamação da república. Portanto, se disserem que eu, tendo sido nomeado por Vossa Majestade, fiz propaganda republicana, não julgueis que sou um traidor e que vos devo uma cátedra a qual conquistei pelo meu talento. Agora, decidi como quiserdes.”

Depois de alguns dias saía o decreto do Imperador nomeando o republicano como catedrático da Faculdade de Direto. Fatos como este há em quantidade no reinado dele. Ele corroía assim o seu próprio trono.

Visita a Pirassununga

A visita de Dom Pedro II a uma cidade do interior de São Paulo, Pirassununga, onde moravam Dona Lucilia e meus avós maternos, retrata bem o aspecto familiar do relacionamento do Imperador com o povo brasileiro.

Naturalmente, toda a cidadezinha estava avisada com muita antecedência da chegada do monarca. Então prepararam grandes festas e foram recebê-lo na estação de trem.

Havia em Pirassununga fazendas com pomares fertilíssimos, os quais produziam frutas em tal quantidade que estas caíam pelo chão e qualquer pessoa podia pegar, sem pedir licença; aquilo era aberto, porque dava para quem quisesse e sobrava toda espécie de frutas.

Ora, Dom Pedro II era louco por jabuticabas e existia ali uma fazenda cujo proprietário plantara um pomar só de jabuticabas. Então, para alegrar um pouco a visita, ao invés da eterna festa de escolinha, com meninas recitando discursinhos compostos pelo professor, resolveram que era mais interessante oferecer ao Imperador e à Imperatriz um lanche em casa de meu avô, seguido de uma visita a essa fazenda para ele chupar jabuticabas à vontade.

Durante todo esse tempo, o trem imperial ficava parado na estação de Pirassununga. Evidentemente, ninguém o movia nem tinha horário; quando o Imperador acabasse de comer jabuticabas, ele embarcava.

Chegando à cidadezinha, o monarca desembarcou ao som da banda de música municipal e foi levado para a casa de meu avô. Minha mãe me dizia que ela ainda se lembrava de minha avó ter ficado no vagão com a Imperatriz porque, sendo manca, andava com dificuldade e não ia descer. Ademais, parece que não se interessava tanto assim por jabuticabas…

O Imperador, afagando a menina Lucilia, chama-a de “minha filha”

Assim, Dona Teresa Cristina permaneceu no vagão conversando com as senhoras de Pirassununga, enquanto Dom Pedro II descia até a casa de meu avô e ali tomava contato com os principais políticos da cidade. Deu-se, então, uma cena tipicamente brasileira.

Enquanto eram servidos os alimentos, o monarca pegou minha mãe, que era uma menina de quatro ou cinco anos, a pôs em pé entre os joelhos dele, e durante a conversa ele brincava com ela chamando-a de “minha filha”. Para agradá-la, distraído e meio maquinalmente, passava a mão sobre os cabelos dela. Tudo isso correspondia a essa familiaridade das coisas brasileiras, por onde Dom Pedro II era o vovô do Brasil.

Mamãe contava que seus cabelos tinham sido bem arranjados por minha avó, que os deixara ultra-cacheados e ornados com uma fita a qual a pequena Lucilia achava linda. Ela viu o Imperador derrubar todo o belo “edifício” e ficava com uma vontade enorme de pedir-lhe para não fazer aquilo, pois estava estragando o penteado dela.

Mas, coisas do instinto de menina, ela olhava para o pai a fim de ver se podia fazer isso, e o pai, naturalmente, percebia qual era a reação da filha. E, enquanto falava com o Imperador, ele sorria e com o olhar como que dizendo: “Não se atreva! Porque é a mão imperial, e onde ela pousa não se corrige nada. Depois que ele for embora, arranje sua fita e seus cachos”. Não foi dito, mas o olhar exprimia isto.

Falava o tupi na perfeição

Creio ter sido nessa mesma ocasião, não tenho certeza, que se deu outro fato o qual mostra bem a familiaridade das visitas do Imperador. Neste caso, a meu ver, familiaridade até meio excessiva…

Dom Pedro II sabia falar um dos idiomas indígenas na perfeição, como quem fala um idioma contemporâneo. Um político do lugar, querendo colocar em má situação o chefe da oposição, adversário político, quando ia da estação para a casa, disse ao Imperador:

— Vossa Majestade sabe quem aqui está em condições de falar tupi com Vossa Majestade? É o Doutor Fulano. Ele fala tupi na perfeição. Dirija-se a ele nesse idioma, pois vai ficar muito contente.

Tendo-lhe sido apresentado o Doutor Fulano, Dom Pedro II começou a falar com ele em tupi. O homem não entendeu… Podia passar pela cabeça dele tudo no mundo, exceto que o Imperador lhe dirigisse a palavra em tupi.

Por fim, acabou dizendo:

— Eu não entendo o que Vossa Majestade está dizendo.

Então o monarca caiu em si, compreendeu que tinham feito uma jogada política para desprestigiar o homem e disse amavelmente:

— Ah! Tinham me dito que o senhor falava tupi, por isso lhe dirigi a palavra nesta língua…

E mudou de assunto, não revelou quem lhe dissera isso e a coisa passou.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

Ressurreição, Santa Maria Madalena

Ressurreição representa o triunfo eterno e definitivo de Nosso Senhor Jesus Cristo, o desbarato completo dos seus adversários, e o argumento máximo de nossa Fé. Disse São Paulo que, se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria nossa Fé. É no fato sobrenatural da Ressurreição que se funda todo o edifício de nossas crenças.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do Legionário, n. 559, de 25/4/1943)

Força, esplendor, sacralidade

Sendo fiel à graça do Batismo, o homem procura o aspecto mais elevado das coisas, desenvolvendo o senso do maravilhoso. A Revolução reprime esse senso e inocula nas pessoas o gosto pela técnica, o espírito prático, para se tornarem eficientes e prosperarem na vida, afirmando de modo claro ou implícito que toda beleza é inútil; dessa forma ela mutila as almas.

 

Um dos aspectos que a Revolução mais acentua é o que os mais modernos revolucionários chamam “desmitificação” ou “dessacralização”.

Para compreendermos bem o que isso significa, é necessário, antes de tudo, entender a noção que eles têm de mito ou de coisas sagradas. Para chegar até o fundo da noção, em duas palavras, eu diria o seguinte:

As coisas comuns refletem algo de uma ordem superior

Em sua peça “Chanteclair”, Rostand(1) faz o galo — figura principal do enredo — dirigir uma saudação ao Sol: “Glória a ti, Sol, sem o qual as coisas não seriam senão o que elas são”.

