O ideal de Cavalaria, plenitude do espírito católico – II

O que diferencia o cavaleiro das outras vocações existentes na Igreja? Missionários dos bons tempos se expunham à morte pelo contágio de doenças ou se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. São pessoas admiráveis, dentre as quais muitas morreram mártires e foram canonizadas. Entretanto, o cavaleiro representa a Deus a um título especial ao lutar por Ele e pela Santa Igreja, caminhando com entusiasmo de encontro à morte.

 

Há também outra beleza que devemos considerar: a da luta. Morrer é belo. Os mártires, as vítimas da Revolução Francesa morreram. Oferecer-se, portanto, como vítima é lindo! Um doente na cama pode oferecer-se; Santa Teresinha do Menino Jesus ofereceu-se como vítima expiatória. Contudo, lutar tem uma beleza especial.

Dois modos pelos quais Deus associa o homem à sua obra criadora

Deus associa o homem à sua obra criadora de dois modos: um é pela paternidade espiritual ou física. O que é paternidade física todos sabem, não é necessário explicar. A paternidade espiritual se dá quando se gera alguém para a vida eterna; uma pessoa traz outra pelo apostolado para ela pertencer a Nossa Senhora e assim preparar-se para o Céu.

Há, entretanto, outro modo pelo qual Deus nos associa à sua obra criadora. Cabe a Deus tirar a vida de alguém. Porém, quem legitimamente mata outrem que, segundo o plano de Deus, deve ser morto, exerce uma prerrogativa divina.

Por exemplo, um homem é um assassino e deve ser morto num ato de legítima defesa ou porque a lei mandou que fosse executado. O Estado tem o direito de mandar matar, nas ocasiões em que é justo, bem como qualquer pessoa possui o direito de matar na sua própria defesa ou de terceiros. Assim, tem-se o direito de matar na defesa da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, nos casos em que a Moral católica permite(1). Portanto, quando se combate em nome da ira de Deus e movido por uma cólera inspirada pela graça, há uma beleza especial no exercício dessa justiça. Então, o cavaleiro que vai à guerra não só disposto a morrer, mas a matar para que a vida espiritual, sobrenatural se espalhe sobre a Terra, também representa a Deus a um título especial, e exerce uma missão divina.

Compreende-se por que os nossos antepassados julgavam uma tal maravilha um cavaleiro entrar, por exemplo, num lugar onde havia cinquenta maometanos e, com várias espadagadas, decapitar a todos. Por que era uma beleza? Porque os maometanos estavam atacando terras católicas ou impedindo a pregação do Evangelho.

Há certos trovões que se propagam por várias séries de explosões até uma plenitude final. O trovão é lindo porque dá a impressão de uma divina vontade de arrasar o que não deve existir, e que vai derrubando obstáculo por obstáculo até destruir tudo. É uma sinfonia! Para mim, mais bonito do que o trovão, só o órgão. São as duas supremas belezas em matéria de sons. Sou um entusiasta da trovoada. Qualquer trovãozinho que eu ouça, acompanho com gosto sua harmonia cheia de estampidos.

Esta é a alma do guerreiro quando ele, movido por uma cólera santa, mata um, outro e, ao fim do dia, matou muitos. Ele está como uma trovoada que descarregou toda a sua eletricidade, e repousa plácido depois porque a sua ira santa foi preenchida. É o repouso de um guerreiro depois de ter combatido, ter raspado pela morte, na véspera de outra batalha onde ele poderá morrer. Ele está continuamente com esta familiaridade com a morte que faz a beleza da vida do guerreiro, porque é a familiaridade com Deus.

Então, o que diferencia o cavaleiro das outras vocações que há na Igreja? Tomem, por exemplo, padres, freiras dos bons tempos que se expunham à morte com contágio de doenças; outros que, fazendo as missões, se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. Todas essas pessoas são admiráveis, dentre as quais muitas morrem mártires e são canonizadas. Que o sangue delas se levante e peça ao Céu perdão e graças para nós.

Desponsório com o risco, o esforço e a morte

Entretanto, o cavaleiro não é o que se resigna à morte, mas aquele que caminha de encontro a ela com entusiasmo; não se resigna com o perigo, mas tem fome dele; não se resigna à luta, anseia por ela. Esse é o cavaleiro, aquele que, na hora do risco e da batalha, como que sente a ebriedade santa do contato com Deus e se lança.

