Cântico da alma inocente

Quem ouve o canto gregoriano pela primeira vez pode ser tomado pela impressão equivocada de que se trata de uma música no seu estágio rudimentar, exprimindo, com um “minimum” de  movimentação, estados de espírito mais comuns à condição social de uma civilização nômade, entregue sobretudo aos labores manuais, que apenas começa a dar conta de si mesma e de suas  vicissitudes de alma. E que, portanto, tem necessidades muito limitadas e circunscritas para serem expressas através de melodias e cânticos.

Daí uma música, enquanto sonoridade, pouco desenvolvida, um canto monótono, próprio desses espíritos primitivos e de uma liturgia igualmente elementar, sóbria, com movimentos escassos,  não obstante os adornos e paramentos eclesiásticos de indiscutível beleza.

Segundo essa concepção, a Igreja terá passado séculos e séculos atraindo almas neurastênicas, debilitadas ou não desenvolvidas, um beatério que correspondia à camada mais rudimentar da  sociedade, a única disposta a se sentir tocada e enlevada na tediosa ambientação criada pelo canto gregoriano.

Sem dúvida, uma ideia errada. No universo das maravilhas engendradas pelo espírito católico, o gregoriano aparece exatamente com predicados contrários aos do que essa falsa impressão lhe  empresta. Ele surge nos albores da Idade Média, numa civilização que ainda não conhecera os poetas clássicos nem a literatura convencional, que não usou ruge nem batom, que não pretendeu ter ciências esclarecidas e modernas, mas possuía um extraordinário ímpeto para o belo e para a pulcritude.

Tinha-se um vigor e uma fecundidade espiritual imensos, com uma profusão de percepções, de concepções primevas, de observações e contemplações que redundava numa produção artística e  social potentíssima, cada alma elevando-se no seu próprio espaço, erguendo-se como palmeiras, sem disputar terreno umas com as outras, formando uma linda e vasta floresta.

Um dos produtos dessa grandeza de alma foi o canto gregoriano. E se este não apresenta os acentos retumbantes das músicas que nasceram nos séculos posteriores, é porque foi concebido com o  cuidado da discrição, da humildade daquilo que precisa do seu isolamento, que evita de se expor à luz do sol do convívio com quem poderá entendê-lo mal, banalizá-lo e que, no total, não foi feito  para a intimidade com ele. Íntimos, são poucos…

Então, ele como que hesita em pôr a pleno som para uma igreja os seus sentimentos. Há nele uma certa “retenue”, assim como há, de outro lado, o receio de, à força de se exteriorizar, apegar-se   vaidosamente ao seu timbre.

Porque, de si, é tão inebriante a faculdade de se exprimir, que a pessoa se põe a falar e facilmente desliza para a conversa solta, pelo simples gosto da loquacidade. Cumpre refrear essa tendência,  com aquela harmonia suave e cadenciada do gregoriano, onde se nota a vontade de não aparecer, de ser modesto, de conservar o frescor da humildade e da sua própria inocência.

Talvez, pelo desconhecimento de algumas regras musicais adequadas, haja algo de realmente incipiente no gregoriano, que não chegou a se exprimir em seu completo desdobramento, mas que  aponta para ele. Seria como a orla de uma floresta. Dentro desta estão todas as gamas do heroísmo e da ternura, da reflexão e dos esplendores da sadia despreocupação.

Ele é sóbrio, e se não transpõe essa orla, carrega entretanto dentro de si a sua própria floresta, formidável que é uma potencialidade quase inexaurível de gerar civilizações e maravilhas em  qualquer parte do mundo. É a força da inocência aliada à graça, que transformou, por exemplo, os pântanos e vales mefíticos da antiga Europa em jardins salpicados de vida e de cor, onde, entre arvoredos e lagos lindíssimos, avantajam-se grandiosas abadias, imponentes castelos e majestosas catedrais. Uma Europa “gregorianizada”.

Agora, qual é o efeito do gregoriano sobre a alma do homem contemporâneo que sabe admirá-lo? Sobre a minha própria alma, portanto? Eu diria que dele emana uma forma de temperatura que  transmite todo o aconchegante do quente e todo o agradável frescor do frígido, de um frio que não corta nem maltrata, onde uma brisa tépida de vez em quando faz sorrir. Ele tem as temperaturas da vida, que estão para além das algidezes e calores do mundo mineral. É uma composição de outra natureza, que nos comunica refrigério, luz e paz; que ajuda a despertar e a dar vigor, em nossas  almas, a mil ordenações da inocência que o choque com o mundo contemporâneo — no qual encontramos uma selva com macacos, tigres, cobras e javalis, que são os assuntos alheios à nossa  salvação eterna — tenderia a fazer esquecer e a adormecer, desviando nosso olhar espiritual.

Outro efeito que o gregoriano produz nas almas é o de tornar-lhes patente o lugar do murmúrio na expressividade do homem. É falso que este, para se exprimir por inteiro, tenha de fazê-lo nos  registros mais altos de sua voz e nas ondulações maiores de seus movimentos. Não. Existem harmonias, composições, santidades por assim dizer supra-sônicas que se veriam maculadas e traídas  caso fossem descritas pelo som na sua máxima intensidade. Só o murmúrio é capaz de expressar o que é supra-sônico.

Por isso o gregoriano é o cântico do murmúrio.

E enquanto tal, aliás, faz ele sentir que esta é a terra de exílio para a qual viemos em conseqüência do pecado original. Há nele algo de penumbra ascética, de sonoridades meio penitenciais, de  almas do purgatório que passam sussurrando, gemendo e entoando canções de esperança. Se lhe prestarmos bem atenção, veremos nele a inocência que se sabe a si mesma em estado de prova,  tomando todos os cuidados consigo mesma. Há um quê de mortificado, de vigilante, dentro do celeste desembaraço do gregoriano, à maneira do  capuz colocado na cabeça de um frade jovem: lembra o aspecto penitencial, adverte contra o vazio das coisas terrenas, contra o mentiroso dos “élans” excessivos do próprio homem.

Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes do “Te Deum”, aos recolhimentos solenes do “Tantum ergo”, é a música que tem essa qualidade incomparável de exprimir a atitude perfeita, o exato grau  de luz da alma reta e verdadeiramente inocente quando  se coloca diante de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Dois olhos que são um firmamento

O principal ponto de adesão entre Dr. Plinio e sua mãe era o fato de ela estar continuamente voltada para uma “trans-esfera” muito nobre, elevada, doce, serena, lúcida, do alto da qual mantinha  relações com todo mundo. Isso que poderia parecer etéreo se exprime muitíssimo bem no Quadrinho de Dona Lucilia, especialmente nos olhos.

 

Dona Lucilia era uma senhora de família ou, como se diz hoje de uma maneira horrível, “de prendas domésticas”.

Vivia para o trabalho de uma existência de senhora, para dentro de sua casa. Não foi uma senhora de estudos, pois no tempo dela não era costume as senhoras estudarem. Tinha as ideias gerais  das senhoras que viviam no ambiente de homens cultos. Era profundamente católica. 

Estado de espírito sempre nobre, elevado e sereno

Mas eu não ousaria dizer que este ponto fosse o principal da adesão entre mim e ela. Certamente não haveria adesão se ela não fosse assim. Isso é certo, mas não é o fundamental. O principal  ponto de adesão era um modo de ser da alma dela que me parecia estar continuamente voltado para uma “trans-esfera”1 por onde, embora ela tomasse conta de tudo muito bem, o melhor da  atenção, do afeto dela estava voltado para essa “trans-esfera” muito nobre, elevada, doce, serena, lúcida, do alto da qual ela mantinha relações com todo mundo, de tal maneira que se percebia estar  sua alma, ao mesmo tempo, na “trans-esfera” e na pequena coisa concreta.

Lembro-me de que ela gostava muito de uma flor chamada primavera.

Na fazenda do Amparo de Nossa Senhora, onde eu costumo me hospedar, há uma trepadeira com essa flor. Sabendo que mamãe apreciava a primavera, os membros de nosso Movimento ali  residentes cortavam muitas daquelas flores e me davam para levar para ela, cada vez que eu voltava a São Paulo.

Quando chegava, eu lhe entregava as flores, e via os jeitos dela olhar encantada para elas. Às vezes, suave e discretamente, mamãe até parava um pouquinho a respiração e depois fazia algum  comentário. Mas eu notava que o comentário não era nada em comparação com o que estava no espírito dela a respeito daquilo. Entretanto, o que ela dizia estava relacionado com uma  “trans-esfera” da qual aquelas flores não eram senão o símbolo. Em última análise, uma relação com Deus Nosso Senhor, com Nossa Senhora e tudo o mais que tange o mundo sobrenatural.

Desse sentido elevadíssimo no qual Dona Lucilia habitava procediam todos os seus estados de alma, os quais constituíam o meu maior encanto por ela, e que procurei haurir e transformar em  meus, tanto quanto pude.

Este era o principal ponto de atração. É um pouco nebuloso, etéreo, mas a pessoa se dá conta disso olhando o Quadrinho. Porque vendo-o percebe-se o que isso quer dizer de concreto, embora seja um pouco inexplicável.

História de uma obra-prima

Se querem saber qual é o principal ponto de atração da alma de mamãe para a minha, olhem para o fundo do olhar dela no Quadrinho e compreenderão. Aquilo diz muito mais do que qualquer  palavra ou descrição.

Quando um discípulo meu pintou aquele quadro – tendo como base uma das últimas fotografias tiradas dela – fê-lo durante uma longa viagem, dentro de uma “Kombi”, nas condições mais  desfavoráveis que se possa imaginar para um trabalho desse tipo.

O resultado foi que ele terminou a pintura e não gostou. Então, apagou tudo, exceto os olhos, que lhe pareciam ter ficado bons. Assim, no pano restaram apenas aqueles dois olhos. E ele tinha a  impressão de que os olhos dela lhe suplicavam que retomasse a pintura. Ele então fez e, apesar de outras vicissitudes, saiu aquela obra-prima.

Pois bem, eu me comovo imaginando aqueles dois olhos no tecido. Seria quase o que mamãe foi para mim: dois olhos ao longo da vida…

Todo o resto, um tecido. Mas aqueles dois olhos eram, para mim, um firmamento! Recordo-me de quantas e quantas vezes eu olhava para os olhos dela profundamente. E mamãe tinha uma coisa  curiosa: quando ela se sentia analisada, tomava uma atitude bem fixa e se deixava olhar. Eu tinha a impressão de que pegava com a mão no fundo da alma dela, de tal maneira me ficava claro  quem ela era. E ficava encantadíssimo, mas encantadíssimo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1978)

1) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a trans-esfera.

Santo Filogonio – Fundador de uma luta santa

É uma glória especial dar começo a qualquer boa obra. Por isso costumamos homenagear o fundador de uma cidade, de uma dinastia, de uma diocese, o primeiro povoador de um país.

Portanto, a “fortiori”, devemos homenagear também aqueles que levantem uma luta santa. Neste caso, são os fundadores da reação. Eles possuem o mérito e a glória de terem sido os primeiros a combater quando estavam isolados e não sabiam com quem haveriam de contar. Tendo corrido o risco da aventura de levantar o estandarte, tornaram-se os pais espirituais de toda a luta que veio depois.

São Filogônio deve ser extraordinariamente digno de nossa veneração, porque foi dos que suscitaram a luta contra um precursor de Lutero, chamado Ario.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/12/1965)

Felix Cæli Porta

Na hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus, a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente, Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou.

Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura o Verbo de Deus encarnado!

(Extraído de conferência de 2/7/1995)

As Graças do Natal

Queiram ou não queiram os homens, a graça lhes bate às portas da alma, mais sublime, mais meiga, mais insistente, neste tempo de Natal. Dir-se-ia que, apesar de tudo, paira nos ares um luz,  uma paz, um alento, uma estimulo ao idealismo e dedicação, que é difícil não perceber.

Ademais, em inúmeras igrejas, em muitos lares, o presépio ainda nos põe diante dos olhos a imagem do  Menino Deus, que veio para romper os grilhões da morte, para calcar aos pés o pecado, para perdoar, para regenerar, para abrir aos homens novos e ilimitados horizontes de fé e de ideal, novas e  ilimitadas  possibilidades de virtude e de bem.

