Uma porta do céu se abriu para o mundo

Neste ano a Capela da Rue du Bac celebra o jubileu das aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré. Como melhor modo de associar esta revista e seus leitores a data tão significativa, estampamos a seguir um eloquente comentário de Dr. Plinio sobre aquelas visões de alcance inapreciável para todos os homens.

Quem visita a Capela da Rue du Bac, em Paris, onde Nossa Senhora apareceu a Santa Catarina Labouré e lhe pediu a cunhagem da Medalha Milagrosa, sente-se envolvido por uma intensa impressão de paz, de calma, de céus abertos, como se não existissem obstáculos entre a Terra e a feliz eternidade. No íntimo de sua alma, o fiel ouve a voz de Nossa Senhora, exorável, disposta a atender todos os nossos pedidos, com sua maternal benignidade transpondo distâncias incontáveis para se tornar acessível a nós. Tudo isso faz daquela capela um lugar de serenidade realmente privilegiado.

Serenidade, calma e paz autênticas, ou seja, toques de sobrenatural que afagam nossa alma com verdadeira unção, verdadeira consolação e verdadeira confiança, e nos infunde a plena certeza de que, em última análise, Nossa Senhora nos alcançará as graças tão desejadas por nós.

A época das aparições da Rue du Bac

As aparições da Santíssima Virgem se deram em 1830, sendo a mais importante delas no dia 27 de novembro, quando revelou a Santa Catarina os tesouros de dádivas celestiais destinados ao mundo com a difusão da Medalha Milagrosa.

Cumpre recordarmos que, naquela época, a par de um grande reflorescimento da prática da religião Católica, havia também fortes manifestações de laicismo e ateísmo hostis à Igreja, de maneira que um fosso abismal separava o catolicismo do anticlericalismo. Ecos dessa animosidade eu mesmo conheci, no Brasil dos anos 20. Portanto, quase um século depois das aparições da Rue du Bac.

Tão profundo era esse valo divisório entre as coisas da Igreja e as da sociedade civil que, ao se transpor os umbrais do ambiente profano e ingressar no religioso, era como se deixássemos um país para entrar em outro. Lembro-me de quando comparecia à bênção do Santíssimo Sacramento na Igreja do Coração de Jesus, após a qual, saindo do templo, observava o edifício daquilo que então era o internato do Liceu, desdobrado em duas alas em torno de todo o quarteirão.

As janelas dos andares inferiores permaneciam fechadas e protegidas por grades. Ao contrário daquelas dos andares superiores através das quais, no lado onde eu sabia situado o dormitório dos meninos, podia-se ver algumas luzes azuis acesas: sinal de que as crianças já dormiam. E o relógio da torre ainda não marcava nove horas da noite…

Recordo-me da impressão que causava em mim o entrar na sociedade profana — insisto, dos anos 20 — e perceber o contraste entre o coruscante, o assanhado, o divertido daquele mundo, e o dormitório extenso, onde um grande número de meninos repousava sob a supervisão de um padre pronto a acordar ao menor sinal de perturbação, para restabelecer a ordem e a tranqüilidade!

Encantava-me saber que aqueles meninos dormiam placidamente, aos cuidados de um sacerdote que representava ali a eterna tradição da Igreja ordenativa, moralizante, disciplinadora. Alegrava-me ver que, enquanto todos se achavam imersos no sono noturno, as luzinhas azuis simbolizavam a maternalidade da Igreja a envolver seus filhos em brumas amigas; a vigilância de quem sabe sorrir sem fechar os olhos, sempre ciente do que se passa. Tudo isso me dava a impressão de haver naquele ambiente uma austeridade, uma sacralidade, uma ordenação que o mundo fora não conhecia. Era outro universo.

Pois bem, numa atmosfera análoga a essa tiveram lugar, na Paris de 1830, as revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré.

