Admiração: substância da vida interior

Mais do que analisar esses ou aqueles monumentos que são “luzes da Civilização Cristã”, Dr. Plinio nos descortina um panorama grandioso da Criação do mundo visível e invisível, penetrando inclusive no sobrenatural, fazendo sapienciais comentários a respeito da admiração.

 

Quando estudamos a História da Idade Média, consideramos com muita frequência os grandes personagens que nos parecem os mais característicos daquela época histórica, e temos toda a razão nisso.

Então, estuda-se Carlos Magno, São Luís IX, São Fernando de Castela, São Tomás de Aquino, São Gregório VII, de modo eminente. Mas, de fato, esses grandes personagens não esgotavam toda a Idade Média.

Tendência contínua para o mais perfeito, mais santo, mais elevado

Havia naquela época um espírito de Fé em toda a massa da população, que fazia com que qualquer pessoa, um homem da rua, tivesse uma mentalidade construída fundamentalmente de modo diverso da mentalidade do homem contemporâneo, e que se refletia em todo o teor de vida, no modo de pensar e de viver do medievo.

No que estava essa diferença de mentalidade? O homem medieval, ainda que inculto, muitas vezes analfabeto, tinha o espírito formado de tal maneira que, a propósito de qualquer coisa que encontrasse diante de si, ele procurava o mais elevado.

Imaginemos um homem modesto, um copista, um calígrafo, que tivesse sobre uma mesa pergaminho, material geral para sua arte, canivetes afiados para cortar pergaminho, e uma sineta para chamar o empregado, a mulher, os filhos. O normal da alma dele era ser feito de tal maneira que ele gostasse que todos esses objetos o levassem a considerações de um caráter mais alto.

E então, se olhando espontaneamente para a sineta ele notasse que era feia, seu espírito tinha uma forma de elevação que, quando desse acordo de si, estava com um canivete esculpindo o cabo de madeira da sineta para ficar bonitinha. Se visse um canivete para cortar pergaminho, ele normalmente se comprazia em fazer com que fosse afiado de maneira que a beleza do metal aparecesse inteiramente; e que o cabo do canivete não fosse apenas prático, mas bonito, no qual estivesse esculpida a figura de um Santo. E no alto da sineta houvesse uma cruz.

Quando ele fosse escrever uma coisa caligrafada, não se limitava a fazer letras para aquilo ser lido, mas pensava em desenhar uma iluminura: a letra inicial maiúscula bonita, com um pássaro voando, ou um Santo dentro com halo de santidade, rezando, ou com o Rosário entrelaçado nas letras “O” ou “A”.

Quer dizer, mesmo os mais humildes homens do povo em tudo manifestavam uma tendência para o mais perfeito, mais santo, mais belo, continuamente. Uma espécie de insaciabilidade não intemperante, mas uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor, o mais perfeito, debaixo de todos os pontos de vista. Isso indicava um movimento da alma de nunca se contentar com aquilo que tem, mas sempre, a propósito do que vê, procurar algo mais elevado.

Dois movimentos ascensionais

Uma tendência, portanto, para a elevação em dois sentidos: pegar um objeto e adorná-lo mais ou arranjar um objeto melhor; tomar a linguagem que está falando e torná-la aos poucos mais nobre, mais elevada. Daí o progresso da língua corrente na Idade Média, que deu origem aos grandes idiomas europeus contemporâneos: o francês, o inglês, o espanhol, o alemão, o português, o italiano. Todas essas línguas nasceram na Idade Média, de um contínuo aperfeiçoamento para uma forma mais bela, para uma expressão mais rica.

Porém, mais do que isso: uma tendência para o sobrenatural. A ideia de, por esse mesmo movimento de espírito, procurar cada vez mais o verdadeiro, o virtuoso; a noção de que acima dos seres visíveis, uns mais belos do que os outros, havia seres invisíveis, mais nobres e belos do que os visíveis. E que no alto da pirâmide dos seres invisíveis ou espirituais estava Deus Nosso Senhor, a suma Perfeição.

Então, dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas na procura da perfeição delas; e outro a fim de, através das coisas terrenas, caminhar rumo a Deus. O que significava, na alma do homem medieval, uma tendência fundamental para o elevado e uma necessidade profunda da alma de admirar, de procurar e conhecer continuamente coisas que lhe provocassem admiração.

Daí surgiram as canções de gesta, que são  a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. E também as narrações, que às vezes eram apenas lendas, a respeito da vida de Santos, mas que era a glorificação deles. A “Légende Dorée”, por exemplo, de Jacques de Voragine, tem magnificências nesse sentido. Daí, sobretudo, a admiração dos Santos com suas vidas autênticas, a hagiografia verdadeira como era ensinada e decretada pela Igreja, a arte sacra e tudo o mais. Era uma tendência para cima a fim de admirar, venerar e alcançar com o olhar, afinal, a culminância suprema de toda ordem do ser que é Deus Nosso Senhor.

Essa tendência corresponde ao estímulo contínuo que o Criador comunicou à Criação. Não julguemos que esse estado de alma é pura e simplesmente um movimento que os medievais tiveram, mas que é lícito a outros não terem. Não é verdade. Esta é a orientação de alma que, em virtude do Primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

O ponto terminal de qualquer estudo ou arte é a admiração

Vemos bem isso ao considerarmos a ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo. Por mais que o examinemos, não encontramos um ponto que não seja suscetível de um aprofundamento. E no fundo desse aprofundamento, não achamos nada que não dê numa espécie de maravilhamento. O universo foi todo construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Tomem a coisa mais terra a terra, por exemplo, a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata é uma coisa feia. Mas se um cientista for estudá-la encontra ali uma ordenação, uma estrutura, enfim, diversas razões pelas quais um verdadeiro especialista acabaria concluindo o que um artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista afirmaria que é hedionda, mas o cientista dirá: “Nesse hediondo, que maravilha!”

Assim, na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda parte encontramos, no fim de tudo, algo de admirável. O maravilhar-se, o admirar é a postura de alma que é o ponto terminal da peregrinação do homem em toda espécie de estudos ou elucubrações, em qualquer campo: artístico, científico, cultural.

Bem no centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, encontramos a ordem sobrenatural, a Igreja Católica Apostólica Romana. E nela o mesmo se dá. Na menor coisa da Igreja Católica que vamos procurar, vemos uma verdadeira maravilha.

Eu tomo o mais corrente dos exemplos, o meio que a Igreja inventou para chamar os fiéis à oração: o sino. Tão prático! Colocado no alto de uma torre, ele toca…  Mas a torre da igreja, quanta maravilha, os sinos na torre, quantas maravilhas! A Ave-Maria, que é tocada na aurora ou na hora do pôr do sol, que maravilha! O sino que repica alegre para anunciar a Missa, que maravilha! O sino que dobra finados quando o cadáver é levado para a igreja a fim de receber a bênção, que maravilha!

“Coisinhas” da vida da Igreja que são sóis

Eu estava um dia comentando com um companheiro as coisas feitas pela Igreja, as quais são tão naturais que ninguém se lembra de achá-las bonitas. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra na igreja um cadáver carregado por pessoas. Antigamente isso era muito comum: vem um caixão, a família o leva para dentro da igreja, abre o féretro, vem o padre, dá a absolvição, etc., e segue para o enterro. Todo mundo com aquele respeito: “Coitado, faleceu, mas dizem que morreu bem, está com bom aspecto; antes de falecer abençoou os filhos, recebeu os sacramentos, despediu-se da esposa!” De repente o coro canta: “Requiem æternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei”. 

É a dúvida da Igreja: “Ele deve ter pecados para pagar, pelo menos pecados veniais, e o normal é que passe por um Purgatório bem ardente. Meu Deus, dai-lhe o descanso, e que a luz perpétua brilhe para ele!” E ainda depois o coro canta: “Requiescat in pace; e embaixo todos entoam: Amen”.

Quer dizer, o modo pelo qual a Igreja convida a humanidade a reconhecer a realidade do pecado, no homem que ela está honrando assim. É um equilíbrio fantástico. Mais. Isto é feito até nas exéquias dos dignatários da Igreja, dos Bispos, Arcebispos, Cardeais, do Papa. E lá sai o “requiem æternam dona ei, Domine…”

Antigamente, quando um Papa era entronizado, levavam-no em triunfo pela Basílica de São Pedro até ser coroado, e depois ele voltava na sedia gestatoria. Um homem ao lado dele, um dignatário eclesiástico, de vez em quando acendia uma estopa e dizia: “Sanctissime pater, sicut transit gloriam mundi”; depois de alguns passos acendia outra estopa e repetia essa frase “Santíssimo padre, assim passa a glória do mundo!” Como quem diz: “Vós sois Papa, é uma grande coisa, mas o demônio da vaidade pode tomar conta de vós; Santíssimo padre, olhai como passa a glória do mundo!”

Essas “coisinhas” dentro da vida da Igreja são sóis! Esses sóis indicam que a Igreja também nos convida continuamente a uma impostação de admiração, e que esta avidez de admirar está em tudo quanto Deus fez, coroa tudo, envolve tudo, quer na ordem natural, quer na sobrenatural.

Devemos considerar, pois, que na Idade Média o fiel, isto é, qualquer um que passasse pela rua, tendo apenas a grande glória – e como é grande essa glória! – de ser batizado, dotado, portanto, de espírito católico, possuía essa tendência a procurar e a realizar, em tudo, coisas admiráveis. Ele não era invejoso; encontrando alguém admirável, se alegrava e dava graças a Deus por ter encontrado, elogiava, aplaudia e procurava torná-lo conhecido. Não era igualitário, não procurava colocar-se no nível dos outros, mas desejava que quem fosse superior a ele recebesse mais e fosse mais glorificado.

A tendência de espírito dessa época tem como corolário que, por causa da admiração, os que eram menos aprendiam dos que eram mais. Por causa disso, exercia-se uma influência das classes mais cultas e aprimoradas sobre as mais modestas. A moda descia, e era um contínuo imitar dos mais perfeitos pelos menos perfeitos. Era essa a orientação desses séculos. Quem estava embaixo procurava imitar o que havia de mais alto. E assim se constituía o governo de Deus, supremo, sobre toda a humanidade.