Lembro-me de que, durante anos, eu passava pela Rua da Consolação, a caminho do Colégio São Luís, e via numa mansarda um vidro sujo de uma janela aberta. A dona da casa não lavava a janela e o Sol batia sobre aquele vidro; era um verdadeiro esplendor! O Sol refulgia sobre a sujeira e fazia daquele vidro um espelho maravilhoso!  Eu sempre me divertia, pensando em quantas coisas queria dizer isso: o Sol iluminando a sujeira, refletindo-se nela e tirando dela um brilho especial.

Assim, vemos que as coisas, consideradas pelo homem com espírito filosófico e, sobretudo, com espírito de Fé verdadeiro, refletem algo de uma ordem superior. Elas têm uma analogia, uma semelhança com algo existente em uma esfera mais elevada.

A partir de um caco de vidro, elevando-se até a infinita perfeição de Deus

Por exemplo, um caco de vidro de janela na qual brilha o Sol tem uma analogia com o brilhante, embora este seja muito mais do que o caco de vidro. O brilhante, por sua vez, tem uma semelhança com alguma pedra maravilhosa que existiria no Paraíso terreno, em comparação com a qual o brilhante não seria senão um caco de vidro. Mas o brilhante do Paraíso terreno tem uma analogia com alguma pedra ou substância existente no Paraíso celeste, perto da qual aquele não é senão um caco de vidro.

E esta matéria preciosíssima do Paraíso celeste não é senão um caco de vidro — e até menos do que isso — em comparação com a inteligência do mais burro dos homens. O brilhante que rutila é símbolo da inteligência; quando alguém é muito inteligente, até se diz que tem uma inteligência brilhante. E o mais burro dos homens tem incomparavelmente mais luz em si do que um brilhante, pois nele há uma luz de outra natureza.

Mas esse homem pouco dotado é, por sua vez, uma imagem do homem inteligente; e este último é um símbolo do Anjo que, por sua vez, é uma imagem de Deus.

Podemos, assim, partindo do caco de vidro, por sucessivas ascensões, chegar até a perfeição infinita que é Deus Nosso Senhor.

O espírito bem formado, ao contemplar algo, procura sempre ver naquilo a imagem de alguma coisa mais alta, e dirigir seu espírito para uma consideração mais elevada, sendo insaciável de analogias dessas, até chegar a Deus Nosso Senhor. É por esta forma que nos utilizamos de todas as coisas criadas para subirmos até Deus.

O militar, o sacerdote, o professor

Isto que eu disse a respeito da ordem natural, pode-se afirmar, sobretudo, da ordem da graça, porque esta é mais do que o Sol: ela brilha, ilumina mais os homens do que o Sol ilumina todas as coisas na Terra. Mas a graça, por sua vez, é um dom sobrenatural criado, através do qual podemos ter uma ideia de como é o próprio Deus.

O resultado dessa tendência do espírito consiste em que todos os povos, com um mínimo de sanidade psicológica, procurem apresentar determinados aspectos da realidade de maneira a fazer com que eles levem a pensar na realidade superior.

Ao considerarmos um militar, nós gostaríamos de vê-lo revestido de um uniforme que nos fizesse pensar no esplendor da coragem — traço distintivo do militar — de tal maneira que, de “proche en proche”(2), acabássemos cogitando na coragem angélica e no vigor com que São Miguel Arcanjo expulsou do Céu os demônios. De onde, então, o gosto por um certo esplendor nos uniformes militares.

Também o sacerdote, sobretudo quando está no exercício de suas funções, devemos querer considerar nele a sacralidade de sua missão, e nesta sacralidade algo que nos faça pensar em Deus. Para isso, é preciso realçar a figura do padre, principalmente quando ele está celebrando, por meio de adornos que simbolizem a importância de sua missão.

Poderíamos dizer o mesmo de qualquer outra profissão, como, por exemplo, o professor. O normal seria que um professor lecionasse com beca ou toga para ressaltar o esplendor, a gravidade e a importância do ofício de docente. O traje material realça a ideia da missão, e esta nos leva a Deus, fonte de toda a verdade e Mestre de todos os professores.

Há, pois, uma tendência natural do espírito que não é ateu, em ver sempre algo de mais alto como que presente no mais baixo, e procurar realçar o que está mais baixo para conduzir o espírito até o mais elevado.

Isso que é uma tradição da civilização católica, um princípio transformado por ela e aplicado em inúmeras tradições vivas até em nossos dias, é exatamente o que o espírito moderno considera mito: ver em alguma coisa a presença de uma realidade superior.

O que para nós é uma série de elevações que nos conduzem até Deus, para o ateu é um conjunto de mitos que nos levam até a mentira, porque para eles Deus não existe e, não existindo, evidentemente é um mito ao qual essas coisas podem conduzir.

De onde, então, a tendência para o que eles chamam a “desmitificação”, isto é, tirar das coisas todos os seus adornos, privando-as de todas as formas de beleza para apresentá-las terra a terra, como elas são, para evitar a mitificação.

Casa d’Áustria: a mais ilustre e sacral das dinastias europeias

Vemos aqui um quadro que representa o Imperador Francisco José, recebendo o Kaiser Guilherme II com uma comitiva de príncipes alemães. O encontro se dá no castelo de Hofburg, em Viena, em 1908, e tem os seguintes antecedentes:

Francisco José celebrava, naquela ocasião, sessenta anos de reinado efetivo. Ele subiu ao trono muito cedo, e durante boa parte do reinado foi o chefe de todos os povos de língua alemã. O Sacro Império tinha sido abolido, mas fora substituído, por Napoleão, por uma organização chamada Confederação Germânica, e os imperadores da Áustria eram os presidentes hereditários da Confederação Germânica. Ele foi, portanto, presidente dessa Confederação.

Em 1878, a Prússia promoveu uma coligação de Estados germânicos contra Francisco José, expulsando-o da Confederação Germânica. Ele continuou sendo Imperador da Áustria-Hungria, enquanto os demais povos de língua germânica, com seus reis e príncipes, passaram a constituir um só império, sob a direção do Kaiser.

Francisco José, da mais antiga das dinastias alemãs, e de uma das mais antigas dinastias da Europa — certamente a mais ilustre e a mais sacral de todas elas era a Casa d’Áustria —, ficou expulso do mundo alemão e presidindo apenas um conglomerado de Estados de língua magiar e eslava, um pouquinho de língua italiana, que se chamava a monarquia austro-húngara.

Ele estava, portanto, num estado de ressentimento em relação ao mundo alemão. Como o Kaiser precisava do apoio dele, quando Francisco José fez sessenta anos de reinado Guilherme II foi visitá-lo, levando consigo uma comitiva de príncipes alemães.