O sobrenatural se desenrola numa modesta capela

Era esta uma freira da congregação das Filhas da Caridade, fundada por Santa Luísa de Marillac e São Vicente de Paulo. Essas religiosas se distinguiram sempre por sua extrema e abnegada solicitude cristã, dedicando-se ao cuidado dos pobres, órfãos, e enfermos nos hospitais e Casas de Misericórdia. Até há pouco eram conhecidas pelo seu hábito característico: túnica escura com gola branca engomada, a cabeça adornada por uma touca bretã, estilizada pela inspiração e pelas mãos da Igreja. Essa cobertura se desdobrava em duas abas largas, lembrando vagamente as asas de uma gaivota em voo. Na cintura, como é natural nos hábitos religiosos, pendia um grande rosário.

Não tive contato assíduo com essas freiras, mas encontrei-me com muitas delas. Em geral pessoas robustas, fortes e prontas para o trabalho. Olhar límpido, reto, atitude despretensiosa de quem preferia passar desapercebida. Realizavam obras de misericórdia temporal como ocasião para obras de misericórdia espiritual. Ou seja, elas aproveitavam a ocasião de cuidar de um paciente terminal para trazer um padre junto a ele, para convidar uma criança a ir ao catecismo da paróquia, ou se encontravam uma pessoa desventurada na rua, procuravam ajudá-la em todo o necessário, etc. Enfim, faziam tudo quanto pudessem para atender aos infortúnios, as carências materiais e, sobretudo, as espirituais, nos mais variados ambientes por onde costumavam se infiltrar.

A elevação desse apostolado das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo era tão grande, e as admiravam tanto por isso, que costumavam ser tidas como o próprio símbolo da religião numa de suas expressões mais belas e comovedoras.

O seu principal convento situa-se num antigo e aristocrático bairro da capital francesa, o Faubourg Saint-Germain, e se tornou conhecido pelo nome da rua em que foi edificado: Rue du Bac.

Devemos imaginar a cidade de Paris nos idos de 1830, bem menor e menos populosa do que é hoje, silenciosa, tranquila, ainda sem ruídos de motores e luzes de néon. Podemos pensar na rua calçada com pedras, sobre as quais, vez por outra, o eco das patas de um cavalo ou das rodas de uma carruagem interrompia a longa calada da noite. No dormitório das freiras de São Vicente, não havia luzinhas azuis, mas talvez alguns candeeiros acesos. Todas as religiosas repousam, entre elas Santa Catarina Labouré.

Nesse ambiente modesto, puro e elevado, completamente diverso do mundo exterior, o maravilhoso sobrenatural começa a se desenrolar.

Colóquios com a Rainha do Céu

A primeira aparição ocorreu na véspera da festa de São Vicente de Paulo, em 18 de julho de 1830, como que preparada por uma atitude da vidente repassada de ingenuidade, inocência e caráter filial muito bonitos. Ela ouvira no dia anterior uma exposição sobre a devoção a Nossa Senhora, e sentiu um ardente desejo de vê-La. E foi se deitar com o pensamento de que, naquela mesma noite, encontrar-se-ia com a Santíssima Virgem.

E foi o que aconteceu. Como nos relata a própria Santa Cataria Labouré, por volta das onze e meia da noite, ela ouve alguém lhe chamar. Corre a cortina de seu leito e vê um menino de 4 ou 5 anos que lhe diz: “Vinde à capela, a Santíssima Virgem vos espera”.

A santa demonstra um pouco de receio, temendo que as outras religiosas a surpreendessem fora da cama, mas o menino a tranquiliza, ela se veste e começa a segui-lo pelos corredores do convento. Detalhe curioso, registrado pela vidente que muito se admirou do fato: por todos os lugares onde passaram as candeias estavam acesas.

Ela entra na capela e sua surpresa é ainda maior ao notar todas as velas acendidas nos candelabros, como se estivessem preparados para uma Missa do Galo. O menino a conduz até o presbitério, ao lado da cadeira em que se sentava o vigário. Santa Catarina se ajoelhou, enquanto a criança permaneceu de pé. Ela, sempre com o receio de que alguma freira passasse por ali e os encontrasse, pedindo-lhe explicações que não saberia dar…

Afinal, o menino lhe advertiu: “Eis a Santíssima Virgem”. A vidente ouviu um “frou-frou”, um roçagar de vestido de seda, mas ainda não distinguia Nossa Senhora. Então o menino insistiu — já não com voz de criança, mas em tom vigoroso — que a Rainha do Céu estava presente. Nesse momento Santa Catarina viu a Mãe de Deus sentada na cadeira do vigário, deu um salto para junto d’Ela e, genuflexa, apoiou suas mãos nos joelhos de Maria.