A base de todas as virtudes é o espírito admirativo

Estas considerações nos ajudam a fazer a crítica exata do mundo que nos rodeia. Ou o círculo social ao qual pertencemos é todo voltado para o admirável, tem o espírito admirativo, gosta de comentar e considerar sempre o mais alto, o mais perfeito, e por aí tende para Deus, ou é um espírito ateu, porque faz abstração do Criador completamente, e das coisas intermediárias que nos conduzem a Ele.

São João tem aquela frase famosa: “Quem não ama o próximo a quem vê, não poderá amar a Deus a Quem não vê” (cf. 1 Jo 4, 20). Então, também é verdade que essa posição de admiração pelas coisas terrenas retas é uma condição para admirarmos a Deus, porque o mesmo princípio pode-se aplicar: “Se vós não admirais as coisas que vedes, como podereis admirar a Deus que não vedes?” Portanto, essa tendência para a admiração, essa prontidão de espírito para respeitar, se alegrar com o que é elevado, superior, nobre, deve ser de todas as classes sociais, desde a mais modesta até a mais alta. É segundo essa tendência que devemos julgar o valor religioso de um ambiente que frequentamos.

Quando o espírito é assim, ficam criadas as condições para praticar a virtude; ama a pureza e tem horror à impureza, facilmente será honesto, etc. Se um espírito não é assim, ele pensa só nisto: “Pecar contra a castidade é muito gostoso, mas Deus proibiu e, portanto, não posso fazer”. Então ele se mantém na castidade com uma espécie de tristeza de ter que ser casto, porque não compreende a beleza da virtude que pratica. E não compreende porque não foi educado para admirar coisa alguma. Resultado, a própria santidade católica ele não admira também. Se não admira, aquilo para ele torna-se um fardo que, a qualquer hora, joga à beira do caminho.

Nós só perseveramos na virtude quando a admiramos; e só admiramos a virtude quando temos essa base de todas as virtudes que é o espírito admirativo, o qual nos leva até Deus Nosso Senhor.

Uma civilização que perdeu a beleza e a admiração torna-se ateia

Se analisarmos as construções do mundo contemporâneo, não encontramos a menor vontade de alguma coisa mais elevada. Não é por falta de dinheiro, mas por um estado de espírito. Porque na Idade Média até mesmo as habitações mais pobres eram ornadas.

Mas é tal esse estado de espírito que, se formos ascendendo na escala social, veremos que a mentalidade é a mesma. Se é verdade que há cada vez mais conforto, entretanto existe cada vez menos beleza. O “pulchrum” vai desertando do interior dos lares ricos. E essa fuga do belo e do elevado vai se generalizando cada vez mais, sobretudo nas camadas superiores da sociedade, a ponto de estarmos numa inversão: os modos de ser da classe mais baixa são imitados pelas mais altas. Castigo de quem perdeu o espírito de admiração, não compreendeu que deve respeitar-se, admirar-se e fazer-se admirar, para o bem dos outros, mas que apenas procura o gozo da vida.

Temos, então, uma civilização sem admiração, sem beleza que, porque perdeu a beleza e a admiração, é uma civilização ateia.

Isso deve ser levado muito a sério, pois para sermos autênticos contrarrevolucionários, ou fazemos a crítica das almas e dos ambientes sem admiração, ou a Revolução acaba nos devorando também. É preciso, portanto, um verdadeiro exame de consciência contínuo para mantermos em nós esse espírito de admiração.

Alguém poderia objetar:

– Dr. Plinio, não é uma coisa inventada pelo senhor? Não vejo isso ser dito em nenhum manual católico.

Eu respondo:

– Todos dizem, desde que sejam bem lidos e entendidos.

Quando a Sagrada Escritura afirma que os céus e a Terra narram a glória de Deus (cf. Sl 18), o que quer dizer isso? A glória é um objeto de admiração. Portanto, os céus e a Terra narram o que em Deus há de admirável, de glorioso. O céu e a Terra não foram feitos para conhecermos a Deus? Se narram a glória d’Ele, então devemos ter um espírito ávido de admirar a glória em tudo. É claro, evidente!

Consideremos as catedrais feitas pela Igreja, admiráveis todas elas. Por quê? Porque a Igreja quer modelar pela admiração os seus filhos. Então os vitrais, os órgãos, a Liturgia, a música sacra, tudo tende para a admiração. A alma verdadeiramente católica deve procurar o admirável em tudo, ainda que seja uma pessoa de uma cultura e de uma inteligência muito comuns, sua alma deve voltar-se para isso.

Estamos numa ilha porque em torno de nós só há abismos

Por vezes, noto nas pessoas com quem convivo que algo disso há no espírito, mas coexistindo com certos hábitos mentais por onde elas gostam do vulgar, banal, da chanchada, do desordenado, e acham que isso é o normal porque em todas as épocas do mundo os homens foram assim. E que ser diferente é vivermos num píncaro quase inumano, de tão alto. É o contrário. O mundo atual está no fundo de um abismo, de um precipício de vulgaridade, de feiura, de imoralidade e de erro; e nós estamos numa ilha que é um monumento porque em torno de nós só há abismos. Não é que essa nossa posição seja extraordinariamente alta; mas porque o mundo desceu muito e Nossa Senhora nos concedeu a graça de não descermos tanto, parecemos muito alto. Mas esse é o rés do chão para o Reino de Maria.

Não devemos, portanto, ter a ideia de que a graça nos pede uma elevação de espírito quase impossível, e que somos mais ou menos como um macaco que consegue ficar de pé sobre duas patas durante algum tempo, mas depois já vai voltando para o chão e andando como quadrúpede. Não é essa a nossa alma. O normal é estarmos eretos na posição de admiração e voltados para o Céu, procurando admirar tudo quanto é admirável e execrar tudo quanto é execrável. Eis a posição verdadeira, normal de nossa alma. Isso não é extraordinário. Houve séculos e séculos em que a normalidade dos homens foi essa.

O estado de espírito oposto começou a se infiltrar no fim da Idade Média; na Revolução Francesa começou a dominar; no Comunismo atingiu o seu paroxismo.

O que acabo de afirmar é um exercício de transcendência que deve ser comum, corrente na vida do homem, e corresponde à prática da presença de Deus de que fala Dom Chautard. Ver Deus presente em tudo é isto. Esta é a substância da vida interior, de acordo com a Doutrina Católica.

Deixo aqui este apelo para que levantemos nossas almas e corações, e mudemos o nosso modo de ser.

Uma senhora que se encantava vendo as sombras de uma árvore

Conheci o caso de uma senhora que morava numa casa em São Paulo, perto da qual crescia uma árvore comum, mas frondosa e cuja copa coincidia com a janela dessa residência. À noite, por causa dos lampadários da iluminação pública, penetrava a luz de fora em um dos cômodos e o enchia com mil sombras daquela folhagem. Numa ocasião, foi necessário serrar essa árvore e derrubá-la, por razões de segurança. Quando a senhora entrou e viu que a árvore estava serrada, perguntou:

– Mas como, o que aconteceu com a árvore?

– Foi preciso serrar – responderam.

Para não a assustar, não se mencionou o problema de segurança. E ela disse:

– Vocês tiveram a crueldade de acabar com as sombras lindíssimas que enchiam esta sala durante a noite?!

Via-se que era um verdadeiro golpe para ela que, com sua cultura e sua inteligência comuns de uma boa dona de casa, ficava cheia de admiração por aquilo, reportando a Deus Nosso Senhor.

Coisa tão comum: uma árvore, um revérbero de iluminação elétrica e uma sala apagada. Só não era comum a alma que tão intensamente sentia isso.

Isso é um dos mil exemplos que se poderia contar, tirados da vida normal das pessoas da Civilização Cristã, e que indicam bem qual é a mentalidade católica tendente a ver o maravilhoso em tudo, porque ele existe por toda parte, é só querer encontrá-lo.       v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

Conhecendo e amando Nosso Senhor

Desde criança, analisando a fisionomia de Nosso Senhor representada em belas imagens, Dr. Plinio discernia sua Alma e procurava compor como deveria ser a mentalidade correspondente àquele semblante. Ao tomar conhecimento dos episódios narrados nos Evangelhos, compreendeu que eles condiziam inteiramente com aquela mentalidade.

 

Amor e compreensão

Ao considerar as narrações dos Evangelhos, percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham convívio com Nosso Senhor — excetuando naturalmente Nossa Senhora — não haviam entendido bem o Redentor.

Com o curso do tempo, depois dos primeiros equívocos, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito de d’Ele. Mas nota-se que eles não tinham uma ideia exata de como era a Pessoa de Nosso Senhor.

Essa compreensão era de uma importância transcendental para eles O amarem como deviam ter amado. Em contrapartida, se tivessem amado como deviam, teriam compreendido tanto quanto podiam. Ora, eles compreenderam menos do que podiam, e também não O amaram o quanto deviam. Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor. O resultado é que custou para eles reconhecê-Lo como Deus.

Nosso Senhor perguntou-lhes: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16, 15). São Pedro disse que Ele era o Filho de Deus. Então Nosso Senhor manifestou seu agrado com São Pedro, constituindo-o fundamento da Igreja e estabelecendo o Papado. Pelo que me parece, nessa ocasião ele reconheceram a Nosso Senhor Jesus Cristo como Filho de Deus. Mas antes…

A voz, os olhares, os gestos de Nosso Senhor

Quem é Nosso Senhor Jesus Cristo?

Ele forma com o Verbo de Deus uma só Pessoa. Não há duas pessoas, a do homem e a do Verbo de Deus, ligadas de algum modo. Não é isso. É uma só Pessoa, que tem duas naturezas: a divina e a humana.

Há, portanto, n’Ele uma verdadeira Alma, um verdadeiro Corpo, unidos entre si como o estão a alma e o corpo em cada um de nós. Mas essa Alma e esse Corpo estão unidos hipostaticamente à natureza divina, constituindo uma só Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Portanto, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus quem falava; cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus quem olhava; cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era reflexo da natureza divina na natureza humana o mais perfeito que se possa imaginar.

Manifestava, assim, uma santidade, uma perfeição, uma superioridade da qual não podemos ter ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus.

Se formássemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… que espelho eram da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco isso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver equívocos, amando-O como Ele não é. Porque se amarmos Nosso Senhor como Ele não é, acabaríamos um pouco amando quem Ele não é. Todos compreendemos o perigo disso.

