“Tu o dizes, Eu sou Rei”

Presente em todos os sacrários da Terra, Nosso Senhor Jesus Cristo exerce uma realeza efetiva sobre toda a História, por meio da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi ora aclamado, ora ridicularizado como Rei, coroado de espinhos e, por fim, no alto da Cruz onde Ele foi imolado colocaram a inscrição: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. O que havia de autêntico na realeza d’Ele, e qual a relação de sua Paixão com essa realeza?

Realeza incompreensível para os ímpios

Interrogado durante a Paixão, por Pôncio Pilatos, sobre se Ele era rei, Nosso Senhor Jesus Cristo respondeu: “Tu o dizes, Eu sou Rei”.

Entretanto, pouco antes Ele afirmara que seu Reino não é deste mundo. Declaração incompreensível para aqueles bandidos que O atacavam. Do que adianta ser rei para não o ser deste mundo? Há fora deste mundo um reino no qual se possa reinar? Ora, um rei sem reino, é um ex-rei. Donde é, pois, esse reino?

Para debicar de sua realeza, aqueles algozes Lhe puseram uma coroa de espinhos, uma túnica escarlate e uma vara de bobo na mão, à guisa de cetro; e O esbofeteavam, dizendo: “Ave, Rei dos judeus!”

Uma nação ímpia, um governador romano ímpio também, insensíveis ou refratários à verdadeira realeza d’Ele que se irradiava como a luz do Sol, resolveram atender às vontades da plebe e do Sinédrio que queriam matá-Lo por torpes ambições, quiçá, por ódio à santidade d’Ele. E para provar que Ele não tinha poder, nem sabedoria, nem divindade, nem realeza, colocaram-Lhe uma coroa de espinhos sobre a cabeça.

Misto de humilhações e vitórias

O seu Corpo verte Sangue abundantemente, e Ele Se torna purpúreo como se estivesse revestido de um manto imperial, cujo valor é infinito. Abandonado pelos Apóstolos, rejeitado pelo povo eleito, sentado sobre um banquinho ou uma pedra qualquer e levando bofetadas, mantém Ele a mansidão de um Cordeiro com a altaneria de um Leão e a dignidade de um Rei em seu trono, num misto de dor lancinante e de triunfo, que O acompanharão até o Calvário.

Do alto da Cruz, pouco antes de morrer, como um Rei que premia um herói, Ele reabilita um ladrão e canoniza-o, dizendo: “Hoje, tu estarás comigo no Paraíso!”

Assim é a vida do católico, a vida da Igreja: cheia de humilhações e de vitórias. Humilhações tão profundas que se diria nunca mais poder reerguer-se delas; vitórias tão grandes que julgaríamos irreversíveis.

Entretanto, como uma nau que navega levada pelas ondas a alturas e profundidades vertiginosas, assim a barca de São Pedro vai percorrendo a História: com todas as honras, mas também com todas as dores e humilhações de Cristo coroado.

Três espinhos dessa coroa sagrada foram parar em mãos de São Luís IX, Rei de França, que para abrigá-los devidamente mandou construir um dos mais belos monumentos da arte medieval e, portanto, de toda a História: a Sainte-Chapelle, verdadeira caixa de cristal com nervuras de granito, onde se celebra o Santo Sacrifício.

Um Reino que não é deste mundo

Sim, Nosso Senhor Jesus Cristo é verdadeiramente Rei, antes de tudo por ser Ele Quem é: o Verbo de Deus encarnado. Deus é Rei, porque é Deus! Logo, Jesus Cristo é plenamente Rei por sua divindade. Se houve, portanto, alguém digno deste título na Terra, este foi, continua a ser e será Ele, até o fim do mundo.

Assim, quando Lhe perguntaram se era Rei, Ele tinha toda a razão em responder: “Verdadeiramente, tu o dizes, Eu sou Rei!”

Ele fizera inúmeros milagres, convertera os homens, viera para, por sua Paixão e Morte, resgatar do pecado o gênero humano. Não Lhe faltavam, pois, títulos para a realeza.

Os milagres, a santidade e a profundidade incomparável de sua doutrina, o testemunho da Sagrada Escritura, tudo levava a reconhecê-Lo como o Messias.

O Antigo Testamento falava que o Messias, descendente de Davi, seria o Rei de Israel cujo Reino eterno se estenderia sobre o universo inteiro.

Os judeus esperavam, portanto, a vinda de um príncipe da Casa de Davi, um conquistador, um político e um militar extraordinário que brilhasse como um potentado terreno e pusesse longe os romanos conquistadores, tomando conta de Jerusalém para estabelecer um reinado de glória, perto do qual o de Salomão não teria sido senão um tímido prefácio.

Ora, Jesus veio e não conquistou nada, reconheceu a autoridade de César, e disse não pertencer a este mundo o seu Reino.

Reinando de dentro de todos os sacrários da Terra

Contudo, sendo Homem-Deus, não só conhecia, mas dispunha do futuro. O domínio de todos os acontecimentos da História Lhe pertence. Ele sabia que o seu Reino chamar-se-ia Igreja Católica Apostólica Romana.

Não é um reino deste mundo, constituído para ter exércitos e fazer política. É o reino estabelecido para difundir o nome e a mensagem d’Ele a todos os homens, e para que a Lei d’Ele viesse a vigorar, um dia, em todo o orbe.

Grande mistério: Ele reinaria de dentro de todos os sacrários da Terra! Quem poderia compreender uma coisa dessas? Mas Ele tinha razão: “Tu o dizes, Eu sou Rei!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/4/1984)

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo reunia em si, de modo admirável, a suma majestade e a suma humildade. Algo dessa maravilhosa junção nos é transmitido pela linda imagem do “Beau Dieu d’Amiens”, ereta no pórtico da célebre catedral francesa dessa cidade.

Ali está um Rei digníssimo, um Doutor nobilíssimo, ao mesmo tempo tão sereno, tão manso, tão completamente senhor de si, que seria capaz de receber a pior injúria e se conservar quieto, plácido, sem manifestar nenhuma reação de amor próprio, sabendo-se embora superior a tudo e a todos, Soberano do Céu e da Terra.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Majestade infinita

Ao celebrar a Solenidade de Cristo Rei, a liturgia deste ano oferece à meditação dos fiéis a passagem do Evangelho em que São Lucas descreve os padecimentos de Jesus pregado na Cruz entre dois ladrões, sendo alvo do escárnio, blasfêmias e maus tratos por parte dos circunstantes.

Pode haver conjuntura mais adversa do que esta, de completa desolação, para proclamar a realeza de alguém? Entretanto, ao insinuar esse aparente paradoxo, o texto sagrado nos introduz num profundo e adorável mistério.