Que a paz do Natal penetre em nós

Mais uma vez, Senhor, a Cristandade se apresta a Vos venerar na manjedoura de Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob a luz ainda mais clara e fulgente dos olhos maternais e doces de Maria. A  vosso lado está São José, tão absorto em Vos contemplar que parece nem sequer perceber os animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram as nuvens e cantam, bem visíveis, no mais  alto dos Céus”.

Eis pequeno trecho de uma meditação de Dr. Plinio, em noite de Natal, diante do presépio, que o encontrava pela capacidade de reviver algo daquela atmosfera indizível reinante na gruta de  Belém. O primeiro presépio da história foi obra de um refulgente santo, há quase oito séculos. Conta Tomás de Celano — o biógrafo do seráfico São Francisco de Assis, e seu contemporâneo — que  este, no Natal do ano da graça de 1223, desejou compor do modo mais real possível a cena vista pelos pastores na Gruta de Belém.

Com seu espírito poético, voltado para o maravilhoso, sua candura e humildade, preparou uma manjedoura coberta com feno e mandou colocar de um lado um boi, e de outro um asno. Fez  celebrar nesse local a Missa e, observando a cena, dirigiu-se aos assistentes,  descrevendo com palavras ardentes de piedade e amor o nascimento do Homem-Deus.

A partir desse fato, difundiu-se por toda a Cristandade o costume de montar presépios por ocasião do Natal. Ativando a imaginação de pequenos e adultos, eles são ocasião de incontáveis flashes —  ara utilizarmos um termo pliniano —, proporcionando-nos algumas das mais inesquecíveis horas de nossa vida.

Considerando esse quadro, quantas e quantas vezes Dr. Plinio elevou suas cogitações até aquele convívio inefável da Sagrada Família, nunca se esquecendo de recordar que essa sublime cena nos  cobra uma determinada disposição de espírito: “Não basta que nos inclinemos ante Jesus Menino, ao som dos hinos litúrgicos, em uníssono com a alegria do povo fiel. É necessário que cuidemos  cada qual de nossa própria reforma, e da reforma do próximo, para que a crise contemporânea tenha solução, para que a luz que brilha no presépio recobre campo livre para sua irradiação em  todo o mundo”.

Contudo, Dr. Plinio destacava igualmente que, nesse dia bendito, Jesus e Maria querem especialmente de nós que nos deixemos impregnar pela doce e benigna atmosfera do acontecimento  grandioso: “Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe d’Ele, mas também nossa. […] Ao contemplar isso, nossas almas crispadas se  distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado. Florescem os dons de alma. O dom do afeto. O dom do perdão. E, como  símbolo, a oferta delicada e desinteressada de algum presente”.*

Nessa ocasião do mais augusto de todos os aniversários, aproximemo-nos do presépio e, silenciosos e recolhidos, deixemos que nossas almas sejam inundadas por essa paz luminosa do santo Natal.

* Os trechos acima transcritos foram publicados respectivamente em Legionário, 22/12/46; Catolicismo, dez/52; Folha de S. Paulo, 27/12/70.

Plinio Corrêa de Oliveira

O xale lilás

O xale tem algo de supérfluo que bem manuseado pode dar ares de nobreza, de dignidade. Para uma senhora que tem a idade do Sol quando se põe, convém um xale discreto, distinto, mas que orne os ocasos. E uma das cores adequadas para Dona Lucilia era o lilás, que possui alguma coisa do refletido, do tristonho, do organizado, daquilo que já caminha para o fim.

 

Embora um espírito não tenha cor, pois não é de natureza material, pode-se relacionar estados de alma a determinadas cores, procurando ver nelas o espírito que se reflete. Assim, poderíamos nos perguntar se existe um espírito cor de “amaretto”, nacarado ou dourado. A cor é apenas um símbolo material de um estado de alma espiritual, imaterial.

Cor, aroma, som, sabor e traçado de uma linha

Numa primeira abordagem, a resposta à pergunta resulta em uma banalidade, porque é claro que a estados de espírito correspondem cores. Por exemplo, ao negro corresponde o luto. E não é por  uma analogia, por uma relação convencional, mas por uma correspondência natural. O homem que está morto não vê, não sente. Ele está para com a vida como um cego para a feeria das luzes,  quer dizer, não vê.

Encontra-se numa noite, num escuro “eterno”, em que ele não vê nada. Por outro lado, há cores festivas que indicam estados de alma jubilosos, triunfais, como existem cores e tonalidades que  denotam o repouso. A experiência mostra que os artistas utilizam em suas obras esta ou aquela cor para exprimir um determinado estado de espírito. Logo, essa reversibilidade existe.

Entretanto, poderíamos ir mais longe e perguntar se nos seria possível, tratando com pessoas, perceber que cor corresponde a este ou àquele indivíduo como mentalidade e se, portanto, as pessoas têm cores, nesse sentido. Evidentemente não entra em consideração aqui a etnia. Se estabelecermos com uma pessoa um contato no qual ela não se sinta forçada a representar um papel, não tenha o empenho de se falsificar para se tornar agradável; portanto, tomada a pessoa na sua autenticidade, e suposto um convívio em que, pela continuidade, os vários aspectos dela vão aparecendo e se  completando – o que não implica em um convívio necessariamente muito longo, basta que seja proporcionado ao discernimento do observador –, poderíamos dizer que cada pessoa causa uma impressão dominante. A meu ver, essa impressão dominante seria redutível, simbolizável numa cor.

Até acho mais: se, como vimos, a cada pessoa poderia corresponder uma  cor ou uma tonalidade dentro de uma cor, donde decorreria matizações mais ou menos indefinidas, também a cada família poderia corresponder uma cor, como um aroma, um som, um sabor.

Isso ocorre também com as formas, pois o modo habitual de caminhar na vida, a conduta da pessoa ou da família seria passível se reduzir ao traçado de uma linha. Assim, há pessoas cuja conduta  é simbolizada por uma linha cambaleante, outras por uma linha reta, e outras ainda pela espiral.

