São Beda e o antagonismo de duas épocas

São Beda foi um homem em cuja presença sentiam-se impressões de respeito, reverência, enlevo e encanto, convidando ao recolhimento quem dele se aproximava. Tal era sua santidade que, não podendo chamá-lo de santo ainda em vida, deram–lhe o título de “Venerável”, o que contrasta com o espírito revolucionário e igualitário dos nossos dias.

 

Em 25 de maio se comemora a festa de São Beda, o Venerável, Confessor e Doutor da Igreja. Diz a seguinte ficha:

Êmulo de Santo Isidoro de Sevilha, São Beda foi um dos sábios mais ilustres do seu tempo. Tal era sua santidade que, não podendo chamá-lo de santo ainda em vida, deram-lhe o nome de “Venerável”, que não perdeu depois de sua morte.

 

 

Diferença entre o apogeu da Idade Média e nossa época

Simplesmente por esta alcunha de “venerável”, dada a São Beda, podemos ter ideia da mudança dos tempos e dos lugares. Calculem na Europa do começo da Idade Média, no século VIII, um homem que é tido como dos mais cultos e inteligentes de sua época. Seria mais ou menos, em nossos dias, um indivíduo que tivesse recebido o prêmio Nobel de Ciência, ou da Paz, ou da

Literatura; alguém, portanto, consagrado por sua cultura. Pois bem, este homem é um Santo.
Já neste ponto notamos a diferença em relação ao nosso tempo, porque é raro vermos coincidirem sobre o mesmo homem a auréola e o esplendor da santidade e o fulgor da cultura e da inteligência. Aqueles grandes Santos foram, por assim dizer, “especializados” em santidade. Eles eram mais santos do que qualquer outra coisa.
Em nossos dias não encontramos, como no apogeu da Cristandade medieval, Santos que, ademais, sejam muito salientes em qualquer outra atividade: grandes guerreiros, notáveis sábios ou imponentes reis. Por quê? Justamente por causa da decadência da Cristandade que levou os homens de cúpula a serem tantas vezes pinçados para servirem ao mal, escapando das mãos amorosas da Igreja. Assim, vemos um grande contraste entre a figura de São Beda, o Venerável, e as circunstâncias da nossa época.
De outro lado, imaginem uma pessoa de quem se dissesse o seguinte: “Ah, é um indivíduo amabilíssimo, de uma prosa agradável, engraçado, atraente, um piadista como ninguém!” Certamente esse homem atrairia muito as companhias em torno de si, sobretudo se correspondesse aos elogios que fizessem dele.
Entretanto, se perguntássemos a alguém numa roda comum de nossos dias:
— Que tal é Fulano?
— Ah, respeitabilíssimo…
Esse homem atrairia muita gente em torno de si? Sem dúvida, não.

 

O homem desfigurado pela Revolução

Ora, tempo houve em que a mais alta qualidade de uma pessoa era a de ser respeitável, venerável. Então, a um homem que possuía essa virtude em grau eminente dava-se a alcunha: “o Venerável”. Quer dizer, era aquele em cuja presença sentiam-se impressões de respeito, reverência, uma superioridade que enlevava e encantava, e que colocava as pessoas numa atitude de recolhimento. Era uma humanidade católica, batizada, que, por possuir o espírito incutido pelo santo Batismo nas pessoas, e conservado nelas quando fiéis à graça, gostava de ter diante de si alguém superior, cuja superioridade reconheciam e admiravam. Poder estar com um homem venerável, vê-lo ou reverenciá-lo era a suprema alegria.
Por que, no mundo de hoje, as pessoas não gostam de venerar? E, tendo a alcunha de venerável, por que o indivíduo veria o vazio em torno de si? Por uma razão muito simples: em primeiro lugar, o igualitarismo faz com que se odeie toda superioridade. E em segundo lugar, porque a venerabilidade é séria, grave, convidando as pessoas que tomam contato com ela a uma postura de recolhimento, bom senso, respeito.
É exatamente disso que foge o homem modelado pela Revolução, ou, se preferirem, desfigurado pela Revolução. Aquele título, considerado como uma pérola brilhante sobre a fronte do homem medieval, afugenta em nossos dias. Nisso constatamos a enorme rotação dos espíritos, pois tudo mudou.

 

O nocivo imperialismo norte-americano

Daquela Europa antiga do século VIII para nossa América deste século, na enorme mutação dos tempos e dos lugares, como todas as coisas são diferentes! E eu falo de modo especial da América do Norte, porque se há um espírito que foge ao venerável é o espírito norte-americano, tendo seu foco de irradiação nos Estados Unidos, mas que se expande em largos borbotões pelas nações vizinhas do continente.
Não sou economista, de maneira que não posso avaliar até que ponto esse imperialismo americano, tão falado, existe do ponto de vista financeiro, material. Deve haver um exagero, porque os comunistas dizem que ele existe; e quando os comunistas não mentem, eles exageram, mas afirmar a verdade inteira nunca fazem.
O imperialismo político norte-americano praticamente não existe. Porém, há um imperialismo nocivo, imponderável, ideológico, mas de uma ideologia difundida de forma vivencial, que se espalha por toda parte, impregna todos os ambientes e penetra no subconsciente das pessoas através de mil condutos de propaganda, inimigo da veneração e da desigualdade.
Se considerarmos, por exemplo, a fotografia do primeiro mandatário de qualquer grande nação de nossos dias, pode-se dizer tudo dele: que ele conta piadas, é muito inteligente, haverá até quem afirme ser muito agradável… Há um provérbio prosaico de antigamente que meu pai gostava de citar em certas ocasiões: “Não há sapato velho que não procure o seu pé inchado.” Assim também haverá quem ache graça em certos personagens da política contemporânea. Mas o que eu não concebo é alguém olhar a fotografia de algum deles e dizer: “o venerável Fulano…!”
Um indício de como as coisas mudaram que se faz bem presente ao espírito, é este: antigamente, se houvesse uma eleição, ganharia o mais venerável. Em nossos dias, quantas vezes um palhaço tem maiores possibilidades de vencer uma eleição! Imaginem alguém se apresentar para uma eleição com os dizeres: “Fulano de tal, candidato da respeitabilidade nacional.” Estava derrotado. Assim, vemos como tudo decaiu ao sopro da Revolução.
Eis uma pequena meditação sobre o título de um grande Santo.v

