Sombras que falam…

Ela se assemelha a uma esquadra maravilhosa, fixa no fundo da laguna, e da qual cada ilha, cada bloco de casas é admirável. A pulcritude ali chegou e ali se deteve. É algo de acabado, feito, definitivo. Ela transporta minha imaginação para outras épocas e outros tempos.

Navegando por entre seus palácios nas penumbras e sombras do anoitecer, tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica, temperamental e social daqueles personagens de trajes medievais nos grandes dias da Cristandade, ou de tricórnio na era das monarquias absolutas. Semblantes ocultados por máscaras de seda cravejadas de brilhantes, olhares atentos e impenetráveis. Delicadezas, reverências, elegâncias. Aqui, lá e acolá se distinguem suaves e douradas cintilações. Murmúrio de águas, remexidas pelos remos que bailam destramente nas mãos dos condutores das embarcações.

Beleza do silêncio noturno, do mistério, do lento deslizar da gôndola naqueles espelhos líquidos, levando seus passageiros imersos nas cogitações do que fizeram ou ainda farão. Segredos perenes, sobrevivendo ao volver dos séculos nessa cidade à beira-mar.

Sob o influxo da graça, toca-nos a percepção do espírito de Fé que ergueu essas belezas, assim como nos vem a ideia dos mil fatos e cenas históricas aqui sucedidos, os quais conservam um nexo, ele também misterioso, com esses monumentos. Presença histórica e presença sobrenatural, de uma densidade incomparável.

Como eixo em torno do qual gravitam seus inúmeros aspectos, a portentosa Catedral, ápice de suas realizações. Mais do que isso, ela não será capaz de conceber. Ali está, na sua majestosa solidão, com suas sombras enigmáticas, recônditas, a passearem na esplêndida galeria de arcos do andar térreo. Envolta e confundida na neblina que a tudo agasalha, e sob cujo manto adormecem habitantes, casas, palácios e canais…

As luzes se apagam, as praças se enchem de penumbra. É a milésima noite da cidade na sua velhice, pulcra e sonolenta. Difícil não perceber a pátina do tempo que vai lhe acrescentando outros encantos e conferindo uma espécie de nota de eternidade às suas riquezas. Ela se ausenta dos acontecimentos humanos para permanecer – já fora da História e fixada na glória – como objeto da imorredoura admiração dos povos.

Criada segundo regras universais estabelecidas por Deus, mas aplicadas segundo a genialidade do homem.

É Veneza, a original; Veneza, a prodigiosa; Veneza, a feérica.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

O órgão, o vitral, a ogiva

Três luzes emanadas da Civilização Cristã que, sendo representações sensíveis de Deus, elevam as almas a uma atmosfera celestial.

 

O órgão tem esta coisa maravilhosa: é uma “penumbra sonora”, feita exatamente de som e silêncio. Porque, ainda que soe com todos os registros, o órgão tem dentro de si qualquer coisa de aveludado e silencioso, que é um dos seus melhores charmes, e que mais casam com a penumbra visível da Igreja. Assim é o misto de silêncio e som que há no órgão.

O instrumento de todas as inocências

Entretanto, o órgão quase não comporta a descontinuidade sonora total. Aquele som vai e vai… Sempre mantendo uma harmoniosa ligação com os sons anteriores.

A pessoa que, a partir de um instrumento rudimentar, deu ao órgão as características que conhecemos hoje, poderia ser chamada de “profeta” em matéria de música.

A meu ver, o órgão tem isto de fabuloso: há nele registros que remetem diretamente para o mais admirável da inocência e que fazem dele, quando bem tocado, o instrumento de todas as inocências.

Se fôssemos falar propriamente da inocência na sua maior abertura de asas, deveríamos imaginá-la como um órgão. Ela transforma a alma do homem num instrumento capaz de tocar todas as músicas, à maneira do órgão.

Assim, enquanto não conseguirmos fazer sair das profundidades de nosso ser, não a catedral “engloutie”(1), mas o órgão “englouti”, não teremos feito nada.

Toda alma tem, com variantes, um “órgão metafísico” para tocar em função do universo, e a descoberta desse “órgão” é o fim da nossa vida. Quando descobrirmos isso, estaremos prontos para o Céu. Isso se refere, inclusive, ao escopo da vida de piedade.