O prático e o estético

A única pessoa que eu reduzi a uma cor, muitos anos depois de ter cessado minha convivência com ela, foi mamãe. Realmente o brilho de ametista era bem o “lumen” dela. Pude notar que o meu  gosto pela ametista, já quando Dona Lucilia era viva, correspondia a um modo de querê-la bem. Enquanto ela estava viva, eu nunca fiz esta reversão. A posteriori, quando cheguei a realizá-la, dei– me conta de quanto tudo que cercava mamãe estava imerso naquela luminosidade da ametista, de cor um pouco dada a escura. Não é, portanto, dessas ametistas um pouco esbranquiçadas.

É ametista de valor, de cor nutrida, quase de quaresma. O xale que ela usava continuamente estava em consonância com isso.

Em geral, quando se trata do assunto traje, nas épocas mais ou menos bem constituídas como ainda era o tempo em que ela viveu, ao menos por alguns aspectos, vê-se que há uma espécie de  composição entre o lado prático e o estético. As pessoas se fazem uma certa ideia do lado prático e depois com isso vêm algumas ideias do lado estético.

E fazem disso um total que não se sabe o que prepondera mais: o prático ou o estético. O xale é característico a esse respeito. A ideia é a seguinte. Naquela época havia muito medo dos resfriados.

E se compreende bem, porque não existiam antibióticos como hoje. E para curar um resfriado era preciso muito cuidado, porque senão degenerava com certa facilidade em gripe. E gripe podia  degenerar em pneumonia, e esta em tuberculose. E a tuberculose, que é uma moléstia infecciosa, matava um número muito grande de gente no tempo em que Dona Lucilia era moça. Basta dizer que nas peças de teatro, a maior parte dos heróis e heroínas que são apresentados morrendo, falecem de tuberculose.

De tal maneira essa doença se tornou frequente naquele tempo. E o resfriado era o começo de uma estrada descendente que chegava até a tuberculose. Então as pessoas tomavam um cuidado  enorme contra o resfriado, que hoje não se justifica mais com a facilidade que se tem em combater as doenças infecciosas. A ideia prática para evitar os resfriados, e sobretudo  as doenças de pulmão, era as senhoras protegerem os pulmões por meio do xale. Então vê-se que o xale envolve e protege essa parte mais sensível do corpo contra o perigo das pneumonias.

Ornato para exprimir a mentalidade

Dessa ideia prática apoderou-se a arte. E o xale usado pelas senhoras do tempo foi adotado como uma espécie de ornato, para a expressão da mentalidade delas. Então, o xale – como aquilo que  fica por cima do corpo, e que tem mais relação com o vestido, forma o busto da pessoa – era muito indicativo da mentalidade da senhora.

E numa senhora com xale aparece sobretudo o busto, que é formado pelo rosto, pescoço e a área do xale; e depois a saia. As saias eram longas e chegavam em geral até os pés. Portanto, tinham  outra importância indumentária, em comparação com esses saiotes vagabundos de hoje.

O xale, por outro lado, tinha algo de particularmente nobre, porque o verdadeiro e bonito do xale é ter qualquer coisa de supérfluo. Eram panos longos que a pessoa não colocava só para fechar  exatamente como um pulôver; dobrava-se o xale para um lado, depois para o outro. E o supérfluo bem manuseado pode dar ares de nobreza, de dignidade. De maneira que o xale facilmente  nobilitava a senhora que soubesse usá-lo.

Os modos de pôr, dobrar e arranjar o xale eram quase atitudes rituais. E a senhora mostrava a educação, a linha e a inteligência que possuía, a propósito do xale.

O xale de Dona Lucilia era semelhante aos que tinham incontáveis senhoras daquele tempo. Ela o usava daquela forma e se velava com o xale muito compostamente, suavemente.

Os xales dela tinham um misto de distinção e suavidade no modo de se apresentarem, que realmente me encantava. Uma senhora que tem a idade do Sol quando se põe A cor e os desenhos do xale eram relativos à situação e à idade da senhora que o usava. De maneira que a uma senhora idosa não ficava bem, por exemplo, um xale vermelho ou faiscante de lantejoulas douradas ou prateadas;  seria uma coisa medonha.

Para uma senhora que tem a idade do Sol quando se põe, convém um xale discreto, distinto, que orne os ocasos. E nessas condições, uma das cores adequadas para mamãe era o lilás, que tem ao  mesmo tempo algo do azul, não tem dúvida, mas alguma coisa do refletido, do tristonho, do organizado, daquilo que já caminha para o fim. O lilás ficava muito bem para ela. Aquele xale foi  trazido por minha irmã de uma viagem à Europa. Tenho quase certeza de que ela o comprou em Paris. Minha irmã tem muito espírito prático e ao mesmo tempo sabe vestir-se muito bem. E era  um xale que tinha três finalidades: aquece muito, pesa pouco – é importante que pese pouco sobre os ombros de uma senhora idosa – e orna bem.

Embora seja normal que uma pessoa, vestindo esse xale, o use sobretudo nas ocasiões em que está diante de pessoas estranhas, porque é um bonito ornato, ela de tal maneira gostou dele que  começou a usá-lo todos os dias.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/7/1980 e 25/8/1983)

Stille Nacht

O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX, passou a ser a canção de Natal por excelência. Ao ouvi-la, tem-se a impressão de que o coro está na gruta de Belém e canta emocionado, mas canta baixinho para não acordar o Menino…

 

O comentário, evidentemente, abrange uma interpretação do Natal, visto com uma categoria extraordinária pelo povo alemão.

Há vários descendentes de alemães aqui, que poderiam falar a esse respeito com mais autoridade do que eu… Existe uma característica não muito própria ao latino, mas sim ao alemão: conceber as coisas de tal maneira que tudo quanto é altamente sacral vem acompanhado de muita calma e muito recolhimento.

A concepção italiana da noite de Natal

Um presépio elaborado, por exemplo, em certas regiões da Itália tem as figuras tomando atitudes muito enfáticas, tais como: o Menino Jesus, deitado na manjedoura, estendendo os braços a Nossa Senhora, a qual está debruçada sobre o Divino Infante, numa atitude de ternura profunda, mas borbulhante, que tende a se manifestar em gestos, e só falta falar.

