Santa Monica

Nas “Confissões” de Santo Agostinho há um trecho especialmente magnífico: é chamado o “Êxtase de Óstia” ou o “Colóquio de Óstia”. Hoje em dia se diria o “diálogo de Óstia”.

O episódio é o seguinte: a mãe de Santo Agostinho, Santa Mônica (331–387), passou uns trinta anos ou mais chorando a pedir a Deus a conversão de seu filho. Parecia que quanto mais ela rezava, esta conversão se tornava mais longínqua. Até que, de desatino em desatino, Santo Agostinho acabou por comer as bolotas dos porcos e começou um processo de conversão que fez dele o grande Doutor da Igreja.

Santo Agostinho, já convertido, e Santa Mônica resolveram voltar para a África do Norte, naquele tempo inteiramente romana, e mais especificamente para a cidade de Cartago, de onde eram naturais, para ali residirem. E assim percorreram uma certa parte da Itália para tomar um navio em Óstia, que é um porto pequeno perto de Roma, mas que tinha naquele tempo uma certa importância. De lá iam seguir para a África.

Encontravam-se então numa hospedaria de Óstia, encostados junto a uma janela e começaram a conversar a respeito de Deus e das coisas do Céu, quando os dois juntos tiveram um êxtase.

Santo Agostinho relata este colóquio extraordinário e é um dos trechos mais famosos das “Confissões”. Poucos dias depois Santa Mônica morria, ainda estando na cidade de Óstia. Sua missão na terra estava cumprida e Nosso Senhor a chamou ao Céu para gozar do prêmio que merecia.

Então, o último lance de sua vida foi exatamente a alegria de ter na terra com o filho este colóquio, que era um prenúncio, um antegozo da visão beatífica. Tenho a impressão que qualquer um de nós que passasse por Óstia, gostaria de ver se ainda existe essa hospedagem.

Resolvi ler aqui a narração desse colóquio, porque é um página célebre e abre os nossos horizontes para os grandes portentos na perspectiva da hagiografia e da doutrina católica. O trecho é extraído diretamente das “Confissões”:

“Próximo já do dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos…”

Estas interpelações diretas de Santo Agostinho a Deus são magníficas. Os senhores deveriam ler os “Solilóquios” de Santo Agostinho, que há em nossa biblioteca e que são qualquer coisa de absolutamente estupendo.

“…sucedeu, segundo creio, por disposição de Vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para nos embarcarmos.

“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e dilatando-nos para o futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que ‘nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou’.”

Vejam que beleza: dois santos conversando sobre qual seria a vida eterna dos santos, e a alegria de Santa Mônica em sentir aquele filho perdido que agora estava incendiado de desejos de contemplar o Céu. É uma verdadeira maravilha!

“Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da nossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”

Faço notar aos senhores a maravilha da expressão “os lábios do coração”… quer dizer, aquilo por onde o coração bebe, por onde o coração sorve, estavam abertos para receber de Deus aquilo que nesta vida terrena se pode receber a respeito das alegrias do Céu.

“Encaminhamos a conversa até a conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem mesmo que delas se faça menção. Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra.”

É uma verdadeira procura do absoluto. Eles começaram a considerar: primeiro as coisas da terra, que lisonjeiam os sentidos, porque estavam no Império Romano decadente, em que havia fortunas fabulosas e pessoas que tinham luxo para deleitar os sentidos de que os Srs. não têm ideia. Então, o primeiro confronto é da felicidade celeste para a felicidade dos homens, que no tempo do Império, eram tidos como felizes. Resposta: isto não é nada. Então, começam a perguntar: como é então (a felicidade verdadeira)? E começam a percorrer os céus, a imaginar com os dados do céu material e visível, como seria o paraíso celeste material, mas invisível, e como seria a glória da visão beatífica que neste paraíso se goza. É este o esquema da conversa deles. Então continua:

“Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as Vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por Quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela ‘ter sido’, nem ‘haver de ser’, pois simplesmente ‘é’, por ser eterna.”