Representações sensíveis de Deus

A Santa Igreja tem algo por onde ela relaciona os homens à maneira dos tubos de um órgão. Por isso, a Igreja Católica, bem constituída e vista na sua inteira normalidade, pode ser comparada a um imenso órgão ou a um imenso vitral, porque o vitral faz com as cores o que o órgão realiza com os sons; é o mesmo princípio aplicado em matéria cromática.

Trata-se, portanto, de formar uma visão da ordem temporal sacral, dentro da ordem do universo na qual o homem se encaixa, iluminado por este “lumen uno” da Igreja, que ela soube exprimir através do órgão e do vitral, mas que é um estado de alma, uma supra virtude, uma superposição de temperamento, que eu tenho a impressão de que é uma das graças, das mais genuínas, do Espírito Santo.

Em Pentecostes uma chama baixou e depois se dividiu em várias línguas de fogo. Assim também, o “unum” dessa graça estaria nessa chama originária, que depois se transformou nos vários tubos de um órgão ou nas várias cores de um vitral. É a regra da reversibilidade entre unidade e variedade que está aqui refletida. Variedade levada até quase ao infinito, partindo de uma unidade que se desdobra em guirlandas sem se depauperar em nada.

E, a bem dizer, com uma semelhança estupenda com Deus, que sem Se empobrecer e sem Se cansar em nada, no fulgor de sua glória, cria. Também esse “unum” não se exaure, não empobrece, até se alegra em emitir de dentro de si as mais valiosas variedades, sem sofrer o menor abalo. Quase o motor imóvel de tudo o que ele mesmo pôs em movimento.

Este é o “unum” do órgão, que é o mesmo do vitral: são representações sensíveis de Deus, motor imóvel.

O órgão tem uma forma de beleza própria à polifonia, diversa da beleza austera do cantochão. Entretanto, o canto gregoriano e o órgão não se contradizem, ambos são sublimes. Enquanto o gregoriano afirma: “vaidade das vaidades, tudo não é senão vaidade”(2), o órgão parece dizer: “harmonia das harmonias, tudo não é senão harmonia”.

Por outro lado, vejo no órgão o mesmo que na ogiva e em outras coisas da Idade Média: uma ordem magnífica.

O sublime, o paradisíaco e o alcandorado

Nem tudo o que é humano, nesta Terra, é sublime, mas o órgão seleciona, dentre os sons humanos e terrenos, os sublimes, procurando elevá-los a um estado paradisíaco. O estilo gótico, por sua vez, busca o mesmo em matéria de arquitetura.

Poderíamos dizer que metade do espaço ocupado pelo gótico e pelo órgão é sublime, e a outra metade é paradisíaca. Na ponta transparece o alcandorado e a esperança do Reino de Maria.

Já a coexistência tão ordenada desses três valores — o sublime, o paradisíaco e o alcandorado — dá uma plenitude muito repousante e que prepara para o alcândor. O gótico é uma espécie de santa preparação para chegar ao alcândor. Reúne tudo quanto nossa natureza é capaz de pegar e vai ordenando para perceber a ponta do sublime, e é nisto que me parece estar o mais belo do gótico.

Vemos, assim, o equilíbrio com que devemos pensar no alcândor do Reino de Maria, que não desprezará nem o sublime nem o paradisíaco. Mas assim como Nosso Senhor subiu, caminhando com seus pés divinos, até o alto do Monte das Oliveiras para ali operar sua Ascensão aos céus(3), na qual já não necessitaria empregar a força de seus membros, também no Reino de Maria se ordenarão esses valores sublimes e paradisíacos para, a partir dessa elevação, ascender-se ao alcandorado.

Lembro-me da primeira vez em que eu vi uma ogiva em estilo gótico “flamboyant”. Exclamei: “Ah, que maravilha! Era o que faltava e que eu não tinha talento para imaginar. Que coisa estupenda, maravilhosa!”

Depois ouvi alguém criticá-la, mostrando o que ali havia de transição revolucionária para a Renascença. Pensei: “Lá vem o famoso mau espírito demolidor, a tal acusação seca e destruidora do bom espírito”. Mas depois compreendi que a pessoa tinha razão, pois no modo daquela chama se agitar já entrava algo da Renascença.

Porém, em si, o princípio de que a ogiva tão bonita floresceria numa ordem que a transcenderia, me encantou. Era algo que subia para o alcandorado, cujo voo a pré-Renascença desfigurava.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/4/1978 e 16/11/1979)

 

1) Do francês: submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.