(Extraído de conferência de 27/5/1972)

O Papa que travou uma batalha decisiva

São Gregório VII travou uma batalha decisiva, depois da qual não houve mais luta séria entre o papado e o império, ou qualquer monarquia, a respeito do princípio contra o qual Henrique IV se levantou. Posteriormente houve escaramuças, mas fundamentalmente a batalha estava ganha por esse Santo.

 

São Gregório VII teve um importante papel contrarrevolucionário ao reivindicar a prioridade das coisas espirituais sobre as temporais, do papado sobre o império, ao impor, com palavras magníficas, o castigo necessário ao Imperador rebelde que, assim contido, teve reprimida na sua pessoa, durante séculos, a marcha da Revolução a qual, como serpente que saía de sua toca, tentava começar a caminhar na História, quando o cajado firme desse pastor lhe quebrou a cerviz.

Vibrou contra Henrique IV a punição mais alta, profunda e intransigente

Tudo isso constituiu a glória desse Santo o qual pôde dizer que morria no exílio porque tinha amado a justiça e odiado a iniquidade, cumprindo desta forma inteiramente o seu dever de pastor, e dando o magnífico testemunho de si mesmo.

Mas há um aspecto da vida de São Gregório VII o qual, embora reluza com todo o brilho e seja notado por todo mundo, não vi ninguém que comentasse. Que aspecto é esse?

Ele travou uma batalha decisiva depois da qual não houve mais luta séria entre o papado e o império, ou qualquer monarquia, a respeito do princípio contra o qual ele se levantou. Sobre aplicações colaterais ou transgressões desse princípio, punidas justamente pela Igreja, ainda houve escaramuças, mas fundamentalmente a batalha estava ganha por esse Santo. Portanto, o golpe desferido por ele foi certeiro, atingindo o ponto que deveria.

Em segundo lugar, São Gregório VII teve que enfrentar o maior potentado da Terra, e não tentou ladear a questão. Ele não procurou mandar emissários incumbidos de deformar o problema, atenuando-o com meias palavras e por meio de inadequadas contemporizações.

“O Imperador se levantou e sustentou tal coisa? Eu, Gregório, sucessor de São Pedro, declaro que esta coisa é falsa, e digo a ti, ó Imperador: Tu és o maior potentado civil da Terra, tu te encontras no meu caminho como o homem mais poderoso que a mim poderia se opor. Está bem, eu travo esta batalha contigo! Entesto o meu poder contra o teu, e vamos ver qual é o poder que vale mais. Eu te deponho e excomungo, escorraço-te da Igreja Católica. Mais ainda: amaldiçoo-te, declaro que tens parte com satanás e pertences à grei maldita que Deus expulsa da sua presença. Vai, sai!”

Quer dizer, contra esse potentado ele vibra a punição mais alta, profunda e intransigente que se poderia imaginar. Não tem medo de nada. E se tiver que acontecer qualquer coisa, aconteça. “Eu estou aqui para a glória de Deus, para a vida ou para a morte desta minha pobre existência terrena. Mas lutarei até o fim.”

Um fato sem precedentes na História

O Imperador vai a Canossa. De lá para cá, “ir a Canossa” ficou uma expressão consagrada na literatura de bom quilate. Diz-se que vai a Canossa a pessoa que, em linguagem corrente, vulgar, banal de hoje em dia, entrega os pontos, não tem mais resistência a fazer e se declara derrotada.

Canossa é uma comuna italiana, próxima a Toscana – Norte da Itália –, onde a Condessa Matilde, fervorosa devota do papado, possuía um castelo no qual abrigara o Santo Pontífice contra quem o furor do Imperador Henrique IV estava por se desatar.

Esse Imperador, em pleno inverno, toma trenós e, percorrendo os desertos gélidos da Suíça, particularmente inóspitos nessa época, vai a Canossa e pede perdão, porque não tinha outro remédio. Nos últimos dias em que ele permaneceu no poder, até os criados fugiam de sua casa, de maneira a não ter sequer quem lhe prestasse os serviços domésticos. Não é só dizer que não possuía apoio político, ele não tinha quem lhe preparasse o banho! Por quê? Porque era o homem maldito sobre o qual caíra a excomunhão do representante de Cristo na Terra, do sucessor de São Pedro. Por isso ninguém queria nada com ele.