Esse é um trabalho muito delicado e, se não fosse com a ajuda da graça, não se faria na alma de ninguém. Porque é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Além disso, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo extraordinário para recompor. Naturalmente não se pode exigir isso de uma pessoa como condição da salvação.

Analisando uma imagem do Sagrado Coração de Jesus

Então, por causa disso, tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma primeira noção d’Ele, que vai se aprimorando com o tempo.

Por exemplo, posso me lembrar de como essa noção foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, tomei como ponto de partida que a fisionomia habitualmente apresentada pelas imagens de Nosso Senhor era fiel. Aquele era o rosto que Ele teve na vida terrena. E, portanto, aquela fisionomia já queria dizer alguma coisa.

Lembro-me de que, dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava, por longos períodos, a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus que há no oratório do quarto de mamãe.

Longa, atenta e meticulosamente — quanto possa caber na mente de uma criança — eu a examinava. E isso condizia com as imagens existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, num altar lateral e no teto também, e formava uma resultante, uma espécie de figura central correspondente ao essencial dessas várias imagens, e era como eu imaginava, mais ou menos, a Ele.

Ao tomar conhecimento dos episódios da vida de Nosso Senhor, eu procurava me perguntar se condiziam com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas tomavam um realce extraordinário, imaginando os predicados daquele Varão, com aquela fisionomia e aquela atitude. Aquele rosto explicava o episódio, o episódio explicava o rosto. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Depois eu procurava ver também na Igreja: dado que Ele possuía tal fisionomia correspondente a tal personalidade, se Ele tivesse que fazer a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E eu chegava à conclusão de que sim, era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde uma confirmação da Fé originária que recebi, pela bondade de Nossa Senhora, logo ao ser batizado. Com o Batismo tornamo-nos templos do Espírito Santo, a graça habita em nós. Isso ajuda enormemente para a formação religiosa vista como um todo e, por sua vez, favorece o amor, o qual auxilia a conhecer melhor.

Fusão das virtudes opostas, formando uma harmonia extraordinária

Antes de tudo, a impressão causada em mim por Nosso Senhor, ao ver sua humanidade santíssima, é a de estar Ele envolto em cogitações enormemente superiores a tudo quanto se possa imaginar, de uma elevação sem proporção com nada. Entretanto, sem poder chegar com o pensamento, nem de longe, até onde Ele chegava, alguma luz dessas cogitações se fazia brilhar n’Ele, e eu como que via a Alma de Nosso Senhor inundada dessas luzes das quais Ele estava repleto.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas vê do lado de fora que ela está com as lâmpadas acesas em seu interior. Ele olha, portanto, os vitrais iluminados, aproxima-se e ouve a música, avizinha-se ainda mais e o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde ele não entra. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza. Assim seríamos nós — ao menos eu — com Ele.

Percebia dessa forma qualquer coisa de uma elevação prodigiosa; porém, desde o primeiro momento, pelo ponto mais profundo pelo qual eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

Por exemplo, uma força incomparável e, ao mesmo tempo, uma bondade sem par; uma severidade inquebrantável e um perdão de uma doçura infinita; um poder de tranquilizar extraordinário aliado uma capacidade insuperável de mover para a luta; uma transcendência divina com a possibilidade de descer à última pessoa, e até a um cachorrinho, e fazer um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele Se alegraria com isso.

Tudo isso indica a superioridade e a imensidade maravilhosas de Nosso Senhor, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau sumo, possam caber n’Ele com tanta harmonia.

Nessa harmonia estaria exatamente o que melhor o meu olhar podia captar dos reflexos da graça divina transparecendo na natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Com isso e por isso, também muita gravidade e uma seriedade enorme! Seria impossível imaginá-Lo falando uma coisa banal ou mesmo dizendo algo que não tivesse por detrás uma razão infinitamente elevada e perfeita.

Variedades do modo de ser do Redentor

Mesmo quando Ele dormia, seu sono era de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, com tal poder de manifestação de toda sua santidade, que se uma pessoa, entendendo quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Ele possuía a natureza humana na sua perfeição e inundada pela união hipostática, com favores divinos insondáveis. Portanto, Ele olhando para cada um de nós conhecia inteiramente como era, e sabia como tratar. De tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentia vista até o fundo da alma nos lados ruins ou nos aspectos bons.

Os lados ruins, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado. Os aspectos bons, com uma atração tal que a pessoa desejaria multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de início!

No entanto, por uma bondosa condescendência para com os homens, Ele não olhava inteiramente nem de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida de Nosso Senhor são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este, aquele ou aquele outro episódio quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Um brado majestoso que fende a sepultura e ressuscita Lázaro

Por exemplo, durante toda minha vida me impressionou a majestade d’Ele diante do sepulcro de Lázaro. Em primeiro lugar, a bondade com a qual Ele chorou junto ao sepulcro porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43), com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura. E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Marta: “Senhor, se tivésseis vindo antes, meu irmão não teria morrido…” (cf. Jo 11, 21). Parece estar insinuado que, pela relação de amizade existente entre os dois, Jesus tinha a obrigação de evitar a morte de Lázaro. E talvez tivesse mesmo… Entretanto, Ele fez algo melhor do que salvá-lo da morte: tirou-o da morte!

Naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Marta ligeiramente tisnado de culpa… E como Nosso Senhor Se portou nessa ocasião, em que Ele não deu a ela nenhuma satisfação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura dela, chorando.

Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Vós chorais a morte que poderíeis ter evitado? Que pranto é este?

Ele, então, faz Lázaro ressuscitar, deixando Marta extasiada! Essas coisas não comportam comentário.

Depois, a cena dos fariseus dizendo que Ele precisava ser morto (cf. Jo 11, 50-53). A primeira vez em que eles falaram em matar Jesus foi quando viram Lázaro ser ressuscitado. E Ele conhecia tudo isso.

Podemos imaginar também Nosso Senhor vendo Marta, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Deverias ter compreendido que não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.” Em seguida, passar perto dos fariseus e lançar um olhar… Que olhar! Não se consegue imaginar; podemos apenas ter vislumbres disso.

Podemos considerá-Lo em outra circunstância, indo a Betânia descansar. Então imaginá-Lo afável, repousando no convívio com Marta, Maria, Lázaro, os Apóstolos, Nossa Senhora, na vida cotidiana da residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade. Como tudo isso devia consolá-Lo de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude.

Essas várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, deixam-me especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1984)

Misercordes oculos ad nos converte

Quando menino, aos doze anos de idade, diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada na Igreja  do Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio foi “contemplado” pelo misericordioso e compassivo olhar de Maria Santíssima.  A graça recebida nessa ocasião marcou profundamente sua vida.

 

Procurando fazer melhor explicitação a respeito de Nossa Senhora, recentemente encontrei uma figura que, embora muito simples, exprime bem meu pensamento. Não sei se ela, em Geometria, é inteiramente exata, pois, como todos sabem, meus conhecimentos nessa matéria são os mais sumários e desinteressados possíveis.

Imaginemos um poliedro, um corpo com várias faces — esta é a ideia muito primitiva que tenho de um poliedro —, bem construído. Se suas faces são triangulares, olhando-se para uma delas, se vê de certo modo as outras, pois todas têm a forma de um triângulo.

Assim é a Mãe de Deus, cuja perfeição é supereminente, e a Quem a Igreja vota o culto de hiperdulia. Considerando-se uma de suas altíssimas qualidades, percebe-se que Ela tem igualmente todas as outras virtudes de que uma criatura humana seja capaz. Conhecida, por exemplo, sua fé, se entende sua esperança e sua caridade. Vendo-se um lado do poliedro, se intui como são todos os outros, com suas dimensões. Se, conforme a Geometria, o poliedro não é exatamente assim, essa figura serve ao menos como metáfora.

Compaixão de Nossa Senhora

O que mais me tocou, primeiramente, em Nossa Senhora não foi tanto sua santidade virginal e régia, mas a compaixão com que Ela olha para quem não é santo, atendendo com pena e solícita em dar, em suma, uma misericórdia que tem as mesmas dimensões das outras qualidades. Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca ter um suspiro de cansaço, de extenuação, de impaciência, mas sempre disposta não só a repetir sua bondade, mas a superar-se a Si própria. De maneira que feita tal misericórdia, embora mal correspondida, vem outra maior. Por assim dizer, nossos abismos vão atraindo sua luz. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as graças por Ela obtidas se prolongam e se iluminam em nossa direção.

“Um olhar que me deixou calmo para a vida inteira”

Comparemos o miosótis com o sol. Entre nós e a Santíssima Virgem a diferença transcende ainda mais. Embora seja Ela mera criatura, sua ação poderia ser comparada com o efeito do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, que O renegou durante a Paixão e o galo cantou. Quando o Redentor o fitou, ele se sentiu tomado por inteiro. O Apóstolo havia sido testemunha direta ou tivera repercussão imediata de tudo quanto os Evangelhos narram, e conhecia Nosso Senhor perfeitamente. Naquele olhar ele recebeu uma comunicação de tudo quanto sabia, mas com tal acento e esplendor, que derrubou sua ingratidão: “Et flevit amare — E chorou amargamente” (Lc 22, 62). A grande contrição de Pedro é um dos fatos mais bonitos da história dos santos.

Quando menino, tendo ido à Igreja do Coração de Jesus e, pela primeira vez, atinado com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, não tive nenhuma visão, êxtase ou revelação. Mas me senti como se a imagem me olhasse, e tive conhecimento como que pessoal dessa bondade insondável que me envolvia totalmente. Ainda que eu quisesse fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou Eu!”, fazendo-me entender a profundidade dessa misericórdia.

Em primeiro lugar, fiquei calmo para a vida inteira. De fato, por maiores que sejam as dificuldades, se estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar; porque no fundo, para quem não é brutalmente insensível, mas se volta à Virgem Maria, Ela acaba arranjando todas as coisas. E, notem bem, uma das coisas que — dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto eu tinha bem claro mais me enlevaram, foi que isso não era um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em querer tratar-me como um privilegiado; porém, tive cognição do contrário: Para todas as pessoas que existiram e existem, todos os pecadores que estão nas ruas, nas casas, nos bondes, nos automóveis, etc., Ela é exatamente assim. Porém, muitos A rejeitam.