Precisamente por ser Homem-Deus, Jesus é o Rei da História, e todos os acontecimentos se passam segundo sua santíssima e onipotente vontade.

Assim, ao sorver até a última gota a taça de todas as dores e humilhações possíveis, o Redentor sabia que cada um desses tormentos seria objeto da adoração de multidões ao longo dos séculos; e viria um dia em que os maiores monarcas da Terra disputariam a honra de ter incrustado no respectivo cetro um minúsculo fragmento da cana de irrisão usada na Paixão para ridicularizar a divina realeza; e a coroa de espinhos seria de tal maneira venerada, que um dos maiores reis da Cristandade, São Luís IX, haveria de mandar construir a Sainte-Chapelle de Paris para acolher essa inapreciável relíquia.

Por isso, do fundo de sua dor e abandono, possuía Jesus a majestade da certeza da vitória que haveria de vir.

Misteriosa majestade que Dr. Plinio admirou desde tenra infância, ao contemplá-la numa imagem do Sagrado Coração de Jesus, conforme sua própria descrição:
“Jesus me parecia tão majestoso e, ao mesmo tempo, tão bom; tão infinitamente superior a mim, e tão misericordioso, que eu dizia: ‘Mas, isso é majestade! Como eu gosto dessa majestade!’

“Quando me deparei na ladainha do Coração de Jesus com a invocação “Cor Jesu, majestatis infinitae, miserere nobis”, eu a adotei e a inscrevi entre as minhas invocações prediletas, desde logo, porque é uma coisa magnífica!

“Esse equilíbrio entre a majestade e a bondade me encantava, dando-me a ideia de que o mais alto e pleno padrão da majestade era Jesus Cristo. E sendo Ele “Rex regum et Dominus dominantium” — Rei dos reis e Senhor de todos os que dominam — era natural que se concebesse n’Ele uma majestade dessa elevação.”

Esta majestade infinita, sem dúvida, transluziu no alto da Cruz, aos olhos do Bom Ladrão que disse: “Senhor, lembra-Te de mim, quando entrares no teu Reino”. Ato de amor e de fé que mereceu, comenta Dr. Plinio, “esta promessa de Quem é, de fato, o Rei do Céu e da Terra: ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’. Que realeza!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio 188 – Novembro de 2013)

Cristo Rei, Sacerdote e Profeta da História

Sendo a História o conjunto dos eventos humanos que se desenvolvem no tempo, passando por “idades” e etapas, parece-me de grande interesse considerar que cada um dos fatos históricos tem relação, de maneira proporcional, com gestos, pensamentos e episódios da vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Entre outros benefícios, tal consideração nos ajudaria a compreender o seu holocausto supremo, uma vez que, como Redentor universal, Jesus oferece fundamentalmente toda a História compendiada na existência d’Ele.

Graças para todas as idades dos homens

Nesse sentido veremos, por exemplo, que a infância d’Ele foi paradigmática, fonte incomensurável de graças especiais para todas as infâncias da Terra. Os mais diversos e abundantes favores espirituais que os homens adultos recebem ao volver o olhar para a sua meninice, todas as oportunidades de reflexão, de raciocínio que a consideração dessa época lhes proporciona, desprendem-se da infância de Jesus.

E o mesmo se poderia dizer das várias etapas da vida d’Ele, cada uma tomada como manancial de graças particulares para os períodos etários análogos vividos pelos homens de todas as épocas. Assim como, em contrapartida, enquanto nosso Salvador expiava também a cada passo da existência d’Ele, os pecados cometidos por todos os homens nas suas diversas idades.

Portanto, no suceder dos seus dias neste mundo, Jesus Cristo de algum modo previveu a vida de todos os homens, de todos os povos, de todas as instituições e nações. Compreende-se, assim, que a História inteira se encontra recapitulada n’Ele, e que Nosso Senhor a tenha vivido de modo paradigmático, merecendo as graças para todos os amanheceres, todas as adolescências, as juventudes, as mocidades, as maturidades, bem como para todos os envelhecimentos dos homens.

Por outro lado, tem-se a impressão de que a bela sentença do Evangelho segundo a qual o Menino Jesus crescia em graça, formosura e santidade perante Deus e os homens, sugere que Ele tinha a inteligência, a vontade e a sensibilidade na sua humanidade santíssima condicionadas às várias idades pelas quais passava. E que ia aos poucos meditando e cogitando, tendo em vista a situação do mundo e a história da Salvação que Ele viera realizar. Creio que a oração no Horto foi o ápice de sua cogitação.

É deveras difícil não se sentir deslumbrado com esse crescimento da natureza humana de Nosso Senhor, recebendo revelações da sua própria divindade, num regi-me interno de relações insondáveis. Não recuo mesmo em achar que a vida oculta e doméstica d’Ele afirma a preponderância do mundo dos pensamentos sobre o da ação, e que as cogitações d’Ele durante aquele tempo continham de algum modo a história das cogitações dos homens. E o papel do raciocinar, do prever, do dar o sentido, do querer, do meditar — muito mais importante do que o fazer — está ali asseverado com uma grandeza indizível.

Temos, então, que todo o processo histórico, todas as etapas do existir humano, coletivo e individual, adquire em tudo uma força, uma nitidez e um esplendor extraordinários com a presença do Homem-Deus na Terra. Porque Ele se encarnou e viveu entre nós, as diversas idades da História e as de cada um de nós se revestem de pujança e de clareza, tornam-se mais compreensíveis, inteligíveis, reluzindo com encanto e majestade especiais.

Mais ainda. Dessa visão da história dos homens à luz da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo se destaca um importante corolário que cumpre assinalar. Se todas as nossas ações se espelham naquelas do Divino Mestre, serão elas julgadas, no fundo e principalmente, em função desse nexo com Ele. O que nos faculta a misericordiosa possibilidade de retificarmos a nossa existência pessoal, caso o o nosso proceder não se compagine com a santidade das etapas da vida d’Ele. É-nos dada, pois, a oportunidade inapreciável de pedir a Ele, por meio de Maria Santíssima, que conserte, repare e oriente ao bom termo — pelos méritos da santidade e perfeição do processo d’Ele — o que houve de defectivo em nós.