Henrique IV atravessa as vastidões perigosas da Suíça durante o inverno, e naquele tempo a qualquer momento podia acontecer que caísse por um abismo abaixo, ficando sepultado na neve. Com a excomunhão, na neve ficaria o seu corpo e no fogo sua alma para todo o sempre, se não houvesse um arrependimento perfeito.

Enfim, ele se apresenta e pede perdão. Fato sem precedentes na História: um imperador humilhado a este ponto, por uma mera palavra de um papa. É o mais alto potentado da Terra contra quem o Sumo Pontífice pronuncia uma fórmula, e ele cai no chão. Era o caso de dizer: “Sed tantum dic verbum – dizei uma só palavra, e a Igreja será salva deste inimigo.” São Gregório VII disse a palavra, e a Igreja ficou libertada.

“Excomungado aqui não entra!”

No castelo da Condessa Matilde, o Papa é informado que o Imperador estava ali. Alguém mais fraco – não só um homem que não fosse santo, mas mesmo um santo não assistido por uma graça especialíssima – talvez tivesse pensado em acolher o penitente de imediato. Mas estava ali o varão cuja vocação era dar o exemplo do que é o gládio da Igreja, e fazer amar de modo todo especial essa integridade de alma pela qual a Igreja não cede. São Gregório VII manda fechar as portas do castelo:

— Excomungado aqui não entra!

— Mas o que ele pode fazer, pois está do lado de fora das muralhas, ajoelhado no gelo e pedindo perdão.

— Que fique!

Nesse gesto tão duro e admirável nota-se a mão maternal da Igreja. Ele poderia ter dito: “Que vá embora!” Entretanto, disse: “Fique!” Na ponta do gesto floresce uma vaga esperança de perdão. Mas antes a penitência, a humilhação. Durante três dias e três noites, o soberano deposto sofreu essa humilhação.

A História nos conta que só depois disso São Gregório VII admitiu Henrique IV e, tendo este pedido perdão com toda a humildade, o Papa o perdoou, reconciliou-o e permitiu que fosse embora. Estava quebrado o cetro que satanás levantara contra o papado. São Gregório VII tinha obtido uma grande vitória.

Que a maldita Revolução gnóstica e igualitária seja punida!

Qual é a lição que tiramos disso? A de ser rijo, firme, ir ao fundo, até o fim dos princípios, às últimas consequências, enfrentar qualquer adversário de viseira erguida e de gládio em punho, não se contentar com meios termos, com palavras vazias, nem com esperanças vãs, mas, ao pé da letra, exigir que se quebre o poder que se levantou e se anule o risco que se constituiu; só então ter misericórdia.

Porque a misericórdia é admirável enquanto chama para o arrependimento o pecador e o perdoa. Ela não seria admirável e não seria verdadeira misericórdia se fosse a paz com o pecador que não se arrepende. É preciso que o pecador se arrependa sinceramente e peça perdão. Depois disso ele deixou de ser empedernido. Então é a vez da misericórdia; antes não.

Mesmo depois de pedir o perdão ainda há a penitência a cumprir. É o que nos ensina esse entrecruzamento maravilhoso de justiça e de misericórdia que é o Purgatório. Almas de pessoas que faleceram piedosamente em Jesus Cristo, morreram rezando, pediram perdão de seus pecados e comparecem diante de Deus. Entretanto, em número incontável, são mandadas para o Purgatório. Por quê? Porque é preciso expiar, pagar de algum modo o mal feito. E a alma que se arrepende tem vontade de reparar esse mal praticado.

Assim, em nossa luta devemos considerar os desígnios da Providência: desejar, com toda a nossa alma, que o adversário da verdadeira Igreja Católica Apostólica Romana em nossos dias seja punido: a maldita Revolução gnóstica e igualitária. Mas seja punida ainda mais do que o Imperador Henrique IV foi, porque ela ousou coisa pior: tentou penetrar no próprio Santuário e transformá-lo num reduto da Revolução. Ela desbastou a Terra inteira, e é preciso que o castigo seja proporcional. A Revolução, enquanto tal, tem que desaparecer!

Eis a lição do grande São Gregório VII. Em última análise, levar o bem, a verdade, a beleza e a fidelidade à Igreja até as suas últimas consequências.

Devemos nos preparar para a grande luta que nos espera

Esse Pontífice não viveu no tempo de Carlos Magno, em cujo gládio estavam inscritas as palavras: “Defensor dos Dez Mandamentos”. Que coisa maravilhosa! Entretanto, São Gregório VII foi o Carlos Magno da Igreja Católica. A glória carolíngia, de proporções mais angélicas do que humanas, a Igreja a viveu nos dias de São Gregório VII magnificamente.

Nós, que queremos a glória da Santa Igreja porque desejamos a glória de Deus, devemos pedir a São Gregório VII que faça voltar à Terra esses dias de glória. Por meio dele, voltemo-nos para Nossa Senhora e peçamos a Ela, cuja intercessão é onipotente, que abrevie os dias tremendos nos quais estamos; faça com que atravessemos corajosamente todos os obstáculos que temos diante de nós e sejamos capazes da grande luta que nos espera.

São Gregório VII disse: “Eu odiei a iniquidade e amei a justiça, por isso morro no exílio.” Nós devemos afirmar: “Odiamos a iniquidade e amamos a justiça, por isso vivemos no exílio.” A nossa vida é um longo exílio, tivemos que nos exilar de tantas coisas, de tantos ambientes, de tantas circunstâncias; nós somos os exilados! Mas que belo exílio esse no qual um tão pulcro sentimento fraterno, uma tão bela conformidade de todos os espíritos e de todos os desígnios, no mesmo amor à mesma causa, nos reúnem.