Tenho muita pena quando vejo alguém — um “enjolras”(1), por exemplo — nervoso e com problemas; penso: “Por que não posso comunicar-lhe um olhar como o que recebi de Nossa Senhora? Ele ficaria calmo para a vida inteira.”

Não consigo exprimir completamente como foi essa graça. Quando rezo o trecho do Magnificat “et misericórdia eius a progenie in progenies timentibus eum”, quer dizer, a misericórdia de Deus vai de geração em geração a todos os que O temem, sempre pensei: “É bem verdade, e por meio de Maria Santíssima. Ela é a misericórdia insaciável, que não acaba, mas se multiplica solícita, bondosa, tomando nossa dimensão e, por compaixão, faz-se até menor do que nós para nos acolher”.

Muitos pensam que eu sou uma fera, não tenho pena dos outros. Eles não têm ideia do que é essa cognição da misericórdia de Nossa Senhora, a qual penetrou em minha alma.

Misericórdia, pureza, fortaleza e sabedoria de Nossa Senhora

Considerando essa misericórdia, vem-nos à ideia a virginalidade de Maria Santíssima, porque essas noções, por assim dizer, se contêm umas nas outras. Ela é pura, com um grau de pureza indizível. Conhecida a misericórdia se conhece a pureza; é novamente a figura do poliedro. Qualquer castidade que se possa conceber não se compara à pureza d’Ela, toda feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um jorro de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém, um “élan” inteiro, de uma força, integridade, um desejo de Absoluto, que não se pode medir.

A pureza de Nossa Senhora, comparada à de outras pessoas, é como a alvura da neve em relação ao carvão.

E, na perspectiva em que me coloco, a pureza traz consigo a ideia da fortaleza, a qual não significa que nada quebra. É algo diferente: ante o que a Mãe de Deus, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte pela força da vontade d’Ela; é um ímpeto, uma resolução, uma ausência de possibilidade de resistência de qualquer pessoa ou coisa que seja, uma soberania, um domínio numa tal dimensão que não há palavras humanas para exprimi-la.

Hoje se fala de obuses e outras armas. Na realidade, são simples caranguejolas inofensivas e ridículas em comparação com um ato de vontade, uma preferência da Santíssima Virgem.

Por sua vez, essa fortaleza, misericórdia e pureza trazem uma ideia de sua sabedoria lúcida, adamantina, dispositiva de todas as coisas, nunca tendo qualquer dúvida, mas somente certezas. Quer dizer, Ela conhece todas as coisas, suas inter-relações, e penetra até as entranhas de todo ser. O universo é tão grande! Pelo fato de Nossa Senhora compreender a ordem do universo e o seu ponto ápice, mais uma vez vislumbramos qual é a imensidade de sua pureza, fortaleza e misericórdia.

Essas são as virtudes que, de momento, mais me chamam a atenção quando me lembro do olhar de Nossa Senhora Auxiliadora na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, Eu te quero”— “Minha Mãe, eu sou vosso”

Poder-se-ia perguntar-me: “O senhor recebeu esse olhar quando menino, com onze, doze anos; e nunca mais houve algo semelhante?”

Essa graça me foi dada de tal maneira que ficou como um sol para a vida inteira. O fato parece ter ocorrido ontem. A Santíssima Virgem como que me disse: “Meu filho, Eu te quero”. E eu declarei: “Minha Mãe, eu sou vosso”.

Alguém indagaria: “Mas nessas considerações onde o senhor coloca a Nosso Senhor Jesus Cristo?” Respondo: “Em tudo!” É a ideia que São Luís Grignion desenvolve muito: Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está o Redentor, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Imaginem Nossa Senhora no período em que, no seu corpo virginal, estava se formando o Menino Jesus, por ação do Espírito Santo, e que alguém quisesse adorar ao Messias, abstraindo d’Ela. Seria uma estupidez, não teria sentido!

Sei que estarei mais unido a Nosso Senhor quanto mais estiver unido a Maria Santíssima.

Naturalmente, daí decorre que minha devoção a Ele passa por Ela. Creio que mesmo nas ocasiões de maior cansaço — espero, pelo menos —, quando faço referência à adoração devida a Nosso Senhor, logo depois falo de sua Mãe Virginal. É sistemático.

Dir-se-á: “Mas muitas vezes o senhor fala sobre Ela sem se referir a Ele.” Sim, porque Ele é infinitamente maior do que Ela. Assim, falando d’Ela, Ele está implicitamente contido. Mas, tratando a respeito d’Ele, Ela não está implicitamente contida. Por isso, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, se Nossa Senhora me ajudar, farei isto até morrer. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)

 

1) Palavra afetuosa utilizada por Dr. Plinio para designar seus jovens discípulos, surgidos aproximadamente a partir de 1970. Havia neles acentuado grau de debilidade, se comparados com aqueles que os antecederam, os da “geração nova” (cf. “Dr. Plinio” número 81, p. 17).

 

Arte gótica, a expressão de desejo do Céu

A Igreja, nascida do costado de Cristo, produziu belezas feéricas. Entre elas estão as catedrais góticas, tão características da Idade Média. Ao analisar tais edifícios, Dr. Plinio, grande admirador da Cristandade, faz uma bela consideração: o gótico terá representado por inteiro o espírito católico?

Quando se observa o gótico em suas últimas manifestações, antes da Renascença, tem-se a impressão singular de ter ele chegado ao fim do caminho e atingido tal perfeição, que não se pode imaginar algo mais perfeito nessa linha. Uma nova linha estava para aparecer, não contrária à anterior, mas que seria um salto para cima.

Isso corresponde à história da humanidade. O espírito dos homens havia chegado a um ponto tal que estava para surgir algum dado inteiramente novo, o qual daria um impulso dentro da linha do antigo. É o que se chama tradição. Entretanto, apareceu o Renascimento.

Não é excessivo conjeturar que se a humanidade tivesse sido fiel às graças da Idade Média, teria começado a nascer algo que iria rumo ao Reino de Maria. Porém, com alguma coisa de novo que não se sabe o que é.

Analisemos o gótico e depois vejamos o que dele poderia florescer, a título de conjetura.

A meu ver, esse estilo, mesmo em sua fase inicial, refletia caracteristicamente os seguintes traços do espírito católico europeu da Idade Média: força tendente à perenidade, seriedade e recolhimento.

O gótico é forte e, por essa razão, tende ao perene. Aquelas construções exprimem um possante desejo de durar sempre e de nunca serem substituídas.

Ele tem, por outro lado, uma seriedade, a qual faz com que o interior dos edifícios góticos tenha um recolhimento e uma compostura próprios a quem é muito sério. A luz que neles entra é tamisada por um colorido muito bonito.

Por exemplo, a luz que penetra através dos vitrais da Catedral de Bourges (França) não é a comum, mas de um dia ideal, causando a impressão de um sonho.

É um sonho? Não. A alma, à força de desejar o Céu, conjetura, tanto quanto pode, a respeito de como ele seria. E penetrando numa igreja toda feita de vitrais da Idade Média, tem-se a impressão de que se entra no Paraíso.

Ao mesmo tempo, o gótico é delicado. Considerem aquelas colunas formidáveis das catedrais. Os medievais arranjaram um jeito de trabalhá-las, de maneira a atenuar o que nelas poderia haver de impressão de força quase brutal: esculpiram um feixe de coluninhas que se amarravam umas às outras em torno de uma só coluna. Esta sustenta o teto com muita firmeza, mas dá a sensação de leveza devido às pseudo coluninhas em que se decompõe.

A coluna gótica do lado interior de um castelo, e mesmo de uma catedral, causa a impressão de combate. Trabalhada de maneira a dar ilusão de um feixe de coluninhas, a coluna gótica de grande estilo tem qualquer coisa de tranquilo, sem agitação, e nem a tensão da luta. Ela representa muito mais o guerreiro no seu repouso e na sua oração, do que batalhando.

E a guerra medieval, quando justa, sempre visava a paz, uma solução, uma concórdia equilibrada. E a ogiva exprime isso muito bem. São as duas partes, que podemos imaginar opostas, as quais se resolvem numa posição de equilíbrio, ou seja, numa reconciliação entre elas. Por isso não é raro que no ponto onde as ogivas se encontram haja florões ou adornos, como que festejando a paz.

Também está presente no gótico uma alta noção do dever. Certas colunatas simbolizam um caminho estreito, sério, reto e, sobretudo, elevado, que conduz a uma grande solução: o Céu.

O caminho do Céu não é largo, folgado, espaçoso, agradável, mas apertado, difícil, e está sempre à beira de precipícios, de problemas e outras dificuldades. É grandioso, metódico, do qual, porém, não se pode afastar um passo, porque se perde de vista a meta e se transvia. Isto corresponde à ideia que temos da nossa própria existência, enquanto vivida à luz dos Mandamentos.

Quer dizer, se nos sentirmos opressos pela proximidade de colunas de um lado e doutro, encontraremos os grandes espaços olhando para o alto. Quando a vida estiver apertada, olhemos para o Céu. Assim deve ser a alma do católico.

As almas que fizeram o gótico, tão entusiasmadas e enlevadas com a força, tinham em si muitos outros tesouros.

Depois de terem explicitado em pedra seu desejo e sua afirmação de fortaleza, o mesmo espírito que as animava começou a sorrir e manifestar a sua própria doçura, como quem continua a fazer, no granito, a descrição de suas almas.

Surgem, então, adornos que, sem atraiçoar a austeridade da coluna, transformam a catedral quase num sonho. Abole-se o granito e transforma-se tudo em cristal.

Encontramos esse sonho expresso na Sainte Chapelle, que utiliza a pedra apenas o necessário para suportar o teto e servir de encaixe aos vitrais. Mas o espírito que concebeu a Sainte Chapelle, se pudesse fazer um edifício todo de cristal, sentir-se-ia realizado.

Não devemos ver nisto uma mudança do espírito gótico, porque é algo que estava na alma do homem medieval, desde o início. Assim como uma pessoa que tem uma arca com uma série de tesouros e os vai tirando um por um para mostrá-los, os medievais eram profundamente católicos, e em suas almas havia muitas riquezas em diversas direções.

Eles foram lentamente exibindo, manifestando essas riquezas de maneira que, quando se chega ao pináculo do gótico, parece que nada mais faltava. Dir-se-ia que foi feita a descrição completa de uma alma profunda e verdadeiramente católica.

