Caminho para a devoção eucarística

O devoto da Santíssima Virgem encontrará  no Coração de Maria o próprio Coração de Jesus, naquilo que este Coração tem de mais amoroso, mais terno e mais compassivo. Ora, onde mais se manifestam as finezas do Coração de Jesus é na Sagrada Eucaristia.

Assim, a devoção a Nossa Senhora leva natural e espontaneamente à devoção eucarística. E é aí — neste culto à Eucaristia, que só pode ser plenamente fervoroso com o culto mariano, pelo culto mariano e no culto mariano — que os católicos encontrarão o alimento de sua vida espiritual.

 

Eucaristia

Ao recebermos o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia, devemos imaginá-Lo vindo à nossa alma da mesma forma como Ele entrava na casa dos doentes que ia curar: com afeto, semblante sereno, transbordante de bondade, disposto a ouvir e desejoso de fazer o bem. Em seguida, operava o milagre, concedia a graça.

Tal é o amor com que o Deus infinito olha para nossa alma e nos espera. É para tal intimidade que nos convida. Nunca seremos tão íntimos de alguém quanto de Nosso Senhor, na Sagrada Eucaristia!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 15/9/1973)

Esplendores da piedade Eucaristica

Em sua divina sabedoria, a Igreja sempre soube fazer face de modo admirável aos ataques de seus adversários, mormente quando estes incidiram sobre valores fundamentais da piedade católica.

Ela assim procedeu, por exemplo, no século XVI, diante da heresia que negava a presença real de Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento.

A condenação desse erro no campo doutrinário, foi complementada por um surto de entusiasmo e fervor na celebração do culto eucarístico. Surgiram as grandes cerimônias e procissões em louvor ao Santíssimo Sacramento no mundo inteiro.

A data mais apropriada para tais manifestações de devoção era, sem dúvida, a festa de Corpus Christi, instituída na Idade Média. Ganhou ela, assim, um novo incentivo e um novo porte, revestindo-se de todas as pompas e riquezas que a Liturgia gerou especialmente para essa extraordinária forma de revanche aos ataques das heresias. Levar-se-ia triunfalmente pelas ruas o próprio Deus, presente na hóstia consagrada, como quem afirma: “Vamos proclamar desta forma nossa fé no Santíssimo Sacramento. Proclamamos tão ostensiva e magnificamente para sobrepujar a cacofonia do erro com as melodias, as fanfarras e a presença da população católica”.

E como não conservar na lembrança as procissões das quais participamos no entusiasmo de nossa alma, quando o bulício das agitações cotidianas cedia lugar à paz e quietude de um feriado religioso, onde o silêncio da rua era interrompido apenas pelos cânticos e invocações de louvor ao Santíssimo Sacramento!

As ruas artisticamente atapetadas de flores, formando desenhos de hóstias, cordeiros e outros símbolos eucarísticos, indicavam o trajeto da procissão. As calçadas apinhadas de gente enlevada e piedosa, que se ajoelhava à passagem do Divino Homenageado, conduzido pelo bispo ou sacerdote no seu ostensório de ouro cravejado de pedras preciosas, sob um dossel ou uma umbrela que lhe servia ao mesmo tempo de proteção e ornamento.

A cena se repete nos mais variados recantos da Terra, desde pequenas cidades interioranas até a Praça de São Pedro, em Roma, onde o próprio Sumo Pontífice leva o adorável Corpo de Cristo à frente de uma imensa multidão de fiéis que o seguem pelas famosas colunatas de Bernini, sob o repicar festivo dos sinos.

O mesmo se vê em ruas seculares de cidades européias

— como, por exemplo, Toledo e Sevilha, na Espanha — com requintes de solenidade e esplendor que só a piedade católica seria capaz de conceber para honrar dignamente a Sagrada Eucaristia.

Assim era também nas ruas da Viena imperial, onde as procissões em louvor do Santíssimo alcançaram um ápice de magnificência, na época em que o poder temporal se curvava diante do Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Abaixo, o leitor poderá beneficiar-se com a narração de uma dessas esplêndidas celebrações, realizada na bela Capital austríaca em 1912, por ocasião do Congresso Eucarístico de Viena. Dela participaram o Imperador Francisco José à frente dos grandes dignitários do Império, tropas militares com suas bandas e fanfarras, e centenas de milhares de fiéis.