O glorioso São Gregório VII, que morreu no exílio, dê força e ânimo a quem deve viver e, mais tarde, morrer no exílio. Como também àqueles destinados a ter suas vidas ceifadas durante os castigos profetizados em Fátima, para que morram com bravura. E os chamados a viver no Reino de Maria, vivam igualmente com coragem nessa ideia: o exílio acabou, mas se ainda hoje eu devesse me exilar, repetiria o meu passo e me exilaria novamente. Não tenho apego nem ao prêmio da minha vitória. Eis o nosso pedido a esse grande Santo, no dia em que se comemora a sua festa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/5/1985)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

A mais eminente figura da Idade Média

Dr. Plinio tinha grande devoção a São Gregório VII, porque este possuía, mais do que qualquer outro Bem-aventurado que ele conhecia, uma virtude que o entusiasmava  ao último ponto, e para a qual iam todas as fibras de sua alma: a combatividade inquebrantável. Esse papa tinha a integridade de alma por onde o homem caminha para todos os esforços, todos os riscos, todos os  dissabores, com o intuito de fazer vencer a causa da Santa Igreja.

 

Temos para comentar um trecho da carta escrita por São Gregório VII à Condessa

Matilde, no ano 1074 .

Um papa que atacava os vícios e as desordens dos mais poderosos

Entre as armas que, com o auxílio de Deus, eu vos forneço contra as insídias do mundo, lembrai-vos de que as principais são: receber frequentemente o Corpo do Senhor e ter uma confiança segura e completa em sua Santa Mãe.

Eis o que diz Santo Ambrósio, no livro quatro “Dos Sacramentos”: “Se nós anunciamos a Morte do Senhor, anunciamos a remissão dos pecados. Se cada vez que o Sangue do Senhor é derramado, o é pela remissão dos pecados, devo recebê-Lo sempre para que meus pecados sejam sempre perdoados. Pecando sempre, devo sempre tomar o remédio.”

No livro quinto “Dos Sacramentos”, o mesmo Santo diz ainda: “Se é um pão quotidiano, por que o recebeis uma vez ao ano, como os gregos costumam fazer no Oriente? Recebei-O diariamente, a fim de que cada dia vos seja proveitoso. Vivei de maneira a merecer recebê-Lo todos os dias.” […]

Quis, filha mui amada de São Pedro, escrever-vos estas coisas, a fim de aumentar a vossa fé e vossa confiança no recebimento do Corpo do Senhor; porque tal é o tesouro, tais são os presentes, não de ouro, nem de pedras preciosas, que, pelo amor de vosso Pai, o soberano dos Céus, vossa alma espera de mim, conquanto possais, segundo vossos méritos, receber de melhor de outros Pontífices.

Quanto à Mãe do Senhor, a Quem principalmente vos recomendei, recomendo-vos e não cessarei de recomendar-vos, até o momento em que tivermos a felicidade de vê-La como nós o desejamos. Que vos direi? Ela, a Quem o Céu e a Terra não cessam de louvar, ainda que não A possam louvar dignamente. Entretanto, considero isto fora de qualquer dúvida: Ela é mais elevada, e melhor, e mais santa do que qualquer mãe. Ela é mais clemente e mais doce para com os pecadores e as pecadoras convertidos. Empenhai-vos, pois, em pôr cobro ao pecado e, prosternada diante d’Ela com coração contrito e humilhado, derramai as vossas lágrimas. Vós A encontrareis, prometo-vos, sem qualquer dúvida, mais pronta do que uma mãe carnal, e mais terna em vos amar.

Comenta o Padre Rohrbacher:

Essa carta do Papa São Gregório VII é muito notável. Mostra-nos uma maravilha que o mundo não compreende. Esse gênio poderoso que com um olhar abarcava todos os reinos, todos os bens e os males da humanidade, que atacava ao mesmo tempo  e  por toda parte os vícios e desordens dos mais poderosos, que não se arreceava de nenhum obstáculo, que parecia aos homens de seu tempo mais firme e mais inquebrantável do que o céu e a Terra, esse gênio poderoso tinha […]uma ardente devoção  à Santa Eucaristia, uma confiança filial na Santa Virgem, uma terna compaixão para a fraqueza humana.

Alegria de Deus com o pecador que se converte

São trechos de um grande Santo e comentários de um grande autor .

Em primeiro lugar, a respeito do Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que está dito é que o pecador não deve afastar-se da Sagrada Eucaristia. Pelo contrário, ele precisa recuperar o estado de graça e voltar a frequentar este sublime Sacramento. Isso porque o Deus de misericórdia, ao invés de afastar o pecador, o atrai. Ele não aceita na Sagrada Eucaristia o homem no estado de pecado, mas arranca o pecador desse estado pela perspectiva de receber o banquete celeste e o atrai a Si. De maneira que, quando alguém comete pecado, não deve afastar-se da Eucaristia; pelo contrário, o mais depressa possível precisa confessar-se, recolocar-se no estado de graça e voltar à Sagrada Eucaristia.