Trata-se de uma cena altamente mitificada, no seguinte sentido: o esplendor do cerimonial militar e do cerimonial estatal é levado ao máximo da gala, da pompa para elevar o espírito a considerações que dizem respeito a Deus Nosso Senhor.

Luz e esplendor, compostura e respeito

Francisco José está sozinho, em frente de todos os outros príncipes alemães. O que tem o grande penacho é o Kaiser Guilherme II. Todos os outros são reis e príncipes de pequenos Estados alemães.

Na Alemanha havia três cidades livres com organização burguesa; não eram monarquias, mas repúblicas: Bremen, Hamburgo e Lubeck. No quadro está também o representante de uma cidade livre, não sei de qual delas.

A atenção é tomada por uma ideia de grande esplendor. Notem como tudo é luminoso. A sala tem uma luz natural, mas como que prateada, que se reflete nas paredes e incide no chão — dir-se-ia que o assoalho é uma pedra preciosa sobre a qual esses homens estão pisando —, no branco da mesa junto à qual está encostado Francisco José, no branco dos penachos dos capacetes dos vários príncipes aí presentes, refulge na borla dourada que um duque usa, cintila nos lustres, nos espelhos; há uma inundação de luz que brilha nas condecorações, nas dragonas… Por toda parte, o que se vê é luz e esplendor.

De outro lado, nota-se que as pessoas estão numa atitude de muita compostura e de muito respeito. Cada um desses homens sabe quem é, o que representa, respeita a si próprio e usa um uniforme por consideração para consigo mesmo e para com seu próprio cargo.

A ideia é de sublimar o quanto possível o poder público, o Estado, por respeito à dignidade da criatura humana que o Estado é chamado a governar.

O ar militar deles dá uma ideia de poder, de força, de tal maneira que se poderia dizer: força, esplendor, sacralidade são elementos muito presentes dentro desse quadro.

O Kaiser tem um papel na mão; é um discurso que está lendo ou acabou de ler, e Francisco José ouviu a saudação.

São duas escolas completamente diferentes. A Alemanha nova, militar, industrial, representada pelo Kaiser e pelos que o seguem; a Alemanha antiga, sacral, nobre, distinta, guerreira, é verdade, porém não principalmente guerreira, mas sim patriarcal, representada pelo Imperador da Áustria.

São duas figuras e duas ideias diversas: a Alemanha militarista, pré-nazista; o velho mundo germânico, sacral e católico.

Francisco José: simplicidade, seriedade e afabilidade

Francisco José está inteiramente só, o uniforme dele é simples, de apenas três cores: um jaquetão branco, uma calça vermelha com um galão dourado que vem de alto a baixo. Ele traz no ombro uma faixa, que é de uma condecoração e que pende em diagonal sobre o peito; nas mãos, ele porta um capacete com plumas de um verde claro e discreto.

Há uma certa simplicidade na atitude de Francisco José. Enquanto os outros estão empertigados, de pescoço alto para dar a ideia de que valem qualquer coisa, ele está numa naturalidade completa, mas, ao mesmo tempo, com uma distinção que o sobrepõe aos demais. A tal ponto que há uma espécie de vazio em torno dele, e ninguém chega perto. Sua fisionomia é a de um homem sumamente cônscio de não precisar de enfeites para ser ele mesmo. Ele tem atrás de si séculos de História, de glória; possui um direito que a força não violou e por causa disso recebe os seus visitantes, sério, afável, mas não risonho, pois em relação a eles ele tem uma queixa.

Para quem analisa o ambiente, há um valor simbólico especial nesse quadro. Muitos desses príncipes são antifranceses. A Áustria, pelo contrário, nos últimos períodos de sua monarquia era muito pró-franceses. Atrás está o símbolo do charme austríaco e da graça francesa: o quadro representando Maria Antonieta, Rainha da França, pintado por Madame Vigée-Lebrun. É um dos quadros mais famosos e graciosos representando Maria Antonieta.

Antítese entre dois mundos

Há uma antítese entre dois mundos: de um lado, com Guilherme II, o esplendor da força, do poder e da riqueza; de outro, por cima desse esplendor, brilhando sozinho, também o esplendor da força, do poder e da riqueza, mas considerado como um valor secundário diante da tradição, da sacralidade e da História; esse é Francisco José.

O jeito do Kaiser é o de um homem que confia no poder da riqueza e das tropas, e no fascínio pessoal de sua personalidade para levar a nação à guerra.

Francisco José não está nada arrogante, mas natural, e nem se perguntando se ele é um grande homem. Ele sabe ter um grande direito e, atrás de si, uma grande História. E esse direito é um direito sacral dos imperadores do Sacro Império, que refulge nele, não como uma luz que mora dentro dele, mas que vem de fora e o circunda. Esse é o imperador sacral.

Vemos no quadro um regente da Baviera. Como é diferente do Kaiser! Um homem velho, tranquilo, digno, olhando para Francisco José até com certo respeito, como quem diz: “Oh, que homem! Que saudades eu tenho desse Imperador!” Ele não está nem um pouco arrogante, porque está reconhecendo uma superioridade real.

Temos, assim, um aspecto maravilhoso da civilização cristã.

Não se veem mais cerimônias públicas com esse esplendor, nem de longe! Mesmo os homens dessa categoria vão se tornando cada vez mais raros. Quase nada mais é feito para lembrar algo de mais elevado, e menos ainda para conduzir a Deus. É a invasão da vulgaridade para substituir o maravilhoso de outros tempos.

Para ser capaz de fazer uma longa digressão como essa, é preciso ter um feitio de alma por onde se queira sempre o mais alto, e ser insaciável nesse ponto. O primeiro passo é o aproveitamento da graça batismal, da retidão — que o pecado original não tira inteiramente do homem —, por onde o espírito humano, nos seus primeiros movimentos, já visa o mais elevado.

Evidentemente, quem toma com naturalidade as coisas monstruosas de hoje em dia, embaça a alma para belezas dessas.

Certa vez alguém me explicava como decaiu seu senso do maravilhoso: foi pelo gosto enorme que tomou pelas coisas mecânicas, e pela ideia de que toda beleza é inútil; o que interessa é o prático, o funcional, o resto é fantasia. Conforme esse modo de pensar, sempre que a alma tem esses movimentos ascensionais, deve-se reprimir, porque impedem o desenvolvimento do espírito prático, ganhar a vida, prosperar, ser um homem eficiente.

