O comércio das almas na sociedade humana

Prosseguimos com a publicação de um artigo inédito, redigido em 1960 por Dr. Plinio. No fim do capítulo anterior, ele explicava como cada homem é influenciável por seus semelhantes, e procura  imitar alguns deles. Se admira e imita pessoas virtuosas, cresce em perfeição e aumenta sua semelhança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas. Por isso, imitar e servir de exemplo são obrigações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento das almas, inerentes à sua vida social. Dr. Plinio estende suas observações a esse respeito perguntando-se: como se dá esse comércio entre as almas? Em outros termos, qual sua parte na existência social dos homens? Vejamos a resposta.

 

Quando duas pessoas estão em contato entre si, por mais que sejam desiguais em inteligência, instrução, ou força de persuasão, estão em condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra. Maravilhoso instrumento para a expressão da alma Todas as nossas idéias, mesmo as mais abstratas, todas as nossas emoções, mesmo as mais subtis, são suscetíveis de uma expressão adequada, pela ação primordial da palavra em si mesma, completada e enriquecida pela inflexão da voz, pela expressão do olhar, pelos gestos, pela atitude do corpo, pelo porte, e até pela maneira de caminhar.

Virgílio nos diz que, pelo simples modo de andar, Dido se mostrava uma deusa: “et incessu patuit dea…”. O homem ainda acentua o poder de expressão de seu corpo por meio do traje e do ornato. Esse poder chega a ser tão grande que é considerado, às vezes, aliás erroneamente, como irresistível.

Quando essa transparência da alma em todo o modo de agir e de ser do corpo se torna nítida, e sobretudo quando tal transparência revela uma alma firme, clara, lógica, reconhecemos estarmos  em presença do que se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para dirigir, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É realizar, dentro do mero campo natural, como que uma transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma, prefigura meramente natural, mas esplêndida em si mesma, da transfiguração sobrenatural, incomparavelmente mais radiosa e mais nobre que os corpos gloriosos terão no Céu, e de que Nosso Senhor, no Tabor, assim como alguns santos, nos deram uma visão sensível nesta terra de exílio.

O homem pode comunicar expressão aos seres inferiores

As formas, as cores, os sons, os odores, os sabores têm uma analogia – que não é meramente convencional —- com as disposições do espírito humano. E, por isso, as palavras que servem para designar estados da alma humana são correntemente empregadas para designar por analogia as propriedades de seres animais, vegetais ou minerais. Pode-se falar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um buquê de flores ou de um panorama, do mesmo modo pelo qual se fala do riso alegre de uma moça ou de uma criança. Pode-se falar da majestade de um rei, como da águia, ou do trovão. Os exemplos disso poderiam ser multiplicados quase ao infinito.

Pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores, comunicando-lhes uma determinada expressão. Assim, é indiscutível que as espécies animais domesticadas recebem como que certa  amenidade de comportamento, certa compostura, que as distingue das congêneres selvagens por diferenças muito semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do bárbaro. Certos animais, como os gatos de Angorá ou os lulus da Pomerânia, tomam uma espécie de distinção evidentemente afim com os ambientes humanos em que vivem.

Uma ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida pelos homens sobre certas plantas, nas quais se distinguem as espécies selvagens e as cultivadas, antes diríamos, as “culturadas”. Certa  expressão de alma, o homem pode comunicá-la até a seres perfeitamente inanimados: quando faz, por exemplo, um quadro que terá uma expressão que de nenhum modo preexistiu na tela, no pincel e nas tintas.

E tal é a alma humana que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qual expressão a todos os objetos de que se cerca. Porque somos feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem ao corpo falem também à alma. Um móvel apenas cômodo é o que serve só ao corpo; um móvel elegante é o que serve também à alma. Um tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao clima, satisfaz o corpo.

Mas a alma tem exigências próprias e pede que ele seja belo. Essas observações nos conduzem a uma noção essencial, que é a de “ambiente”. Os ambientes exprimem estados de alma Quando às vezes entramos numa sala, parece-nos sentir a personalidade de quem a decorou. Dizemos que tem ambiente. O que quer dizer aí “ambiente”? É a expressão de alma que, pelo jogo das formas e das cores, pela disposição e qualidade dos móveis, uma pessoa conseguiu comunicar a objetos materiais.

Nisto, como em tudo, o homem imita a Deus. Quando contemplamos certos panoramas marítimos; quando à noite olhamos para o céu, sentimos uma expressão de alma que se desprende deste mundo: é o ambiente criado por Deus, e pelo qual Ele se exprime a nossos sentidos.

Muito mais fácil ainda nos seria exemplificar com os sons, os perfumes, os sabores. Diz o Eclesiástico (31, 36) que o vinho, bebido moderadamente, alegra a alma e o coração. A Igreja se serve da música para formar nossa piedade. O aroma austero do incenso lhe parece adequado a ser respirado por nós na oração. Os seus moralistas, pelo contrário, sempre nos premuniram contra os perfumes voluptuosos e capazes de excitar a moleza e a luxúria. Consideremos agora o ambiente em relação com o fim essencial da contemplação, que é conduzir-nos a Deus.

Se os estados de alma são suscetíveis de se exprimirem assim, está implícito que as virtudes e os vícios também. Eles se manifestam com freqüência na face humana, na inflexão de voz, no gesto, no andar. Eles são suscetíveis de marcar com sua nota própria tudo quanto o homem faz e produz. A intemperança ou a temperança de um artista não se nota só no fato de explorar ou não o nudismo. O ritmo de uma música pode em si mesmo ser lascivo; como a combinação de certos perfumes; ou a complicação de certos sabores. A falta de siso não se exprime só pelo sentido das palavras, mas pelo desalinho do gesto, pela extravagância das linhas ou das cores de um traje, de um móvel, de um edifício.