Porque é imensa a alegria de Deus com o pecador que se converte. Ele a exprime bem no Evangelho quando fala da mulher que perdeu uma moeda, procurou-a por toda parte e, tendo-a encontrado, chama as amigas e mostra a sua alegria pelo encontro da moeda. Ou, então, com o exemplo do bom pastor que vai procurar a ovelha tresmalhada ao longe, e a traz nos seus ombros para o aprisco .

Quer dizer, Deus ama singularmente o pecador arrependido. E ao perdoar o pecador verdadeiramente contrito, Ele tem uma razão para amá-lo mais do que antes. É por isso, por exemplo, que Santa Maria Madalena foi mais amada por Nosso Senhor depois de se converter do que antes de pecar . São essas as amplitudes da misericórdia divina.

Não há coisa que seja mais frequente do que encontrarmos nas almas uma ação do demônio que põe a coisa nestes termos: “Você está em estado de pecado, não comungue, nem se aproxime de Deus. Onde é que se viu que um pecador de seu jaez vá se aproximar de Deus em estado de pecado! Você é louco, isso não tem propósito, fuja!”

Ora, o certo é o contrário: “Você está em estado de pecado mortal, venha correndo para Aquele que é o Médico de sua alma, o seu Redentor, com toda a humildade, batendo no peito, lamentando o mal que fez, é verdade, mas venha com confiança porque a porta da misericórdia estará aberta”.

São Pio X desferiu na Revolução um dos mais terríveis golpes

Compreendem-se, assim, os problemas da expansão da Igreja e o bem prodigioso feito por São Pio X com o seu projeto de re-afervoramento eucarístico.

Nós vemos aqui São Gregório VII, apoiado em Santo Ambrósio, pleitear a Comunhão diária. Como é sabido, antes do tempo de São Pio X, as pessoas mais piedosas comungavam duas ou três vezes por ano. Isso era observado para ter mais respeito para com a Eucaristia, de maneira a, mantendo-se bem afastado, o fiel fizesse uma arqui preparação para a Comunhão. Dir-se-ia até ser uma atitude esplêndida. Mas, generalizando a frequência à Sagrada Eucaristia, São Pio X desferiu na Revolução um dos mais rudes e terríveis golpes que se podia dar. Especialmente com a Comunhão das crianças. O império do demônio dificilmente é tão grande numa alma que recebeu o Santíssimo Sacramento, como seria se essa alma nunca O tivesse recebido.

Portanto, a insistência para que os fiéis vão ao Santíssimo Sacramento tem por detrás, doutrinariamente, uma insistência para que o pecador procure Nosso Senhor e, sem desfalecer, amparado na bondade d’Ele, vá mais uma vez ao seu encontro. De maneira que uma pessoa, por mais que peque, nunca deixe de se confessar, com um propósito sério de não mais pecar, segundo pede a Igreja, e comungar, aproximando-se assim das fontes das águas que é o Santíssimo Sacramento.

Harmonia total e inebriantemente bela do perfil moral da Mãe de Deus

O que o São Gregório VII diz a respeito de Nossa Senhora é também uma verdadeira maravilha:

…considero isto fora de qualquer dúvida: Ela é mais elevada, e melhor, e mais santa do que qualquer mãe. Ela é mais clemente e mais doce para com os pecadores e as pecadoras convertidos.

Aqui está um princípio de moral

que nos é muito caro: quem tem uma virtude em muito alto grau, possui também todas as outras virtudes em grau elevado . Não é possível a pessoa ser verdadeiramente muito elevada em outras virtudes, sem ser ao mesmo tempo muito misericordiosa. Porque, se ela é muito virtuosa, tem de um modo insigne todas as virtudes e, portanto, também a misericórdia.

Então, quanto mais eu falo da grandeza da Santíssima Virgem e nos seus altos privilégios, tanto mais devo me convencer de que Ela, entre outras qualidades excelsas, tem a de Mãe terníssima, benigníssima, intimíssima, que Se põe na estatura de cada um de seus filhos para tratar com eles como as mães fazem habitualmente com suas crianças .

Compreende-se, assim, como a harmonia celeste da alma de Nossa Senhora é feita: tão mais alta do que todos os querubins e serafins, a ponto de estar fora de qualquer termo de comparação com tudo quanto o restante da Criação possa ter de mais superlativamente magnífico. Entretanto, apesar disso, Ela é a mais meiga, a mais terna de todas as criaturas, a que mais entra na proporção e no contato com cada homem, de maneira tal que se um de nós tem uma mãe que considera ser muito carinhosa, esteja certo de que Nossa Senhora a excede indizivelmente em afabilidade, meiguice e carinho.

É assim que a devoção a Maria Santíssima deve ser vista. E jamais me cansarei de ensinar isso, porque Ela nunca Se farta de dá-lo a entender a seus filhos de todos os modos: aparições, milagres, etc .

A ação de Nossa Senhora sobre a Terra consiste em mostrar que Ela é simultaneamente terrível como um exército em ordem de batalha – esmagando continuamente a cabeça da serpente, derrotando sozinha todas as heresias do mundo inteiro; Nossa Senhora dos Cruzados, dos Inquisidores, dos Santos indomáveis na luta pela Fé, como foi São Gregório VII – e, ao mesmo tempo, Mãe bondosa dos pobres, fracos, desvalidos, pequeninos. É a harmonia total e inebriantemente bela do perfil moral da Mãe de Deus.

Varão intrépido, batalhador indomável

Na ficha lida há pouco, o Padre Rohrbacher mostra como São Gregório VII foi um pontífice indomável .