Segundo esse erro, é preciso esmagar o “élan” da alma a fim de ser um homem inteiramente posto nas coisas que fazem a carreira de hoje em dia. Porque há, na aparência, uma incompatibilidade entre a eficácia e esse espírito, que se poderia chamar de meio poético. Então as pessoas calcam essa tendência e com isso se mutilam. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1974)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

 

1) Edmond Eugène Alexis Rostand, poeta e dramaturgo francês (*1868 – †1918).

2) Do francês: de próximo em próximo, paulatinamente..

Cortesia filha da caridade

Um dos célebres quadros de Velásquez, pintor espanhol, representa a rendição de Breda, nos Países Baixos. Quando menino, ao entrar numa loja de estampas, deparei-me com uma gravura desta cena histórica, e logo me senti cativado. Depois de a contemplar por longo tempo, pensei: “Como gostaria de ter esse quadro, a fim de passar horas olhando-o e o admirando!”

É, de fato, uma tela magnífica, não apenas por sua riqueza pictórica a qual demonstra de sobejo o talento do mestre, como também pela bela expressão de valores morais que ela retrata.

Episódio superiormente imortalizado: o Marquês de Spinola, comandante das tropas de Felipe II, recebe das mãos de Justino de Nassau, defensor de Breda, as chaves da cidade, que capitula depois de uma resistência intrépida.

O general do Rei Católico está revestido de uma imponente armadura sobre a qual uma gola com rendas dá uma nota de amenidade, realçada ainda pela grande faixa própria ao comandante-chefe. Em sua mão esquerda nota-se o bastão do marechalato. Justino de Nassau se apresenta em um rico traje, e também usa gola e punhos de renda.

A cena se passa no campo, e num ambiente estritamente bélico, no qual figuram tropas de armas na mão. Tudo não obstante, o encontro tem uma nota de distinção e afabilidade que lembra uma cena de salão. Justino de Nassau, tendo sido derrotado, apresenta-se de chapéu na mão, e entrega as chaves curvando-se ligeiramente. Spinola, por respeito para com o valoroso vencido, está também com a cabeça descoberta. Atrás dele, os fidalgos de seu séquito o imitam.

Vê-se que o chefe vencedor, ao mesmo tempo que se inclina levemente, contém com o braço a reverência do gentil-homem flamengo, e o seu semblante é impregnado de simpatia e consideração. Percebe-se que ele felicita o adversário pelo brilho da resistência, amenizando assim cavalheirescamente o que o ato de rendição tem de amargo para o vencido.

Toda uma doutrina de cortesia, toda uma tradição de nobreza de alma se exprime nos pormenores discretos mas eloquentes deste quadro admirável. Elevação de alma, decorrente da fé, cortesia nascida da caridade, que faziam rutilar valores espirituais inestimáveis, num ato que em si mesmo é inevitavelmente rude e humilhante, como toda rendição(1).

E não será sem interesse considerar, ainda, que a faixa meio cor-de-rosa, meio lilás, ornando a couraça do general espanhol era uma lembrança da mortalha, pois os chefes militares daquela época partiam para o combate tendo em vista a possibilidade de morrerem, sacrificando a própria vida pela causa de sua pátria.

Então, esse homem que se apresenta para o momento no qual sua coragem e sua vitória serão reconhecidas, conserva cingido o símbolo de sua mortalha. Ele não estremece nem hesita, e se mantém numa posição ao mesmo tempo de triunfo e bondade que, a meu ver, não alcançaria sem uma particular ação da graça. Pois atitudes como essa só são possíveis dentro do âmbito sobrenatural que confere luz e esplendor à Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Cf. Catolicismo, novembro de 1956.

Nada é tão necessário, útil, doce e glorioso – II

O demônio promete às pessoas o prazer na vida, se forem egoístas. Entretanto, precisamente isso ele vai tirar, pois é o pai da mentira. Não há coisa mais miserável do que a vida de quem é egoísta. Somente tem verdadeiro gáudio quem vive do enlevo desinteressado.

 

No Reino de Maria tudo vai ser diferente. Devemos considerar que, eliminado o pecado de Revolução, no Reino de Maria as almas vão começar a ser sensíveis para esses temas. Vão aparecer de novo as pessoas que se via outrora, chorando ao fazer a Via Sacra.

Relógio de São Rafael

Eu ainda peguei isso no meu tempo de pequeno. De vez em quando, eu ia à igreja e encontrava uma ou outra pessoa fazendo a Via Sacra; eram três ou quatro da tarde, que são as horas mais simpáticas. Eu via, então, uma velha, uma mocinha, um menininho, rezando a Via Sacra, calmamente, lentamente, meditando cada um daqueles passos. Como isso deveria falar para as almas! Mas gastou…

Lembro-me de que havia em minha casa uma cozinheira de cor, a qual era reumática; uma vez eu vi o quarto dela e chamou-me a atenção encontrar um desses despertadores comuns, chamado relógio de São Rafael, que era artigo muito barato. E no mostrador do relógio, em cada hora, estava descrito, por meio de uma figurinha, o que Nosso Senhor durante a Paixão havia sofrido àquela hora. Era um relógio para doente, que ficava à cabeceira de sua cama, e quando o enfermo começava a achar longa a sua doença, que o tempo estava custando para passar, ou quando chegava a hora da dor pungente, da preocupação mais tremenda, ele olhava para o relógio e dizia, por exemplo: “Na hora em que estou sofrendo isso, Jesus penetrava no pretório de Pilatos”; ou, padecendo as constrições de uma angina, pensava: “Jesus tinha seu Coração transpassado pela lança de Longinus”. E dessa forma o doente encontrava uma distensão.

Recordo-me, ainda, que lhe perguntei:

— Você olha para esse relógio e reza conforme ele indica?

Ela deu uma risada, com uma certa bonomia, e disse:

— Se olho…

Essa cozinheira negra era uma Amiga da Cruz!

Tais relógios deixaram completamente de existir, e eu tive uma dor pungente quando, há anos atrás, alguém dizia para todo mundo que nunca tinha visto um relógio assim, era uma verdadeira curiosidade, e comentou: “Olhem, como os antigos eram piedosos…”

E a livraria do Coração de Jesus(1) vendia esses relógios para as empregadas do bairro, no tempo em que eu era menino. Foi um lindo pensamento que inspirou a elaboração de tais relógios; tenho certeza que nesta sala não haveria um que não gostasse de ter um relógio como esse. Entretanto, isso sumiu tão completamente que, 50 anos depois, encontrado um deles, é mostrado com uma curiosidade como quem mostraria um amuleto, tirado de dentro de um sarcófago de uma múmia egípcia.

Como era a Semana Santa nas primeiras décadas do século XX

Lembro-me de que uma vez ou outra, quando era pequeno, eu ainda ouvia as criadas, ou outras pessoas, fazerem interjeições dessas: “Pelo Sangue de Cristo, não faça isso!”