Quer dizer, uma cena fabulosa, uma aparição cercada de afabilidade extraordinária. Compreende-se, pois, que Santa Catarina tenha registrado esse instante como o mais doce de sua vida, impossível de ser descrito em palavras. Recebeu ali diversos conselhos e orientações de Nossa Senhora, os quais preferiu manter em sigilo.

A Medalha Milagrosa

Podemos bem conceber como Santa Catarina se sentiu após esse encontro com Nossa Senhora, e como seu coração latejava de um intenso desejo de revê-La. Alguns meses depois, ela seria largamente atendida. O segundo e mais importante encontro se deu na tarde do sábado 27 de novembro de 1830. Assim o relata um cronista das diversas aparições de Maria:

“Na sua capela da Rue du Bac, as Filhas da Caridade — Irmãs e noviças — se reúnem para a meditação vespertina. Recolhimento e religioso silêncio. De repente, em meio à sua piedosa contemplação, Catarina Labouré julga ouvir o roçar de um vestido de seda… A Santíssima Virgem, ali!

“Qualquer pensamento é impossível diante da inconcebível beleza de Maria. Ela usa um vestido de seda alvíssima como a aurora. Da mesma cor é o véu que Lhe desce da cabeça até os pés. Estes repousam sobre volumoso globo, que parece fixo num ponto do espaço. As mãos, elevadas à altura do peito, sustentam graciosamente um outro globo, menor que o pedestal e encimado por uma cruz. A Virgem tem o olhar voltado para o céu. Seus lábios oram. Ela oferece o globo ao Mestre, seu Filho.

“De súbito o globo desaparece e as mãos permanecem estendidas. Os dedos se cobrem de anéis guarnecidos de cintilantes pedrarias, que emitem raios deslumbrantes para todos os lados. Mil fulgores preciosos se fundem num só brilho transcendente. Mil irradiações circundam a santa figura.

“A Virgem pousa os olhos sobre Catarina em contemplação, abismada num mundo de sensações, de sentimentos, de descobertas, de revelações inexprimíveis. No fundo de seu coração, a noviça ouve uma voz que lhe diz:

“— Este globo representa o mundo inteiro, e especialmente a França, e cada homem em particular.
“— A chuva de raios redobra em força, em magnificência.
“— Eis o símbolo das graças que Eu derramo sobre aqueles que mas pedem. As pedras que permanecem na sombra (dirá ainda, uma outra vez, a Santíssima Virgem) simbolizam as graças que se esquecem de me pedir…”

Segundo narração de Santa Catarina, formou‑se em torno de Nossa Senhora um quadro de forma ovalada, no alto do qual estavam escritas em letras de ouro as seguintes palavras: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós” . E novamente ela ouviu uma voz que lhe mandava cunhar uma medalha conforme aquele modelo. E a promessa: Todos os que a usarem, trazendo-a ao pescoço, receberão grandes graças, que serão abundantes para quem a portar com confiança”.

Em seguida, diz a vidente, o quadro pareceu girar e ela viu o reverso da medalha: no centro, o monograma da Santíssima Virgem, composto pela letra “M” encimada por uma cruz, a qual tinha uma barra em sua base. Embaixo, os Corações de Jesus e de Maria, o primeiro coroado de espinhos, e o outro, transpassado por um gládio.

Era o desenho da Medalha Milagrosa, como esta seria amplamente conhecida e difundida pelo mundo inteiro, alcançando graças e favores celestiais para incontável número de pessoas, milagres de ordem física, como a cura de doenças, e também de ordem espiritual, reformas de vida e conversões das mais inesperadas.

