Oração a São Miguel, pedindo a graça de ser um perfeito cavaleiro

Ó São Miguel Arcanjo, que desembainhastes vosso gládio no Céu para vingar contra os anjos rebeldes a glória do Salvador e de sua Mãe Santíssima, dai-me a graça de ser, neste auge do poder das trevas, um perfeito cavaleiro da Cavalaria Angélica suscitada em nossos dias para combater o demônio e seus agentes terrenos e implantar o Reino de Maria.

Para isto, obtende-me a graça de ter um espírito profundo, sério, abnegado, inebriado de fervor para com a Contra-Revolução, bem como transbordante de ódio e desprezo para com a Revolução satânica, igualitária e gnóstica.

São Miguel Arcanjo

Ao lançar pelas vastidões celestiais o seu brado magnífico de “Quem como Deus?”, São Miguel Arcanjo afirmou a primazia da admiração, da qual nasce o amor, sobre a inveja, da qual nasce o ódio. 

Porque muito admirava o seu Criador, muito O amou. E assim, na hora da grande prova da raça angélica, mereceu capitanear as legiões dos Anjos fiéis contra Lúcifer e seus revoltosos seguidores.

Ele é o Príncipe da Milícia Celeste, o Paladino daquele que é infinitamente superior a tudo e a todos, Deus Nosso Senhor.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Miguel, São Gabriel e São Rafael Arcanjos

A Igreja Católica, no seu conjunto, é a sociedade de Deus com os anjos e os homens fiéis. Durante toda a eternidade ela subsistia em Deus, ou melhor, era o próprio Deus: sociedade inefável de três pessoas numa mesma essência. Agora, ela transpõe os séculos, passa sobre a terra para associar-nos à sagrada unidade universal e perpétua, e retornar conosco à eternidade de que proveio.

Os primeiros chamados a essa união divina foram os anjos. Tendo sido criados bons, porém livres, Deus os põe à prova, tal como fez conosco. Desde então houve cisma e heresia. Em lugar de tomarem como única regra a si próprios. Foram excluídos da comunhão de Deus, mas não da sua providência.

Divididos em nove coros subordinados um ao outro, os anjos que se conservaram fiéis foram um exército invencível. Seu número é incalculável.

Quando o altíssimo está sentado no seu trono, mil anjos o servem, e dez mil vezes cem mil compõe a sua corte. Ele denomina a si próprio o Deus dos deuses. Há anjos encarregados de governar os astros, os elementos, os reinos, as províncias; outros, o comportamento dos indivíduos.

Como filhos da Igreja, constituímos com eles uma única sociedade. Pois, diz São Paulo, aos cristãos da raça de Jacó: “não vos aproximastes como aqueles que receberam a antiga lei de uma montanha sensível e terrestre, de um fogo ardente e de uma nuvem escura e tenebrosa, de tempestades e raios, do som de uma trombeta, e do clamor de uma voz formidável. Mas vos aproximastes da montanha de Sião, da cidade de Deus vivo, da Jerusalém celeste, de inumeráveis miríades de anjos, da assembléia e da Igreja dos primogênitos que estão inscritos no céu, de Deus que é o juiz de todos, dos espíritos dos justos que estão na glória, de Jesus que é o mediador da nova aliança, e daquele sangue por nós derramado e que fala mais proveitosamente do que o de Abel.

Desde o início existiu o ministério dos santos anjos. Depois de ter lançado a sua sentença sobre nossos dois primeiros antepassados, Deus colocou os querubins às portas do paraíso terrestre com uma espada flamejante, incumbidos de guardar-lhe a entrada. Eram provavelmente os quatro querubins citados várias vezes nas profecias de Ezequiel, e no Apocalipse de São João, e que apareciam como as quatro principais potências pelas quais Deus governa o universo material, o gênero humano, e a Igreja cristã. Seu conjunto forma uma espécie de carro sobre o qual o Altíssimo avança através dos mundos e dos séculos; um trono onde está sentado, e do qual ele lança suas sentenças sobre os reis e as nações. Do centro do trono partem os trovões e os raios que executam as sentenças. Será essa, talvez, a significação da espada de fogo brandida à entrada do paraíso. Deus que a princípio tratara o homem com a familiaridade  de um pai, quer fazer-lhe suceder, segundo parece, o formidável aparato de um senhor e soberano juiz.