Eu tenho a impressão de que – e é a razão de minha veneração e ternura por São Gregório VII – ele foi chamado a prestar na História da Igreja, mais do que qualquer outro Santo que eu conheça, uma virtude que me entusiasma ao último ponto, e para a qual vão todas as fibras de minha alma: a combatividade inquebrantável. Ele combateu tudo, lutou contra todos, não cedeu em nada e enfrentou tudo.

Essa integridade de alma por onde o homem caminha para todos os esforços, todos os riscos, todos os dissabores, com o intuito de fazer vencer a causa da Santa Igreja, me entusiasma.

No entanto, por ser muito combativo, São Gregório VII necessariamente tem que ter também em alto grau as virtudes simétricas ou opostas. Assim, precisamente por ter muita combatividade, ele devia ser também um devoto ardentíssimo de Nossa Senhora, muito terno, meigo, e um ardorosíssimo devoto do Santíssimo Sacramento, inculcando formas de piedade extremamente suaves, como a da frequência diária ao Santíssimo Sacramento e a devoção à Santíssima Virgem.

É como São Bernardo, que foi pregador de Cruzadas e o autor da “Salve Rainha”, do “Lembrai-Vos”, orações de uma unção extraordinária! Pregador de Cruzadas e chamado “Doutor Melífluo”, quer dizer, de quem flui o mel pela doçura de sua pregação a respeito de Nossa Senhora. Ele não teria estado à altura de compor a “Salve Rainha” e o “Lembrai-Vos” se não fosse um homem com uma alma de um pregador de Cruzadas. Mas, por outro lado, não seria verdadeiramente um pregador de Cruzadas se não tivesse a alma de um homem tão doce, capaz de compor essas orações. As duas coisas se completam, uma seria impossível sem a outra.

Vemos, assim, as almas grandiosas de São Bernardo e de São Gregório VII, mas este último ainda mais caracteristicamente um varão intrépido, batalhador indomável que encheu com sua luz todo o céu da Igreja até nossos dias e a iluminará até o fim dos tempos.

Cada apóstolo dos últimos tempos deve ser como que um outro São Gregório VII

Eis o grande Santo cuja relíquia se encontra em nossa capela. Que felicidade e tesouro contidos simplesmente nesta afirmação: a relíquia desse Santo se encontra em nossa capela! Quer dizer, é um fragmento dos ossos dele, uma matéria momentaneamente dissociada, mas que numa ordem mais profunda forma um só todo com sua alma gloriosíssima que já está no Céu vendo a Deus face a face, e contemplando Nossa Senhora.

Esse fragmento, no dia da ressurreição da carne, vai ser unido ao corpo dele. Portanto, temos certeza de que esse pedaço de osso com um pouco de carne será inundado pela glória de Deus e se transformará em corpo glorioso, participando das alegrias da visão beatífica que São Gregório VII tem no Céu.

Compreende-se, então, com quanta devoção devemos nos aproximar dessa relíquia, e quanta confiança precisamos ter em sermos atendidos, tendo-a presente entre nós.

Anna Catarina Emmerich, várias vezes, viu relíquias deitando chispas de luz magníficas. Essa luz deveria ser um símbolo da virtude do Santo a quem aquela relíquia pertencia. Que luz de ouro, luz solar estupenda deve espargir essa relíquia de São Gregório VII que, a meu ver, na sua grandeza e riqueza de alma, foi a mais eminente figura da Idade Média e conteve em si, de algum modo, a Idade Média inteira.

Eu não poderia encerrar estas palavras sem lembrar que estamos na Festa de Nossa Senhora Auxiliadora, ocasião em que Ela se mostra particularmente solícita em nos auxiliar em nossas necessidades e atender nossos pedidos . Creio não haver intenção mais grata do que esta: que Nossa Senhora Auxiliadora faça de nós, o quanto antes, perfeitos apóstolos dos últimos tempos, segundo São Luís Grignion de Montfort.

Se São Gregório VII tivesse podido conhecer os apóstolos dos últimos tempos, ele estremeceria de alegria, porque cada um deles deve ser como que um outro São Gregório VII, ou seja, deve ter aquela combatividade, aquela grandeza, aquela suavidade.

 

(Extraído de conferência de 24/5/1967)

O Carlos Magno da Igreja Católica

São Gregório VII travou uma batalha decisiva e desfechou um golpe certeiro no maior potentado da Terra, vibrando contra ele a punição mais alta, profunda e intransigente que se poderia imaginar.

A lição desse grande Pontífice foi, em última análise, a de levar a verdade, o bem, a beleza, a fidelidade à Igreja até as suas últimas consequências.

Ele foi o Carlos Magno da Igreja Católica! A glória carolíngia, de proporções mais angélicas do que humanas, foi vivida magnificamente pela Santa Igreja Católica nos dias de São Gregório VII.

Devemos desejar, com toda a nossa alma, que o adversário da verdadeira Igreja Católica Apostólica, Romana em nossos dias, a maldita Revolução gnóstica e igualitária, seja punida ainda mais do que o Imperador Henrique IV, pois ela tentou coisa pior do que ele. A Revolução desbastou a Terra inteira, e é preciso que a punição seja proporcional.