Às oito horas, a tropa já tinha tomado posição. O cortejo, composto exclusivamente de homens, saía do átrio da catedral de Santo Estevão, enquanto 150 mil mulheres e moças formavam-se em duas alas desde a catedral até a porta monumental que dava acesso ao palácio imperial.

Primeiramente avançam as paróquias de Viena, em seguida os magnatas húngaros, os tiroleses em número de oito mil, os bósnios, os tchecos, os moravos, os rutenos e os romenos. Eis a seguir as delegações estrangeiras: os franceses, os espanhóis, os italianos, os ingleses, os alemães, etc.

São onze horas e meia. O clero vai entrar em cena. Compõe-se de cinco mil sacerdotes e religiosos ordenados hierarquicamente: simples padres, párocos, monges de todas as Ordens, cônegos e, encerrando o bloco, duzentos bispos com capa, mitra e báculo.

Fanfarras de trompetes anunciam o terceiro cortejo — do Santíssimo Sacramento — atrás do qual seguirá o do Imperador-Rei. Na primeira linha estão escudeiros vestidos de vermelho rutilante; em seguida, militares da corte, com “panache” branco, montados em cavalos cinzas; os dragões e os hussardos. Ainda um esquadrão de cavalaria e eis que surgem os cardeais.

Fanfarras ressoam, sinos tocam por toda parte e — precedida por oficiais, camareiros e pelo grande marechal da Corte — penetra na Helden Platz (Praça dos Heróis), a carruagem da coroação de Maria Teresa, pintada por Rubens, atrelada por oito cavalos negros. A parte alta é quase toda de vidro e pode-se ver comodamente o legado papal, ajoelhado ante um altar no qual está o ostensório.

A chuva cessa por um momento e o sol deixa entrever alguns pálidos raios. Muitos caem de joelhos, sem se preocuparem com a lama. Aí então, num silêncio dos mais comoventes, passa o Deus da Eucaristia. Como Nosso Senhor deve ter abençoado estes humildes que se inclinam ante sua passagem, e ouvido os ecos de sua comovida piedade!

Depois da carruagem de Nosso Senhor, eis agora a do Imperador. Numa carruagem atrelada por oito cavalos brancos, trajando uniforme azul, Francisco José olha fixamente o Santíssimo Sacramento, que ele acompanha. A seu lado está o arquiduque herdeiro.

O cortejo termina por uma soberba cavalgada da guarda montada austríaca, da guarda montada húngara e pelas carruagens dos arquiduques. Desenvolve-se conforme o itinerário prescrito, mas é impossível celebrar a Missa, e mesmo dar a Bênção, no lugar onde está montado o altar. Uma feliz ideia é enunciada pelo legado papal: ele se volta em direção à multidão perfilada e seu carro percorre de novo a imensa praça. Através da vidraça da carruagem aparece nitidamente o prelado elevando o ostensório e abençoando a multidão. Todos ficam consolados por esta bênção suprema.

Precedendo ou seguindo o Santíssimo Sacramento, os bispos, os cardeais e o Imperador entram então na capela do palácio imperial, onde o cardeal legado celebra a santa Missa, à qual assistem piedosamente o Soberano e toda a Corte.

É uma hora da tarde: a imensa multidão se dispersa. Estão felizes por terem honrado a Sagrada Eucaristia, apesar da hostilidade dos elementos da natureza.

Uma dama austríaca dizia: “Nosso Senhor quer nos mostrar que é preciso fazer face às dificuldades para seguiLo”.

É um pensamento dos melhores. O Deus da Eucaristia quis permanecer o Deus escondido, mas, sem dúvida, quis receber estas homenagens dos grandes e dos humildes.

Na verdade, tais são as vinculações e as harmonias insondáveis estabelecidas por Deus na sua obra que isto é assim: o Santíssimo Sacramento — Jesus Cristo em corpo, sangue, alma e divindade, que se encontra no alto dos Céus cercado por legiões de anjos que O adoram ininterruptamente — desce para percorrer as ruas, para estar com os filhos dos homens e fazer sua alegria neste convívio com cada um de nós.