Com Abraão, inicia-se uma era de misericórida. Três anjos ou personagens, nos quais os Padres da Igreja reconheceram as três pessoas divinas, lhe aparecem sob o carvalho de Mambré, e lhe anunciam um filho em que serão abençoados todas as nações da terra. Dois anjos salvam Lot e sua família, antes de começarem a destruição de Sodoma e Gomorra. Vê-se a providência ministerial do anjo em relação a Agar e Ismael, pai dos árabes: o anjo de Deus no episódio do sacrifício de Isaías na montanha de Moriah, mais tarde do Calvário: os anjos de Deus subindo e descendo a escada de Jacó, em Bethel: a luta de Jacó contra um anjo que o abençoa e lhe dá o nome de Israel: os anjos perante Deus, e satã entre eles, na história de Jó: o anjo do Eterno na sarça ardente, confiando uma missão a Moisés: o anjo de Deus que guiou o povo de Israel: o anjo aparecendo a Balaam: o anjo de Deus dando ordens a Josué, a fim de introduzir o povo na terra prometida: o anjo aparecendo a Gedeão e designando-o para salvar o seu povo: o anjo anunciando o nascimento de Sansão, que libertaria o povo do jugo dos filisteus. Depois de ter pregado a penitência no reino de Israel, o profeta Elias diante do trono de Deus e recebe uma missão. Os querubins são avistados pelo profeta Ezequiel.

Só há três anjos cujos nomes próprios as Escrituras Sagradas nos dão a conhecer.

Miguel é o grande capitão do exército celeste. Seu nome Mi-cha-el significa, quem é igual a Deus?

Quando Lúcifer, cego pelo orgulho, quis igualar-se ao Altíssimo, Miguel exclamou com voz trovejante: “Quem é igual a Deus?” E acompanhado pelos anjos fiéis, precipitou do alto dos céus a tropa rebelde dos apóstatas. Assim se tornou o generalíssimo do incontável exército dos santos anjos. Vê-se, nos profetas, que era o protetor do povo de Israel; agora o é da Igreja. Rejubilemo-nos por estarmos sob o comando de tão destemido chefe; mas também imitemos a sua fidelidade.

A grande batalha iniciada no céu prossegue sobre a terra, Batalha cujo objeto somos nós. Satanás e seus demônios h=gostariam de arrastar-nos com ele para o inferno; Miguel e seus anjos gostariam de levar-nos com eles para o céu. Com quem permaneceremos eternamente? Com quem estamos agora? Necessariamente devemos estar com um ou com outro: não é possível nos conservarmos neutros. Ao lado de quem combateremos? De quem seguiremos as inspirações? Do anjo de Deus ou do anjo de Satã? Se morrermos no estado em que nos encontramos, seria um anjo ou um demônio, que nos apresentaria ao tribunal de Deus? Com efeito, será que, ao morrermos, nos reconhecerá São Miguel como fiéis companheiros de armas?

Se me deixar derrotar pelo demônio nessa batalha, a culpa será unicamente minha. Deu-me Deus um defensor para o corpo e para a alma, meu anjo bom. Ser-me-á bastante escutá-lo: combaterá comigo e por mim. No fundo, só há um inimigo a temer: eu mesmo.

Gabriel, cujo nome significa Força de Deus, anuncia ao profeta Daniel a época da grande obra de Deus, a época do Filho de Deus feito homem, Cristo condenado à morte, a remissão dos pecados, o Evangelho pregado a todas as nações, a ruína de Jerusalém e de seu templo, a condenação final do povo judeu. É o mesmo anjo Gabriel que prediz ao sacerdote Zacarias,  no templo, no santuário, junto ao altar dos perfumes, o nascimento de um homem que será chamado João, ou cheio de graça, e que não mais anunciará a vinda do Salvador, mas que o apontará: “Eis o Cordeiro de Deus! Eis quem tira os pecados do mundo!” É o mesmo arcanjo, sempre enviado para anunciar grandes coisas, que irá à humilde casa de Nazaré anunciar à Virgem Maria a maior de todas as coisas; comunicar que, sem deixar de ser virgem, ela daria à luz ao Filho do Altíssimo, que seria chamado Jesus ou Salvador, porque seria o Salvador do mundo. É esse glorioso arcanjo que nos ensina a dizer tal como ele: “Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres!”