Ou seja, depois de ter considerado todas as coisas materiais, começaram então a considerar a alma como elemento para se ter algo da ideia da beleza, da perfeição de Deus. E depois de considerar a alma, chegaram à conclusão de que no ápice de tudo isto figurava a Sabedoria Eterna e Incriada. Essa Sabedoria que é eterna, que não tem passado, nem presente e nem futuro. Foi nessa consideração sapiencial, suprema, que os espíritos deles se detiveram.

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria…”

Quer dizer, visando conhecer a Deus enquanto Sabedoria, enquanto fim e explicação de todas as coisas.

“…atingimo-la momentaneamente num vislumbre completo do nosso coração.”

É o êxtase. Enquanto conversavam a respeito dessas coisas, conduzidos pela graça de Deus, em certo momento a Sabedoria se revelou a eles, e tiveram um fenômeno místico por onde viram Deus.

Os senhores vêem que é algo muito natural: são dois santos que tem uma conversa que é uma oração; esta vai subindo de voo, de ponto em ponto, e quando chega ao seu ápice, então lhes aparece Deus Nosso Senhor, mas aparece de maneira a fazê-los conhecer enquanto Sabedoria Eterna. E tudo isto com tanta simplicidade,   numa janela de uma hospedaria de Óstia…

“Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”

Quer dizer, o que havia de melhor neles ficou na visão, não voltou para a terra.

“…Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao Vosso Verbo, que subsiste por si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando?”

Aqui está uma insinuação de que Deus lhes disse uma palavra. Naturalmente é o Verbo. E que isto que foi dito por Deus sobre Sua própria Sabedoria, foi qualquer coisa tal que o que continuassem a conversar seria um balbucio. A visão cessou e as palavras deles eram umas coisas vazias à vista do que Deus havia revelado de Si mesmo.

“Dizíamos pois: suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu…”

É a doutrina dos quatro elementos.

“Suponhamos que ela guarde silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.

“Imaginemos que nessa mesma alma existe o silêncio completo, porque se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: ‘Não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos O que permanece eternamente’. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Ele sozinho fala, não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de Anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.

“Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabávamos de experimentar, atingindo num voo de pensamento, a Eterna Sabedoria que permanece imutável sobre todos os seres.”

Quer dizer, ele imagina uma alma que não cogita de nada mais criado, que consegue abstrair de tudo e que de repente ouve uma palavra de Deus que diz alguma coisa a respeito de Si próprio.

“Se esta contemplação continuasse e se todas as outras visões de ordem muito diferente cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a absorvesse, de modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo – a visão beatifica – pelo qual suspiramos, não seria isto a realização do “entra no gozo do teu Senhor”? E quando sucederá isto? Será quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados?”

Ele afirma então que se uma alma pudesse ficar eternamente apenas naquele vislumbre, já teria um prazer paradisíaco inefável, extraordinário.

“Ainda que isto, dizíamos, não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo, bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis, naquele dia quando assim conversávamos. Minha mãe acrescentou ainda: ‘Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem porque ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar um pouco a minha vida: para ver-te cristão e católico, antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça super abundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço, eu, pois, aqui?’”

Dias depois ela morreu.

Santa Mônica, nesta visão, teve o prenúncio de sua própria morte, compreendeu que não tinha nada mais para fazer. Agora os senhores considerem a diferença de uma grande santa com uma mãe piegas (excessivamente sentimental). Esta última diria: “Agora que meu filho está convertido, começou para mim a vida! Eu vou ouvir os sermões dele, vou ver suas obras, vou viver com ele uma vida gostosinha na casa episcopal, admirando a virtude e o talento daquele que eu gerei para a vida natural e que eu arranquei, pelas minhas orações, à morte eterna, para dar um grande santo. Agora é que está bom…”

Santa Mônica não queria ver seu filho para nada disso. Ela o queria para Deus. Quando sentiu que Santo Agostinho estava nas mãos de Deus, não quis perder  tempo vendo-o servir a Deus. Alguns dias depois ela expirou.