Tríplice vocação de Jesus: Rei, Sacerdote e Profeta

Poder-se-ia evocar aqui os mais diversos significados das etapas da vida de Nosso Senhor, todas elas repassadas de suma beleza, sob esse prisma das correlações com o desenrolar dos fatos históricos e com nossas existências particulares. Desde a Encarnação e a gestação imaculada no claustro materno de Maria — uma como que ouverture musical da vida terrena de Jesus — até essa forma misteriosa e sublime de Ele permanecer presente no mundo, como Hóstia Sagrada. O Santíssimo Sacramento é Nosso Senhor que por assim dizer deixa o Céu e volta à Terra, continuando a viver ao lado dos homens. Quanta coisa haveria a dizer e a excogitar! Porém, gostaria de ressaltar um aspecto da vida de Nosso Senhor que talvez reúna todos os demais e lance especiais cintilações sobre as tramas da História.

Com efeito, desde o primeiro instante do seu ser, Jesus se sabia Homem-Deus, investido pelo Padre Eterno dos atributos da tríplice vocação de ser Rei, Profeta e Pontífice.

Rei por direito, conquista e nascença, conforme nos ensina a Teologia. Rei, porque traça um plano sobre o qual tem a direção efetiva, posto deter a prerrogativa de mandar em todas as coisas. E ainda quando concede ao homem a liberdade de escolher se cumpre ou não a vontade d’Ele, os seus superiores desígnios acabam se concretizando no que têm de essencial. De um jeito ou de outro, a sua vontade prevalece e Ele obtém a glória que deseja. Rei, portanto, porque governa os acontecimentos, por mais desgovernados que estes pareçam ser.

Sacerdote Ele o é, porque oferece ao Padre Eterno tudo o que realiza em ordem à sua missão, e na medida em que o plano d’Ele se vai executando, vai sendo também oferecido. Em seu pontificado, um imenso sacrifício, uma grande expiação é apresentada aos pés do Altíssimo: primeiro por Ele, o Salvador; depois, por Maria Santíssima, a Co-Redentora, e em seguida por todos os homens, pois para todos Nosso Senhor comprou a capacidade de sofrer, em união com Ele, o que padecemos em nossa existência. E Ele é o Pontífice que deposita essas imolações no altar divino.

Então, a partir desta Terra há um contínuo evolar de dor, de tormento, como também de felicidade e de esperança, que, ao transpor os limites entre o tempo e a eternidade, transforma-se num brado de vitória e de glória.

Como Pontífice, ainda, Jesus possui o privilégio da distribuição de todos esses méritos que nos alcançou com seu holocausto, e Ele a faz por meio da misericordiosa assistência de Maria Santíssima. Com essa efusão dos méritos — pontos vitais na trama da História —, Ele reafirma sua condição de Soberano que governa e provê ao benefício de seus súditos. Sacerdote, conquistou aqueles tesouros espirituais; ao distribuí-los, reina.

É também Profeta, porque prevê, conhece e anuncia o que acontecerá; porque tem a cognição profética da própria vontade, e de como os fatos se ajustarão de maneira a realizar os superiores desígnios de Deus, traçados desde toda a eternidade.

A glorificação do Rei, Sacerdote e Profeta

Quer dizer, Nosso Senhor Jesus Cristo previveu, nas várias etapas de sua existência, todos os acontecimentos que vieram depois. E como, na condição de Pontífice-Rei, é o distribuidor da vida sobrenatural para todos os homens em todos os tempos, Ele regula tudo desde o início. De maneira que, ao longo de cada período de suas diversas idades, Ele conheceu tudo quanto se passaria no mundo até o fim dos tempos, dispôs e quis que fôssemos como nos é dado ser. Assim, de um modo muito excelente, Ele é o Rei, o Pontífice e o Profeta da História.

E quando soar o magno e tremendo dia do Juízo Final, Nosso Senhor estará oferecendo e recebendo a glória do Pontífice cujo sofrimento foi aceito; a glória do Rei cujo governo foi bem-sucedido, e a glória do Profeta que previu o que tinha de ser feito e o realizou. Destarte, tudo o que será narrado no último dia é a glorificação omnímoda do Pontífice, do Rei e do Profeta. Aquele será o grande domingo da História, em que todos nós seremos julgados, premiados ou castigados em função da proclamação da excelsitude dessa tríplice vocação de Jesus Cristo.

Reflexos dessa trilogia no processo histórico

Concluo, levantando um ponto interessante.

Estabelecido o vínculo entre a vida de Nosso Senhor e os acontecimentos históricos, parece plausível que todos os atos humanos estejam de algum modo relacionados com a tríplice missão d’Ele. Por exemplo, nota-se isso nas funções da hierarquia eclesiástica, à qual cabe o múnus de ensinar, governar e santificar o povo de Deus. Não haveria nessa analogia uma corroboração de que essa trilogia abarca todo o agir humano? E se em todo exercício de poder, por parte de alguém na história dos homens, fosse dado discernir um reflexo dessa trilogia, então todos os fatos históricos dariam glória a Nosso Senhor Jesus Cristo, como Rei, Profeta e Sacerdote, na medida em que cada um desses aspectos fosse mais saliente nos acontecimentos.

Então, no desenrolar da trama da História — considerada como a existência do conjunto da humanidade e não apenas a de um povo ou de uma nação —, três luzes brilhariam, uma mais, outras menos, sem que nenhuma deixasse jamais de cintilar. E assim os fatos seriam vistos como preponderantemente régios, sacerdotais ou proféticos, enquanto as almas chamadas a contemplar o Homem-Deus como Profeta, ou como Sacerdote ou como Rei, dariam, cada uma a seu título, especial e fervorosa glória a Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo

A grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo reluziu em mais de um episódio de sua vida, e de um modo muito especial na Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. O ódio despertado por Ele comprova sua grandeza, porque os medíocres não suscitam ódio. Mesmo depois de morto Cristo foi odiado, o que indica ser Ele incomparavelmente grande.

Rei dos judeus

Contudo, o fato de ser apenas muito secundariamente Rei da Casa Real de Davi, não quer dizer que isso seja indiferente, nem que se deva excluir ou olhar com pouco caso essa circunstância. Porque tudo quanto diz respeito a Ele não é indiferente, tem um grande alcance, um grande valor.

E, portanto, ainda que não seja o valor máximo, supremo, merece ser examinado a fundo. Tudo quanto sucede se insere ou na providência geral ou na especial com que Deus rege todo o universo. Mas o que diz respeito a Nosso Senhor Jesus Cristo tudo está regulado por uma providência especialíssima. Por causa disso merece toda a atenção, toda a análise a circunstância de Ele ser membro da Casa Real de Davi.

O alcance dessa circunstância, se precisasse ainda ser demonstrado, além de ter por base as razões que acabo de alegar, possui também outro motivo: o fato de a Providência ter querido que no letreiro que encimava a Santa Cruz estivesse escrito “Jesus Nazareno, Rei dos judeus”; e isso molestou os judeus, a ponto de pedirem a Pilatos que tirasse a inscrição, tendo ele respondido: “O que eu escrevi, escrevi” (Jo 19, 22). É o senso dominador dos romanos muito bem aplicado no caso concreto: “O que eu escrevi, escrevi, não tiro mais. E se vocês não gostam, engulam com farinha”.