Rafael, cujo nome significa Médico ou cura de Deus, dá-se a conhecer a Tobias: “Quando oráveis, vós e Saram vossa nora,  ou apresentava o memorial de vossas orações diante do santo; e quando sepultáveis os mortos, estava presente junto de vós. Quando não vos recusáveis a levantar-vos da mesa e deixar vosso jantar para amortalhardes um morto, o bem que praticáveis não permanecia oculto; pois eu estava convosco. E por que éreis agradáveis a Deus, foi necessário que fosseis provados. Agora, porém, Deus enviou-me para curar-vos, a vós e a Sara, esposa de vosso Filho. Sou Rafael, um dos sete anjos que apresentam as orações dos santos, e que podem defrontar a majestade do Santíssimo!

Feliz Tobias! Diremos nós. Teve um anjo como companheiro de viagem! Mas cada um de nós não tem um  anjo de Deus que o acompanha por toda a parte? … Pensamos nisso com a necessária freqüência?

(Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVII, p. 126 à 132)

As realidades terrenas devem ser parecidas com o Céu

Na consideração da festa de São Rafael Arcanjo devemos impetrar-lhe a graça de ver em todas as realidades terrestres a semelhança com as celestes. Somente na medida em que amarmos as realidades terrenas parecidas com o Céu é que prepararemos as nossas almas para o Reinado de Maria Santíssima e para a eterna beatitude.

 

Oculto aos Santos Anjos está muito relacionado com a nossa espiritualidade, razão pela qual o estudo dos espíritos angélicos ocupa um papel muito importante em nossas cogitações.

Pedir graças espirituais e temporais

São Rafael, como um dos mais eminentes dos Anjos, naturalmente tem um lugar privilegiado em nossa devoção. Por outro lado, o fato de ele encaminhar as orações dos homens para Deus e, naturalmente, para Nossa Senhora, que é intercessora também para os Anjos, é um motivo especial para cultuarmos São Rafael.

O Arcanjo São Rafael é padroeiro dos que viajam e também dos enfermos. Há tanta gente entre nós que, a um ou outro título, é doente. Considero uma boa coisa a pessoa, em face de suas próprias enfermidades, situar-se assim: “Meu Deus, eu Vos peço que me liberteis desta doença, mas se não me libertardes, porque é de vosso desígnio, fazei-me, pelo menos, tirar todo o fruto espiritual dela.”

Alguém poderia pensar que pedir a saúde não corresponde a uma atitude perfeita, porque é uma graça temporal e não espiritual. Deus me livre de uma religiosidade que só peça as graças temporais, mas que Ele me livre igualmente de outra que julga haver uma imperfeição espiritual em pedir as graças temporais. Deve-se pedir também “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”.

Protocolo monárquico dos bons tempos

Uma das noções que se apagaram muito a respeito do culto aos Anjos, e que me parece interessante relembrar, é a de que o Céu constitui uma verdadeira corte. Antigamente falava-se muito em Corte Celeste, o que encontra seu fundamento na ideia de que Deus está perante os Anjos e Santos, na Igreja gloriosa, como o rei perante sua corte.

Mas o curioso é que algumas peculiaridades próprias às cortes existentes na Terra, pelas similitudes entre as coisas da Terra e as do Céu, acabam existindo na Corte Celeste também, constituindo-se uma corte no sentido muito mais literal da palavra do que se poderia imaginar.

Se considerarmos um protocolo monárquico dos bons tempos, veremos que não era, como imaginam alguns, uma coisa formal, completamente vazia. Mas era a maneira de reger a existência das várias pessoas a serviço do rei, de maneira a tudo se passar de um modo prático, simples e decoroso, facilitando de todas as formas a vida do monarca.

