Fortaleza formidável – Santo Anselmo

Santo Anselmo marcou o século XI por sua ciência, piedade e pelas lutas que travou. Olhando para a sua vida, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, um homem que encheu o seu tempo e cuja glória perdura por todos os séculos graças às vitórias obtidas por ele em favor da Fé.

A solidez, a força, a grandeza da Idade Média se mostram na estatura dos grandes homens que a marcaram. Com efeito, se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria afundado. Portanto, a solidez não consistia em não haver luta, mas na existência de homens dispostos a combater em todos os sentidos.

É preciso estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua, um inteiro desprendimento de si, com os olhos postos completamente na Santíssima Virgem, para que a batalha seja levada a bom termo. Encontrando combatentes verdadeiramente dependentes de Nossa Senhora, a causa é solidíssima, vence mesmo.

Hoje, como durante o Reino de Maria, a nossa vida de luta deve ser constante. Precisamos nos compenetrar de que no dia em que não tivermos lutado, não teremos carregado a cruz. Ora, para um católico, um dia passado longe da Cruz de Cristo e de Nossa Senhora é um dia frustrado. Peçamos a Ela que nunca permita um dia assim em nossas vidas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/4/1966)

Santo Anselmo, varão de muitas lutas

Os grandes homens que marcaram a Idade Média — entre os quais se destaca Santo Anselmo — patenteiam a solidez, a força, a grandeza dessa época histórica, que contrastam com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias.

Dia 21 de abril comemora-se a festa de Santo Anselmo de Cantuária, bispo, confessor e Doutor da Igreja, cuja biografia apresenta os seguintes traços(1):

Mansidão do cordeiro e vigor do leão

Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte, de família nobre. Como o pai o afastasse da vida religiosa, entregou-se aos prazeres durante alguns anos. Mas aos 26 anos entrou na abadia de Bec, na Normandia, onde se entregou à pratica das virtudes religiosas e ao estudo das Escrituras. Aos 30 anos, tornou-se prior e em seguida abade.

 Governou sua abadia com uma bondade incansável que lhe permitiu triunfar de todas as dificuldades. Os Papas Gregório VII e Urbano II manifestaram-lhe grande estima. “O bom odor de vossas virtudes chegou até nós”, escrevia-lhe Gregório, e Urbano II diz: “Vinde cá o mais depressa possível a fim de podermos gozar juntos da afeição que nos une”.

Chamado à Inglaterra em 1092, não pôde voltar à França, pois foi nomeado Arcebispo de Cantuária. Nesse cargo muito sofreu do Rei Guilherme o Ruivo pela defesa dos direitos e liberdade da Igreja. Exilado, foi a Roma, onde o Papa o cumulou de honras e lhe deu ocasião, no Concilio de Bari, de convencer do seu erro os gregos que negavam que o Espírito Santo procedesse do Filho como do Pai.

Voltando à Inglaterra após a morte de Guilherme, Santo Anselmo morreu a 21 de abril de 1109. Clemente XI, em 1720, o declarou Doutor da Igreja.

Monge, bispo, Doutor, Anselmo reuniu em sua pessoa os grandes apanágios do cristão privilegiado. E se a auréola do martírio não veio completar tanta glória, pode-se dizer que a palma faltou a Anselmo, mas que ele não faltou à sua palma. Sua vida foi toda entregue às lutas pela liberdade da Igreja. Nele o cordeiro revestiu-se do vigor do leão. “Cristo, dizia, não quer uma escrava para esposa. Nada Ele ama tanto no mundo quanto a liberdade de sua Igreja”. O nome de Anselmo lembra a mansidão do homem do claustro unida à firmeza episcopal, a ciência junto com a piedade. Nenhuma memória foi mais suave e, ao mesmo tempo, mais brilhante do que a sua.