Entretanto, posso fazer a esse respeito conjeturas, sem o caráter de certeza, tendo apenas o alcance de uma probabilidade. E é nessa perspectiva que considero o assunto.

Que é o espírito gótico?

No fundo, é o espírito da Igreja, inesgotável, imenso, fabuloso. É o próprio Divino Espírito Santo que se manifesta. O espírito da Igreja nunca será inteiramente expresso, pois sempre tem riquezas novas. E nós somente o conheceremos no total quando estivermos no Céu, onde a Igreja militante desemboca na Igreja gloriosa. Podemos afirmar que no gótico havia muitas outras coisas a manifestar, porque ainda não era o espírito católico integral, mas apenas alguns de seus traços.

Por mais que o gótico tenha sido integralmente católico, o espírito católico integral não estava inteiramente representado no gótico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/7/1989)

Quando o sol e o vitral se tornam um

Sempre me comprouve pensar que a Santa Igreja, e com ela a palavra “católico”, é como um vitral sobre o qual incide a luz da História e esta vai fazendo o percurso do astro soberano. O vitral se reveste de um aspecto na madrugada, na iminência da aurora. Em seguida, adquire outra aparência na manhã, outra ao meio-dia, e assim por diante, nas várias fases do dia até o entardecer. E ainda manifesta extrema beleza quando é tocado pelas derradeiras fulgurações do sol, e vemos suas cores brilharem discretamente, como quem nos diz: “Meu filho, até amanhã. Eu voltarei a reluzir…”

Assim, cada época histórica tem o seu modo de contemplar a Igreja, de senti-la, sem contradizer nem se opor à visualização da época anterior. Como, por exemplo, no vitral o aspecto do meio-dia não contradiz o matutino nem o vespertino, mas é um desdobrar de sucessivas facetas que se completam. Para a Esposa Mística de Cristo, essa sucessão caminhará rumo à plenitude, alcançada no fim dos tempos, quando as Igrejas militante e penitente se unirão à gloriosa no Céu. Será o maior, perene e esplendoroso reluzimento do vitral, o momento em que o sol nele se encostou e se tornaram um só!

Essa consideração suscita a pergunta: como terão as várias épocas do passado admirado a Igreja? Em especial, como foi ela vista pela Idade Média?

Ressalvando que essa análise não pretende estabelecer que as almas piedosas de outras eras históricas compreendiam menos bem a Igreja do que as medievais, creio haverem estas ter dado início a uma forma de conceber a Santa Igreja pela qual passou a ser considerada não só como espelho da luz eterna na ordem espiritual, mas também no campo temporal. Quer dizer, tomava-se consciência dessa prerrogativa que Ela sempre possuiu, e desse modo uma certa relação entre as duas ordens ia nascendo de maneira a formar uma civilização inteiramente filha da Igreja, por esta batizada e adornada.

Porém, uma coisa é a joia que uma senhora recebe de presente e usa. Outra, a joia que ela encomenda de acordo com os seus sonhos.

As civilizações grega, romana e outras em que transcorreu a existência da Igreja, não foram as que Ela desenhou para si. Foram civilizações constituídas pela História as quais a Igreja bondosa e maternalmente adotou, abençoou e utilizou como mãe para regalo e benefício desses povos.

Não assim com a sociedade medieval. Quando se deu a decadência e o esfacelamento do Império Romano do Ocidente, a Igreja recomeçou a construir o mundo europeu, aproveitando alguns brilhantes da joia antiga para uma montagem nova onde Ela, por assim dizer, encomendou ao Pai Celeste outro tesouro de brilhantes, incrustando-os aqui, lá e acolá, fazendo florescer a civilização especificamente cristã da Idade Média.

Assim, a Igreja e a cristandade constituíam entre si mais ou menos como dois espelhos paralelos tendo no centro o mesmo foco de luz: multiplicavam, portanto, essa luz, um no outro de maneira indefinida. Espelho imensamente maior, a Igreja; o menor, a ordem temporal, mas as duas ordens se iluminando e irradiando uma na outra, dando origem a tantas maravilhas na arte, na cultura, na política, etc., admiradas até os dias de hoje.

Nesse sentido, poder-se-ia avolumar os exemplos que ilustram tal paralelismo entre as ordens espiritual e temporal na Idade Média. Limito-me, entretanto, a evocar aqui apenas um: as torres.

Pensemos na torre de uma igreja e na de um castelo. Como são congêneres, como é fácil transformar uma torre de castelo em torre de igreja! De outro lado, como a torre da igreja prepara a vista para compreender e amar a torre do castelo! Numa palavra, como o castelo e a igreja são irmãos!

De fato, no fundo todo castelo é um escrínio que contém uma capela, e nesta, a parte mais sagrada é o tabernáculo. Nesse sacrário, o objeto mais valioso é o cibório no qual se encerram as espécies eucarísticas, ou seja, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo realmente presente em corpo, sangue, alma e divindade.

É uma das mais belas conjugações de temporal e espiritual, de sol e vitral que se osculam, se irmanam e se tornam um só.

Plinio Corrêa de Oliveira

O ideal expresso em beleza

A alma alemã, quando não influenciada por certas tendências contrárias ao espírito católico, é meditativa, idealista, voltada para a constante procura de uma realidade superior, invisível e metafísica. Esse apelo de alma germânico encontra-se, bastante deteriorado, nas composições de um Wagner, por exemplo. E se acha, em todo o seu esplendor, em toda a sua ousadia de voo, na Catedral de Colônia.

À primeira vista, dir-se-ia apenas duas torres, ligadas por um pequeno corpo central de edifício, espremido, quase como um belo hífen que as une.

As torres se lançam vertiginosamente para o alto, concebidas na ideia de levar o espírito para cima e, nessa vigorosa ascensão parecem emular entre si, imergindo cada qual num dos olhos do observador, atraindo-os a extraordinárias alturas. Tanto são leves, esguias, sem abandonar a característica robustez alemã.

Sozinhas, essas torres perderiam algo de sua formosura, ficariam desproporcionadas, claudicantes. Pelo contrário, juntas, harmonizam-se, apóiam-se para subir. A elevação extrema a que chegam é compensada pela base, e por um ponto invisível de equilíbrio — mais uma vez: metafísico — que paira nos ares, elo de junção insuspeitado das duas torres, que o espírito idealiza e o olhar não percebe. Este é o ponto de união no mais alto dos altos das duas torres da Catedral de Colônia.

À medida que se erguem, elas se afilam, se adelgaçam, acentuando a extensão da altura, como se se perdessem nas nuvens. O próprio rendilhado de pedras em que terminam as torres reforçam essa idéia de irreal: já meio céu, meio terra, meio obra do homem, meio obra de Deus, dentro da ilusão de ótica de quem as contempla do solo. As últimas pontas de alvenaria, não conseguindo ir mais longe, morrem sobre si mesmas com elegância e distinção. Tudo é feito para se afinar, afinar, afinar, subir…

Suas ogivas também crescem para o firmamento, e tendem a disputar com as torres a primazia nas alturas.

Ao contrário da fantasia oriental, patente nos minaretes das mesquitas, tão frágeis e delgados, a Catedral de Colônia é a expressão da fantasia ocidental: um mundo de pedras, sólida, com sua base forte, possante, cravada no chão, maravilhosamente compacta até o momento em que as duas torres se separam e começam seu voo.

É a manifestação do gênio da Idade Média que se mostra nessas belezas, lavorado de forma idealista, em busca dos esplendores indizivelmente magníficos que nos aguardam no Paraíso.

A medula da vida espiritual

Quando presidente da Ação Católica de São Paulo, nos idos de 1940, Dr. Plinio procurou atender — conforme ele próprio afirmava — à primeira obrigação de um dirigente de associação religiosa, isto é, o cuidado pela santificação de seus membros. Nesse intuito, redigiu um memorando contendo judiciosas orientações de vida espiritual, das quais transcrevemos a seguir alguns excertos.

 

O  homem, criado por Deus no estado de justiça original, foi enriquecido da graça santificante e de outros valiosos dons que davam à sua natureza uma harmonia tal que ele via claramente a vontade divina e a cumpria com toda a facilidade, segundo apenas os seus pendores espontâneos.

O pecado original quebrou a harmonia interior do homem

A lei natural — inscrita por Deus na consciência de cada um, como manifestação da vontade d’Ele — era perfeitamente legível. Por isso nossos primeiros pais tinham as potências da alma em perfeita ordem, de tal forma esclarecida pela revelação, que a sensibilidade estava subordinada inteiramente à vontade, e esta à inteligência; a prática da lei, em vez de penosa era uma fonte de felicidade, pois tudo cooperava no homem para que ele atingisse plenamente o seu fim.

Entretanto, pelo pecado original foi quebrada esta harmonia tão maravilhosa. Como castigo da rebelião, retirou Deus o poder absoluto da inteligência sobre a vontade, e de ambas sobre a sensibilidade. Assim o homem se viu em luta contra a rebelião ora brutal das paixões, ora insidiosa das más inclinações, tornando‑se tantas vezes escravo de umas e de outras. Igualmente perdeu o domínio absoluto sobre a natureza criada, de que fora o rei, e os seres animados e inanimados que a compõem revoltaram‑se contra ele. Quebrou-se, desse modo, aquela harmonia resultante da subordinação do mundo, com suas forças e virtualidades, à inteligência superior do homem. A lei natural perdeu, na consciência humana, a primitiva nitidez; a inteligência ficou alterada em sua lucidez cristalina de outrora; e a vontade desviou‑se daquela retidão admirável que a inclinava sempre para o verdadeiro bem. Sobretudo, perdeu o homem a graça e a amizade de Deus, e o Céu se fechou para ele.

Com o pecado entra a contradição no mundo

O pecado original, pela contradição abominável que opunha à majestade divina, fez entrar a contradição no mundo. O tédio, o cuidado, a dor, a angústia e a morte se desdobraram sobre a Terra; e o inferno se abriu, como suprema contradição, para triturar, sem aniquilar, os prevaricadores, que se tornaram filhos da contradição do pecado.