Se o artista conseguir dar a Nossa Senhora e ao Menino Jesus uma impressão por onde alguém diga “Só falta falarem!”, ele fica encantado, porque o falar, se manifestar, é o auge da realização da cena. E São José — ao qual cabe, no diálogo entre Maria Santíssima e o Divino Infante, um papel mais modesto porque ele é apenas o pai jurídico do Menino Jesus — tem também uma atitude, que se não falta apenas falar, falta somente chorar ou sorrir, conforme a interpretação. Mas ele está se exprimindo.

É a ideia de que a emoção religiosa deve exprimir-se por meio de grande vivacidade. E, como é próprio a toda vivacidade, esta, por sua vez, precisa manifestar-se por pensamentos e palavras; os pensamentos devem ser vivos e as palavras enfáticas, calorosas.

A concepção alemã

É exatamente o contrário a concepção alemã da noite de Natal. Em todos os povos, a comemoração do Natal, para ser sacral, tem que produzir nas almas uma impressão profunda. Em certas partes da Itália se entende que essa sensação profunda deve manifestar-se, exteriorizando-se.

Mas para a mentalidade alemã, porque é profunda, tal impressão não deve expandir-se; estando no fundo da alma, o melhor modo de exprimi-la é o silêncio, o recolhimento e a calma.

 Quer dizer, enquanto para uns o auge da expressão é a palavra e os gestos, para outros, pelo contrário, esse auge está numa forma de silêncio e de inação, que dão a conhecer profundidades insuspeitadas da alma humana; e o próprio silêncio indica a importância que a pessoa dá ao assunto, para exprimir tudo quanto ela pensa. Trata-se de uma posição de alma menos exclamativa do que meditativa, elucubrante — eu diria quase filosófica ou teológica —, recolhida.

E a calma não é, entretanto, meramente científica, mas profundamente enternecida. Uma ternura indicando um afeto tão grande que prefere calar-se, a falar.

Então, se alguns têm a eloquência da palavra e do gesto, outros possuem a eloquência do silêncio e do recolhimento. São duas posições diferentes. Muitas vezes as coisas grandiosas, para o alemão começam na imparcialidade, na serenidade, piano, pianino, devagar, para acabar, em certas ocasiões, na barulheira wagneriana. Enquanto que no temperamento latino, do qual, sob alguns aspectos, o italiano — pelo menos de certas partes da Itália — é a expressão mais característica, tudo já se inicia no grande estilo.

Qual das duas posições é melhor? Compreendo que os italianos achem uma coisa, os alemães outra.

E a posição brasileira qual é? Entender perfeitamente ambas as posições e degustar tão bem uma quanto outra. É o que sinto em mim. Eu, como brasileiro — ainda mais tendo a loquacidade do nordestino nas minhas veias —, certamente falaria mais do que o alemão, e estaria um pouco aquém do italiano.

São variedades regionais, através das quais Deus quer ser adorado por cada povo. Não se trata aqui de escolher, mas de contemplar a beleza das variantes. Temos uma variante alemã. Não sei se existe alguma canção de Natal italiana. As francesas não possuem a beleza da alemã. Os Noëls franceses são muito bonitos, mas não como o Stille Nacht, que é propriamente a canção de Natal. A nós compete apreciar a música como vai ser apresentada aqui, característica de uma noite de Natal alemã.

O que o alemão sente na Noite Sagrada

O que o alemão sente na Weihnacht, na Noite Sagrada?

Uma grande calma, sobretudo numa cidadezinha da Alemanha onde foi composta a Stille Nacht. Houve uma dificuldade qualquer na paróquia, em razão da qual não puderam cantar a música sacra tradicional. Então, a pedido do vigário, solicitaram ao professorzinho secundário do lugar que compusesse uma musiquinha para a noite de Natal. E ele, sem julgar estar fazendo uma coisa genial, compôs uma canção que ficou a música de Natal do mundo.

Bem depois, pela difusão dessa canção, esse professor ficou célebre. Conserva-se a casa dele, que é visitada por turistas. Compreende-se muito bem o Stille Nacht, Heilige Nacht vendo fotografias da cidadezinha na neve, os tetos, em forma de cone, branquinhos, as casinhas marrons, tudo parecendo feito de pão de mel para se comer. E uma igrejinha como que feita de marzipã, um brinquedo de criança, como são as aldeias alemãs.

Imaginemos o caminho que conduz para a igreja, um pouco em zigue-zague, feito sobre a neve e bordejado de neve de ambos os lados, as casinhas todas com luzes acesas e suas janelinhas com renda e bem cuidadinhas, como os alemães fazem; o sininho que toca em certa hora e as famílias que aparecem todas agasalhadas — cada indivíduo parecendo uma bolota de lã —, criancinhas que vêm em fila, carregando lanternas — porque esses felizardos não têm iluminação pública. 

A neve, sem fazer barulho, cai em flocos ligeiros. Um imenso silêncio, recolhido, de uma noite sagrada, onde todo o mundo pensa no silêncio que cercava a gruta e a manjedoura. Meia-noite, Nossa Senhora e São José, sozinhos no estábulo. São José recolhido e Maria Santíssima num altíssimo êxtase; em determinado momento, não se sabe como, Nossa Senhora e São José ouvem um vagido: o Filho de Deus entrou no mundo, conservando intacta a Virgem, antes, durante e depois do parto. O maior fato da História, até então acontecido, se deu naquela manjedoura.

Nossa Senhora olha, pela primeira vez, a face de seu próprio Filho e se enternece extasiada; adora-O. São José não sabe o que dizer. Mas tudo é silêncio, eles não comentam nada, mas mil anjos ali estão em revoadas insensíveis. Sem que se ouça uma nota de música, mil músicas são entoadas dentro desse silêncio.

A união de alma da Virgem Maria com seu santo esposo atinge o auge em função do Menino, que nasceu d’Ela, mas sobre o qual São José tem um verdadeiro direito de pai, porque, como esposo, tem o direito ao fruto das entranhas da esposa. De maneira que sem ser o pai, ele tem o direito. Além disso, ele é da Casa de Davi e aquele Menino também o é.