É uma grande santa e seu último grande lance da vida narrado por um grande santo.

Aí vemos um pouco o que é a vida de um santo, quando não é descrita por um “heresia branca”. Os senhores vêem quantas coisas há de comum com essa narração – e das quais já tinha me esquecido inteiramente – com as conferências sobre a “Procura do Absoluto” e temas conexos que temos feito aqui ultimamente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Santo do Dia, 31 de agosto de 1965)

 

O COLÓQUIO DE ÓSTIA

Como, no decorrer dos séculos, a maneira de raciocinar dos vários povos vai enriquecendo com traços peculiares a fisionomia da Igreja – eis a tese exposta por Dr. Plinio na conferência que vimos reproduzindo em partes nesta seção. Para encerrá-la, comenta ele um texto célebre, repassado de beleza sobrenatural e literária, que bem exemplifica o pensamento latino: é o colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho

 

Durante a extraordinária conversa que manteve com seu filho, Santa Mônica externou seu desejo de partir o quanto antes para o Céu, pois já não via razão para permanecer por mais tempo nesta Terra. A Providência Divina não demorou em atender aos santos anseios dela, e pouco depois a levou para a eterna bem-aventurança. O próprio Santo Agostinho narra de modo esplêndido a morte e os funerais de sua mãe, e como continuou a existência dele, após o último adeus àquela que lhe alcançara a conversão.

Numa janela, junto ao porto de Óstia

Hoje, porém, gostaria de comentar apenas o trecho em que Santo Agostinho descreve o seu diálogo com Santa Mônica, em Óstia. Ao lê-lo, tem-se  a impressão de que em certos momentos o texto se transforma em fita magnética, e como que se percebe a voz de Santo Agostinho ecoando através dessas páginas, de tal maneira são eloquentes os movimentos de alma dele expressos nessas palavras que ele dirige a Deus. Vejamos.

“Próximo já o dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos – sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos”.

Creio não ser difícil sentir a cadência e a força de evocação extraordinária do texto. Temos a impressão de ver o pequeno jardim para o qual dava a janela dessa casa, que devia ser uma hospedaria, e de ver Santo Agostinho e Santa Mônica olhando meio maquinalmente para as plantas e flores, sem prestar maior atenção nelas nem em outras coisas. E eles que começam a dialogar, numa conversa que logo se eleva a altos píncaros. Mas, já aqui vemos que ele não registra nenhum por- menor inútil. Nessa narração tudo está calculado como num mosaico ou num “puzzle”. Não há palavra supérflua. Ao mesmo tempo, porém, nota- se uma vida e um calor intensos na descrição dele. Por exemplo, este som: “Próximo já o dia em que ela ia sair desta vida”… É um modo fenomenal de iniciar o relato.

Cumpre dizer que a ótima tradução portuguesa contribui para se aquilatar a beleza do texto. Veja-se o cantante da formulação, que não fala da tristeza da morte, mas toma antes o lado bonito da existência que findou: “sair desta vida”. É o aspecto luminoso da morte. Em seguida ele se volta para Deus e diz: “Dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos”. Esse dirigir-se ao Senhor parece uma oração, e que Deus está perto dele. Então, de repente nós sentimos a proximidade de Deus com ele e da nossa alma com Deus, através das palavras de Santo Agostinho.

Ele termina o parêntese e continua: “Sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios…”

Santo Agostinho já está se perguntando por que aconteceu de ele estar junto com a mãe, na janela. E dá a resposta: provavelmente foi Deus quem quis. Percebe-se o raciocínio latino nesse modo de conjecturar, indagando e estabelecendo os motivos para o que ocorreu. Continua: “… que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoia- dos a uma janela”. A situação é linda, porque as janelas romanas não eram muito grandes, e naquela onde os dois se encontravam, não havia lugar para um terceiro. A moldura da janela quase que os isola do resto do mundo, e não cabe ninguém perto.