Assim, por exemplo, quando o rei se colocava à disposição para receber os pedidos de seus súditos, ele os atendia tendo em torno de si, nas grandes ocasiões, os príncipes da Casa real, pessoas de alta nobreza. As demandas eram entregues por escrito. Porém, o interessado comparecia diante do monarca e podia dirigir-lhe a palavra para dizer o que quisesse. Algum príncipe, uma pessoa de alta categoria ou alguém que fosse chegado ao interessado também podia dizer algo. Então o solicitante entregava a um dignatário um rolo de papel com seu pedido, que o rei examinaria depois. Havia uma mesa sobre a qual iam se acumulando os pedidos que depois eram despachados por um Conselho especial.

Vê-se como há uma espécie de hierarquia de funções, de dignidades, de intercessões que conduz ao rei e, depois, procede dele e chega aos particulares. Esse é o mecanismo de uma corte.

Padrão para todas as cortes terrestres

Na Corte Celeste o mesmo protocolo existe, em última análise, pelas mesmas razões. Deus Nosso Senhor, que evidentemente não precisa de ninguém, entretanto, tendo criado seres diversificados, era natural que entregasse a eles missões junto a Si, segundo uma disposição hierárquica. E também que esses seres possuíssem um brilho, um esplendor, uma dignidade na mansão celeste correspondente às tarefas das quais são incumbidos, tarefas essas que, por sua vez, correspondem à própria natureza deles.

Assim, é de acordo com a ordem do universo que os seres humanos sejam regidos pelos Anjos, e estes sejam intercessores dos homens junto a Deus. De maneira que é verdadeiramente uma vida de corte, com um protocolo, uma dignidade, que serve de padrão para todas as cortes terrestres, e indica a necessidade de existir um protocolo, uma hierarquia, uma diversificação de funções.

Temos o exemplo contrário disso nos discursos de chefes de Estado e de sindicalistas modernos, onde há uma pilha de gente atrás, dezenas de microfones, gente em volta conversando; o indivíduo interrompe a arenga, dá uma ordem para este e aquele, conta uma piada, depois continua a falar para a massa. Uma bagunça em que não há compostura nem dignidade. E essa carência de ordem, compostura e dignidade vão constituindo a igualdade e a democracia.

Ao contrário, no estilo aristocrático-monárquico nós temos essa diferenciação, essa hierarquia que é a própria imagem do Céu, e compreendemos melhor aquela afirmação de Pio XII de que, até mesmo nas democracias verdadeiramente cristãs, é indispensável que as instituições sejam de um alto tonus aristocrático.

Condição psíquica de sobrevivência na Terra

A festa de São Rafael nos conduz exatamente a essa ideia. É um intercessor celeste de alta categoria que leva nossas preces a Deus, porque é um dos espíritos angélicos mais elevados que assistem junto a Ele e, portanto, estão mais próximos d’Ele para pedir por nós, constituindo os canais naturais das graças que desejamos.

Essa consideração nos conduz à ideia de reforçarmos cada vez mais em nós o desejo de que as realidades terrestres sejam semelhantes às celestes. Porque apenas na medida em que amarmos as realidades terrenas parecidas com o Céu é que preparamos as nossas almas para a beatitude celeste. Se, ao morrermos, não tivermos apetência das realidades terrestres parecidas com as celestes, não teremos apetência do Céu.

Há, portanto, algo nesse espírito de hierarquia, de distinção, de nobreza, de elevação que corresponde a uma verdadeira preparação para o Céu; preparação esta tanto mais desejável quanto mais vamos afundando num mundo de horror, no qual todas as exterioridades com as quais tomamos contato são monstruosas, caóticas, desorganizadas.

É uma necessidade do espírito humano, para não afundar no desespero, que a pessoa possa pousar as suas vistas extenuadas e doloridas em algo digno e bem ordenado. Não é próprio ao homem viver no “mare magnum” de coisas que caem, afundam, se deterioram. Em algum lugar ele necessita pôr a sua alegria, a sua esperança.

Mas de tal maneira tudo quanto é digno está desaparecendo deste mundo que, ou temos cada vez mais o nosso desejo, a nossa esperança postos no Céu, ou não teremos mais condição psíquica de sobrevivência na Terra.