Sempre interpretei essa resposta de Pilatos – tão bonacheirão, tão moleirão, tão indecente no que diz respeito ao seu dever de proclamar a inocência de Nosso Senhor – como um agastamento dele. Tinham-no obrigado, sob pena de ser denunciado como inimigo de César, a lavrar uma sentença que julgava injusta. E quando vieram pedir-lhe para tirar esse letreiro, ele estava agastado e, então, disse: “Não, o que eu fiz, fiz, está acabado! Pelo menos agora me deixem ser homem”. Seja como for, ficou o letreiro para sempre imortal na Cruz imortal: Nosso Senhor Jesus Cristo é o Rei dos judeus. E isso supõe, então, uma certa análise desse atributo terreno: Rei dos judeus.

Posse de um presidente dos Estados Unidos e coroação da Rainha da Inglaterra

Toda realeza existente na Terra provém, em última análise, de Deus. Porque tudo quanto existe no universo é criado por Ele.

Dante, na Divina Comédia, diz muito bem que certas criaturas são filhas de Deus, pois Ele as cria diretamente. Outras, porém, são suas netas, por serem filhas dos filhos d’Ele, mas produzidas segundo seus divinos desígnios. Assim, Deus está na origem desses seres, entre os quais se encontram as formas de governo.

Por outro lado, convém àqueles que possuem o primado na Terra e na ordem temporal representar de modo mais excelente a majestade de Deus. Por isso, em todos os lugares onde o poder monárquico tenha existido, os povos têm se aplicado em representar de modo mais excelente a grandeza do rei. Por exemplo, em nossos dias os Estados Unidos constituem a maior potência temporal da Terra; e seu presidente tem, sem dúvida, um poder sobre os acontecimentos deste mundo muito maior do que o do governo inglês e, portanto, também da Rainha da Inglaterra, que é a figura simbólica e ornamental colocada no alto dessa estrutura venerável chamada governo inglês. Mas a simbologia adotada pelo povo norte-americano para exprimir o poder do seu chefe, não se reflete nas manifestações de esplendor que cercam o chefe de Estado.

O presidente norte-americano deve parecer poderoso, grande, excelso, superior a todas as criaturas? Não. Por não se tratar de um poder hereditário e vitalício, que não está simbolicamente acima de todos os poderes, como o poder real, não se vê nele um reflexo tão direto e límpido da majestade divina, quanto na forma de governo monárquica. Esta é a razão pela qual a posse de um presidente norte-americano é um espetáculo jovial, acompanhado de manifestações de regozijo características de um magnata bem-sucedido nos seus negócios. Não próprias a um homem que está inteiramente consciente da representação divina, que de fato todo chefe de Estado possui.

Notamos muito essa diferença ao compararmos a tomada de posse de um presidente da América do Norte com a coroação da Rainha da Inglaterra. Esta se dá dentro de uma cerimônia majestosa, esplendorosa.

Formas de grandeza próprias aos reis da Terra

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Rei, deveria refulgir, portanto, uma majestade temporal, com todas as formas de grandeza próprias aos reis da Terra. Antes de tudo, uma grandeza de alma, de descortínio de horizontes, de pontos de vista, por onde quem está posto no píncaro da ordem temporal desvenda coisas muito mais amplas e matizadas do que aquele que está colocado em posições inferiores. A ordem temporal constitui uma hierarquia riquíssima.

No caso da monarquia, um simples trabalhador manual não é obrigado a ter, e habitualmente não possui, o descortínio e o horizonte do rei, a quem as informações mais graves, os anelos mais ardentes das várias populações chegam como os ventos no alto das montanhas. Estes não sopram nos vales com a pureza e largueza com que sopram no píncaro das montanhas. Essa largura de horizontes traz como corolário necessário a obrigação de uma virtude especial. Porque aqueles a quem a Providência deu muito, deles se exige uma retribuição especial. E, portanto, uma obrigação de ter em relação a Deus um amor, um nexo e uma humildade especiais.

Nessa humildade perante Ele, poder-se-ia dizer que a glória de Deus baixa sobre eles e neles refulge. Uma das manifestações mais tocantes disso é o fato que encerrava as festas da coroação de um Rei da França, no “Ancien Régime”. Na famosa e histórica Catedral de Reims, terminada a cerimônia, do lado de fora alinhava-se uma série interminável de doentes que padeciam de escrófula. Segundo uma tradição, o monarca recém-coroado tinha o poder, dado por Deus, de curar os escrofulosos.

Então, quando havia a coroação de um rei, os escrofulosos da França inteira – e quero crer que também de outros países da Europa – acorriam para serem curados. O monarca, em traje de coroação, saía para a praça pública onde estava essa gente colocada em leitos, em cadeiras, enfim, como era possível, e tocando um a um – na coroação de Luís XVI, se não me engano, chegaram a mil e quinhentos – dizia: “Le roi te touche, Dieu te guérisse” – O rei toca em ti, que Deus te cure.

Segundo uma antiga praxe, inabalável ao longo dos séculos, muitos saravam. Era, portanto, o poder divino que baixava através de um rei ungido por Deus e cognominado, na terminologia da Cristandade, “Rex Christianissimus” – o Rei Cristianíssimo – que era o Rei da França, intitulado “Sua Majestade Cristianíssima”, assim como o Rei da Espanha era “Sua Majestade Católica”, e o de Portugal “Sua Majestade Fidelíssima”; o Rei da Inglaterra, antes da heresia abjeta de Henrique VIII, intitulava-se “Defensor Fidei” – “Defensor da Fé”. A unção recebida na coroação era verdadeiramente um sacramental, segundo a Teologia, e o ungido do Senhor tocava e sarava, manifestando o nexo entre Deus e ele. Essas são as qualidades espirituais às quais, normalmente, deveria corresponder uma aparência física. O rei não tem obrigação de ser bonito.

Ninguém escolhe o próprio rosto. Mas, de qualquer forma, convinha que o rei tivesse, em grau eminente, a pulcritude. Por causa da sua condição, convém ao monarca uma indumentária, trajes à altura daquilo que ele deve refletir. Isso enquanto à sua pessoa. Também seu modo de reinar deve ser esplêndido como tudo quanto nele há. Eis o que caracteriza um grande rei.