Assim como na Comunhão em que O recebemos no íntimo de nosso coração, Ele ali está, paterno, manso, cheio de bondade, e repetindo de um modo ou de outro a sua frase imortal: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis paz para as vossas almas…”

A presença de Cristo entre os homens

Em palestra feita numa Quinta-Feira Santa, dia da instituição do Santíssimo Sacramento do Altar, Dr. Plinio salienta nosso dever de agradecimento a Jesus e a Maria por esse dom de valor infinito.

 

Hoje é o dia da instituição da Santíssima Eucaristia. Os senhores devem tomar em consideração a propósito da Santa Ceia, o seguinte pensamento que me ocorreu certa vez.

Uma pessoa que tivesse Fé e soubesse que Nosso Senhor Jesus Cristo era Deus, assistisse à sua Crucifixão e estivesse informada de que depois viriam a Ressurreição e a Ascensão, essa pessoa poderia se perguntar: “Depois da Ascensão, nunca mais virá Ele à Terra? Então, até o fim do mundo Ele estará ausente? Seria isto arquitetônico? Seria razoável, tendo Ele feito pela humanidade tudo quanto fez?”

Jesus Cristo imolou sua vida de um modo dolorosíssimo e resgatou todo o gênero humano. Ele quis condescender em contrair com os homens que Ele salvou essa relação tão especial, de ser Ele a cabeça do Corpo Místico, que é a Igreja. E quis, pela graça, estar continuamente com todos os homens até o fim do mundo, de maneira a, por ela, vir a ser a alma de nossa própria alma, o princípio motor de nossa vida sobrenatural. Poderia, então, haver deste lado tanta união com Ele e, uma vez Ele morto, uma tão completa, tão prolongada, tão irremediável separação? Seria possível que Jesus subisse aos Céus e cessasse assim a presença real d’Ele na Terra?

Tudo clamava pela instituição da Eucaristia

Não quero dizer que a Redenção e o sacrifício da Cruz impusessem a Deus, em rigor de lógica, a instituição da Sagrada Eucaristia. Mas pode-se dizer que tudo clamava,tudo bradava, tudo suplicava por que Nosso Senhor não se separasse assim dos homens.

E uma pessoa com senso arquitetônico deveria entrever que Nosso Senhor arranjaria um meio de estar sempre presente, junto a cada um dos homens por Ele remidos. De forma tal que, depois da Ascensão, Ele estivesse sempre no Céu, no trono de glória que Lhe é devido, mas ao mesmo tempo acompanhasse passo a passo a via dolorosa de cada homem aqui na Terra, até o momento extremo em que cada um dissesse, por sua vez: “Consummatum est” (Jo 19,30).

Como se faria essa maravilha?

Essa hipotética pessoa não poderia adivinhá-la, mas deveria ficar sumamente suspeitosa de que, de algum modo, ela se realizaria. De tal maneira está nas mais altas conveniências da qualidade de Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo — o qual é nosso Protetor, nosso Médico, nosso divino Amigo — que seria próprio d’Ele fazer por nós esse prodígio.

Eu creio que se eu assistisse à Crucifixão e soubesse da Ascensão, ainda que não soubesse da Eucaristia, eu começaria a procurar Jesus Cristo pela Terra, porque não conseguiria me convencer de que Ele tivesse deixado de conviver com os homens.

Presente em todos os lugares, em todos os momentos

Esse convívio verdadeiramente maravilhoso de Jesus Cristo com os homens se faz, exatamente, por meio da Eucaristia.

Em todos os lugares da Terra, em todos os momentos, Ele está realmente presente, nas catedrais opulentas e nas igrejinhas pobres. Quantas vezes, viajando em estradas de rodagem, encontramos umas capelinhas minúsculas, pobres, que dão para acolher apenas umas vinte ou trinta pessoas. Passamos por uma delas e comovemo-nos, pensando que nela Nosso Senhor Jesus Cristo esteve, está ou estará realmente presente — com toda a glória do Tabor, com toda a sublimidade do Gólgota, com todo o esplendor da Divindade — de tal maneira Ele multiplicou pela Terra a sua presença adorável!