Um varão que marcou o século XI

Notem as lutas que esse santo precisou enfrentar em plena Idade Média. Ele parece não ter tido — ao menos segundo esses traços biográficos — especiais lutas em seu convento. Mas ele teve dois grandes inimigos a vencer: um rei prepotente que queria sujeitar a Igreja à sua autoridade; e os cismáticos gregos que, reunidos no Concílio de Bari com os católicos, ele conseguiu persuadir, mas de maneira efêmera, de que a doutrina católica era verdadeira.

Ele ao mesmo tempo foi um homem que viajou muito. Era italiano, depois foi para a Normandia, Inglaterra, Bari, Roma. E numa época em que essas viagens representavam empreender um enorme esforço. Eram feitas em estradas péssimas, com riscos de toda ordem, muita dificuldade, lentidão, etc.

Um homem favorecido por Nosso Senhor por especiais graças, e que levou a bom termo tudo aquilo de que foi incumbido: como abade foi muitíssimo estimado; Arcebispo de Cantuária, ele empreendeu uma luta rigorosa contra o rei e acabou sendo reintegrado na sua sede episcopal; lutando contra os cismáticos, conseguiu persuadi-los de seus erros. Depois, extinguiu-se na alegria e no amor de todos pela vida que tinha levado, porque a morte dos santos é muito mais uma alegria do que uma fonte de tristeza.

Vemos, entretanto, qual a natureza da verdadeira grandeza da Idade Média: esse homem marca o século XI pela sua ciência, sua piedade, pelas suas lutas, e leva a Causa Católica à vitória.

Então, considerando a vida dele, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, de um homem que encheu o seu tempo, venceu, e cuja glória perdura por todos os séculos por causa das vitórias que ele obteve em favor da Fé. Quando se olha isso, fica-se com a sensação da solidez, da força, da grandeza de toda a Idade Média, que contrasta com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias. E essa impressão não é falsa; é verdadeira porque nos mostra a solidez da estatura dos grandes homens que marcaram a Idade Média.

Precisamos lutar sempre, com os olhos postos em Nossa Senhora

Mas de fato ele teve muitas lutas. E se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria perecido. Na Idade Média havia uma batalha contínua; a solidez não consistia em não haver luta, mas em que a boa reação vencia sempre e era, portanto, nesse sentido, sólida. Entretanto, por um pouco que os homens fraquejassem, a coisa poderia cair.

Podemos vislumbrar, de antemão, qual vai ser a solidez e a precariedade do Reino de Maria. A solidez será enorme enquanto houver homens de uma grande firmeza, dispostos a lutar em todos os sentidos. Então, o Reino de Maria poderá durar séculos e séculos.

Se encontrar homens fracos, ele soçobrará imediatamente, porque o reino do demônio se tornará forte, pois estamos numa humanidade marcada pelo pecado original e num mundo imerso na presença dos tais demônios dos ares de que falava São Paulo(2).

Portanto, é preciso estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua, um desprendimento de si inteiro, tendo os olhos postos completamente em Nossa Senhora, para que a luta seja levada a bom termo. Mas encontrando autênticos lutadores, verdadeiramente dependentes da Santíssima Virgem, a causa é solidíssima, ela vence mesmo. A questão é haver quem lute por Ela. 

Peçamos a Nossa Senhora que nos dê forças e nos compenetre da verdade, para entendermos bem o seguinte: agora, como durante o Reino de Maria, a nossa vida deve ser de luta constante, e no dia em que não tivermos lutado precisamos nos compenetrar de que não carregamos a Cruz de Cristo, e que esse foi um dia frustrado em nossa existência.

Não lutar é não sofrer; não sofrer é não carregar a Cruz de Cristo. Para um católico, um dia passado longe da Cruz de Cristo, longe de Maria Santíssima, é um dia cancelado, um dia em branco.

Ordenado arcebispo, apesar de seus protestos

Temos agora uma nota sobre a sagração de Santo Anselmo, extraída da “Vida dos Santos”, do Padre Rohrbacher(3).

Decidiram os bispos ingleses sagrar Santo Anselmo Arcebispo de Cantuária, mas ele recusou terminantemente porque sabia da intromissão real neste cargo.