Transfiguração no Tabor e Domingo de Ramos

Como ver todas essas qualidades em Nosso Senhor Jesus Cristo, que não andou pela Terra como Rei? Mesmo no Domingo de Ramos, quando Ele foi objeto de uma grande homenagem da parte do povo de Jerusalém, era aclamado como Filho de Davi, mas não houve nenhum atentado para tirar Herodes do cargo, nem algo semelhante. Ele foi aclamado como homem que tinha, entre suas glórias, a de descender de Davi. Um homem eminente, um santo, mas não era por isso que estavam restaurando-O politicamente na realeza.

Pelo contrário, era filho de um príncipe pobre como São José, que exercia a profissão de carpinteiro. Como entrar em Nosso Senhor essa grandeza e todos esses requisitos de Rei? Em alguma coisa deveria ter aparecido porque, se Ele possuía, havia de aparecer em certo momento, pois Ele veio para Se manifestar por inteiro a todos os homens.

Em mais de um episódio da vida d’Ele, essa grandeza real reluziu. Mas de um modo muito especial, intencional, na Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. Eu falei dos trajes reais.

Quando Jesus Se transfigurou, sua veste era alva como a neve (cf. Mt 17, 2). A respeito dos lírios do campo, Ele disse que ninguém era capaz de se vestir como um deles (cf. Mt 6, 28-29). Ora, a túnica em que Ele estava envolto deveria ter sido elaborada por Nossa Senhora; nunca houve tecido igual. Imaginem como estava ela, refulgindo como a neve! Ele estava tão esplendoroso, mostrando-Se na sua verdadeira glória e deixando-a transparecer aos Apóstolos por Ele convocados para o alto do monte, que eles ficaram não só maravilhados, mas não queriam ir embora. São Pedro propõe ficar ali em cima, arranjarem tendas e não sair mais (cf. Mt 17, 4).

Em toda a História não se viu um rei que fosse objeto dessa aclamação: “Vamos ficar aqui juntos de vós, não precisamos mais do resto do mundo, ficaremos olhando para vós!” Pelo contrário, o rei é muito admirável, mas as pessoas gostariam de lhe dizer: “Senhor, dai-me cargo, dinheiro, honra… Desejo vos servir, mas quero que também vós me sirvais. Nada de ficar aqui parado só para vos olhar. Quero ser fiel, sede fiel vós também. Aliás, antes mesmo de vos ter prestado serviço, já tenho a lista dos benefícios que quero de vós.

E quando os receber, mostrarei ao povo, nas ruas da capital, para ser apreciado e admirado eu também. Isso de viver só para vos admirar não basta…” Esta é a história de todas as monarquias terrenas. Com Nosso Senhor não. Ele apareceu em sua majestade.

Reação: “Fiquemos aqui, não precisamos de mais nada!” Além da esplendorosa manifestação de sua realeza no Tabor, Ele teve também a do Domingo de Ramos à qual aludi há pouco. Embora não tenha sido saudado como Rei, é evidente que aquele povo aclamava n’Ele uma majestade pessoal, presente n’Ele, que se exprime na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus com esta invocação magnífica: “Cor Iesu, maiestatis infinitae, miserere nobis” – Coração de Jesus, de majestade infinita, tende compaixão de nós.

Majestade de Nosso Senhor na morte, na Ressurreição…

O que quer dizer coração aqui? O culto incide sobre o Coração de carne d’Ele, símbolo da alma, do espírito, da mentalidade, dos desejos, dos propósitos, os quais eram de uma majestade infinita.

O que isso significa? Tudo quanto Nosso Senhor Jesus Cristo queria era de uma grandeza ilimitada; o que Ele inteligia possuía um descortínio sem fim; nos desígnios d’Ele, a bondade era de uma majestade infinita, como também sua justiça.

Ele deixou claro que a manifestação dessa justiça, de uma majestade infinita, estaria reservada para depois. E foi guardada para sua morte e o dia em que vier julgar os vivos e os mortos no fim do mundo, quando Ele virá na majestade de Rei e de Deus, acumuladas. A majestade da morte do Divino Redentor! Ele morreu sob o desprezo geral, compensado pela adoração indizivelmente preciosa de Nossa Senhora e, num grau respeitável, mas enormemente menor – porque tudo quanto existe, exceto Nosso Senhor, é incomparavelmente menor do que Maria Santíssima – pela adoração de São João, das santas mulheres, do bom ladrão. Iniciam-se, então, o que Bossuet – o grande Bispo de Meaux, na França, e pregador sacro dos mais eminentes – chama de “os funerais do Filho de Deus”.

Que rei teve ou terá semelhantes funerais? A terra treme, o Sol se obscurece, o véu do Templo se rasga. Com o tremor da terra, as sepulturas dos justos do Antigo Testamento se abrem e eles saem pelas ruas (cf. Mt 27, 52), exprobrando a todos os homens maus o pecado de deicídio que tinham cometido, pois era o pecado da nação inteira. Quando o povo disse: “Que o sangue d’Ele caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27, 25), o pecado da nação foi cometido.

Então, a acusação desses pecadores se faz com essa majestade suprema. Porém, a majestade de Jesus, Nosso Senhor, se mostra também quando Ele, ressurreto, aparece a Maria Santíssima. Tenho como certo, embora não esteja dito na Sagrada Escritura, que ao ressuscitar, antes de Se manifestar a qualquer outra criatura, Ele apareceu a Ela.

Nosso Senhor rompeu a sepultura, os Anjos atiraram ao chão a pedra funerária e Ele saiu (cf. Mt 28, 1-3), e todas as cicatrizes da Paixão refulgiam como sóis! Depois, todas as aparições d’Ele se revestiram dessa nota de majestade. Por exemplo, Ele entra no local em que se encontravam reunidos os discípulos, ninguém sabe por onde (cf. Jo 20, 19). Estava com seu Corpo glorioso, as portas e janelas fechadas não adiantavam de nada, Ele as atravessava.

Que majestade entrar através de um muro que ninguém derrubou! Muitos reis na História derrubaram muralhas… Transpô-las sem as ter derrubado, só o Rei Jesus Cristo! Ele aparece tão bondoso, tão amoroso, mas incute tanto medo que as palavras d’Ele às santas mulheres são: “Não temais!” (Mt 28, 10)

…e na Ascensão

É indescritível o que deve ter aparecido de grandeza d’Ele na Ascensão! Enquanto falava, ia Se elevando lentamente.