Por outro lado, o desejo de felicidade, que é tão radical no homem que seria mais fácil destruir o ser humano do que extirpá‑lo, este desejo voltou‑se com todo o seu peso para muitas coisas que não podem dar a felicidade. E os caminhos que conduzem à bem‑aventurança, tão sequiosamente almejada pelo coração humano, tornaram‑se espinhosos e repugnantes, de tal forma que “todo o que procurar salvar a sua vida, perdê‑la‑á; e todo o que a perder, salva‑la‑á” (Lc 17, 33).

A vida espiritual, esforço para nos unir à vontade divina

Nesta situação aflitiva, valeu‑lhe a misericórdia de Deus, que não poupou o seu próprio Filho, imolando‑O na Cruz pela nossa salvação. Entretanto, a graça, que tão abundantemente defluiu do Calvário, não alterou o quadro das conseqüências do pecado original no homem, senão neste ponto: que valorizou e tornou viável o esforço humano em vista da recomposição da harmonia interior e da subordinação da sua vontade à  divina, e, por aí, reconquistarmos o Céu.

Ora, estando comprometidos, em nós, os traços anteriormente firmes, com que estava gravada a lei natural, dignou‑se Deus de manifestar novamente a sua vontade pela revelação dos Mandamentos, que se aplicam a todos os homens, indistintamente. Além disso, pelos conselhos evangélicos, revelou o que cada um deve fazer, em particular, seguindo a inspiração do Espírito Santo, para obedecer os desígnios de Deus a seu respeito. A vida espiritual consiste exatamente nesse esforço penoso para conformar nossas disposições internas e nossas ações com a vontade de Deus, o que, antes do pecado original, era uma fonte de felicidade, como já ficou dito.

O jogo das tendências no homem decaído

Há, no homem, tendências boas ou más da natureza, disposições viciosas ou virtuosas adquiridas, e atos bons ou maus, que seguem as tendências ou as disposições. É de notar que as disposições virtuosas podem ser o aproveitamento meritório de uma boa tendência, como as viciosas podem ser o agravamento culposo de tendências más. É possível, porém, que não seja assim, havendo, neste caso, maior culpa ou mérito.

As tendências más podem pertencer à vontade, como o pendor para o orgulho, por exemplo, ou à sensibilidade, como a tendência para a luxúria. Para que haja ato mau, entretanto, é necessário que a vontade ou ceda à própria inclinação defeituosa, ou pactue com os movimentos inferiores da sensibilidade desordenada, como que os assimilando a si própria. A repetição de atos maus desenvolve as tendências más da vontade, aumenta a desordem da sensibilidade, e, por fim, habitua a vontade a transigir com as sugestões perversas desta última, até surgirem os vícios, em toda a pujança escravizadora.

A perigosa deformação da mentalidade

Este procedimento imoral tem ainda um último e derradeiro fruto de iniquidade. A vontade não pode agir sem a colaboração da inteligência, pois que a ação humana não se produz sem uma razão. De fato, ninguém faz alguma coisa conscientemente sem um motivo apresentado pela razão, qualquer que seja seu valor. Portanto, o mau proceder conspurca a inteligência, pois chega a forçar esta nobre faculdade muitas vezes a apresentar como bom e conveniente o que é mau e perverso.

Ora, esta intervenção violenta, quando muitas vezes renovada, acaba por deformar a inteligência, que de si mesma é generalizadora; e por aí, ela pode obliterar‑se de tal modo que só muito penosamente chegue a compreender certas verdades e a se desvencilhar de certos erros. A pessoa que assim deforma a sua inteligência concebe idéias ou teorias falsas, ou, ainda, adquire uma mentalidade, isto é, uma atitude fundamental de ver e julgar as coisas, que falseia todos os valores. Numa mentalidade há princípios e teorias implícitos, que podem nunca vir a ser explicitados, mas que freqüentemente pesam nos juízos e nas resoluções. Por isso, nada há tão perigoso como uma mentalidade deformada, pois nisso consiste o “desregramento do espírito” de que fala o Evangelho (Mc 7, 22). É o oposto da sabedoria, e, no fundo, é o gosto das coisas do mundo, que se opõe ao gosto das coisas celestiais.

Esta mentalidade defeituosa também pode ser contraída pela complacência íntima e sistemática aos atos maus de outras pessoas, atos estes que lisonjeiam as nossas más tendências e disposições. A causa é análoga à referida quanto aos nossos próprios atos.

As más tendências da natureza, conseqüência do pecado original, são o princípio do mal em nós, e quase sempre o ponto atingido pelas tentações do demônio e do mundo. Podem ser dominadas, com relativa facilidade. A disposição viciosa, pelo contrário, já representa o domínio do mal, e a prática do bem, que se lhe opõe, exige uma grande luta. Porém, a pessoa portadora de mentalidade deformada já não luta, pratica o mal que se refere ao defeito de sua mentalidade, como se fora a mais natural e racional das coisas.

Falta de reflexão, doença do mundo moderno

Diz o Santo Padre Pio XI, em sua Encíclica sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio(1): “O mal gravíssimo de que enferma a nossa época, que é a fonte e origem de todos os males de que se queixam os homens de reto juízo, é a falta de reflexão”. Para curar este mal é necessário forçar “o nosso espírito a observar atentamente os pensamentos, as palavras e as ações e a penetrar intimamente na nossa alma”.

De fato, infelizmente é imenso, hoje em dia, o número das pessoas que moldam a sua atividade exclusivamente ao sabor das circunstâncias exteriores, e não têm o hábito, e quase nem têm a faculdade de se observar, de julgar‑se a si próprias e de corrigir as suas tendências e disposições interiores desregradas.

Importa ao homem ver, julgar e agir dentro de si mesmo

Entretanto, a ninguém é possível obter uma verdadeira conformidade com a vontade divina, que, como dissemos, é o único meio do homem atingir a perfeição e a felicidade, sem o hábito de ver, julgar e agir dentro de si mesmo. Conforme se viu da Encíclica anteriormente citada, disso depende a cura de todos os males modernos. Ora, o mal não é outra coisa senão a desconformidade com os desígnios de Deus, que jamais cessa de querer o verdadeiro bem.

Além disso, as pessoas que se deixam levar exclusivamente, ou quase, pelos atos exteriores, se expõem a contaminar‑se, insidiosamente, pela corrupção do mundo, que é o principado de Satanás (Jo 16, 11), e a cair na chamada “heresia das obras”, mesmo quando querem fazer o bem. Neste sentido, acrescenta a Encíclica citada: “A frivolidade contínua e febril que se prende às coisas exteriores …. enerva e debilita nos corações os mais nobres ideais e de tal modo os envolve nas coisas terrenas e transitórias que mal os deixa pensar nas verdades eternas, nas leis divinas e no próprio Deus, que é o único princípio e fim das criaturas”.

Porém, o hábito salutar de ver, julgar e agir dentro de si mesmo, fornece um auxílio eficaz para as faculdades humanas, de modo que, neste combate insigne de espírito, a mente se acostuma a avaliar e a pesar, no seu justo valor, todas as coisas; a vontade se robustece com firmeza; os desejos insaciáveis comprimem‑se com sensatos conselhos; a ação da vida humana unida à meditação conforma‑se com uma norma reta; enfim, a alma atinge a sua nobreza e excelência, como se lê tão belamente numa comparação do livro Pastoral do pontífice São Gregório: “O espírito humano, à semelhança da água de um tanque, se represada, aumenta de volume e sobe para o céu donde veio; mas, aberta, perde‑se, espalhando‑se inutilmente sobre a terra”.

Assim sendo, nesse hábito está a medula da vida espiritual(2).

 

1) Encíclica Mens Nostra, de 20 de dezembro de 1929.

2) Outros tópicos desse importante memorando redigido por Dr. Plinio foram publicados nos números 38 e 39 desta revista (maio e junho de 2001).

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VI O partido de Jesus e o do mundo

Na continuação de seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos faz compreender, uma vez mais, como todo aquele que ousa abraçar o sofrimento, a pobreza e as humilhações por amor a Deus, identifica-se com Nosso Senhor Jesus Cristo e dispõe sua alma para que nela habite a sabedoria.

 

Dirigindo-se aos membros da Confraria dos Amigos da Cruz, por ele fundada, São Luís Grignion assim escreve:

Eis, meus caros confrades, dois partidos que se defrontam todos os dias: o de Jesus Cristo e o do mundo.

Duas falanges de servos que lutam por dois senhores

Conforme ficou explicado no início dessas exposições, São Luís redigiu sua carta circular durante um retiro, e essa ideia dos “dois partidos” evoca a meditação das “duas bandeiras”, proposta por Santo Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais. Lembra, também, o que o próprio São Luís afirma no seu Tratado da Verdadeira Devoção:  por natureza, o homem é escravo, e o será de Nosso Senhor Jesus Cristo ou do demônio, príncipe deste mundo.

Então, esses dois partidos são as duas grandes falanges de servos que lutam por dois senhores. Faço notar que há apenas dois partidos, sem possibilidade de uma terceira posição. Donde toda a História se resolver, em última análise, no seu sentido mais profundo, no confronto desses dois interesses, desses dois princípios, desses dois seres antagônicos: Jesus Cristo e o demônio.

Sempre pequeno, o número dos Amigos da Cruz

Conforme tal noção, o santo autor prossegue:

O [partido] de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez mais se tornou devido à corrupção do mundo. Caminha à frente o Bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado e carregando uma pesada cruz. Apenas algumas pessoas, das mais corajosas, O seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no tumulto do mundo; ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.

À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele e, apesar de serem largos como nunca os caminhos que a ele conduzem, atropelam-se em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata.

O santo indica, pois, duas categorias de pessoas bem diversas. As que constituem o partido de Nosso Senhor estão à direita, em aclive. Ou seja, em ascensão, na subida que torna difícil a caminhada por se ter de vencer o peso da gravidade. Essa trajetória se faz cada vez mais estreita, isto é, o esforço pela salvação se apresenta a cada dia mais árduo, devido à corrupção do mundo, às solicitações maiores do pecado, à insistência das más influências e dos maus exemplos.

Porém, à frente vai o Bom Mestre, pés descalços, coroado de espinhos, coberto de sangue e carregando sua Cruz. Trágica visão de uma vítima que sofre em todo o seu corpo, seguida apenas por algumas pessoas, e das mais corajosas. Vê-se o numero sempre pequeno dos autênticos Amigos da Cruz, daqueles que ousam aceitar o sofrimento e compreendem que nesta vida estamos sujeitos a toda sorte de provações. Pelo contrário, incontável é o número dos homens que fogem do sacrifício e procuram não considerá-lo de frente.