(Extraído de conferência de 25/5/1985)

Seriedade, pureza, religiosidade

Santa Maria Madalena de Pazzi tinha um olhar cheio de vida, reflexão e seriedade. Uma seriedade que vai de par com uma real bondade, e que não está voltada para os assuntos terrenos, mas é uma seriedade que só se tem quando se pensa nos temas celestes. O todo de sua pessoa tem a ligeireza, a leveza de uma virgem. A seriedade, a pureza, a finura de pensamento, a religiosidade profunda do olhar, a aristocracia do todo se aliam muito bem. Isso tudo brilha em Santa Maria Madalena de Pazzi.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1986)

São Gregório VII

São Gregório VII — conforme meu modesto entender, o maior Papa que a Igreja teve — foi terrivelmente perseguido pelo mais famoso potentado daquele tempo, o Imperador do Sacro Império Romano-Alemão.

Ele estava exilado de Roma, e após mudar de castelo para castelo, de convento para convento, de abadia para abadia, seu corpo foi enfraquecendo aos poucos. Quando sentiu aproximar-se a morte, ele disse: “Justitiam dilexit et odivit iniquitatem, propterea morior in exilium — amei a justiça e odiei a iniquidade; por causa disso, morro no exílio”.

Os sofrimentos dele foram incalculáveis. Porém, ele os aguentou e compareceu diante de Deus com a taça da dor bebida inteiramente.

(Extraído de conferência de 2/11/1991)

Homem semelhante a uma catedral

O que é uma pessoa venerável? É aquela dotada de uma especial profundidade de espírito adquirida pelo estudo, pela experiência, pela meditação; que possui uma têmpera, uma constância e uma força de vontade incomuns, por onde, mesmo em circunstâncias adversas, com sacrifício de sua saúde, de seu conforto, de sua riqueza, de sua própria existência, tendo traçado uma linha de conduta boa, ­seguiu-a até o fim.

A presença da pessoa venerável incute respeito, os outros amam de ver aquela venerabilidade e têm uma tendência natural a prestar reverência, a obsequiar, como quem pratica um ato de justiça. É próprio ao espírito da Igreja Católica comunicar uma nota de venerabilidade a tudo.

Como eu gostaria de ter conhecido São Beda, o Venerável! Como me atrai imaginar seu porte, mais parecido com o de um monumento do que de um ser humano, quando um homem vai tomando tais ares, que se assemelha a uma catedral!

Então, contemplar São Beda, o Venerável, ajoelhar-me diante dele, oscular seus pés e implorar que ele me obtivesse de Nossa Senhora algo dessa venerabilidade, sem a qual ninguém é autenticamente católico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1970)

São Beda – Venerabilidade e espírito católico

A Santa Igreja comunica uma nota de venerabilidade a tudo. O contrário disso é a influência exercida pela “heresia branca” e pela superficialidade otimista de nossos dias.

 

Segundo a ficha que tenho em mãos, São Beda, o Venerável1, foi um dos sábios mais ilustres do seu tempo. Tal era a sua santidade que, por não poderem chamá-lo de Santo ainda em vida, deram-lhe o título de Venerável, que não perdeu depois da morte.

Título atribuído às pessoas cujo processo de canonização está em curso

Seria interessante fazermos um comentário não tanto considerando o Santo, mas o seu título. Ele era reputado como um dos homens de maior instrução e tão virtuoso que, não ousando os seus contemporâneos chamá-lo de Santo – porque ninguém pode receber este título antes de ser canonizado pela Igreja –, chamavam-no de Venerável. Porque Venerável é o título atribuído pela Igreja às pessoas cujo processo de canonização está em curso.

A aplicação desse título tem variado ao longo dos séculos, de acordo com os lugares e a disposição do Direito Canônico. Até algum tempo atrás, se chamava Venerável aquele cuja causa de canonização tinha sido introduzida, mas que ainda não havia sido beatificado. A beatificação se dava quando a Igreja, depois de examinar a vida e as obras de uma pessoa, concluía que ela havia praticado em grau heroico as virtudes teologais e cardeais. Deveria ser ratificada por um milagre e dava a certeza de que a pessoa estava no Céu. E importava a autorização para um culto local, ou no lugar onde a pessoa tinha vivido; “local” no sentido de circunscrito às capelas ou oratórios de uma Ordem Religiosa a que ela havia pertencido.

Depois, com a canonização que dependia apenas de novos milagres, a pessoa era elevada à honra dos altares, apontada como exemplo e posta como objeto de culto pela Igreja universal. O Venerável era, portanto, aquilo que hoje se chama o Servo de Deus, havendo todas as razões para supor que ele vai ser canonizado, uma vez que o seu processo foi introduzido. Mas, de fato, o número de processos de canonização que encalham em curso é muito grande.

Venerável era, portanto, uma pessoa digna de veneração, da qual se presumia a santidade. E eu queria me ater a esse título de Venerável para considerar um aspecto da Moral católica, o qual está muito pouco em foco hoje em dia, e que os costumes do mundo atual tornam especialmente ignorado e malvisto.

Perfil moral de uma pessoa venerável

O que é propriamente uma pessoa venerável? Diz-se que alguém é venerável, por exemplo, quando atingiu uma idade provecta e tem a seriedade e a dignidade desta idade. Assim, um homem de oitenta anos que cumpriu sempre os seus deveres, teve uma prole numerosa, praticou alguma ação insigne pela Igreja ou pelo Estado; aquela longa continuidade na prática de uma virtude, embora não seja uma virtude extraordinária, incute respeito. Então, se diz que essa pessoa é venerável, nós a veneramos.