Olhamos para as pessoas que encontramos numa igreja, e pensamos: “Nosso Senhor Jesus Cristo está presente neste homem que comunga. Naquele outro, estará ainda nesta semana, talvez hoje mesmo, talvez amanhã. Estará presente tantas e tantas vezes! Eis um homem que vai ser transformado, embora por algum tempo, num sacrário vivo. Muito mais do que num sacrário, porque o tabernáculo contém as espécies eucarísticas, mas não comunga”. Aí nós podemos medir bem a prodigiosa obra de misericórdia realizada por Nosso Senhor, com a instituição da sagrada Eucaristia. Tanto quanto a presença d’Ele tem um valor infinito, tanto assim também tem valor infinito o fato de Ele estar realmente presente sob as sagradas espécies por toda a Terra, e em todos os homens que queiram condescender em O receber.

É muito bom, também, imaginarmos as horas e horas e horas que Ele passa abandonado nos sacrários, adorado apenas por Nossa Senhora, pelos Anjos e Santos do Céu. Pensar nos homens ausentes e distantes, e Ele à espera de que um deles queira vir recebê-Lo. De tal maneira o Infinito se sujeita ao que é finito, Aquele que é a própria pureza e a própria perfeição, se sujeita às boas disposições e, mais ainda, às vezes às más disposições daqueles que bem mal O querem receber.

Enlevo e gratidão

Por pouco que se pense nisto tudo, nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo, de gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Última Ceia. Só uma inteligência divina poderia excogitar a sagrada Eucaristia, poderia imaginar esse meio de estar presente por toda parte e de entrar em todos os homens. E só mesmo um Deus podia realizá-lo!

Por mais que essas verdades sejam sabidas, é imperioso que nós detenhamos sobre elas nossa atenção e, por intermédio de Nossa Senhora, demos graças enormes a Deus, pela instituição da sagrada Eucaristia.

Simplesmente agradecer “por intermédio” de Nossa Senhora?

Se é verdade que todo dom vindo do Céu para os homens foi pedido por Ela — porque sem seu pedido o dom não teria sido dado — é verdade que Nossa Senhora pediu a instituição da sagrada Eucaristia, e foi pelos rogos d’Ela que Nosso Senhor Jesus Cristo a instituiu. Portanto, não devemos utilizá-La apenas como intermediária desse agradecimento, mas devemos agradecer também “a Ela” a sagrada Eucaristia.

Devemos agradecer a Jesus, que condescendeu em instituí-la, e a Maria que, movida pela graça, pediu a Deus esse favor transcendentalíssimo, e o obteve para nós.

É este pensamento que não pode deixar de estar presente nos nossos espíritos nesta Quinta-Feira Santa.

A maravilha da Missa

Há um pensamento transcendental, que também devemos ter em vista hoje, e que diz respeito ao santo Sacrifício da Missa. Os senhores sabem bem que a transubstanciação se opera no próprio ato em que Nosso Senhor Jesus Cristo renova a sua Paixão. A essência da Missa, que é a renovação da Paixão e Morte de Jesus Cristo, está na transubstanciação, que é o prodígio pelo qual o pão e o vinho se fazem Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas palavras sacramentais pronunciadas pelo sacerdote. A Missa, que é ao mesmo tempo oferecimento e imolação, é também o ato determinante da presença real de Jesus sob as espécies que depois se conservam nos sacrários. Então, aquele homem que estivesse presente no Calvário, depois do “Consummatum est”, depois que as santas mulheres receberam o corpo descido da Cruz, depois que Nossa Senhora chorou sobre Ele e foi embalsamado, depois que Ele foi levado até o sepulcro, depois que a Cruz ficou sozinha no alto do Gólgota e todo mundo foi embora — aquele homem ali solitário, com o espírito cheio de Fé, compreenderia ser aquela Cruz o símbolo de um ato que tinha que se re-

novar, de um ato que, pela mesma lógica, convinha enormemente que se multiplicasse.

Esse ato, de fato, se renovou de um modo prodigioso por toda a Terra, e continuará se renovando até o fim do mundo, na Missa.

Os teólogos dizem que o Sacrifício da Missa tem um valor tão inapreciável e infinito, ao pé da letra, que se em um determinado dia ela deixasse de ser celebrada, a justiça de Deus cairia sobre o mundo, dando-lhe fim.