Ensurdecedor ruído das paixões desordenadas

Na seqüência de seu pensamento, São Luís Maria fala do tumulto do mundo que abafa a delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, há um barulho, um ruído ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre.

 Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a nos movimentarmos de maneira igualmente desordenada. Donde uma espécie de perturbação difusa nas grandes cidades, uma agitação da vida moderna e seus acontecimentos, que embriagam e fascinam imensa parcela dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, enquanto houver numa alma esse deleite com o tumultuar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez irão esbarrar e se deter as inspirações da graça.

Daí, por outro lado, a necessidade de o verdadeiro Amigo da Cruz, desejoso de seguir o Bom Mestre, pedir-Lhe o horror e a aversão ao tumulto do mundo.

Pobreza, dores e humilhações

Ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar a seu serviço todos os dias da vida — acrescenta São Luís Grignion.

Ou seja, quem deseja servir a Nosso Senhor deve estar disposto a abraçar três coisas: pobreza, dores e humilhações.

A pobreza é, de algum modo, a virtude católica por excelência, pois para fazermos inteiramente a vontade de Nosso Senhor, temos de ser desapegados de tudo o que possuímos.  Do contrário, ao nos ser pedido, em nome do serviço de Deus, a renúncia de algo a que nos afeiçoamos, bem mais difícil será a nossa conformidade com o superior desígnio divino. Portanto, para ser fiel à vocação de seguir o Mestre, a alma precisa ser pobre, desapegada.

Além da pobreza, as dores. A vida de todo homem comporta sofrimentos, e estes serão talvez maiores para os poucos que souberem aceitá-los com o autêntico espírito de Amigo da Cruz.

Por fim, as humilhações. Não é fácil discernir qual das três coisas é a mais pesada, pois as dificuldades variam de pessoa a pessoa conforme o temperamento de cada uma. Estas aceitarão melhor as dores e sofrerão mais com as humilhações; aquelas se alegram na pobreza, mas se arrepiam com as humilhações; enquanto outras padecem de boa mente as penúrias materiais e as humilhações, mas sofrem demasiado com as dores físicas e morais.

Claro está, naturalmente falando, sem o concurso da graça homem algum se dispõe a esses três tipos de sofrimento, e menos ainda estão inclinados a tal os que compõem o partido do mundo. Portanto, devemos compreender que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças e dons especiais aos seus seguidores, para que estes aceitem e abracem o duro preço dessa admirável vocação.

O aparente brilho do partido do demônio

Em seguida, São Luís Maria Grignion de Montfort descreve o partido do demônio, “o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência”.

É curioso notar como a felicidade confere certo brilho ao indivíduo. Tome-se, por exemplo, alguém que tenha sido sorteado numa loteria, ganhando avultada soma. Nesse dia ele se torna mais luminoso, mais bem disposto, sente-se seguro de si e demonstra um garbo invulgar, proporcionado pelo êxito. E não há coisa que mais tire o garbo de uma pessoa do que o insucesso. Um general perder a batalha, um rei perder a guerra, um advogado perder a causa, e aparecerem garbosos num jantar de gala? Não se pode concebê-lo.

  Pois esse esplendor do êxito e da felicidade possuem os que seguem o partido do mundo ou do demônio. Daí ser este grupo, na aparência, o mais reluzente, magnífico e numeroso. “Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele”, afirma São Luís. De fato, a experiência da vida nos mostra que, por uma razão difícil de definir, o indivíduo naturalmente brilhante, dotado de maiores qualidades apreciadas pela gente do mundo, é mais propenso a se perder do que aquele que não possui esse brilho pessoal.

Além disso, existe a imensa falange dos que se abalam para o partido do demônio por causa de reflexões oportunistas: “Eu, me alistar sob a bandeira da pobreza, da dor e da humilhação, enquanto no outro lado terei brilho e fortuna? Não há dúvida na escolha”.

Inútil dizer até onde essas reflexões podem levar a alma que lhes dá ouvidos.

Largas e cobertas de ouro, as vias da perdição

Esses caminhos do mundo, assevera o santo autor, “são mais largos do que nunca, e neles as pessoas se atropelam, em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata”.

Percebe-se, pela ideia exposta por São Luís, que a impiedade no tempo dele se mostra maior do que nas épocas anteriores. Então, as vias do mal nunca foram tão largas, e as multidões que passam por elas, perdendo-se, são tais que esses caminhos se dilatam.

Essa situação me faz recordar o caso de uma freira carmelita que, tendo de se deslocar para outro convento, viajou pela primeira vez por uma estrada asfaltada. Indagada sobre as impressões que tivera da “moderna” rodovia, ela respondeu:

— Creio que assim deve ser o caminho que leva ao inferno: agradável, largo, asfaltado, e as pessoas correndo sobre ele…

A meu ver, uma observação muito sagaz e verídica. Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios, vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo, enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espaçosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas, e seu fim é o Calvário.

“É preciso ser conforme a imagem de Jesus Cristo ou condenar-se”

Prossegue São Luís:

À direita, o pequeno rebanho que segue Jesus Cristo só fala em lágrimas, penitências, orações e desprezo do mundo; ouvem‑se continuamente essas palavras, entrecortadas de soluços: “soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo‑nos, humilhemo‑nos, empobreçamo‑nos, mortifiquemo‑nos, pois o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele”.

Trata-se do despojamento próprio àqueles que desejam ser escravos de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Estes sofrem, choram, jejuam, humilham-se, rezam, mortificam-se e abraçam a pobreza. Atributos dos quais o mundo tem verdadeiro pavor. E por que essas almas se sujeitam a tais sofrimentos? Porque desejam adquirir o espírito de Jesus Cristo, receberem as graças d’Ele a fim de com Ele se identificarem.

Os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme a imagem de Jesus ou condenar‑se. “Coragem, exclamam eles, coragem! Se Deus está por nós, em nós e diante de nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós, é mais forte do que o que está no mundo”.

São Luís aponta a solução: se Jesus Cristo habitar em mim, serei capaz de aceitar o preço por segui-Lo; se Ele não estiver em mim, faltar-me-á coragem para tal.

Combater segundo o Evangelho e não conforme a moda

O servo não é maior que seu senhor. Um momento de leve tribulação redunda num peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém ali será coroado se não houver combatido legitimamente segundo o Evangelho, e não conforme a moda. Combatamos, pois, vigorosamente; corramos para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa. Eis uma parte das palavras divinas com que os Amigos da Cruz mutuamente se animam.

Portanto, a oposição entre os dois partidos está bem estabelecida. De um lado, Jesus Cristo, o modelo; de outro lado, a moda, os costumes do mundo, aos quais São Luís alude, dando a entender tudo quanto possuem de viscoso, de fascinação por coisas vãs, em última análise, de ilusões.

Pelo contrário, os mundanos, a fim de se animarem a perseverar na sua malícia sem escrúpulos, gritam todos os dias: “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para nos perder; Deus não nos proíbe de divertir, nem seremos condenados por isso. Nada de escrúpulos!”

Temos aqui a ideia infelizmente muito difundida de que, no fundo, o vício não será punido, pois Deus é bom. Na verdade, trata-se, não do Deus de misericórdia que acolhe o pecador arrependido, mas de um Deus de falsa bondade, indiferente ao pecado. Mais uma vez, é a oposição entre duas mentalidades.

Amor à Cruz, sinal de que a sabedoria habita em nossa alma

Concluo essas considerações de hoje com uma observação a respeito dos mistérios que cercam a alma humana.

São Luís Grignion escreveu essas palavras porque as considerava úteis, e as concebeu sob um evidente sopro da graça. Ou seja, a graça divina teve a intenção de animar essas páginas. Entretanto, de tal maneira nos parece árduo carregar a Cruz junto com Nosso Senhor, que, ao lermos os pensamentos expressos pelo santo, dificilmente não nos virá ao espírito a seguinte ideia: “Isto tudo é um lero-lero surrado, já conhecido por mim e por todos, que não precisa ser relido”.

Quer dizer, esses princípios na verdade tão pouco repetidos, quase nunca ensinados, penetram em nossa alma uma vez e a repetição deles nos dá a sensação de algo fastidioso e monótono. Nós, que seríamos capazes de ouvir inúmeras vezes uma mesma música, assistir duzentas vezes uma mesma peça de teatro ou manter durante horas uma conversa com a mesma pessoa, desde que aproveitem ao nosso interesse e apego, julgamos tratar-se de lengalenga essas altas e inapreciáveis reflexões de um santo.

 Vemos, por aí, como é de fato penoso elevar o espírito humano através do sofrimento; como há uma repulsa quase instintiva ao amor à Cruz. E, portanto, como a devoção a essa mesma Cruz é algo de suma importância e indispensável para a nossa vida espiritual.

Eu diria mais. Se nos empolgarmos ao ouvir falar da Cruz e do sofrimento, se admirarmos a dor cristãmente aceita e sentirmos o vazio de uma vida sem padecimentos, tais disposições serão um sinal de que a sabedoria habita em nossa alma.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/7/1967)

 

Gravidade ao sabor brasileiro

Desde pequeno agradou-me considerar o elegante prédio da Estação da Luz, próximo ao parque onde os meninos de minha família, sob o vigilante olhar de suas governantas, se distraíam aos domingos.

Simpático, atraente, encanta-nos o estilo inglês com que o edifício foi concebido: correto, distinto, garboso, cheio de si (no bom sentido da palavra), ordenado, com uma noção do dever, não sufocante, mas feito com métodos, tempo e pontualidade, de maneira a tudo sair de acordo com o planejado.

Para os padrões da São Paulo do tempo em que foi construída, a estação apresentava proporções monumentais, oferecendo aos passageiros um ótimo restaurante e toda uma ala destinada a hóspedes que ali quisessem residir por um período mais prolongado, até encontrarem outra acomodação na cidade. Tranqüilidade e segurança de outras épocas…

A torre imponente se destaca como símbolo da elevação e da gravidade do prédio, ao mesmo tempo que indica a hora certa dos embarques. Gravidade e elevação, sim, porém ornadas com um misto de bondade e de “laisser-faire” distinto, sabendo ser do feitio do nosso povo, não a coisa ultra-arranjada, mas com um toque de negligência de “grand-seigneur”. Além disso, uma nota de melancolia, uma espécie de sorriso prateado muito afim com o habitat interior comum do brasileiro.