Neste ponto, como em outros, o homem é sujeito a erro, e pode taxar de voluptuosas ou desatinadas coisas que só lhe parecem tais porque não está habituado a elas. Não obstante, uma certa volúpia ou extravagância pode estar realmente na coisa produzida por um homem voluptuoso ou extravagante. Qualquer que seja o ambiente, precisamente porque ele exprime um estado de alma, não pode ser moralmente indiferente: ou será bom, e favorecer á as almas na consideração e assimilação de Deus; ou será mau, e agirá em sentido oposto.

É isto o que se poderá dizer da honestidade ou desonestidade natural dos ambientes. Será lícito caminhar mais um passo, e falar em ambientes especificamente cristãos? Parece-nos que sim. A alma tocada pela graça adquire uma perfeição sobrenatural que por vezes se espelha na face. A hagiografia pulula de testemunhos a tal respeito. O que foi a Transfiguração senão isto? Ora, a pintura e a escultura podem exprimir algo de semelhante. E certos edifícios em que essas esculturas e vitrais se encontram têm com eles uma tal harmonia que parecem, à sua maneira, exprimir a mesma “irradiação” de uma alma misticamente unida a Nosso Senhor Jesus Cristo. O heroísmo dos cruzados foi tipicamente cristão, e, pois, diverso do heroísmo meramente natural de um legionário romano. É possível considerar o ambiente formado numa paisagem por um possante castelo medieval, sem ter a impressão de que algo de tipicamente cristão nos toca a alma?

Não queremos estender por demais este artigo. Por isso não fazemos senão assinalar que, pelos mesmos motivos pelos quais se poderia falar de um ambiente especificamente sobrenatural e cristão, poder-se-ia falar de um ambiente especificamente preternatural e diabólico.

A formação da “alma coletiva”

Quando a vida social das almas é regular e intensa num determinado grupo humano — uma família, digamos, ou uma sociedade —, constitui-se aí uma como que alma coletiva; ou seja, um conjunto  de convicções, algumas das quais prezadas como particularmente importantes; conseqüentemente, uma mentalidade coletiva, um estado de espírito comum, e exercendo uma influência especialmente forte sobre todos os membros. O vocabulário se define pelo uso mais insistente de certas palavras, ou expressões, que até tomam por vezes, dentro do grupo, uma tonalidade específica. Não é raro aparecerem também neologismos. De outro lado, o modo de trajar, de falar, de comportar-se, todas as preferências pessoais tendem a receber a marca dos princípios comumente aceitos, e especialmente dos que são dominantes. Por fim, o ambiente material se satura desta influência, e aos poucos o quadro físico — casa de família, sede social, etc. — vai sendo  transformado de maneira a exprimir ele próprio o espírito dominante.

Várias sociedades menores, formando entre si algo como uma sociedade de sociedades — um conjunto de famílias numa cidade, digamos — podem manter um comércio espiritual comum, que forma  o ambiente mais genérico, porém não menos afirmativo, da vida da cidade. O florescimento de um conjunto de vocábulos, de trajes, de hábitos locais, a produção de obras de artesanato marcadas pelo estado de espírito local, e até de influências artísticas nitidamente locais, tudo isto é o resultante de uma sociedade espiritual harmônica, definida e ativa.

Evidentemente, poderíamos subir assim da cidade à região, desta ao país, e deste por sua vez às grandes zonas de cultura e de civilização. Sem entrar no debate inesgotável sobre o sentido de “civilização”, de “cultura ”, de “estilo” artístico, chamemos aqui “cultura” social o estado de espírito coletivo, a “alma coletiva”, pelo menos enquanto fecundada e ordenada pelo trabalho intelectual, e enquanto existente como nota característica que marca também o trabalho intelectual; chamemos “civilização” o conjunto das instituições, leis, costumes, enfim todo o modo de ser coletivo, enquanto marcado pela “cultura”; e “estilo” as manifestações da arte enquanto marcadas pela “cultura”, e, pois, necessariamente afins com a “civilização”. Chamemos “ambiente” social a impressão de conjunto exercida sobre o observador pela ação harmônica da civilização, da cultura e do estilo, a transparência definida, forte, inequívoca, do estado de alma e dos princípios doutrinários que são o que aquela sociedade de almas tem de mais intrínseco.

Benefícios da sociedade de almas

Neste sentido, podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da sociedade humana, são o produto da vida social enquanto sociedade de almas. Esses bens são indispensáveis ao modo de ser habitual das almas, e justificam por si mesmos, independentemente de outros argumentos — todos legítimos, aliás — a existência da sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir esses bens. Nem condições normais de vida para a alma fora de tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e civilização.

Ainda no mesmo sentido, devemos dizer que a função contemplativa do homem nesta terra — aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no Céu — normalmente se exerce com apoio no  ambiente, na cultura, no estilo e na civilização. Pois é com o auxílio de tudo isso que o homem melhor vê e mais adequadamente assimila ou rejeita os diversos aspectos do meio que o cerca.

Ainda nesta ordem de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da cultura, do estilo, da civilização, embora produtos tipicamente espirituais, constituem objeto próprio da sociedade temporal. Pois é esta última noção que nos permitirá prosseguir em nossas reflexões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações entre a Igreja e a sociedade civil.

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua no próximo número)