Houve um pintor — não me lembro qual — que pintou um quadro muito bonito, representando a última Missa sobre a Terra. Mostra ele, no meio do caos e da desordem, um padre que celebra a Missa, oferecendo a Deus o Sacrifício do Altar. Nesse momento, estão todos os Anjos prontos para cair sobre a Terra para executar a justiça de Deus e desencadear o fim do mundo. Mas eles todos estão parados, ainda, à espera de que a última Missa tenha sido celebrada. Porque tal é a reverência de Deus Padre para com o sacrifício de seu próprio Filho, a Ele oferecido na Missa, que nem o desígnio de acabar com o mundo O faria precipitar sua mão, antes desse sacrifício ser concluído.

Sacerdócio e bondade de Deus

Nós devemos considerar ainda que a Quinta-Feira Santa foi o dia da instituição do sacerdócio. O poder de consagrar foi conferido aos apóstolos nesta ocasião. Houve nesse dia, portanto, três maravilhas, conexas entre si: o Sacrifício, o Sacramento e o Sacerdócio, às quais se deve juntar o insigne ato do lava-pés.

Entretanto, o dia da instituição da Eucaristia, que deveria ser um dia de alegria, um dia de júbilo, é um dia de júbilo misturado com tristeza. Tristeza por causa da Paixão que se aproxima. Tristeza por causa do ódio satânico que fervia em torno mesmo do Cenáculo, onde Nosso Senhor Jesus Cristo estava por essa forma consumando a sua obra. Tristeza por causa da tibieza dos apóstolos, da fraqueza daqueles que eram, entretanto, os primeiros e os mais imediatos beneficiários de todas essas maravilhas. Tristeza por causa do filho da perdição, que estava sentado entre os apóstolos e ia executar o crime nefando, o pior crime da História, o de vender por trinta dinheiros Nosso Senhor Jesus Cristo.

E Ele, sendo Deus, tendo conhecimento de todas as coisas que iam acontecer, entretanto não trepidou em acumular tantas maravilhas sobre as pessoas desses pobres miseráveis que daí a pouco iam fazer tudo quanto fizeram, e do traidor por excelência, que fez tudo quanto fez.

Os senhores estão vendo o que é a vocação. Os senhores estão vendo o que é a misericórdia de Deus, a qual nada consegue abalar ou demover. Jesus Cristo tinha intuito de construir o seu Reino sobre a Terra, tinha o intuito de fazer daqueles apóstolos os pilares desse Reino. De fato, Ele cumulou de dons esses apóstolos. Eles foram infiéis, mas esses dons não se perderam. Os apóstolos acabaram sendo fiéis e as intenções de Nosso Senhor Jesus Cristo acabaram se realizando.

Graça a pedir na Quinta-Feira Santa

Aqui nós temos um argumento para nos estimularmos no meio de nossas incontáveis fraquezas.

Quantas razões para nós batermos no peito! Quantas razões para considerarmos as nossas confissões apressadas, as nossas comunhões mecânicas e sem piedade verdadeira! Quantas razões para pensar nas mil ocasiões em que estivemos abaixo de nossa vocação!

Entretanto, Nossa Senhora continua a nos proteger, continua a nos ajudar, continua a nos conceder graças de toda ordem. Podemos esperar que Ela tenha a intenção misericordiosa de nos conservar como seus apóstolos para todo o sempre, para a criação do Reino de Maria, apesar de todas as nossas insuficiências, de nossas carências, de nos-sas infidelidades.

E assim devemos nos inclinar a seus pés e pedir que Ela nos trate como tratou os apóstolos e obtenha para nós um trato análogo da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, pedir-Lhe que — fechando os olhos às nossas fraquezas e misérias passadas e presentes, e até mesmo àquelas que de futuro nós possamos ter — Ela queira não romper esse pacto de misericórdia que Ela estabeleceu conosco. Que Ela queira manter esse pacto e fazer chegar logo o dia mil vezes feliz em que nos confirme na fidelidade. E em que nós possamos, afinal, ser para Ela razão de uma alegria estável, permanente, durável, sólida e séria, por nossa grande fidelidade.

Esta é a graça que na Quinta-feira Santa devemos especialmente pedir.

O Santíssimo Sacramento e a misericórdia de Nossa Senhora – II

Maria Santíssima é Mãe de misericórdia e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais recebemos forças para sair do pecado e não mais ofender a Deus.