À medida que Se aproximava do céu, não levado por Anjos, mas por sua própria força, ia ficando mais reluzente, mais majestoso! Em certo momento, desaparece. Pode-se imaginar a alegria de Maria Santíssima por ver glorificado o Filho que Ela vira tão humilhado! Mas, de outro lado, o que estava se passando n’Ela, de tristeza por causa da separação… Havia, entretanto, uma consolação. Tenho a impressão muito forte e vincada de que Deus não recusou a Nossa Senhora a graça concedida por Ele a numerosos Santos: amaram tanto o Santíssimo Sacramento que, a partir de determinado momento de suas vidas, nunca mais a Sagrada Eucaristia deixou de estar presente neles.

Comungavam, e as Sagradas Espécies ficavam no Santo até que ele comungasse novamente. Foi o caso, por exemplo, de Santo Antônio Maria Claret, fundador dos padres do Coração de Maria, no século XIX. Ele veio a ser, assim, um tabernáculo vivo de Nosso Senhor.

Tendo Nossa Senhora sido, no período de gestação, o Tabernáculo vivo do Salvador, será que Ele indo para o Céu não manteve n’Ela esta condição? Pelo menos a partir da primeira Missa, creio que jamais Nosso Senhor deixou de estar presente em sua Mãe virginal. Após a Ascensão, certamente Ela pensava: “Ele está no Céu, mas também aqui!” Os Apóstolos, por sua vez, com certeza cogitavam em celebrar já no dia seguinte e recebê-Lo, por tempo maior ou menor, em seus corações.

A presença eucarística começava, assim, a consolar a Igreja dessa longa separação de muitos mil anos, que cessará quando Ele vier no dia do Juízo Final.

Grandeza até nas piores humilhações

Pode-se imaginar grandeza régia comparável a essa? Pois bem, há mais. Que Nosso Senhor fosse adorado no seu esplendor, está explicado. Mas não é só isso. Os inimigos d’Ele, querendo achincalhá-Lo, sujeitaram-No às humilhações da Paixão. De ponta a ponta, Ele bebeu inteira a taça de todas as dores e vexações possíveis.

Os algozes não supunham que ao longo dos séculos começaria uma adoração de cada humilhação sofrida por Ele, e que diante de imagens representando-O sentado com a coroa de espinhos, o manto de irrisão e a vara de cretino na mão, os maiores sábios se ajoelhariam e chorariam de emoção.

Os reis mais poderosos tomariam por elogio exagerado serem comparados, de longe, a esse Rei sentado naquele trono dos bobos. Aquele Homem dignificaria de tal maneira a Cruz na qual fora cravado que, no alto de todas as coroas das nações católicas, a cruz seria o sinal da glória. Quer dizer, ninguém foi, nem de longe, tão grande quanto Ele, considerado não só nas horas de glória, mas nas de pior humilhação. Aliás, mesmo nessas horas, Ele deu sinais de poder incríveis como, por exemplo, ao bom ladrão, a quem o Divino Crucificado canonizou no alto do Calvário, com esta promessa pronunciada por quem é Rei do Céu e da Terra: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Notem! A promessa não é a seguinte: “Hoje estarás no Paraíso”. Jesus sabia que se não dissesse que estaria com Ele a promessa não seria completa, pois um Paraíso onde não estivesse Ele não seria Paraíso. Que realeza!

O maior ódio da História até o fim dos séculos

Certa ocasião, um historiador francês cético fez esse comentário: Os historiadores costumam passar por cima da figura de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu lhes pergunto quem é o homem que tenha, ao longo da História, conseguido que tantos outros se pusessem de joelhos com tanta humildade, e se considerado honrados por terem se ajoelhado diante de sua figura? Se depois disso ele não é digno de entrar na História, o que faz a História? Esses compêndios de História usados nos colégios, mesmo em universidades, tratam de toda espécie de coisas, d’Ele não falam.

Ora, Nosso Senhor é o centro da História. E se Ele não foi grande, quem o foi? Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, levado pelo seu entusiasmo, o senhor está ladeando o problema. Está provado que César, Carlos Magno, Napoleão existiram, mas quem provou que Jesus existiu?” Ora, é a existência histórica mais certa que há! Porque todas as razões pelas quais nós acreditamos que César existiu, nos levam a crer que Jesus Cristo existiu.

Um cretino, certa vez, me perguntou: “Onde estão os originais dos Evangelhos?” A resposta possível era: A Causa Católica estaria muito mal servida se o fosse por você! Porque se houvesse em algum lugar uma pilha de pergaminhos com os originais dos quatro Evangelhos, quem nos garantiria serem, de fato, os originais? Não provariam nada! Poderiam ser um muito bom objeto de culto, de investigação histórica, um documento antigo; prova, não. Seria preciso provar que aquelas provas eram provas. Agora, eu pergunto: onde estão os originais das Catilinárias de Cícero? Não obstante, quem põe em dúvida que Cícero existiu e que é o autor daquelas Catilinárias? Ninguém, por uma série de razões históricas.

Estas existem no caso de Nosso Senhor com superabundância. Pode ser razão de grandeza o ódio que alguém despertou? Sim, porque os medíocres não despertam ódio.

Para ser odiado como Nosso Senhor o foi, até depois de morto, há uma forma de grandeza régia. Até nisso Ele foi e é incomparavelmente grande. Ele será odiado com o maior ódio da História até o fim dos séculos. Quando o Anticristo vier, será uma espécie de personificação do ódio contra Ele. Também a vitória d’Ele sobre o Anticristo será alcançada de um modo que nunca nenhum rei teve: com o sopro da boca Ele o liquida (cf. 2Ts 2, 8). Não é nem sequer o tato de um peteleco, é um sopro da boca! Reduzido a pó, acabou a História, começa o julgamento!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/9/1986)

Guerreiro justíssimo, defensor de uma causa santíssima

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei, tanto em virtude do poder espiritual quanto do temporal. A coroa que Ele usa simboliza a plenitude de seu poder. Não o domínio necessariamente limitado de um monarca terreno, mas o poder ilimitado de Deus.

Isto significa que a mais alta figura da organização humana não é um rei ou qualquer outro chefe de Estado, nem um papa, mas é Cristo Rei.

A doutrina da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é própria a despertar uma profunda adoração a Ele, inclusive no referente ao poder temporal, considerado como mero instrumento do Homem-Deus, Senhor de todas as coisas e dominando tudo: “Rex regum et Dominus dominantium”.

Esta concepção de que o cetro global do poder encontra-se nas mãos divinas de Nosso Senhor Jesus Cristo eleva tanto a ideia sobre a sociedade temporal, que daí decorre a noção de sacralidade.

Por outro lado, Nosso Senhor, enquanto presente na Sagrada Eucaristia, tem um título de peculiar presença entre os homens e, portanto, também na História, na qual Ele é especialmente atuante a partir do Santíssimo Sacramento. Porque Jesus na Eucaristia é, por assim dizer, Nosso Senhor que desce do Céu à Terra e, como Homem-Deus, continua ao lado dos homens a luta que Ele começou por ocasião da Encarnação do Verbo.