Em certo sentido, o cavaleiro pode ser considerado o artista da luta, pois gosta da pugna bela, nobre, elevada. Por isso ele se orna para o combate, segue belas regras para lutar e morre sentindo ter feito uma obra de arte. Na canção de gesta, Roland, morrendo, sabe que no horror de sua morte está realizando algo que despertará uma página de literatura para todos os tempos. E, antes de ele morrer, aparece São Miguel Arcanjo a quem o cavaleiro moribundo estende a sua luva em sinal de vassalagem, porque São Miguel é o chefe do que eles chamavam a Cavalaria Celeste, composta pelos Anjos que expulsaram os demônios, lançando-os no Inferno. Roland se sente um com os espíritos celestes, seus irmãos. Ele é, na Terra, o grande exterminador e ordenador, como foi São Miguel Arcanjo no Céu. Esta alegria, este entusiasmo, esta espécie de senso artístico da luta, do risco e da morte caracteriza o verdadeiro cavaleiro.

Compreende-se, então, porque o cavaleiro era alçado, habitualmente, à condição de nobre, pois é incomparavelmente mais elevado e digno quem possui esse espírito do que quem se entrega a outras atividades lícitas, necessárias, mas que não têm esse contato com o Divino, como, por exemplo, o comércio. Vender cebolas ou tamancos é uma coisa indispensável para a boa ordenação do mundo; fabricar vassouras ou esparadrapos é muito bom, sobretudo, pode ser muito lucrativo, não contesto. Mas contabilizar grandes lucros, embora seja bom e honesto, não é o mais alto modo de se unir a Deus. Essa espécie de desponsório com o risco, com o esforço extremo e com a morte é o que mais une a Deus. Isto é a Cavalaria.

Se ultrajado pelo inimigo, o cavaleiro mantém a cabeça alta, revida e continua a luta

Em nossa época, a luta não se dá só nem principalmente no campo físico. O principal da guerra não é o esforço material, mas o intelectual. Atualmente se conquistam mais povos pela guerra psicológica do que pela guerra militar. As maiores conquistas que o comunismo fez não foram pelas armas, mas pela velhacaria. Por exemplo, como o comunismo se introduziu em toda a Europa Oriental? Foi mediante concessões vergonhosas de Roosevelt, no Tratado de Yalta. Como o comunismo conseguiu conquistar a China e depois o Vietnã? Foram concessões que Marshall fez aos comunistas chineses, entregando a China numa bandeja. Como o comunismo vai se difundindo pelo mundo? Através da conquista das almas por meio do processo revolucionário descrito em meu livro Revolução e Contra-Revolução.

Contra essas formas de conquistas psicológicas, ou há uma conquista também psicológica ou não adianta nada. Então, nós somos contra o comunismo que brande ideias, como eram os cruzados contra os maometanos que brandiam sabres. Os maometanos não usavam sabres e lanças? Nossos antepassados também. O comunismo usa ideias, nós usamos ideias. Ele faz a Revolução, nós fazemos a Contra-Revolução.

Digo agora uma palavra sobre o risco. Há uma coisa que é para o homem como a morte, e às vezes ele enfrenta a morte para evitar isso: é o descrédito no meio dos seus. Deixar de ser considerado, benquisto, admirado, ser odiado, perseguido, desprezado exige muitas vezes mais coragem do que a luta armada. Quando há uma guerra, muitos vão para frente combater de medo que, se recuarem, na retaguarda riam deles e digam que são covardes. Isso quer dizer que o sujeito enfrenta a bomba por medo do riso. Portanto, em última análise, a risada dá mais medo ao homem do que a bomba.

De nós é exigida esta coragem, bela como a de quem enfrenta a morte. Se o homem tem mais medo do ridículo do que da morte, enfrentando o ridículo ele faz uma imolação a Deus mais preciosa do que entregando a vida. Estar, portanto, continuamente raspando-se no ridículo, não se incomodando com a opinião dos outros, isto é ser cavaleiro. Quando o homem faz isto e compreende que se une a Deus extraordinariamente por esta forma, e tem o gosto de ser vilipendiado, ultrajado, de manter a cabeça alta, de revidar e de lutar, ele é um perfeito cavaleiro.

Nosso Senhor não recuou um instante, mas caminhou para a frente continuamente

Comecei esta luta em condições muito desfavoráveis, porque só vim a compreender que ela era bela mais tarde. Era menino e percebi que, nos ambientes dos outros meninos, o que eu tinha de qualidade era objeto de sarcasmos, e que bastava assumir certos defeitos que seria causa de admiração. Mas resolvi seguir a mim mesmo, fiel às qualidades que eu tinha; não compreendia a beleza que havia nisto. Até me lembro de ter pensado o seguinte: “Todo mundo acha isto feio, quem sabe se é mesmo. Nesse caso, faço uma coisa feia, mas enfrento todo mundo e vou para a frente, porque ser de outra maneira eu não quero”.