“…cuja vista dava para o jardim interior da casa onde estávamos”. Devia ser uma casa romana antiga, com pá- tio interno, ajardinado, e onde não havia quase movimento. Esse detalhe indica como estavam sós, e nos faz compreender a intimidade da cena. Mais uma vez, tudo tem sua razão de ser, nada é supérfluo.

“Era em Óstia, na foz do Tibre”…, ou seja, o lugar augusto em que o Tibre evanesce dentro do mar, outro aspecto muito bonito da narrativa. “…onde, apartados da multidão” – sempre a ideia dos dois inteiramente sós, na intimida- de – após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos”. Quer dizer, a mãe e o filho estão propriamente na vida comezinha, na hospedaria, sem ter o que fazer e repousando. Mas o espírito, em altos vôos. Apoiam-se a uma janela e, nessa intimidade, para  onde  sobem  as  almas?

Um diálogo filosófico- teológico à maneira latina

“Falávamos a sós”. Repare-se na insistência dele a respeito do isolamento em que se encontravam. O que ele faz de maneira literária, e não como um registro policial: “Estávamos sozinhos e ponto. Tome nota disso”. Não. Ele insiste várias vezes e aquilo vai penetrando no espírito de quem o lê.

“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou”.

Eles, de fato, estão fazendo filosofia e teologia. Mãe e filho tratavam do futuro e se perguntavam como seria a vida dos santos na eternidade, na presença do Altíssimo, a Quem os olhos nunca viram, nunca os ouvidos ouviram e nunca o coração do homem imaginou como é. Eles se põem, então, um problema teológico-filosófico.

“Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da vossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que (ajudados) segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”

Faço notar a beleza da expressão: “os lábios do nosso coração”, para indicar a vontade afetuosa do homem. Nesse diálogo, eles vão raciocinar e se elevar a subidas considerações, com verdadeiros vôos de Anjo. Eles percebem que o assunto é alto e mobilizam a capacidade de raciocínio deles, enfrentando juntos o tema. É a mãe, na despedida da vida, e o filho, num colóquio ultra-íntimo e amoroso. O que eles estão fazendo? Filosofia.

“Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.”

Quer dizer, tudo que existe neste mundo não é nada. E ele, na sua descrição, já deixou a Terra aqui embaixo e está pensando pura e exclusivamente no Céu. Santo Agostinho agora começa a voar. Faço notar como isto é um tratado: mãe e filho estão na janela, da qual o espírito deles se eleva a um píncaro acima de tudo quanto é terreno, considerando como as coisas temporais não têm nenhum valor em comparação com as da beatitude eterna. Iniciam, então, a outra parte de sua viagem filosófico-teológica. É um itinerário racionalmente calculado. Mas, com que sabor! Ele continua:

“Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais, até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra. Subimos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras.”

Podemos imaginar a cena em que os dois faziam juntos essa contemplação: “Olha como o sol, a lua e as estrelas são bonitos, porém não nos satisfazem”. É propriamente uma meditação escolástica a respeito das criaturas que refletem a Deus, mas de modo insuficiente, sem darem inteira satisfação à alma. Esse é um discurso filosófico-teológico, feito de mãe para filho e de filho para mãe, numa janela de um albergue, diante de um acanhado jardim, no momento em que os dias dela já estavam contados e muito próxima a sua partida para o Céu. É maravilhoso!

“Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o nutrimento da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que Ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e sempre será.”