E alguns antigos documentos pontifícios pediam que Fulano ou Cicrano não fizesse tal coisa, “pelas entranhas de misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo”.  Havia um vinho chamado “Lacrima Christi”, dulcíssimo como a lágrima de Cristo, que era cheia de doçura e de misericórdia.  E existe uma trepadeira “Lacrima Christi”, cujas flores são brancas com uma pétala vermelha, simbolizando o Sangue misturado numa lágrima cristalina e puríssima de Jesus Cristo.

Na Semana Santa, os fiéis se aproximavam da igreja com um senso sacral, um enlevo, uma admiração, uma ternura enormes. As pessoas se vestiam de preto, não se fazia barulho, as crianças não podiam falar alto, os motores não funcionavam, as chaminés das locomotivas não apitavam. E uma espécie de doçura de dor pairava sobre toda a humanidade. Então se compreendia o que São Luís Grignion fala da suavidade do sofrer. Porque o fato de Nosso Senhor estar presente nesse sofrimento proporcionava uma suavidade, uma tranquilidade de alma, uma resignação, da qual o homem moderno já não tem nenhuma ideia, nenhum conhecimento. A cozinheira, há pouco citada, compreendia bem isso. Mas infelizmente essas coisas passaram completamente.

Entretanto, São Francisco de Assis quanto chorou aos pés de um Crucifixo, Santo Afonso de Ligório quanto o osculou!

Quantas almas, não maculadas pela Revolução, eram sensíveis para isso! Aí se compreende um aspecto do pecado de Revolução, que é uma insensibilidade córnea, algo que se tem dificuldade de definir e explicitar; esse pecado faz com que, diante dessas coisas, as almas simplesmente não liguem.

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor está fazendo uma grande confusão. Porque está falando de piedade sensível, e a sensibilidade com a piedade não tem relação com a Revolução. Isto é uma concepção de Deus, que dá o dom das lágrimas ou não. E, às vezes, há mais mérito em não ter essa sensibilidade do que ter”.

É bem verdade, mas não estou falando só da sensibilidade; é de algo por onde esses raciocínios moviam as almas e hoje não movem mais. E diante de uma coisa que impressiona, as pessoas ficam simplesmente com a impressão.

Forma requintada de egoísmo

E exatamente um efeito do pecado de Revolução é uma espécie de dureza de alma, de frieza, de falta de ternura e de capacidade de se enlevar, e ao qual corresponde uma forma requintada de egoísmo.

Assim, compreendemos também uma outra coisa: a nossa famosa procura do absoluto como está ligada a isso!

As almas picadas pela Revolução não se incomodam com o absoluto. Mostramos-lhes a coisa mais sublime, e se não tiver relação com uma vantagem prática delas, da vida de todos os dias, elas não se incomodam.

São secas e frias para essas considerações; são almas incapazes de se enlevar. Elas possuem umas fruições, mas verdadeiro enlevo, que é o entusiasmo pela coisa enquanto tal, e sem preocupação de gozo, essas almas não têm. O egoísmo é tal que elas só são capazes de pensar no seu próprio gozo. E não cogitam em mais nada. Por isso também estão fechadas para a Paixão de Cristo.

Se quisermos ter a ideia de uma alma em diâmetro oposto a isso, podemos, por exemplo, pegar aquela fotografia de Santa Teresinha do Menino Jesus menina. Cheia de enlevo, ela ama uma porção de coisas por não serem ela mesma. E não por lhe darem vantagem, mas porque as coisas são como são. Aquelas famosas meditações que Santa Teresinha fazia, nos “Buissonnets”, olhando para as estrelas, eram coisas que ela amava não como um egoísta pode amar porque gosta de olhar para estrela, mas porque a estrela é estrela. Entretanto, quão poucas almas são assim!

É tremendo, mas aquilo que o demônio promete é precisamente o que ele quer tirar. Ele promete às almas que, se forem egoístas, irão encontrar o prazer na vida. Não há coisa mais miserável do que a vida da alma de quem é egoísta. O único prazer da vida é ter uma alma enlevável, enlevada e que vive do enlevo desinteressado; o resto da vida não tem prazeres. Mas quantos ignoram isso! E daí a secura das almas para com as nossas considerações.

Se alguém, portanto, quiser ter uma noção do que vai ser o Reino de Maria, deve imaginar almas completamente diferentes das de hoje; almas capazes de se tocarem desinteressadamente por essas coisas, e de amar esses temas por serem eles mesmos e não por qualquer outra razão. Afinal raia no mundo a aurora do desinteresse!

O verdadeiro escravo de Maria não busca seu próprio interesse

Embora não claramente enunciado por São Luís Grignion de Montfort — mas eu dizendo todos percebem —, por detrás do conceito da sagrada escravidão à Santíssima Virgem está precisamente isso: o escravo é aquele que renuncia a ter qualquer interesse. Ele só tem os direitos mínimos do Direito Natural, os inalienáveis, e renuncia a suas vantagens, a seus próprios interesses; e quase se diria que ele renuncia ao seu próprio eu. Porque o escravo de Maria compreende que essas coisas não são nada; são puro egoísmo e trazem consigo a frustração de todas as amarguras. E ele se funde em Nossa Senhora, que é sua Senhora; torna-se escravo d’Ela porque não quer fazer outra coisa senão contemplá-La, admirá-La, e todo o prazer dele está exatamente em que tudo na Terra seja conforme a Ela, viva e prospere independente dos seus interesses.

Um perfeito escravo de Nossa Senhora seria de tal maneira, que ele teria incomparavelmente mais ventura em ser lixeiro no Reino de Maria, do que um duque na Inglaterra ou um milhardário nos Estados Unidos.

Mais ainda: um verdadeiro escravo de Nossa Senhora, no Reino de Maria, gostaria mais de ser o último, não ter nenhuma vantagem pessoal, para contemplar desinteressadamente aquele quadro do seu cantinho, do que ser um ator do centro da cena. E são almas assim que o “Grand Retour”(2) deve suscitar. Almas nesse ponto escravizadas ao enlevo, ao ideal, e que já não procuram mais nada para si. E que, afinal, encontram paz para suas almas.

Mas isso supõe graças muito especiais, verdadeiramente de “Grand Retour”. Graças de uma renúncia interna, que tanto dá no heroísmo dos Macabeus, quanto no isolamento dos eremitas, na pequena via de Santa Teresinha, quanto em todas as formas de santidade, mas não nesse egoísmo que a Revolução criou.

Aqui estaria uma meditação sobre um dos aspectos mais fundamentais do que é a cruz.