No praticar uma coisa que talvez fosse feia por amor a um ideal, eu o fazia do modo mais belo possível. Eu me lembro de que pensava com meus botões: “Mas que coisa horrível ser desconsiderado assim! Veja tal menino de boca porca, de maus costumes que empolga a aula dizendo palavrões, e como eu faço um papel apagado, mole, bobo, com a minha perpétua observância da pureza, das boas maneiras, da distinção”. Mas eu refletia: “A pureza, as boas maneiras, a distinção valem isto; assim eu quero ser, ainda que me rachem.” Eu era, assim, uma espécie de bichinho se agarrando à tábua de salvação a todo custo. Ainda não percebia que essa tábua de salvação tinha um nome, era a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando mais tarde percebi, fiquei maravilhado, mas o passo estava dado, eu tinha entrado na luta.

Nosso Senhor Jesus Cristo nos é apresentado sempre enquanto padecendo, suando Sangue no Horto das Oliveiras, caminhando para a morte com uma tristeza enorme; e assim deve ser, porque devemos ter consciência, tomar na devida conta os sofrimentos infinitos que Ele padeceu por nós.

Mas, de fato, há outro aspecto da atitude de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo durante a Paixão, que é o seguinte: Ele não recuou um momento, caminhou para a frente continuamente. Mesmo quando caiu sob o peso da Cruz, foi para levantar de novo e poder chegar até o alto do Calvário; não teve uma hesitação.

Eu tenho a impressão de que se devêssemos olhar, numa Via Sacra, as pegadas sangrentas de Nosso Senhor no chão, um dos aspectos por onde Ele poderia ser visto era cambaleante, fazendo um zigue-zague, quase caindo ao peso da Cruz, mas não largando. Outro seria, pelo contrário, em linha reta: “Eu vou para a frente porque quero!” Uma vontade serena, majestosa, mas inteiramente inquebrantável, até quando encontrou Nossa Senhora e viu tudo quanto Ela estava sofrendo pela resolução d’Ele de morrer. Por fim, no alto da Cruz, aquela palavra de energia suprema: “Consummatum est”: foi feito tudo o que era preciso fazer.

Quando foram prendê-Lo, no Horto das Oliveiras, Ele perguntou:

— A quem buscais?

— A Jesus Nazareno – responderam os algozes.

— Sou Eu – afirmou Jesus. E todos caíram no chão.

Seu poder e sua majestade eram tais que Nosso Senhor dissera pouco antes a São Pedro que, se quisesse, mandava vir legiões de Anjos para libertá-Lo (cf. Mt 26, 53), mas Ele não queria. Portanto, tudo aquilo o Divino Redentor estava sofrendo porque Ele queria. Eis o Cavaleiro!

O mais belo de todos os martírios

Terminada esta exposição, poderia surgir a pergunta: “Tudo isso é bonito, mas como me portar quando chegarem para mim o risco e a morte? Não posso fazer uma espécie de injeção de tudo quanto ouvi e meter dentro de mim para sair um herói. O que vou fazer para ser fiel a essas ideias?”

Aqui vem a doutrina da verdadeira vida espiritual. Se eu, no meu ideal, sinto-me chamado para isso, mas na realidade não tenho forças, devo pedi-las para estar à altura do meu ideal. Para isto temos a oração, os Sacramentos, a meditação que nos elevam até esse ponto. Pode ser que alguns cheguem entusiasmados à hora do sacrifício, outros com medo, mas vencendo o próprio medo e compreendendo a beleza de vencê-lo para lutar.

Cito um personagem que foi, sem dúvida, muito corajoso, mas não era nem de longe um cavaleiro. Basta dizer que era um protestante. Protestantismo e Cavalaria são coisas que se excluem, pois esta é um predicado exclusivo da Religião Católica. Do nosso lado há Cavalaria, do lado deles há assassinatos. Todas essas luzes são da Igreja Católica e de mais nada no mundo. Mas, enfim, o Rei da França, Henrique IV, entrou numa batalha com muito medo e sentia até seu esqueleto tremer. Então de espada na mão ele gritou: “Treme velha carcaça…”, mas ele não queria ceder e lutou durante a batalha inteira. Quiçá na hora do medo tenhamos que dizer “treme velha carcaça”, mas nós vamos para a frente. É preciso confiar em que a graça nos ajude nesse momento.

O martírio mais belo que conheço – depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é super-excelso e não comparável com nada – foi o de Santo Inácio de Antioquia. Ancião, carregado de ferros, entrou na arena e, diante dos leões que rugiam, ele disse: “Leões, vinde a mim! Triturai-me como se tritura o trigo para ser como a Hóstia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu serei triturado e serei um com Ele”. Os leões vieram e ele foi estraçalhado e morreu. Isto, para mim, é a última palavra, o auge da beleza!