Eles analisaram todas as criaturas terrenas e concluíram: não nos bastam. Depois analisaram a alma humana e disseram: também não basta. A partir daí ascenderam até o lugar que eles não conheciam, mas que era a pradaria onde as almas imortais “Israel” simboliza isso as eleitas, as preferidas são apascentadas pelo Eterno Pastor. Então eles ficaram contentes. Uma vez mais, importa considerar como é metódico esse itinerário de raciocínio, um autêntico curso de filosofia pré-São Tomás de Aquino, no voo das doçuras e da genialidade. Tudo é bem ordenado, numa atmosfera diferente daquela de São Charbel Makhlouf, do catolicismo, dos ritos litúrgicos e da hieraticidade dos santos do Oriente. É um outro estilo, outra forma de beleza da Igreja luzindo através dos vitrais da alma do povo latino.

Mãe e filho vivem seu primeiro instante de Céu

O colóquio de Óstia chega ao seu termo, e Santo Agostinho, mais à frente, prossegue sua narrativa:

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração.”

É um modo discreto de dizer que Deus apareceu a eles. No momento em que conversavam e subiam de indagação em indagação, naquele instante em que eles estavam com a meditação racional inteiramente feita, cai sobre a flor ordenada, perfumada e aberta da alma de cada um deles a gota de orvalho do Céu: é Deus que  se mostra a eles. Percebe-se como Nosso Senhor se comprouve com o raciocínio deles, auxiliou-os a atingir esse auge de meditação e, quando aí chegaram, mostrou-Se a eles. Compreende-se, por outro lado, como Deus ama a quem raciocina de maneira virtuosa e a quem procura metodicamente a verdade.

“Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”

Quer dizer, eram os primeiros frutos de suas almas e de suas inocências, um primeiro presente que recebiam de Deus, e um primeiro instante de Céu que viveram juntos, e ali deixaram presos seus espíritos. Mãe e filho nunca mais se esqueceriam daquela hora, sendo que Santa Mônica em breve passaria a desfrutar eternamente das maravilhas que anteviram. “Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo que subsiste por si mesmo, nunca envelhece e tudo renova?”

É uma referência a Nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus Encarnado. Ele é a a palavra eterna que Deus diz a respeito de si próprio. Enquanto a palavra do homem é “um ruído vão”, porque começa e acaba, sai do silêncio e volta ao silêncio, o Verbo de Deus existe e existirá por toda a eternidade. Que diferença entre essa palavra de Deus que eles perceberam num êxtase e essas palavras vazias que nós pronunciamos! As nossas passam, a de Deus permanece. É eterna e renova tudo quanto existe. Santo Agostinho e Santa Mônica o compreenderam, numa visão.

“Ainda que isso dizíamos, não pelo mesmo modo e por essas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e seus prazeres nos pareciam vis naquele dia, quando assim conversávamos.” 

Os desejos de Santa Mônica postos na eternidade

Em seguida, Santa Mônica faz entender que ela vai morrer:

“Minha mãe então me disse: Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que cá esteja, evanescidas já as esperanças deste mundo.” Depois do que ela  contemplou, não tinha mais razão nenhuma para estar no mundo. Nem Santo Agostinho. Ou seja, ela viu tão alto em Deus que nem a companhia do filho, santo, por cuja conversão ela tinha chorado trinta anos, não a retinha mais nesta Terra. E ela queria ir para o Céu.

Alguém poderia indagar: “Não é um pouco duro esse desejo de partir?”

Não me parece, uma vez que ela, no Céu, estaria mais próxima de Santo Agostinho do que na Terra, porque se acharia perto de Deus, que é, por assim dizer, a “raiz” de Santo Agostinho. De fato, todos os que vão para a eterna bem-aventurança se encontram mais próximos dos que estão neste mundo do que se aqui ainda vivessem. Esta é uma verdade lindíssima, da qual

não podemos nos esquecer. Santa Mônica continua:

“Por um só motivo desejava prolongar um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de morrer. Deus concedeu-me esta graça super abundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?”

Note-se como ela punha a fé católica acima de tudo. O pensamento dela era este: “Meu filho se converteu e tornou-se um bom católico. Portanto, posso morrer em paz. O resto não me interessa”. Dias depois ela morreu…

E aqui também termina a nossa exposição.

Plinio Corrêa de Oliveira