 

Na realidade, o homem encontra-se numa situação tal que lhe convém ser tratado com justiça, e por isso ele deve gostar de um trato que tenha a nota tonificante de justiça. A qualidade que ele tem lhe será reconhecida, e seu defeito também lhe será mostrado; tudo graduado de acordo com o que merece. Isso fortalece, faz bem, eleva o homem.

A importância de um braço amigo que nos sustente durante a prova

Por mais que isto seja assim, entretanto há momentos — e quantos são esses momentos! — em que a fraqueza humana aparece e o homem faz a seguinte reflexão: “Eu sei que deveria agir de tal modo e não fazer outra coisa. Vejo o peso que isto representa, e precisaria realizar um sacrifício. Porém esse sacrifício me dói. Estou disposto a fazê-lo aos poucos, mas como me faria bem se eu notasse que um olhar bondoso participa da minha dor e me diz: ‘É bem verdade, você tem que fazer esse sacrifício e a mim me dói. Eu até tomo sobre mim uma parte de seu sacrifício. Entretanto, meu filho, algo é intransferível e tem de ser feito por você, para sua glória, para seu bem. Você seria roubado se lhe fosse tirada a possibilidade de sacrificar-se. Faça o sacrifício, mas eu o olho com afeto, com compaixão durante esse tempo. Vamos para frente e coragem!’”

O homem, tratado assim durante a prova e na dor, recebe uma comunicação da força do outro. É como uma pessoa sem firmeza para andar, mas que é sustentada pelos braços de outrem. O passo é vacilante, ela anda, mas precisa de um apoio, um braço amigo que a sustente. Como não dizer “muito obrigado”? Como não sentir-se bem junto a esse braço amigo que ajuda? É evidente.

O inesgotável amor materno

Esse é bem o papel de Nossa Senhora. Ela é insondavelmente misericordiosa! Na ladainha ao Sagrado Coração de Jesus, uma das invocações é: “Cor Jesu, patiens et multæ misericordiæ, miserere nobis — Coração de Jesus, paciente e muito misericordioso, tende compaixão de nós”. A fonte de todas as virtudes é Ele. E na misericórdia, como em tudo o mais, Ele está infinitamente acima de Maria Santíssima.

Mas querendo fazer os homens sentirem, ao último ponto, a misericórdia de Nosso Senhor, Deus dispôs que ela fosse representada naquilo que é o amor mais desinteressado de que o homem pode beneficiar-se habitualmente nesta vida.

Nas épocas normais da humanidade, notamos nas relações familiares o seguinte: às vezes, o marido pode romper com sua esposa, o pai com seu filho, o filho com seu pai, os irmãos entre si; quanto aos outros graus de parentesco nem se fala! O filho pode até romper com sua mãe, mas é raríssimo a mãe romper com seu filho.

E esse amor materno vai tão longe, na ordem da natureza, que quando Jesus chorou sobre Jerusalém, antes de chegar ao Horto das Oliveiras, Ele disse: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes Eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas tu não quiseste!”(1). Para exprimir o extremo do seu amor, Ele quis compará-lo ao amor materno, mas neste grau, nesta forma: uma galinha em relação aos seus pintinhos! Ele recorreu a essa figura para nos fazer compreender, de modo tocante, o que há de inesgotável no amor materno.

Mãe das misericórdias insondáveis

Assim, Nosso Senhor dispôs que conhecêssemos e sentíssemos em sua Mãe quintessências de misericórdias que Ele deu a Ela e que nós, simplesmente na consideração do Redentor, não chegaríamos a perceber. Porque Ele é tão alto, tão perfeito, tão divino que nosso olhar não abarca tudo. Convinha, portanto, que a misericórdia d’Ele se fizesse como que outra pessoa para nós a conhecermos bem. Esta é Nossa Senhora.

Maria Santíssima fica tão bem ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ela é Mãe de misericórdia, a nossa advogada. Nosso Senhor Jesus Cristo é nosso Redentor, nosso Mediador. Ele é também nosso Juiz e nos julga. E quando pensamos que Ele é nosso Juiz… Há um salmo que diz: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit? — Se observardes, Senhor, as iniquidades, quem, Senhor, se sustentará diante de Vós?”(2). Agora chegou o justo Juiz, perfeitíssimo, que conhece tudo, cujo olhar pousará sobre mim e verá meus defeitos… Eu adoro a exigência e a intransigência desse olhar. Mas, para usar uma metáfora, eu cambaleio e preciso que alguém me sustente.