O que é a cruz? É o conjunto de renúncias que se faz para ser assim. E, quando a pessoa realiza esse esplêndido negócio, percebe que de fato toma uma cruz sobre os ombros, mas entende ser bem verdade o que dizia o Cura de Ars: “A vida dos que vivem segundo a cruz é como um manto de espinhos, forrado de arminho. E a existência dos que vivem segundo o seu egoísmo é como um manto de arminho, forrado de espinhos”.

Quanta coisa excelente existe para a alma nesta vida de enlevo! Que miséria existe no contrário! v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/8/1967)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

1) Situada junto ao Santuário do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo, bairro Campos Elíseos.

2) Do francês: grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria

Rainha do Conselho

Nossa Senhora foi o oráculo vivo que São Pedro consultou nas suas principais dificuldades, a estrela que São Paulo não cessou de olhar para se dirigir em suas numerosas e perigosas navegações — afirma um piedoso autor a propósito das relações de Maria com a pregação da Igreja nascente. Esse papel inspirador da Virgem Santíssima nos sugere cenas de rara beleza.

Por exemplo, Ela tendo a seu lado São Pedro, São Paulo ou São João Evangelista, explicando, interpretando e os ajudando a compreender os fatos da vida de Nosso Senhor, realçando este ou aquele episódio, espargindo assim o aroma do bom espírito que perfumava a Igreja inteira. Não sem razão, portanto, se A exalta no “Cantus Marialis” como a Rainha da prudência e do conselho, vaso de eleição, de ortodoxia, sabedoria e santidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Restava enfrentar a última batalha

No alto da Cruz, Nosso Senhor já havia passado pelos mais atrozes sofrimentos. Entretanto, Ele ainda padeceu a aridez, outras terríveis aflições e enfrentou a última batalha, antes de morrer. Sofreu para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, os homens que estavam na Terra e todos os que existirão até o fim do mundo.

 

Eu gostaria de comentar alguns aspectos do crucifixo que se encontra na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei, Minas Gerais. Desejo, assim, chamar a atenção para uma das formas de dor que mais caustica o mundo contemporâneo. O homem hodierno está sofrendo? Está. Mas ele mais sofre da dor que ele percebe que caminha em direção a ele, do que da dor que está padecendo. A previsão da dor é, muitas vezes, pior do que a própria dor.

O lance final mais tremendo do que todos os outros

Esse crucifixo consegue, de um modo impressionante, tornar claras duas posições da alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus. Quer dizer, da sua humanidade ligada hipostaticamente à sua divindade, e colocada diante do tormento da dor que vai cair sobre Si, dominada por um pânico correspondente à reação de toda a natureza humana, mas que não cede e avança, que está resignada e, ao mesmo tempo, apavorada.

Notem como o olhar está fixo, aberto e até arregalado, e não presta atenção em nada a não ser no espectro de uma dor tremenda que Lhe vem por cima. Toda a Paixão está para trás, Ele já sofreu tudo e está crucificado. O que Nosso Senhor olha tão fixamente, com tanto pavor, tão desoladora e varonilmente de frente?

Para compreender bem isso, deitem a atenção na boca, meio entreaberta, prestes a pronunciar uma palavra que já não tem força para articular. Considerem as sobrancelhas arqueadas e muito acima das cavidades oculares. É a morte que vem… É o fim! Depois de tanto e tanto sofrimento, é aquele momento extremo de dor, no qual o Divino Redentor vai bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E depois inclinará a cabeça e dirá: “Está tudo consumado” (Jo 19, 30). O oceano das dores foi bebido e está tudo feito.

Eis o lance final, trágico, mais tremendo do que todos os outros, aos quais se acrescenta um dilúvio de dores, à vista de cujo horror vemos Nosso Senhor Jesus Cristo estremecer e ainda enfrentar a última batalha.

Há um versículo que se refere profeticamente a Ele dizendo: “Ego autem sum vermis et non homo, opprobrium hominum et abiectio plebis. – Eu sou um verme e não um homem, o desprezo de todos os homens e o escárnio do povo” (Sl 22, 7). Ei-Lo no alto da Cruz, sofrendo tudo isso para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, as que estavam na Terra e as de todos os homens até o fim do mundo.

O Salvador tem sede da alma de cada um de nós

É muito importante compreendermos que Nosso Senhor Jesus Cristo era o Profeta perfeito, porque profetizou e cumpriu a sua profecia. Os outros profetas previam o que Deus faria; Ele, sendo Deus, profetizou e realizou tudo quanto profetizara. Ora, esse Profeta previu no seu interior todos os pecados cometidos na humanidade até o fim do mundo. Por isso, nesse olhar há doçura, amor, e este amor se volta para cada um de nós. Inclusive àqueles dentre nós que estejamos mais longe d’Ele, por nossa culpa, nossa culpa, nossa máxima culpa… Nesse crucifixo o olhar é de quem diz: “Se for preciso sofrer tudo por esse, Eu sofro! Ainda que ele rejeite tudo isso, Eu ainda sofro mais para ver se, afinal, ele aceita”.

“Sitio – Tenho sede” (Jo 19, 28), disse Nosso Senhor no alto da Cruz. Quanto gostaríamos de dar água para Ele beber! Ora, Ele tinha sede de almas. O Salvador tem sede da alma de cada um de nós! Portanto, essa água nós podemos Lhe dar! É a nossa alma, o nosso interior, a nossa boa vontade, a nossa contrição.

Peçamos para nós, por meio de Nossa Senhora que está aos pés da Cruz, uma contrição profunda que emende as nossas almas e faça de nós uma razão de alegria para seu Divino Filho. Assim poderemos dizer: “No alto do Calvário, eu fui para Ele uma alegria e não uma dor”.

Penetrou pelos precipícios da morte porque quis nos salvar

Em outro ângulo pelo qual se contempla esse crucifixo, Nosso Senhor parece não tanto apavorado, mas derrotado. E a compaixão, ao menos em mim, se torna mais viva. O olhar d’Ele é igualmente fixo, aterrorizado, mas como quem entende não haver nada para fazer, pois Ele é o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo… A única coisa que resta é padecer a pancada atroz e injusta que Ele, inocente, sofrerá por nós, culpados, para podermos salvar as nossas almas. Devemos, pois, dizer do íntimo dos nossos corações aquela jaculatória recitada na Via Sacra e que sempre me impressionou muito, a qual rezo cada vez que passo diante do crucifixo presente em nossa Sede: “Adoramus te Christe et benedicimus tibi, quia per sanctam Crucem tuam redimisti mundum – Nós Te adoramos, ó Cristo, e Te bendizemos, porque pela tua santa Cruz, redimiste o mundo!”