Assim, seria preciso acrescentar a Nosso Senhor, ao lado de Sacerdote, Pontífice e Rei, o título de Guerreiro no exercício da realeza. Atributo que não se confunde com a realeza, mas lhe é inerente. Cristo Gladífero e Cristo Eucarístico estão, pois, na mesma linha, intervindo dentro da História, mas morando entre os homens.

Enquanto Eucarístico, Ele é o Bom Pastor; enquanto Gladífero, seria mais o Deus do Apocalipse, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como um cavaleiro que avança terrível, montado num cavalo branco com uma espada na boca, para batalhar(1). Portanto, o símbolo do cavaleiro mais do que armado.

Nós, como cavaleiros católicos, devemos querer imitar o Divino Mestre, que tem bondades inimagináveis, mas também severidades terríveis. Este é o verdadeiro cavaleiro: bondoso, misericordioso, paciente, mas que em certo momento recebe um sinal de Deus, por onde acaba a hora da misericórdia e começa a da justiça. Com este olhar devemos considerar aqueles que nos atacam e nos perseguem, perseguindo a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se a Sagrada Escritura apresenta Jesus Cristo assim, é porque Ele tem também este aspecto, enquanto paradigma do cavaleiro. Nessas condições, Ele deve ser admirado e amado por nós como um guerreiro justíssimo, defensor de uma causa santíssima que é a Causa d’Ele, pois Ele é a própria Inocência e Justiça, que investe indignado contra aqueles que recusam a sua misericórdia e insistem em destruir a obra d’Ele. Visto deste ângulo, o Apocalipse é a narração das intervenções divinas na História, ou seja, Cristo Rei intervindo na História e vencendo.

Como corolário disso, temos a realeza de Maria Santíssima. Porque todo o poder d’Ele sobre os homens passa antes por Nossa Senhora. Ela é, por assim dizer, a Rainha-Mãe regente da Terra(2).

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Cf. Ap 1, 16;  6, 2.

2) Cf. Conferências de 2/9/1982, 10/9/1989 e 30/4/1993.

Dilatando o Reinado de Cristo

A Fé é uma virtude sobrenatural que dá ao homem a capacidade de admitir as verdades reveladas por Jesus Cristo e Escritores Sagrados, propostas pela Santa Igreja.

Sua origem é divina não somente na Pessoa do Verbo Encarnado, o Mestre por excelência, mas também nos Profetas e Apóstolos, que nada mais foram do que instrumentos do Espírito Santo ao nos transmitirem as novidades doutrinárias da parte de Deus. É também divina no seu princípio, porquanto sem a graça de Deus não é o homem capaz de crer. É finalmente divina no seu objeto que são as verdades escondidas em Deus, a quais sua Misericórdia se digna comunicar às criaturas.

Considerados os elementos divinos, a Fé é imutável e em dois sentidos. Primeiro, uma verdade revelada jamais poderá ter um sentido numa época e outro sentido diverso em outra diferente. Jamais o que foi crido pela Igreja como verdade de Fé na Idade Média deixará de o ser nos tempos que correm, ou terá hoje um sentido diverso do sentido que se encontra na profissão de Fé dos fiéis daquela época. Depois, o campo da Revelação está limitado, de maneira que não haverá mais novas verdades reveladas. Tudo quanto a Divina Bondade quis manifestar ao homem, o fez até a morte do último Apóstolo.

Embora a Fé seja sempre a mesma, não obstante pode haver dogmas novos, isto é, verdades que se achavam implícitas na Revelação Apostólica e que a Santa Igreja explicitou, e impôs à Fé dos fiéis, como acontece com o Dogma da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Note-se, no entanto, que neste crescimento na Fé de que é capaz o homem e a humanidade, jamais pode vir o indivíduo a admitir uma verdade inteiramente nova, que não se encontra de maneira implícita na Revelação Apostólica, nem chegar à aceitação de uma atitude que contrarie aquilo que foi explicitamente estabelecido pelo Divino Fundador da Santa Igreja.

Esta exposição nos mostra como se difunde o Reinado de Jesus Cristo não somente angariando novos membros para a Santa Igreja, mas também intensificando nos fiéis a vida da Fé pelo conhecimento mais profundo das verdades reveladas, e pela conformação sempre mais perfeita da vontade com estas verdades.

Não basta o ideal vago de dilatar o Reinado de Jesus Cristo. É preciso que se conheça em que consiste este Reinado. É pela integridade da Fé e a pureza dos costumes que impera Nosso Senhor Jesus Cristo e se dilatam os domínios da Santa Igreja, que são os seus domínios. Neste sentido é obra de apostolado toda atividade dedicada à conservação do Divino Depósito entregue à Santa Igreja íntegro e sem delapidações, quer na parte doutrinária, quer na jurídica ou moral(*).

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 236 (Novembro de 2017)

 

* Excertos do artigo Ação Católica – problemas, realizações e ideais – Em prol da Ação Católica, publicado em O Legionário de 12/11/1944.

 

OBEDIÊNCIA A CRISTO REI

Há séculos os católicos mantêm o belíssimo culto a Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Rei de todas as criaturas. Mas, além das orações e da veneração aos símbolos, é preciso fazer algo mais para honrar essa divina realeza. O quê? Dr. Plinio o diz neste artigo.

A doutrina da realeza de Jesus Cristo está intimamente ligada à antiga e belíssima prática da entronização do Sagrado Coração de Jesus nos lares. Se alguém entroniza a imagem do Sagrado Coração de Jesus no lugar mais rico e mais nobre do lar, é exatamente porque reconhece que Ele é rei. Entretanto — triste constatação! —essa piedosíssima prática acha-se em nossos dias quase completamente abandonada.

Nessas condições, talvez não seja supérfluo recordar aqui a doutrina tradicional da Igreja sobre a realeza de Cristo.

Na sua infinita misericórdia, Deus dignou-se comparar o amor infinito com que nos ama, ao amor que nos têm nossos pais. Evidentemente, não quer isto dizer que Ele tenha reduzido na comparação as insondáveis dimensões de seu amor, para as amesquinhar até as proporções exíguas dos afetos de que os homens são capazes. Se Ele se serviu dessa comparação do amor paterno, foi apenas para nos dar a entender, de longe, o quanto Ele nos ama.