Cavaleiros conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo

Entretanto, havia duas espécies de mártires. Estive no Coliseu, em Roma, onde me mostraram o lugar do cárcere no qual ficavam os católicos a noite inteira, perto de outro compartimento onde estavam as feras rugindo. Os cristãos sabiam que, quando amanhecesse, tinham raiado para eles as últimas horas, e seriam levados para a arena onde aquelas feras iam devorá-los.

Imaginem, às três horas da manhã, solidão no Coliseu, aquele mármore muito branco, resplandecente, de uma alvura que para quem vai morrer tem quase o aspecto de um esqueleto ressequido, sobre o qual o trágico luar derramava uma tênue luminosidade; a sós, numa gaiola, os futuros mártires se preparam para morrer e têm pânico de apostatar na hora, porque era só fazer um sinal nesse sentido para serem salvos.

De repente, uma hiena uiva e a pessoa pensa: ela está com fome de mim, esse bicho amanhã vai devorar as minhas entranhas. Quando chega a manhãzinha, as feras vão acordando e uivando mais. O circo vai se enchendo de gente, muitos passam perto dos católicos, cospem neles, atiram pedras, dão risadas dizendo: “Vocês vão morrer mesmo…”

A certa hora, o Sol já está todo levantado e entram os barulhos familiares da cidade de Roma: os vendedores que oferecem suas mercadorias, carros que passam, é a vidinha de todos os dias que está ao alcance deles. É só dizer “eu quero apostatar” para terem tudo aquilo que eles estão prestes a deixar para entrar na arena e morrer.

Alguns soluçavam de medo, iam para a arena tremendo. Jogavam-se e as feras caíam em cima deles. Eram heróis tanto quanto Santo Inácio de Antioquia, talvez merecendo menos admiração.

Eram cavaleiros verdadeiramente, porque sentiam a beleza do seu ato e queriam consumá-lo, conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo. Evidentemente, para isto é preciso receber uma graça especial. Sem essa graça a pessoa não enfrenta. Mas é preciso pedi-la desde já. Por isso, em todas as Ave-Marias há esse pedido final: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Quem vai ter coragem nessa hora? Sem uma graça especial não se tem.

Papel extraordinário da virtude da confiança

Há graças especiais de luta e de morte também, mas peçamos essa graça, tenhamos a intenção de dar à nossa vida e à nossa morte esse sentido de beleza, e nós obteremos. Porque quem pede alcança.

Conto-lhes um fato extremamente gracioso. Havia uma jovem romana que foi condenada à morte por ser cristã. Mas ela tinha especial pavor de não sei de que bicho – digamos que fosse hiena –, tinha pânico. Então, ela disse a Deus o seguinte: “Eu consinto em ser morta, mas fazei com que não seja por uma hiena”. Os outros cristãos, católicos, que estavam assistindo ao martírio nos bancos do Coliseu, viram entrarem também hienas no circo, mas nenhuma delas atacou a jovem, que foi morta por um tigre ou um leão. Quer dizer, foi uma condescendência da Providência.

Termino com um caso para verem como esse conceito de luta e de martírio é complexo. São João Evangelista não foi mártir. Levado para ser morto num caldeirão de azeite em ebulição – uma morte tremenda! –, entrou no caldeirão e saiu do outro lado ileso, e por vontade de Deus o deixaram ir para casa.

Imaginemos que São João tenha ido para o caldeirão com algo da graça que dizia dentro dele: “Tu não vais morrer”. E ele pensasse: “Mas não tenho coragem de morrer agora”. E a graça responderia dentro da alma dele: “Tu não tens coragem porque não chegou a hora de morrer. Tu deves ter confiança de que não morrerás”. Então, ele mete o pé dentro do caldeirão, depois o corpo inteiro, certo de que não será queimado. Contra o paradoxo, atravessa o caldeirão, apoia-se do outro lado e sai.

Manter esta confiança dentro do caldeirão não é uma força de alma talvez maior do que a do martírio? Em nossa vida a virtude da confiança tem um papel extraordinário. Muitas vezes nós estamos como que derrotados e liquidados e temos que fazer como São João: confiar que sairemos do outro lado do caldeirão sem nos acontecer nada. Este é um outro lado do heroísmo e de coragem terrível. Às vezes, confiar é mais duro do que se entregar. Mas não temos o direito de ceder, e é preciso confiar.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1974)
Revista Dr Plinio 260 (Novembro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica, II-II q. 40, a. 1; q. 64 a. 2-3. Catecismo da Igreja Católica, n. 2264-2265.