Desígnios de alta misericórdia para o mundo

Por exemplo, célebre se tornou a conversão de um prelado apóstata, o arcebispo francês Mons. Duprat. Ele abandonou a Igreja Católica e se tornou secretário de finanças de outro famoso bispo renegado, Talleyrand.

Conta-se que Mons. Duprat, sabendo chegado aos seus últimos dias, relutava em se confessar e emendar. Algum zeloso parente ou conhecido, preocupado com a salvação eterna dele, prendeu a Medalha Milagrosa no travesseiro do arcebispo. Foi o bastante para que a graça o tocasse. Dias depois ele pedia que lhe trouxessem um padre: “Mudei de ideia, desejo me confessar”. O sacerdote se apresentou, e o filho pródigo fez as pazes com Deus, com a Igreja e com a sua consciência. Não se passou muito tempo, e morreu readmitido no seio da Esposa mística de Cristo.

Casos como esse se multiplicaram ao longo dos anos e ainda hoje se verificam pelo mundo afora. Assim como tantas outras formas de amparo e benefício oriundos do uso da Medalha.

Lembro-me, aliás, deste outro fato. Uma senhora da aristocracia francesa mantinha no salão nobre de sua residência, magnificamente decorado, um quadro com a Medalha Milagrosa, manchada e amassada no centro. Os visitantes que ela recebia em casa, estranhavam aquilo exposto com tanta evidência num recinto esplêndido, em meio a objetos de alta categoria, e perguntavam a razão disso. A senhora respondia:
“— Guardo esta medalha porque meu filho era um estroina, e estando num mau lugar, levou um tiro. A bala acertou diretamente na medalha, e em vez de perfurá-la, de modo inexplicável apenas a danificou, como para autenticar o fato extraordinário, e caiu no chão. Diante do prodígio, meu filho se converteu e hoje é um católico modelar. Eu desejo, então, que minhas visitas conheçam este favor recebido de Nossa Senhora e saibam agradecer. Por isso esta medalha está aqui.”

É simplesmente incontável o número de episódios semelhantes, onde foram obtidas graças preciosas através da Medalha Milagrosa. Motivo pelo qual ela é objeto de tanta devoção, tendo sido destinada por Maria Santíssima a ser um maravilhoso meio de se realizarem desígnios de sua alta misericórdia para o mundo.

Expressão do carinho materno de Maria

É interessante frisar, ainda, que essa particular proteção da Virgem Santíssima em relação a nós transparece muito na sua prerrogativa de Mãe da Divina Graça.

Quantos já não nos sentimos, ao aproximarmos de uma imagem sob essa invocação, recebidos por um sorriso d’Ela, envolvidos por uma espécie de doçura que nos prometia compaixão, pena, a convicção de sermos atendidos e favorecidos por um ato de inesgotável bondade?

É a certeza de que Nossa Senhora sempre se acha disposta a nos socorrer e amparar com sua clemência, seja em nossas carências materiais e físicas, seja marcadamente em nossas lacunas espirituais, ajudando-nos a vencer nossos defeitos, as tentações e o pecado. Portanto, Nossa Senhora das Graças podia se dizer Nossa Senhora da Misericórdia, que nunca, nunca, nunca nos deixará desamparados.

E creio jamais ser suficiente insistir nesta verdade: Mãe da Divina Graça significa a tesoureira de todas as graças de Deus. As dádivas celestiais constituem um tesouro inexaurível, posto nas mãos de Nossa Senhora e por Ela difundido àqueles que recorrem à sua intercessão.

Maria é a dispensadora de todas as graças e também a Mãe dos que Lhe suplicam favores. Mãe dos miseráveis, dos aflitos, daqueles que quase perderam a esperança, aos quais Ela reanima, e faz reacender em seus corações a chama da Fé.