Houve uma Santa que teve uma revelação na qual ela viu o seu próprio Anjo da Guarda. Era um ente de uma natureza tão elevada, tão nobre e excelsa, que ela se ajoelhou diante dele para adorá-lo, pensando ser o próprio Deus. O espírito celeste precisou explicar-lhe que ele era apenas o seu Anjo da Guarda. Ora, sabemos que os Anjos da Guarda pertencem à hierarquia menos alta que existe no Céu. Em comparação com isso, o que podemos imaginar de um Anjo como São Rafael, das mais elevadas hierarquias?

São Luís, Rei de França, e São Rafael, Príncipe celeste

Mas para não ficarmos na concepção de um puro espírito, podemos nos servir de uma comparação antropomórfica que nos faça degustar melhor essa realidade, imaginando, por exemplo, São Rafael tratando com Nossa Senhora no Céu, à maneira de São Luís, Rei de França, falando com sua mãe, Branca de Castela.

É sabido que São Luís era um homem de alto porte, grande beleza, muito imponente, de maneira que, ao mesmo tempo atraía, incutia um respeito profundo e suscitava um imenso amor. Possuía o feitio de um guerreiro terrível na hora do combate, e era o rei mais pomposo e decoroso do seu tempo.

Esse rei, no qual transluziam todas as glórias da santidade e que era um filho muito amoroso, podemos imaginá-lo nos esplendores da corte da França, conversando com Branca de Castela. Quanta distinção, quanto respeito, quanta elevação, quanta sublimidade nessa cena! Ela nos dá um pouco a ideia do que seria São Rafael se dirigindo a Nossa Senhora. Um rei como São Luís era uma espécie de Anjo na Terra; São Rafael vagamente pode ser considerado como uma espécie de São Luís celeste. Ele é um Príncipe celeste, apenas com a diferença de que São Luís era rei e São Rafael não; e Nossa Senhora é Rainha a um título muito mais alto do que Branca Castela.

Por esta transposição podemos ter um pouco a noção, à maneira de homens, da alegria de que nós vamos estar inundados no Céu quando pudermos contemplar um Arcanjo como São Rafael, e tudo quanto veremos de Deus admirando esse Príncipe celeste.

Peçamos a ele que tenhamos essa contemplação, mas também que algo dessas ideias penetrem em nós nesta vida, e que a consideração dessa ordem ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do Reinado de Maria, dissipando toda a tristeza crescente destes dias em que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão se aproximando tão rapidamente de nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 23/10/1963 e 23/10/1964)

Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

O perigo começa com a vitória! – II

Após analisar a primeira fase medieval, Dr. Plinio nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se a corrupção da sociedade.

 

Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornado progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado.

Tratava-se de um relaxamento e não uma deliberação explícita em fazer o mal

É uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, que já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar.

Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência.

Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação.

Não se pode, entretanto, afirmar que havia má intenção nesta atitude. Tratava-se apenas de um relaxamento e não de uma deliberação em praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver, a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres.

Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados.

Está na substância da santificação o desejo da cruz

É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas.

Isto interessa muito aos contrarrevolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme sua promessa em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contrarrevolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contrarrevolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações.

Há depois, uma segunda fase, de estabilização, em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se devem temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de cruz.

As várias etapas da decadência medieval

A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval produz uma sensação muito agradável.

O agradável encontra sua melhor expressão no Gótico “Flamboyant”. Mas o “Flamboyant” vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes.

Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de Cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval.

Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval, é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, constituía a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes.

A corrupção da sociedade a partir das elites

Antes de prosseguirmos, seria conveniente lembrar um princípio.

Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos — sobretudo caso se trate de um liberal — várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista e o republicano, o católico e o protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem.

Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos.

O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de “proche en proche”(1), para as demais classes sociais.

A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz.

Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero.

Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas.

Entre as camadas inferiores do povo a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir, uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim, tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo nas camadas superiores da sociedade.

A decadência deveu-se à tolerância dos bons

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero, que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância agressiva, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes oferecem a intolerância e resistência que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalhação interna, que produz o estertor dos revolucionários. Poucos têm coragem para argumentar contra quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido, dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de maio de 1959)

 

1) Pouco a pouco.