Podemos dizer que é venerável um homem que, por exemplo, se portou heroicamente durante uma guerra e foi ferido em combate. Um general que ganhou muitas batalhas é um homem venerável. Por quê? Porque, evidentemente, ele praticou atos extraordinários, incomuns, que merecem  respeito. Uma religiosa que durante muito tempo cuidou dos leprosos, com risco do próprio contágio, é venerável. Porque uma longa prática de uma abnegação num estado de vida sumamente respeitável, como é o  religioso, enfrentando o risco de contágio, que aumenta a abnegação de que a religiosa deu provas, tornam-na venerável. Então, de todas essas aplicações correntes da palavra “venerável”, que não são suas aplicações canônicas, nós traçamos o perfil moral de uma pessoa venerável.

Venerável é uma pessoa que tem uma profundidade de espírito maior do que a comum, adquirida pelo estudo, pela experiência, pela meditação. Possui uma têmpera, uma força de vontade, uma constância incomum. Mesmo em circunstâncias adversas, com sacrifício de sua própria existência, sua saúde, de seu próprio conforto, de sua riqueza, ela traçou uma linha de conduta boa e a seguiu até o fim. Ela se faz notar por um modo de presença que incute o respeito. A pessoa venerável está presente, os outros amam de ver aquela respeitabilidade e a respeitam, têm uma tendência natural a se inclinar, a prestar reverência, a obsequiar; e fazem isso como quem pratica um ato de justiça devido.

Como vemos, a ideia de venerabilidade tem na sua raiz o conceito de seriedade, e como corolário a ideia de força e de abnegação. Quem é sério, forte e abnegado, torna-se respeitável. Aqui está o conceito de venerabilidade.

Seriedade, força, abnegação

Há no centro de São Paulo uma imagem que dá uma ideia bonita de venerabilidade: a de São Bento localizada no pórtico do mosteiro beneditino. Tanto aquela imagem quanto a fachada devem ser consideradas no momento em que o sino grave do mosteiro anuncia seis horas da tarde, quando, sobre a zoeira idiota e superagitada da cidade, descem aqueles sons meditativos, compassados e nobres. Então, temos as torres imutáveis, perpétuas, de um granito em que nada toca, que resiste a todas as transformações da cidade e são sempre as mesmas; um sino vinculado a uma tradição que vem do fundo dos séculos, com timbre grave, solene; o pórtico bonito, nobre, que avança sobre a rua, e a torre em cujo ângulo figura um Anjo apoiado sobre um letreiro que diz: “Ora et labora”. É o símbolo da venerabilidade. “Reza e trabalha” é o lema da Ordem de São Bento: medita, considera, contempla e trabalha com as suas próprias mãos.

Na frente, a figura de São Bento: um homem já sexagenário ou mais, com uma grande barba, um ar de pastor, com um cajado, olhando a cidade que passa. É o próprio exemplo da estabilidade, da seriedade, da profundidade de vistas, da alma patriarcal, do espírito varonil desses homens que não têm prole material, mas possuem prole espiritual infinda, e cuja figura se impõe à veneração de todos os séculos. Esta é a venerabilidade. Ela, como eu disse, tem como fundo a seriedade, como prolongamento a força e como ponto terminal a abnegação. Quem é sério, forte, abnegado, este é respeitável.

Quando virmos alguma coisa que não é venerável, tenhamos certeza de que ali não está o sinal distintivo, o espírito próprio da Igreja Católica. Ela comunica uma nota de respeitabilidade e de venerabilidade a tudo. A Igreja não toca em nada sem enobrecer aquilo em que tocou, e não há verdadeira nobreza que não se distinga pela nota da venerabilidade.

As nocivas influências da “heresia branca” e do otimismo

A sacralidade é a mais alta expressão da venerabilidade. Isto vale para formar o nosso espírito contra duas espécies de influências que recebemos: primeiro, a “heresia branca”(2) expressa em certas imagens de Santos que olham com uma carinha sentimental e despreocupada. Não deveriam ser assim. As coisas santas precisam ser veneráveis, incutir respeito. É necessário defender Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, a Santa Igreja Católica contra isto.

Em segundo lugar, contra outra forma de influência que reputo também muito inconveniente e nociva: essa espécie de otimismo cândido e engraçado de nossos dias, que não é senão uma espécie de bobeira oficializada. Pessoas corroídas de preocupação, que trabalharam o dia inteiro como mouros, de olho afiado para pegar o que puderam, e que, entretanto, chegando a hora do jantar, à noite, estão todas com umas carinhas de anjinhos inocentes e idiotas, não Anjos verdadeiros, mas uma caricatura.

É contra essas influências que destaco o título de São Beda, o Venerável. Como eu gostaria de o ter conhecido, como me atrai imaginar seu porte que é mais de um monumento do que de gente; quando um homem adquire tal ar, fica parecido com uma catedral! Então, vendo São Beda, o Venerável, ajoelhar-me diante dele, oscular seus pés e implorar que ele me obtivesse de Nossa Senhora algo dessa venerabilidade, sem a qual não se tem o espírito católico.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1970)

Revista Dr Plinio 254 (Maio de 2019)

 

1) Presbítero e Doutor da Igreja. Passou toda a sua vida no mosteiro de Wearmouth, na Nortúmbria, Inglaterra. Dedicou-se com fervor a meditar e expor as Sagradas Escrituras (†735).

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.