Se dermos à palavra “pai” o sentido  que ela tem na ordem natural, Deus não é apenas nosso Pai, mas, muito mais do que isto, por ser nosso Criador. Porém, como a função de pai, na natureza, não é senão a de coadjuvar Deus na obra da criação, se alguém merece na realidade o nome de Pai, é Deus. E nosso pai segundo a natureza outra coisa não é senão o depositário de uma parcela da paternidade que Deus tem sobre nós.

O mesmo se dá com a realeza de Jesus Cristo. Para nos fazer compreender a autoridade absoluta que, como Deus, Ele tem sobre nós, Jesus Cristo dignou-se comparar-se com um rei. Entretanto, como é por Ele que reinam os reis, e a autoridade dos reis só é autêntica por provir d’Ele, na realidade o único Rei, Rei por excelência, é Ele. E os reis ou chefes de Estado não são senão seus  humildes acólitos, dos quais Ele se digna servir-se na obra da direção do mundo. Cristo é Rei por ser Deus. Chamando-O de Rei, queremos simplesmente afirmar a onipotência divina, e nossa obrigação de obedecer-Lhe.

Obediência! Eis aí um dos conceitos contidos essencialmente no conceito da realeza de Nosso Senhor. Cristo é Rei, e a um rei deve-se obediência. Festejar a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é festejar seu poder sobre nós. E, implicitamente, nossa obediência em relação a Ele. Como é que se obedece a um rei?

A resposta é simples: conhecendo-lhe as vontades e cumprindo-as com amorosa e pormenorizada exatidão. Assim, pois, o único modo de obedecermos a Cristo Rei é conhecer sua vontade, e segui-la.

Dessa noção tão clara, tão simples, tão luminosa, segue-se um programa de vida, também ele claro, luminoso e simples.

Para conhecer a vontade de Cristo Rei, devemos conhecer o Catecismo. Porque é ali, através do estudo dos Mandamentos, estudo este que só será completo com o estudo de toda a doutrina católica, que conhecemos a vontade de Deus. E para seguir essa vontade, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos e por nossas boas obras. Finalmente, pela vida interior, isto é, pela devoção a Nossa Senhora — tesouro doutrinário e espiritual constituído pela Igreja ao longo dos séculos —, seguiremos a vontade de Deus.

Disse Nosso Senhor que o Reino de Deus está dentro de nós mesmos. Ora, este pequeno reino — pequeno como extensão mas infinito como valor, porque custou o Sangue de Cristo — cada um de nós deve conquistar para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, dentro de nós, se oponha ao cumprimento de sua Lei.

Finalmente, as leis de Cristo se aplicam, não apenas a um indivíduo em particular, mas aos povos e nações.

Que os povos conheçam e pratiquem na sua organização doméstica, social e política, os ensinamentos tradicionais da Igreja, que são a expressão da própria vontade de Deus, e Jesus Cristo será Rei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito da “Última Hora”, de 8/1/1982. Título nosso.)

O olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo

Se numa noite sem luar contemplarmos com espírito de Fé o céu estrelado, ele produzirá grande efeito sobre nós. E nos fará lembrar algo infinitamente superior: o olhar do Redentor, no qual há galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre nós como uma abóbada protetora.

Quando a pessoa se porta ordenadamente face à ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso do ser procurar o maravilhoso nas coisas que constituem o universo que ela procura conhecer, tende ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais nas criaturas que a circundam.

O sentido da vida terrena

Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha, azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo, se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia. Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres excelentes — um relacionado mais diretamente ao corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso, a criança deseja o carinho da mãe.

Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material! Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação de cumpri-la.

Mas ai também dos familiares que não criam em torno de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio de alma é o fundamental da ordem do universo!

Este é um ponto muito importante, porque as criaturas de uma ordem mais elevada têm uma função normativa e orientadora em relação a todas as inferiores. E os espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhecendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor o que está abaixo.

Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso, nosso senso católico se sintam como o navio que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das tormentas, este é o sentido da vida terrena.

O ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus

A alma encontra este sentido superior da existência quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos — sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria, de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado, e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja, mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração, por um lado. Por outro lado, na sua superioridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem cordas de nossas almas que não sabíamos existirem. Assim é Ele!

Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão de que os seus divinos olhos estão pousando sobre mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado por Ele.

Mais alvos do que a neve

Tudo isso junto, formando um panorama que paira por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes, quando se olha para o céu muito estrelado não é nada em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente incomparáveis!

Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria vêm à tona.

Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor”(1); o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente, e eu ficaria mais alvo do que a neve!

Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi, sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente reprobatório, enormemente amoroso, envolvente e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte sentido: não há barreiras, venha; elogio é isto!

E tocando, não o grosso bordão dos sinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o sino leve e alegre de Nossa Senhora, a alegria do perdão. Ela põe junto dessa seriedade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo uma nota qualquer de louçania que fala em perdão, em esperança, em alegria, que a completa admiravelmente. Tudo isso está e tem fundamento n’Ele, mas Nosso Senhor é grande demais para, num olhar só, podermos abarcá-Lo. Então, olha-se para Maria Santíssima, e Ela diz: “Meu filho!” Porque ao cabo de algum tempo aquela imensidade nos faz sentir tão pequenos, tão pequenos, tão pequenos, “petit vermisseau et misérable pécheur”(2), que se tem vontade de dizer: “Senhor, não me esmagues de tanto me amar!” Mas entra Ela e dá um repouso, uma distensão, está feito tudo na perfeição.

Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita melhor.

Conhecimento por conaturalidade

Esses estados de alma constituem o afeto que devemos procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada, porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.

Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de tal quer muito bem a você porque foi educado com você desde pequeno…”, diz-me pouco, porque se nossas almas são diferentes nesse ponto, o que fazer?

Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-lo e dizer:
“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos pressentíamos!”

Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar esse céu estrelado, lembrar-me do olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando sobre mim, é algo infinitamente superior ao céu estrelado, mas que tem certa analogia, cujo analogado primário é o Céu, a partir do qual, na imensidade de suas virtudes e qualidades, Ele olha para mim. Há n’Ele galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre minha cabeça como uma abóbada protetora!

A partir daí vem o desejo da boa amizade segundo Deus, amar o próximo como a si mesmo por amor de Deus, podendo dar origem a um relacionamento humano que, com tal plenitude, creio eu, talvez não tenha sido tão frequente na própria Idade Média.

Suponho que se a Idade Média tivesse continuado, o Sagrado Coração de Jesus teria revelado essa devoção de qualquer forma. A grande maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa devoção.

Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente errada.

Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças, etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem tem um conhecimento por conaturalidade.

Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —, entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido pela sensibilidade para entender que nesse conjunto — razão e sensibilidade — encontra-se a cognição completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem assim, por conaturalidade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1986)

1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado, lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.
2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.