Aí está o onipotente, o Homem-Deus. Há algumas horas perguntavam-Lhe se era Jesus, o Nazareno, e Ele respondeu: “Eu sou.” E tal é o poder d’Ele que todos caíram por terra (cf. Jo 18, 4-6). Nosso Senhor poderia pôr de cara no chão essa multidão que estava em torno d’Ele e que O vaiava. Se Ele quisesse, poderia fazer entrar para os antros mais profundos do Inferno, naquele mesmo instante, a corja de demônios que andavam pelos ares atiçando os homens contra Ele. Nosso Senhor poderia descer da Cruz e, por um império de sua própria vontade, recuperar-Se em toda a força da sua juventude, na plenitude de seus trinta e três anos, a idade perfeita do homem. Mas Ele não quis. E podendo afastar-Se da morte com uma facilidade suma, penetrou pelos precipícios dela, porque Ele quis nos salvar!

Sem dúvida, temos sacrifícios a fazer para salvar nossas almas. Entretanto, como são menores – a perder de vista! – do que o que Ele realizou por nós! Diante disso, não teremos coragem de fazer o sacrifício que nossa salvação exige de nós? Que vergonha é essa?! O tema é tão augusto que quase não comporta a brutalidade da palavra que vou usar: que indecência é essa?!

Imploremos ao Divino Crucificado que nos dê força a fim de fazermos todos os sacrifícios para a salvação e santificação de nossas almas, e trabalharmos pela causa d’Ele e de Nossa Senhora no mundo contemporâneo.

Tudo está toldado!

Vista por outro aspecto, a fisionomia de Nosso Senhor nesse crucifixo corresponde a uma situação para a qual não encontro no vocabulário português nenhuma palavra inteiramente adequada, como é o termo francês “détresse”. É uma aflição que estica ou contorce o homem de todos os modos, e para a qual não há remédio. Nosso Senhor Jesus Cristo parece olhar para o Padre Eterno, e não mais para os homens, e dizer: “Meu Pai, nem em Vós encontro compaixão!” Nessa hora, como que uma misteriosa cortina se interpôs entre a divindade e humanidade d’Ele. Esta encontrava-se na aridez, enquanto a sua divindade, no Céu, estava imersa na glória e na felicidade eternas, inseparáveis da natureza divina. Na sua humanidade, Jesus está olhando para o Céu, como quem diz: “Tudo está toldado, não há saída!”

Em quantas situações da vida nós temos a impressão de que tudo está toldado e não há saída! Nessas horas, saibamos rezar, pedir socorro por meio de Nossa Senhora, e certamente seremos atendidos pelo Céu.

Outra fotografia do mesmo crucifixo apresenta a pobre natureza humana colocada próxima à morte. “Mortis dolores circundederunt me – As dores da morte me cercaram” (Sl 114, 3). Elas vão, dentro em pouco, me devorar. E, Homem que sou, tenho horror da morte! Mas Eu a quero para salvar os homens!”

Tem-se a impressão de que toda forma de aflição O esgotou tanto, que Ele está como que entregue e olhando as suas próprias dores como algo que já se apoderou d’Ele inteiramente. De maneira que só Lhe falta dizer “consummatum est” e morrer. O cálice está bebido. Dir-se-ia que houve um sobressalto, mas há algo da aceitação do fato consumado, onde está presente a doçura das resignações últimas.

Notem o aspecto impressionante da bofetada criminosa dada no rosto, e a chaga que abriu na face divina.

Ó Senhor, pelo Sangue de Jesus e pelas lágrimas de Maria, tende pena de mim!

Esses são os comentários sugeridos por essa esplêndida sequência de fotografias do crucifixo da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei. São palavras que nos predispõem para os sentimentos de contrição que devemos ter durante a Semana Santa.

O segredo das almas quem o poderá desvendar? Dentre os que lerão esses comentários poderá haver almas muito desanimadas, talvez sem esperança de se reerguerem inteiramente. Argumentemos diante da justiça divina com os méritos de Jesus, nosso Redentor, e de Maria Santíssima, Co-Redentora, e digamos:

“Senhor, não sou digno de vossa misericórdia, mas a misericórdia de vosso Filho já se exerceu em meu favor. Ele já verteu seu Sangue, e eu estava na lista dos filhos por quem Ele morreu, pois sou homem, e Nosso Senhor quis morrer por todos os homens. Fui remido, e quando Nossa Senhora chorou, verteu lágrimas também por mim. Eu alego esse Sangue e essas lágrimas, e Vos digo, por meio de Maria Santíssima: Ó Senhor, pelo Sangue infinitamente precioso de Jesus e pelas lágrimas de Maria, a quem amastes tão especialmente, Senhor, tende pena de mim!”

É o que cada um de nós deve dizer na Semana Santa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

O que é a coragem?

É um erro pensar que a autêntica coragem consiste apenas em enfrentar os riscos com valentia, impulsionado por um entusiasmo sensível. Nosso Senhor Jesus Cristo nos dá o exemplo da perfeita coragem.

 

A coragem é, por definição, a disposição de alma, a virtude pela qual o homem enfrenta grandes provas, grandes dores, grandes dissabores, grandes desgostos, grandes perseguições, por um ideal que ele coloca acima de tudo.

Diversas formas de coragem, dois estados de espírito

Há diversos tipos de coragem. Uma coragem para aguentar os sofrimentos da alma, outra para suportar os padecimentos do corpo, outra para arcar com ambos os sofrimentos. Há modalidades de coragem para enfrentar os padecimentos da doença, e outras para os tormentos da guerra. Varia muito.

Entretanto, ao resolver enfrentar o sofrimento necessário para alcançar seu objetivo, o homem pode assumir dois estados de espírito diversos.

Um é o entusiasmo sensível. Ele se vê na contingência de sofrer muito por uma alta finalidade, e resolve, no seu arrebatamento: “Vou sofrer!” E vai para a frente.

Outras vezes, não. O homem não tem qualquer entusiasmo sensível em relação ao que vai fazer. Na sua mente, ele compreende que deve, e quer realizar aquilo. Mas a sua sensibilidade não está de acordo, encontra-se fraca, abatida. E ele tem que ir adiante, apesar de sua sensibilidade estar rumando para o sentido oposto.

A perfeição da coragem

O Corajoso dos corajosos, o Forte dos fortes foi Nosso Senhor Jesus Cristo, evidentemente. No Horto das Oliveiras, quando começou sua Paixão, Ele não tinha nada que representasse, na sensibilidade d’Ele, um “élan”, um gosto, uma satisfação para sofrer. Antes, pelo contrário, os Evangelhos nos contam que Ele começou a pensar em tudo o que ia acontecer, e a preparar sua Alma para isso. E, em vez de Se alegrar, diz o texto sagrado que Ele começou a sentir tédio, pavor, e a ficar triste(1).