Podemos imaginar o Divino Infante fazendo um gesto para São José, a adoração deste e a afabilidade com que Nossa Senhora lhe entrega o Menino Jesus, exercendo pela primeira vez a sua função de Medianeira.

Aquele silêncio só foi interrompido pela música dos anjos que, vindos do mais alto dos Céus, aparecem e comunicam aos pastores que nasceu o Menino-Deus. Essa música foi pastoril, quer dizer, com a tranquilidade, a candura, a inocência do ambiente pastoril.

Os pastores inocentes acordam e exclamam: “Que beleza!” E perguntam: “O que será?” Depois da explicação, eles começam a andar por extensões ligeiramente onduladas, numa daquelas noites brilhantes do Oriente Próximo, em que as estrelas aparecem num coruscamento quase excessivo para nossa sensibilidade de ocidentais. Uma maravilha! Um céu mais de Paraíso do que desta Terra. Chegam à manjedoura, e encontram Nossa Senhora e São José adorando o Menino Jesus. Tudo é silêncio, calma, harmonia, estabilidade. Temos a impressão de que, se lá estivéssemos, desejaríamos que aquela noite nunca mais terminasse, e por fim lá morrêssemos e fôssemos para o Céu.

O estado de espírito que Stille Nacht exprime

Foi esse estado de espírito — pastoril, angélico, sobrenatural, familiar, íntimo, de uma grande dignidade e um grande alcance metafísico — que a canção quis exprimir.

Vejamos alguns trechos dessa música.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!”: Noite silenciosa! Noite Santa!

“Alles schläft, einsam wacht”: Tudo dorme, só está acordado

“Nur das traute hoch heilige Paar”: O venerável e altamente santo casal

 

“Venerável e altamente santo casal” — a adjetivação é caracteristicamente alemã.

Nota-se na alegria do Natal uma ternura meio lírica, na qual existe certa compaixão. Dentro do festivo há uma tristeza, devido ao frio e à pobreza em que nasce o Menino Jesus. Mais do que isso: é uma tristeza prevendo a Cruz. Há algo da sombra da Cruz que se projeta sobre a noite de Natal. De onde uma ternura com compaixão para Aquele que veio, afinal de contas, para ser o Redentor, sofrer e morrer.

 

“Holder Knabe im lockigen Haar”: Um Menino com cabelos cacheados

“Schlaf in himmlischer Ruhe!”: Dorme numa tranquilidade celeste

 

A nota de tranquilidade está acentuada de todos os modos. Trata-se de uma serenidade do céu, onde se movem as estrelas; não é a modorra da Terra, do menino preguiçoso.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!” : Noite tranquila! Noite santa!

“Hirten erst Kundgemacht”: Pastores, aos quais foi feito o primeiro precônio

“Durch der Engel, Halleluja”: O Aleluia dos Anjos

“Tönt es laut von fern und nah”: Faz-se ouvir alto, longe e perto:

“Christ, der Retter, ist da!”: Cristo, o Salvador, está aqui!

 

Nota-se muito a impressão de um problema que se resolveu, pois uma salvação veio à Terra.

 

“Stille Nacht! Helige Nacht!”

“Gottes Sohn, o wie lacht”: Ó Filho de Deus, que sorriso cheio de amor

“Lieb’aus deinem göttlichen mund”: Sai de vossos lábios divinos

“Da uns schlägt die rettende Stund”: E bate para nós as pancadas da hora da Salvação

 

Quer dizer, os lábios se movimentam num sorriso, como se fosse um relógio que desse o timbre da hora da Salvação.

 

“Christ, in deiner Geburt!”: Ó Cristo, no dia de teu nascimento!

 

Vemos que é uma canção muito simples, popular, mas de um sentido profundo. Feliz o povo onde a cultura está tão entranhada em tudo, que um homenzinho do interior, de repente, abre a boca e sai tal música de seus lábios!

A cultura não consiste em ter somente gênios, mas em estar tão disseminada que floresçam coisas dessas inesperadamente, nos vários degraus da sociedade.

Uma magistral lição de vida interior

Tratar-se-ia de perguntar se os meridionais, sobretudo os de aquém-Atlântico, com sensibilidade borbulhante, têm algo a lucrar com isso. Eu responderia que bastante.

Os povos muito intuitivos são por demais extrovertidos e, por isso, se tornam facilmente agitados. Esta calma convida para o recolhimento, a interiorização, a fim de perceber a voz da graça dentro da alma e não estar a toda hora prestando atenção no outro, mas sim em Deus.

Uma magistral lição de vida interior nos é dada por essa música.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1973)

Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)

 

A vitória é dos que sofrem bem

Apesar de todo o sofrimento, Dona Lucilia era suave, tranquila, sem o menor sinal de desespero, de estraçalhamento. Compreendia em toda a extensão quais eram as dores da vida, certa de que no  undo a vitória é dos que sofrem, tendo sempre os olhos voltados para o Sagrado Coração de Jesus.

 

Dona Lucilia nasceu num período muitíssimo diferente do nosso, que na Europa talvez já tivesse começado a declinar um pouco, mas no Brasil ainda vivíamos de cheio: era o regime chamado do romantismo.

Romantismo e “hollywoodismo”

O romantismo era uma escola de pensamento pífia, mas que tomou  conta do mundo, a qual erigia como princípio que o sentido verdadeiro da vida do homem estava na dor; se o  homem sofresse  muito ele realizava sua existência. Exatamente o contrário de um princípio pior ainda, que era “hollywoodiano”, segundo o qual a vida do homem está  no prazer; se ele gozasse intensamente a  vida, teria realizado sua finalidade.

Ela nasceu no último período do romantismo e assistiu o levantar-se do sol espúrio do “hollywoodismo”.