Basta considerarmos uma imagem de Nossa Senhora das Graças para compreendermos o quanto esse título exprime o carinho materno de Maria em relação a nós. Acolhe-nos de braços abertos, o sorriso nos lábios, repassada de um convite amorável para nos aproximarmos e convivermos um pouco com Ela. Envolve-nos com uma afabilidade e uma promessa de perdão sem limites, insondável. E nos faz ouvir no fundo da alma a sua voz carinhosa: “Tendes a Mim, sou inteiramente sua. E por causa disso, todos os caminhos para o Céu lhe são franqueados…

Plinio Corrêa de Oliveira

A grande lição de Lourdes

Dentre os inúmeros relatos das aparições de Nossa Senhora em Lourdes, muito significativo é o de um funcionário público dessa localidade dos Pirineus. Sem fugir ao costume de seu tempo, era ele um homem cético para com as coisas de Deus e da religião, até o momento em que a Providência determinou tocar sua alma e o levou a presenciar um dos colóquios de Santa Bernadette com a Imaculada Conceição. Seu testemunho, de insuspeitada franqueza, é uma das eloquentes provas da autenticidade dessas aparições. Eis um bonito trecho de sua narrativa: De repente, como se um raio a houvesse tocado, ela (Bernadette) teve um sobressalto de admiração e pareceu nascer para uma segunda vida. (Uma luminosidade especial) a envolvia toda. Espontaneamente, sem cálculo, com um movimento maquinal, os homens que lá estávamos tiramos nossos chapéus e nos inclinamos como as mais humildes mulheres. A hora das objeções passara e, a exemplo de todos os que assistiam a esta cena celeste, olhávamos da moça estática para o rochedo, do rochedo para a moça.

Sorridente ou séria, Bernardette aprovava com a cabeça, ou parecia mesmo interrogar. Quando a Senhora falava, ela estremecia de felicidade. Quando, ao contrário, era ela que fazia ouvir suas súplicas, humilhava-se e se comovia até as lágrimas. Comumente, a vidente terminava suas preces por saudações dirigidas à Senhora invisível. Eu conhecia o mundo talvez até demais. Encontrara já pessoas que eram modelos de graça e distinção, mas jamais vi alguém saudar com a graça e distinção de Bernardette. Ao terminar a visão, porém, voltamos a ter diante de nós somente a figura amável, mas rústica, da filha dos Soubirous.

Após a cena que acabo de descrever, eu me sentia como um homem que acabou de sonhar e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim, e um mundo de pensamentos me agitavam a alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu sentira a sua presença, e estava convencido de que o seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando como eu, o homem das ironias e das presunções, tivesse sido admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu.

O cético acreditou e se converteu

Por suas comovedoras palavras, entende-se que esse homem, todo embebido de orgulho e ceticismo, foi ali objeto de uma graça insigne e se converteu. Tinha ele se dirigido à gruta — segundo confessa — mais disposto a se divertir do que a acreditar nas aparições. Porém, ao reparar nas atitudes de Santa Bernadette durante os diálogos com Nossa Senhora, teve ele, por uma intuição psicológica direta, a noção de que a Interlocutora da menina realmente existia. Ela não podia ser uma abstração, algo tirado do vácuo, uma fantasia. A jovem camponesa estava falando com alguém, e seu modo de proceder tinha todas as características objetivas de quem entabula uma conversa com outra pessoa. De maneira que era inimitável a autenticidade da cena. E, portanto, a Santíssima Virgem existia, e estava ali presente. O cético acreditou e se converteu.

Enobrecida no trato com Nossa Senhora

Não deixa de ser muito interessante um dos indícios que ele aponta da veracidade das aparições, ou seja, a também inimitável distinção de atitudes da vidente, no momento dos colóquios.

Santa Bernadette era uma moça rústica. Quem a vê nas fotografias, nota tratar-se fundamentalmente de uma camponesa.

Pois bem, apesar disso, ao estar com Nossa Senhora, ela Lhe falava e A cumprimentava com uma elegância extraordinária. Tanta que o funcionário público declara não ter conhecido pessoa — e ele privara com muitas — mais distinta que Bernadette. Porém, terminando a visão, ela voltava a ser a filha dos camponeses Soubirous.

Quer dizer, era uma nobreza comunicada a ela pelo contato com Nossa Senhora. Passada a aparição, ela mudava de jeito. Seria mais ou menos como se uma pessoa de condição muito modesta fosse chamada a conversar com a rainha da Inglaterra e, nesse encontro, tivesse atitudes e maneiras mais finas do que no seu cotidiano.