Diante do que Lhe deveria acontecer, o seu celeste, admirável, perfeito instinto de conservação fê-Lo ter tanto medo, que as capilaridades das veias arrebentaram e Ele começou a suar Sangue.

É um fenômeno estudado na Medicina, conhecido perfeitamente. Há pessoas que, levadas por um grande receio, um grande temor, acabam transpirando sangue.

Nesse momento, Ele teve o supremo gesto de coragem, dirigindo-Se ao Padre Eterno e dizendo: “Meu Pai, se for possível afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”(2).

O auge da coragem estava nisso: Deus tem desígnios que, segundo a infinita perfeição d’Ele, às vezes remove, às vezes não remove. E apesar de tudo quanto levava o instinto de conservação perfeitíssimo de Nosso Senhor a ficar absolutamente tenso na perspectiva do que viria, Ele deliberou: “Eu vou, Eu aceito! Faça-se a vossa vontade e não a minha” É a perfeição da coragem!

O Evangelho conta que um Anjo baixou do céu e o fortaleceu(3)

Quer dizer, para essas almas que têm medo, tensões, e ficam dilaceradas pelo pavor do que pode acontecer, há uma misericórdia especial. Para umas almas a misericórdia consiste em dar essa sensibilidade para a luta; para outras, a misericórdia consiste em deixar a pessoa sentir-se desamparada. Mas, na hora H, vem uma ajuda e a pessoa avança.

Deus nunca abandona quem se mantém fiel

Não se deixem levar pelo erro que a linguagem corrente coloca — ao menos no português do Brasil —, de imaginar que coragem é a mesma coisa do que essa valentia sensível pela qual se enfrenta tudo. Não é esse o único corajoso. É uma forma de coragem, mas não é a única.

Esta coragem na dor, na desolação, na agonia, é uma forma de coragem esplendidíssima, porque é a coragem da qual nos deu exemplo, pessoalmente, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Nas ocasiões comuns da vida, a pessoa pode não ter coragem para as coisas extraordinárias e, portanto, por causa disso ter um acesso de medo. Mas quando se trata de ser fiel à graça de Deus, não tem por onde escapar: a pessoa pode estar como for, vem para ela uma graça. E, no meio do medo, ela aguenta.

Santo Inácio de Antioquia, por exemplo — um mártir famoso —, foi para o martírio, chegou diante das feras, abriu os braços e exclamou: “Meu Deus, que meu corpo seja triturado pelos dentes das feras, e esmagado como se faz com o trigo usado na transubstanciação!” E realmente as feras caíram em cima dele e o estraçalharam; e ele, na alegria, foi para o Céu. É uma coragem admirável!

Os romanos levavam os cristãos, na véspera da execução, para o Coliseu ou para o Circo Máximo, e eles ficavam a noite inteira acordados, com medo do martírio do dia seguinte. E as feras que lhes deviam comer estavam ali perto, em outro cárcere, uivando. De maneira que, no silêncio da noite, de repente se ouvia o rugir de uma fera faminta. E o católico sabia que seria ele o alimento daquele animal.

Então, diante dos leões, leopardos, tigres, panteras, que começavam a uivar, durante a noite, alguns católicos ficavam entusiasmados, outros se encolhiam, pois receavam não ter coragem. Chegada a hora do suplício, eles tinham uns procedimentos admiráveis.

Houve uma santa que pediu a Deus o seguinte: ela estava disposta a aguentar tudo, mas não tinha coragem de ser comida por um leopardo, por ter um medo especial desta fera. Apareceram as feras, entre as quais havia leopardos. A santa olhou aquilo e pensou na oração que fizera. Veio um outro animal, que não era leopardo, e atirou-se sobre ela, devorando-a.

Outras vezes, as feras se aproximavam, mas não ousavam fazer nada contra o santo. Então o imperador mandava lhe cortar a cabeça. E todos os mártires tinham atitudes admiráveis.

Os “lapsi”

Existia no meio do Coliseu um ídolo, junto ao qual ficavam uma espécie de tigela com incenso e uma pira com fogo. Os cristãos que se aproximassem do ídolo e jogassem incenso no fogo, indicavam por este gesto terem adorado o ídolo. Então, imediatamente eram soltos e podiam voltar para casa. Esses eram chamados “lapsi”.

Um monge relapso é um monge que não teve coragem de levar até as últimas consequências sua vida monacal. Um aluno relapso é o que não teve a coragem de aguentar o peso do estudo.

Os “lapsi” — a palavra “relapsos” vem de “lapsi” — tinham que voltar para a catacumba e apresentar-se com vergonha, como “lapsi”. E continuavam a viver a vida de todos os dias dentro do opróbrio.

Tanto mais que existiam outros meio estropiados porque tinham conseguido sobreviver aos tormentos, sendo depois resgatados, à noite, pelos outros cristãos que, durante a noite, recolhiam os corpos dos mártires, e os eventuais feridos com vida, levando-os para serem cuidados. Esses sobreviventes eram heróis, tinham enfrentado as feras!

Imaginem um daqueles “lapsi” olhando para uma moça frágil, que perdera os dois braços, e que está na catacumba, rezando. Ele, um atleta. Que vergonha! Dá vontade de sair correndo…

Às vezes os “lapsi” que voltavam eram novamente presos. E, na segunda vez, eles se mostravam corajosos. Apesar do pecado cometido, a graça de Deus ainda os apoiava na hora do martírio.

Vivamos e morramos como Deus quer

Quando chegar a nossa hora, devemos pedir a Nossa Senhora que nos dê qualquer forma de coragem, contanto que sejamos fiéis a Ela, custe o que custar. O resto não tem uma importância decisiva. Mas é preciso, nesta hora, ser corajoso.

Eu me lembro de ter ouvido falar de um santo que pregava muito sobre os novíssimos do homem, entre os quais está a morte. Mas ele tinha um pavor de morrer, que era uma coisa medonha! Quando ficou velho, chegou a vez dele. Veio a morte, e ele morreu com uma serenidade impressionante, uma coisa admirável!

São os diferentes desígnios de Deus para cada pessoa.

Queiramos viver a nossa vida e morrer a nossa morte como Deus quer. Vê-Lo no Céu, por toda a eternidade, é o que devemos pedir a Nossa Senhora. v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/9/1989)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

 

1) Cf. Mt 26, 37-38.

2) Cf. Lc 22, 42.

3) Cf. Lc 22, 43.