Pela escola do romantismo, a pessoa devia examinar sua própria vida e buscar nela o que era ou podia ser uma causa de sofrimento. Os partidários dessa escola diziam – e nisso tinham razão, pois  o mal absoluto não existe – que todo homem que examine bem suas condições de vida encontra razões de sofrimento, e deve estar atento a essas razões, compreendendo que elas muitas vezes não  são removíveis. Então, é preciso aceitar essa dor reconhecendo – outra coisa verdadeira – que ela é um fator de valorização da alma.Com efeito, em linguagem católica, a dor é um fator de  santificação e é necessário aceitá-la, embora, sendo possível, possamos e até devamos procurar remover os padecimentos que venham ao nosso encontro por permissão da Providência.

Por exemplo, uma doença. A pessoa está enferma, mas tratando-se bem pode ficar curada. O verdadeiro bom senso não é dizer: “Meu Deus, Vós mandastes sobre mim uma doença; abro os meus braços e me entrego!” Ora, tome remédio! Ou, atitude bem mais dura: faça regime, mas não choramingue aquilo que você pode remediar. Deus lhe enviou a doença, mas também o remédio e o dinheiro para comprá-lo.

Então compre o remédio, tome-o e acabe com essa enfermidade e com essa choradeira também.

Contudo, há doenças e sofrimentos que são irremovíveis. A pessoa precisa aceitá-los: “A Providência quis que toda a minha vida eu sofresse isso, vou aceitar de frente e não procurar fechar os  olhos ao significado da minha dor; pelo contrário, vou vê-la inteira, tudo o que eu perco, tudo quanto eu sofro e ainda sofrerei por causa disso, e preparar minha alma como um guerreiro se prepara para a guerra.”

E o enfrentar consiste muitas vezes em travar uma luta mais dura do que a própria doença ou a própria provação. Por exemplo, a pessoa tem uma enfermidade e padece com isso. A reação poderia ser: “Ai, ai, ai… Como estou sofrendo!”

A verdade não é essa: “Você está sofrendo? Está bom, mas sua vida não é feita só de sofrimento, há outras coisas boas: pão com manteiga, por exemplo. Coma o pão, a manteiga, trabalhe, lute,  ponha seu ideal onde deve estar, que é no serviço da Santa Igreja, na derrota de satanás, e meta o peito!”

Dureza de alma no trato

No caso de Dona Lucilia, ela via duas situações. No tempo desse romantismo, se dava à beleza física do  elemento feminino uma importância muito grande, sendo que a formosura do rosto tinha  uma importância muito maior do que a do corpo. A mulher podia ser uma “baleia”; desde que tivesse uma face fantástica, estava tudo aprovado. Mas se ela não era muito bonita de rosto, passava para o último lugar.

Em cada família a moça querida, admirada, apreciada era a filha bonita. E a filha que tivesse um rosto comum, por mais amável, gentil e cortês que fosse, tivesse bom gosto no modo de se vestir,
não sendo bonita passava para o segundo plano.

Ora, Dona Lucilia não era considerada bonita pelos contemporâneos dela, e por causa disso, no plano das moças de sociedade, ela passava para o segundo naipe. Então, nos afetos, nos carinhos – não direi dos pais e dos irmãos, mas do restante das relações – ela passava para um plano secundário, e no primeiro plano ficavam as outras.

A estupidez desse procedimento, o modo agudo com que isso muitas vezes se fazia sentir se mostravam naquilo que para ela era o verdadeiro sofrimento: a dureza de alma dos outros, e não o fato  de que ela ficasse no segundo plano. Falsa filosofia da vida Eu conto um casinho ocorrido com determinada família, e que faz sentir a coisa ao vivo.

Um advogado com um grande escritório em São Paulo ganhava muito bem, e tinha uma cliente que lhe dava muito boas causas. Era uma viúva – ou uma solteirona, não guardei bem esse pormenor –, muito rica. Essa senhora tinha já uns sessenta anos ou mais e adoeceu, mas não havia quem tratasse dela. Então esse advogado combinou com a esposa e convidaram essa senhora  para ir se tratar na casa deles.

Entrava caridade e, provavelmente, os negócios do escritório também. Mamãe frequentava assiduamente essa casa e, tendo ficado com muita pena dessa pessoa doente, tratava-a com todo o  cuidado, sendo muito amável e gentil. Nessa residência morava uma moça muito bonita que dizia: – Lucilia, você faz papel de boba.

Por que você a trata com tanto carinho, colhe flores para ela, mostra- -lhe livros com gravuras e tantas coisas para distraí-la, quando ela não lhe quer bem? Ela quer bem a mim.

– É que eu tenho pena dela – respondeu mamãe. Gargalhada da outra:
– Você é uma boba! Pena não existe, o que há é interesse. A outra tem interesse em me agradar e não em agradar você.

Enquanto ela estiver doente, ela vai receber suas carícias muito bem. Mas você esteja presente aqui na hora de ela ir embora, e vai ver o modo de ela agradecer a mim e a você. Eu, que uma vez por  dia me aproximo dela, dou uma prosinha de alguns minutos e vou embora, você verá os beijos que ela vai me dar. Quanto a você: “Lucilia, muito obrigado.”

Mamãe achou improvável tal atitude. Na hora da despedida, ela estava lá. A senhora doente disse à moça bonita: – Fulana, muito obrigada por tudo quanto você fez por mim, eu lhe  sou muito   agradecida, dá-me um beijo, e mais outro, de suas carícias não me esquecerei jamais.

Depois à mamãe, que estava ao lado da outra:
– Lucilia, estou agradecida; você me foi muito gentilzinha.

Essa é a vida, hein! Não sei se na  época dura em que estamos é preciso explicar que a vida é assim, pois se tem a impressão de que isso não é novidade para ninguém. O que estava subentendido  no modo de a moça bonita dizer era: “Eu sou bonita e você é feia. Portanto, para você ninguém dá importância. Você não consegue nada com ninguém, porque bonita sou eu.”

Isso constitui uma filosofia da vida, falsa, péssima, mas, queiram ou não, é uma filosofia da vida.

Fonte de toda consolação

Por outro lado, Dona Lucilia foi compreendendo que na época em que ela vivia as relações já não eram movidas senão por interesse, e que o afeto desinteressado fazia parte do tempo expirante do  romantismo.