Haveria uma espécie de filtração dos predicados da rainha para a pessoa com quem ela se dignou estabelecer uma interlocução. O mesmo se dava nas aparições de Lourdes.

Primeira gota de uma inundação de graças

Outro fato interessante a salientar é a própria conversão desse homem. Ele diz que saiu da gruta ao mesmo tempo humilhado e pasmo, pois não podia crer que alguém tão cheio de dúvidas e ceticismo como ele houvesse sido tão bem tratado por Nossa Senhora. Na verdade, deu-se um milagre gratuito em favor dele, uma vez que o convertido de nenhum modo merecia ter esta espécie de visão indireta da Virgem Imaculada. E, com o simples reflexo da presença d’Ela sobre a figura de  Santa Bernadette, Maria comoveu a alma desse homem e acabou com todos os seus orgulhos.

Pela expressão curiosa dele, vê-se que seu pensamento é o seguinte: “Eu era muito presunçoso, estava contra- indicado para receber essa graça, mas agora me sinto tocado por ela. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, de modo que não se possam recusar a abrir!”

Foi, portanto, uma obra maravilhosa feita pela graça na alma desse homem, precursora do que se realizaria com tantos milhares e milhares de almas que passariam por Lourdes e seriam colhidas pelo milagre. E de tantas outras que, mesmo longe da gruta de Massabielle, se converteriam ouvindo falar dos prodígios ali operados por Nossa Senhora. Foi a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, iniciando-se em 11 de fevereiro de 1858.

Preciosos ensinamentos

Esses, como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento. Até nossos dias, vemos manifestarem-se em Lourdes algumas atitudes de Nossa Senhora — e da Providência, com quem Ela vive em íntima união — diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, essas atitudes têm sua razão de ser, apesar de parecerem até contraditórias.

De um lado, chama a atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos físicos dos homens. Numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende seus rogos e pratica milagres para lhes curar os corpos.

Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.

Mas existe outra realidade em Lourdes, não menos significativa: são os inúmeros doentes que de lá voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?

Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem.

É por meio das provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, não compreende absolutamente nada. É por essa forma que, via de regra, os homens alcançam a bem-aventurança eterna.

E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de 8º sacramento.

Ora, Nossa Senhora agiria contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está que, para determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura.

Estupendos milagres morais

Como Mãe que ajuda os filhos a carregar seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares de origem imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e de contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados.

Há mesmo o fato de não poucos doentes, vindos dos mais distantes países da terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão da própria cura, em favor daquelas.

Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. É um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor de Deus. Milagre moral, arrancado ao egoísmo humano; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.

Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das freiras do convento carmelita de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de  expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que eles vão ali suplicar. Nunca pedem sua própria cura, e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Padecem horrores, levam às vezes uma vida inteira de sofrimentos ou morrem de uma morte prematura, com esse intuito especial de fazer bem a outras almas.

Quando deitamos um olhar no mundo a nosso redor e consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor próprio, que constituem um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas em Lourdes. Esses atos demonstram que a primordial intenção de Nossa Senhora é produzir esses milagres de caráter moral que conduzem as almas ao Céu.

Pois Nossa Senhora não seria Ela, se aparecesse em Lourdes para fazer bem aos corpos que perecem, e não o fazer às almas imortais. Nem seria verdadeiro esse amor d’Ela aos homens, se não tivesse por principal objetivo levá-los ao amor de Deus.

Porque nada de melhor para nós se pode desejar.

O grande ensinamento de Lourdes

Então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante.

Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso, se for preciso. Alguém objetar á: “É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.

Encontramos a resposta na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Pai Eterno: “Se for possível, afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”.

O resultado é que veio um Anjo consolar Nosso Senhor. Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, que elas sejam afastadas de meu caminho. Porém, seja feita a superior vontade de Deus e não a minha. E a exemplo do que ocorreu com Jesus no Horto, a graça nos consolará também, nas provações que Maria Santíssima nos enviar.

Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.