Impossível para mim, ao contemplar a Estação da Luz, não recordar os velhos e bons sabores do meu tempo de criança, e, sobretudo, não me lembrar das graças que a Providência concedeu à minha alma de menino, a propósito do meu encanto com esse prédio que se erguia ao fundo do Jardim da Luz onde brincávamos.

Dessas graças, a mais marcante terá sido o meu “encontro” com a figura do imperador Carlos Magno, desenhada num livro de história para criança que estava à venda num quiosque dentro da estação. Antes de embarcar para uma viagem ao interior de São Paulo com minha família, pedi ao meu pai que me comprasse aquele livro.

Nunca ouvira falar de Carlos Magno, mas aquela gravura que o representava no seu trono de majestade, revestido de coroa e com o cetro imperial à mão, me tocou profundamente. À medida que folheava a publicação, crescia meu entusiasmo pela pessoa do imperador, e algo me dizia na alma: “O futuro está com esse homem!”.

Hoje posso afirmar que naquele momento me foi dado discernir o ideal de grandeza que Carlos Magno simbolizava, bem como se formou em mim a convicção de que esse ideal possui um conteúdo de universalidade pelo qual beneficia a todos os povos, sem exceção, e algum dia ele ainda ressuscitará. Essa convicção permanece intacta no meu espírito.

Portanto, não há nisso apenas uma pertinaz reminiscência de infância que insiste em se manter, mas também uma ação da graça que toca a todos que admiram Carlos Magno, e os leva a compreender que o grande imperador não é um caminho interrompido, nem uma glória do passado fixada e estagnada num monumento de pedra. Ele é uma luz que desceu do Céu para indicar aos homens uma trajetória que deve alcançar sua plena realização.

E um lampejo dessa graça refulgiu aos meus olhos ali, naquela bela Estação da Luz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 20/2/1993 e 16/2/1994)

O belo e o prático – I

A Revolução, fundamentalmente materialista, propaga a ideia de que o importante é o lado prático das coisas, pois proporciona conforto para o corpo, enquanto que o belo nem deve ser considerado. Dr. Plinio desmonta esse sofisma.

 

Diante de tantas coisas bonitas dos tempos antigos que foram sendo destroçadas, e tantas coisas hediondas instauradas nos dias de hoje em nome do prático, põe-se a pergunta: o prático não é um precursor da feiura e o belo um inimigo do prático?

Rapidez e comodidade

Para analisar esta questão, consideremos alguns meios de transporte.

Toda coisa é perfeita na medida em que atinge o seu fim. Ora, o fim de uma carruagem, por exemplo, é transportar; e se ela transporta nas condições ideais, realizou a sua perfeição.

Quais são as condições ideais do meio de transporte? Ele deve ser, entre outras coisas, rápido e cômodo. Entretanto, o conceito de cômodo é muito amplo, porque uma é a comodidade que se pode querer ter em um automóvel que transpõe a distância de alguns quarteirões; outra é a comodidade exigida desse veículo fazendo uma longa viagem. São distâncias muito diferentes em que o corpo e o próprio espírito humano pedem graus e modos de conforto diferentes.

Há outras circunstâncias que condicionam a comodidade de um veículo, como, por exemplo: um molejo adequado para transitar em superfícies irregulares; arranque suave e silencioso do motor; estabilidade pela qual o passageiro sinta-se bem e seguro, mesmo em alta velocidade, etc.

Chegamos, assim, à conclusão de que o espírito prático deve ser adaptado a várias circunstâncias.

Beleza ou conforto?

A beleza interna de um veículo é uma condição de conforto? Evidentemente sim. Porque tudo que lisonjeia os sentidos, de algum modo, é condição de conforto. É muito confortável viajar em uma carruagem e ver o sol entrando pelos cristais das janelas e incidindo sobre sedas, damascos, veludos, “brincando” naqueles tecidos de luxo. Portanto, estaria de acordo com o espírito prático — que deve procurar o conforto de um veículo — tornar bonito o interior de uma carruagem.

Mas também deve estar de acordo com o espírito prático que um automóvel tenha um compartimento com um pequeno refrigerador contendo líquidos gelados para que, no auge do calor, sem ter de diminuir a velocidade do carro, o dono possa servir-se de um refresco.

Havendo tudo isso, pode-se dizer que o espírito prático obteve uma vitória. Mas torna-se impossível fabricar uma bela carruagem com essas comodidades. Onde colocar a geladeira e as supermolas compatíveis com a supervelocidade? Onde instalar um mecanismo por onde baste apertar um botão para as janelas subirem e baixarem fazendo um ruído prestigioso? Essas coisas cabem nos produtos modernos, não nos antigos. Então, o que escolher: a beleza da carruagem ou o conforto do automóvel?

Alma do homem e pulcritude

Até pouco tempo atrás, os homens não tinham perdido a noção do belo, mesmo passando da era da bela carruagem para a do automóvel. Tomemos, por exemplo, automóveis do tipo Mercedes. Eram bonitos veículos, com cores lindas, reluzentes. O homem tinha a impressão de entrar em uma pedra preciosa, de tal maneira aquela lataria toda era ornada. Dentro havia couros de primeira ordem, espaço amplo, enfim, todos os agrados dos transportes de luxo se encontravam reunidos ali.

Isso obedecia ao seguinte princípio: há uma razão para, tanto a carruagem quanto o automóvel, serem belos.

Todos os argumentos dados até agora a favor do espírito prático valem para o corpo. Mas o homem tem só corpo? Ele é principalmente corpo? O homem não é principalmente alma? E se a alma é o elemento principal do ser humano, do que vale o belo para a alma? Neste caso, ter beleza não seria o principal componente que um transporte deveria possuir?

Lindos cavalos, belas carruagens

Analisemos o papel do belo.

Primeiramente, a pessoa que está em uma carruagem ou qualquer outro meio de transporte, ainda que seja simplesmente um cavalo, apresenta-se aos olhos do público de modo a chamar a atenção. Porque um indivíduo que atravessa uma rua dentro de um veículo ou montado em um animal, atrai muito mais a atenção do que quem vai a pé, e forma um todo psicológico e artístico aos olhos dos transeuntes.

Ademais, o homem tem interesse em ser conhecido pelo que ele é, para que se lhe dê o valor ao qual tem direito. Se ele é um verdadeiro cavaleiro, descendente, por exemplo, dos cruzados, convém que monte um lindo cavalo de raça.

E montar, não é estar sobre o animal como estaria um saco de batatas. É preciso cavalgar com elegância, altaneria e dignidade. O cavaleiro deve dar a impressão de tal domínio sobre o cavalo, que o oriente simplesmente pelo movimento das pernas. As rédeas servem mais como um elemento ornamental.

Além disso, o animal precisa estar belamente ajaezado com uma bonita sela, belos arreios. Tudo isso forma a moldura com que o homem se apresenta em público.

É de acordo com a dignidade do homem que ele queira cavalgar esplendidamente um lindo cavalo. Isso não é vaidade, mas o reto exercício do instinto de sociabilidade, não com pretensão, mas com a naturalidade com que uma pessoa quer mostrar o rosto limpo para os outros.

Tratando-se de pessoas de uma condição inteiramente excepcional, como um rei e uma rainha, que ocupam no Estado e na sociedade o primeiro lugar, é natural que, por uma necessidade da alma, se façam ver e reverenciar pelo que eles são, utilizando uma carruagem à altura de seu cargo.

Para eles, mais importante do que a grande velocidade e todas as comodidades é ter um coche, no qual se apresentem como dentro de uma linda moldura.

Por isso as altas situações são tratadas pelos artistas — no caso concreto, pelos fabricantes de coches — de maneira a serem realçadas. A arte se empenha em apresentar o rei, a rainha, os príncipes da casa real, os nobres, os titulares de altas dignidades da Igreja, do Poder Judiciário, das Forças Armadas, etc. de modo a serem naturalmente respeitados, proporcionando-lhes outra modalidade de conforto: a comodidade de governar.

Então, é uma vantagem do Estado que haja lindas carruagens. Quanta revolta é evitada, quanta guerra interna é poupada a um país porque o povo se habituou a respeitar quem o governa!

O Bucentauro e a ponte sobre o Tâmisa

A República de Veneza tinha um presidente do Conselho dos Nobres intitulado Doge, palavra derivada do vocábulo latino “dux”, chefe.

Para navegar pelas águas fabulosas da Laguna de Veneza, o Doge dispunha de uma embarcação, toda esculpida, folheada a ouro, lindíssima, que por uma reminiscência mitológica chamava-se “O Bucentauro”.

Na ocasião máxima do Estado Veneziano, o Doge partia no Bucentauro acompanhado de centenas de barcos, gôndolas com aquelas proas lindas, gente tocando instrumentos, cantando, etc., laguna adentro, até o Mar Adriático. E, quando estavam no alto mar, o Bucentauro parava e o Doge jogava nas águas um anel precioso: era o casamento de Veneza com o mar.

Veneza era uma grande república comercial e dominava os mares naquele tempo, sendo, por isso riquíssima. O casamento da República de Veneza com o mar representava uma espécie de união entre o Estado veneziano e seu destino histórico.

Evidentemente era útil para o Estado veneziano ter um barco assim.

Portanto, nem sempre a beleza tem essa incompatibilidade com o prático que apresentávamos no início desta exposição. Para a vida da alma, para o intercâmbio de relações entre as almas, para a formação da política e da cultura de um povo, o belo tem uma importância maior do que o prático. E quando há incompatibilidade, quase sempre o belo prevalece sobre o prático.

Dou um exemplo de nossos dias: o Rio Tâmisa, em Londres, com aquela ponte levadiça. Aquilo é lindo, mas já não necessário, porque com os meios modernos poder-se-ia construir uma ponte alta que substituísse aquela. Por que se mantém a ponte atual? Porque é bela!

Há, portanto, um prático de categoria inferior que encontramos ao olhar automóveis bem equipados. Mas há um prático mais elevado que toma em consideração que o homem é mais espírito do que matéria, e que as coisas do espírito têm muito mais importância do que as da matéria. Por isso, deve-se dar mais valor ao belo do que ao prático. v

 

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 4/10/1986)