Com a modernidade tinha entrado a brutalidade, o interesse pessoal, o pouco caso pelos outros que sofrem e o desprezo. Isso marcou uma grande tristeza na vida dela, por compreender que tudo  não era senão isolamento, pois todo mundo era assim e ela não teria possibilidade de encontrar quem tivesse para com ela a forma de afeto e de união de alma que ela quereria ter com tantas  pessoas.

Daí, então, uma espécie de problema axiológico: “Como é a vida? Como devo fazer? Como preciso entender as coisas?” Onde entrava uma profunda decepção e um modo muito severo,  inteiramente real e exato, de ver os outros.

Eu já tenho visto pessoas elogiarem exame médico com estas palavras: “Tal doutor fez um exame médico severíssimo.” Claro que isso é elogio, porque é para saber se está doente ou não. Não vai  fazer um exame frouxo para a doença passar desapercebida.

Se é para curar mesmo, o exame tem que ser severíssimo. Antigamente usava-se muito esta expressão: “O médico exigiu uma radiografia.” Quer dizer, os doentes não tinham muita vontade de se  deixarem radiografar, porque a radiografia às vezes dá susto, e tiravam o corpo. Não podiam, pois “o médico exigiu”, ou seja, queria dizer: “Eu não me sinto seguro e não vou carregar um  diagnóstico errado nas costas; portanto, faça uma radiografia que eu analiso e trato do seu problema, do contrário, não o farei.” Ora, Dona Lucilia fez um exame severíssimo da vida. Com seu bom  senso, sua retidão moral, ela radiografou a existência e compreendeu como era.

Daí uma grande decepção, mas também uma enorme consolação, pois se vê bem tudo quanto nela confluía ao Sagrado Coração de Jesus, que exatamente é “Fons totius consolationis”, segundo uma  das invocações da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus: Fonte de todas as consolações. É verdade que se na vida encontrarmos apenas decepções, encontraremos a Ele, que é a Fonte de toda  consolação.

Um caminho semeado de espinhos

Isso se aplica também ao apostolado. Entra-se para a vida de católico militante, renuncia-se a uma porção de potocas para se dar inteiramente ao Sol de Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo;  ter a vida transcorrida sob a doce luz de Nossa Senhora, “pulchra ut luna, electa ut sol, terribilis ut castrorum acies ordinata” – bela como a Lua, eleita como o Sol e terrível como um exército em  ordem de batalha.

Pensa-se: “Oh, que legião de amigos magníficos me aguarda lá! Todos tão bons, renunciaram a tanta coisa, o coração deles é movido, como o meu, pela graça de Deus e pelos mesmos ideais, que  maravilha!” A partir de determinado momento aparece uma decepção, depois outra, e vê-se que nem tudo é maravilha… Ora é um companheiro de apostolado que está em crise, e começa a nos  atormentar e a exercitar nossa paciência; um outro faz não sei o quê, e compreendemos que entramos num caminho como a “Via Crucis” de Nosso Senhor Jesus Cristo: sacrossanta, linda, mas cujo chão é semeado de espinhos os quais, às vezes, nos varam o corpo de lado a lado.

Quando isso acontece, a pessoa deverá dizer: “Eu conhecia esse caminho, não me deixaram ter ilusão e não tive. Agora chegou a hora.” E paga o preço. Este é o preço do Céu. Quem pensa assim     pode estar crivado de sofrimentos, mas sua alma é como um céu azul em dia límpido, pois ela está límpida, livre de desespero.

Por exemplo, nos olhos claros e serenos de Jesus moribundo não há o menor sinal de desespero. Nada!

Tranquilos e certíssimos do Céu. Ele disse ao bom ladrão: “Tu hoje estarás comigo no Paraíso.” O que quer dizer: “Eu vou estar no Paraíso, e é daqui a pouco”. As dores estão aumentando, a  liquidação de seu corpo O estraçalha, Ele compreende ter chegado o fim e que Longinus já se encontra afiando a sua lança para varar barbaramente o Coração d’Ele, símbolo do amor que Ele nos  tem. Tudo isso Jesus conhece, mas sabe também que quanto  mais esses acontecimentos avançarem, mais Ele se aproxima do Céu.

Na hora da morte, um grande Sinal da Cruz

Daí aquela palavra final, que indica todas as esperanças d’Ele: “Consummatum est”. O preço foi pago por inteiro, sofri tudo, agora é o Céu diante de Mim. Isso explica também porque uma alma como a de mamãe, tendo sofrido muito, era suave, tranquila, sem o menor sinal de desespero, de estraçalhamento, submissa à dor, mas compreendendo em toda a extensão quais eram as dores da  vida, e certa de que no fundo a vitória seria dos que sofrem.

Nada mais característico do que o momento de ela sofrer a dor da morte. Já havia amanhecido, portanto  ela poderia me mandar chamar para assistir aos últimos momentos dela, tanto mais que    eu estava no quarto ao lado. Mamãe percebia sua respiração  cada vez mais curta e sabia ter um problema do coração, próprio das pessoas na avançadíssima idade que ela alcançara, e não podia ter dúvida de que a hora do “consummatum est” estava chegando. Ela não quis nem sequer me incomodar nessa hora e por isso não me mandou chamar! Apenas quando chegou o momento, ela fez  um grande Sinal da Cruz e “efflavit spiritum”(1).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1995)

1) Do latim: expirou.

Tabernáculo do Verbo Encarnado

Tudo leva a crer que a gestação de Nosso Senhor Jesus Cristo, por ter sido perfeita, tenha durado nove meses normais. Nesse período, Maria Santíssima trazia consigo, como num tabernáculo, o Verbo Encarnado. Isso significava um processo interno de produção do Corpo d’Ele, ao qual deveria corresponder, certamente, um processo de união de alma com o Filho que Ela estava gerando: Ela Lhe dava o Corpo e Ele A revestia de graças em proporções inimagináveis.

Depois disso, Ela deveria aproveitar, com perfeitíssima fidelidade, os trinta anos da vida oculta de seu Divino Filho. Cada minuto de presença de Nosso Senhor Jesus Cristo na Sagrada Família representava imensa graça para a Virgem Maria e São José, superiormente correspondida pelos dois.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/8/1965)