2) Cf. Ecl 1, 2.

3) Cf. At 1, 12.

Venerável nascente da Cristandade

Muito do que se tem admirado da Civilização Cristã ao longo dos séculos, e se admirará até o fim dos tempos, pode-se dizer que nasceu de uma gruta. Aberta no meio de montes ásperos e  íngremes, ela abrigou o jovem Bento de Núrsia, que ali se refugiara para encetar sua vida contemplativa. Nela, ele forjou sua magnífica e santa alma de patriarca.

E dela se irradiou a Ordem Beneditina, da qual floresceu o movimento cluniacense, do qual, por sua vez, brotou a sociedade católica medieval. Uma gruta, portanto, imensamente venerável.

Trata-se de Subiaco, a “tintura mãe”, a fonte de onde jorrou a água da cristandade européia ocidental, de cujo desenvolvimento nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

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As montanhas se sucedem e se encontram em vértices acentuados. Nenhuma delas cai de modo bonito. Nenhuma desenha as flexões e de flexões suaves dos montes da Baía da Guanabara. São  elevações agrestes, justapostas pela mão do Criador, não se conhecem, não são amigas umas das outras, e mais parecem dilaceradas diante do firmamento. Para que servem?

Para o vazio, para a aridez, para o isolamento dos homens chamados a viver na solidão. Ali, o religioso se sente imerso na terra abandonada e rude, pois para ele a existência neste mundo nada reserva.

O seu viver é olhar para o Céu: “Pater Noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum”…

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A gruta… É muito bonito, poético até, dizer que São Bento encerrou-se ainda moço numa gruta. Porém, o peregrino que visita Subiaco surpreende-se ao contemplar aquelas pedras ríspidas — em todo o sentido da palavra ríspida — com as quais o jovem ermitão teve de conviver. Pouca ou nenhuma beleza as distingue. Todas parecem uma amálgama constituída em épocas pré-históricas, quando ainda escorriam à maneira de cera de vela, acumulando-se na desordem, e na desordem se petrificando, depois de calores e frios espantosos. Tudo é desconforto, tudo é solidão, tudo é Céu! Devemos imaginar São Bento vivendo aí, lendo, meditando, rezando, talvez sem se dar conta de que, naquele fundo de rocha, a Cristandade européia estava nascendo.

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As construções, por sua vez, erguidas com certa irregularidade, apresentam no seu conjunto uma beleza indefinível, ressaltada pelo fato de se confundirem com penhascos estupendos, que têm algo de profético, pois neles parece encerrar-se todo o futuro da ordem beneditina.

Arcarias românicas servem de arrimo para os grandes edifícios do mosteiro. Arcos que transmitem uma idéia de lógica, de força, de calma, que têm seu encanto próprio, e mesmo uma certa majestade. Refletem eles algo da retidão, da despretensão e da robustez da alma do magnífico Patriarca.

A um canto, o pequeno campanário, singelo e modesto, mas suficiente para abençoar aquelas solidões, na aurora e no pôr do sol, com o timbre do seu bronze a saudar a Virgem Santíssima nos  toques do Angelus.

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Dir-se-ia que o ambiente próprio para ser o berço da cristandade medieval deveria ser mesmo essa solidão predestinada, na qual o espírito humano se compraz em imaginar que a vegetação, as grandes árvores, os penhascos e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças vaticinadoras do que adviria para a Europa nos séculos medievos.

E ainda que São Bento não soubesse nem previsse tudo o que estava por nascer, ele tinha entretanto seus anseios e ideais de uma civilização cristã. E todas aquelas montanhas, pedras e penhascos repercutiam os seus ideais; e os ventos, quando ali sopravam, pareciam cantar os seus anseios.

Resultado, quando hoje se visita Subiaco, procura-se interrogar aqueles montes e quelas grutas que ouviram os ecos dos passos de São Bento, os soluços e os prantos dele durante as crises e  tentações, o sussurro de suas preces e os seus cânticos de alegria. Procura-se, enfim, sentir de algum modo as ressonâncias de uma história que lá se passou, de um futuro que lá se engendrou, e perceber os reboares de bênçãos e graças que ali reinaram, que ali ainda palpitam.

Em Subiaco, tem-se a impressão de que se toca o Céu com as mãos. Mais ainda. É o Céu que baixa à Terra e inunda os homens com sua bondade, sua sacralidade e sua grandeza.