Perto de mim tenho uma Mãe que é d’Ele e minha, a Mãe de misericórdia, quer dizer, se toda mãe deve ser misericordiosa por natureza, a Mãe de misericórdia tem misericórdias insondáveis, incontáveis, inenarráveis, a todos os momentos e de todas as formas! Ela é tão perfeita e tão pura, que nunca deu a Ele o menor desagrado, o menor desgosto. Ela é a criatura perfeita em que Ele deitou seu olhar e A amou inteiramente, porque Ela nunca, nunca, nunca fez outra coisa a não ser corresponder à graça de um modo perfeito.

O melhor da misericórdia de Maria Santíssima

Qual a impostação d’Ela a meu respeito? Ela vê meus defeitos, mas não julga. Ela cobre-me com o manto e diz: “Juiz inflexível e divino, Eu vos adoro! Este é meu filho, e ainda vou dar um jeito nele. Ajudai-o, dai-lhe mais graças. Eu o amo e peço por ele. Tenho com ele um vínculo especial. Ó meu Filho, vós sabeis o que é uma mãe, pois Eu sou vossa Mãe! Com o mesmo Coração materno com que Vos amo, Eu amo a ele. Sou Eu que Vos estou pedindo!”

E com estas palavras: “Sou Eu que Vos estou pedindo”, é claro, vem a misericórdia. Quer dizer, Nosso Senhor foi tão misericordioso que, querendo nos conceder uma misericórdia levada a um limite inimaginável, criou a Mãe d’Ele, de tal maneira que Ela pedisse por nós e obtivesse o que nós, sem Ela, não poderíamos obter.

Temos aí o papel de Nossa Senhora, ao lado de todas as inflexibilidades de que falei. E aí encontramos a razão para esperar. Esperar o quê?

Maria Santíssima tem pena de nós e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais nossa alma é tocada especialmente, e recebe forças correspondentes a nossa miséria para não pecar, de maneira que possamos sair do pecado. Aqui está o melhor da misericórdia: Ela, porque tem pena do pecador, dá a ele os meios de se curar. Nossa Senhora é a Rainha e o canal de todas as virtudes, a Medianeira de todas as graças. As virtudes que temos nos foram dadas porque Ela pediu. E as que não possuímos, podemos adquirir se Ela rogar por nós. 

As mil maneiras de Nossa Senhora nos socorrer

E o que a Santíssima Virgem fará? São mil coisas: ora será um apego que Ela faz cessar e a alma encontra o caminho livre diante de si; ora uma má companhia que Ela afasta; ora uma má influência a respeito da qual Ela nos abre os olhos e nós compreendemos que aquilo não serve; ora a nossa moleza contra a qual Ela dá de repente uma força que não supúnhamos ter e fazemos aquilo que não queríamos realizar.

Quer dizer, Nossa Senhora age de mil modos, cada um deles previsto pela sabedoria divina e atuando na alma de uma determinada forma. O fato é que Ela vai atendendo, socorrendo o homem de maneira a torná-lo capaz de cumprir aquele dever magnífico apresentado de um modo tão estupendo pela Moral Católica, mas diante do qual, às vezes, o homem estremece.

Rezem à Mãe de Misericórdia! Ela os ajuda a vencer, e com mérito. Porque em nenhum momento Maria Santíssima tira nossa liberdade. Se quisermos, não correspondemos à graça, mas o caminho está aplainado, o sorriso está dado e Ela chama: “Meu filho, venha!”

Quanta misericórdia entra dentro disso! A misericórdia tem isso de próprio: ela estimula especificamente a gratidão. A quem é misericordioso temos necessidade de tratar com misericórdia. E se algum homem na vida teve misericórdia conosco, um dia em que ele precise de nossa misericórdia, será para nós uma espécie de alívio tratá-lo com misericórdia. Há uma tranquilidade para a nossa alma: encontrei uma oportunidade de ser misericordioso com ele. Os misericordiosos obterão misericórdia. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1981)

 

1) Cf. Mt 23, 37.

2) Sl 130, 3 (Nova Vulgata).