Mostraram-lhe os prelados as consequências de sua negativa para a Inglaterra. Replicou o Santo que conhecia tais problemas, mas que era velho, mal conseguindo carregar a si próprio; como poderia levar o fardo de toda uma Igreja? Por outro lado, não era de sua índole cuidar de negócios temporais.

“Conduzi-vos somente nos caminhos de Deus, nós nos encarregamos dos negócios temporais”, replicaram os prelados.

Alegou Anselmo suas múltiplas obrigações e a impossibilidade de abandoná-las. Resistindo ainda, levaram-no ao soberano que se encontrava gravemente enfermo.

O rei aflito disse-lhe: “Anselmo, que fazes? Por que me envias ao Inferno? Lembra-te da amizade que meus pais tinham por ti e não me deixes perecer, porque sei que estou condenado a morrer conservando este Arcebispado”. Todos os assistentes, comovidos, insistiam com Santo Anselmo acusando-o de matar o rei.

O Santo voltou-se para os dois monges que o acompanhavam e disse: “Meus irmãos, por que não me socorreis?”

Um deles respondeu: “Se esta é a vontade de Deus, quem somos nós para resistir-Lhe?”

“Ai! — disse Anselmo — Vós vos rendestes mui prontamente”.

Vendo-o assim obstinado, acusaram-no de covardia. Buscaram uma cruz, tomaram-lhe o braço direito e o aproximaram do leito. O rei lhe apresentou a cruz, mas ele fechou a mão. Os bispos empenharam-se em abri-la até fazê-lo gritar. Por fim seguram-lhe a mão com a cruz dizendo: “Viva o bispo!”; e entoaram o “Te Deum”. Levaram-no à igreja vizinha e, sob seus protestos, sagraram-no.

Fato estranho e magnífico ao mesmo tempo!

Maus reis queriam eliminar a liberdade da Igreja

Para compreender um pouquinho o conjunto dos acontecimentos, é preciso tomar em consideração o seguinte: Cantuária é a mais antiga diocese, portanto a sede primacial, da Inglaterra. E naquele tempo, mais do que hoje, os arcebispos e os primazes tinham certa jurisdição, certa influência sobre os bispos de seu país.

Estava-se num período de comunicações com Roma, devido à distância, muito difíceis, e não havia um corpo de núncios apostólicos inteiramente organizado. De maneira que se fazia sentir, mais do que hoje em dia, a necessidade dos bispos de um determinado país se apoiarem sobre um que fosse a pedra de ângulo de todos, e este era o Arcebispo de Cantuária.

Esse arcebispo tinha muita importância; por outro lado, estava-se num período em que a Revolução — em sua forma absolutamente ancestral e original; nem se pode ainda falar de Revolução —, ou melhor, os germes dos quais futuramente a Revolução nasceria, se exprimiam sob a forma de um desejo do poder temporal. Quer dizer, dos chefes de Estado, em concreto dos reis, de se apoderarem da liberdade, dos atributos da Igreja, transformando-a num instrumento de dominação material.

Os soberanos não queriam, por exemplo, que os bispos os censurassem, porque havia naquele tempo muitos bispos que repreendiam os reis e os poderosos. Eles queriam se assenhorear dos bens com que a Igreja socorria inúmeros pobres e mantinha o esplendor do culto divino.

O medo do Inferno leva muitas pessoas para o Céu

Por outro lado, os bispos eram muitas vezes senhores feudais e constituíam um elemento de imparcialidade dentro do jogo da vida feudal. Certos reis, movidos por mau espírito, queriam se assenhorear dos feudos eclesiásticos para, por esta forma, combater os outros senhores feudais.

E isto tudo fazia com que os reis tivessem uma preocupação constante de nomear, para os cargos importantes, bispos que fossem seus instrumentos.

Então, Santo Anselmo, monge já idoso, com inúmeros serviços prestados à Igreja, era desejado ardentemente pelo rei e pelos bispos para ser Arcebispo de Cantuária.

Pelos bispos porque era um líder natural para defendê-los contra o rei. Pelo rei, porque este já tinha tido dificuldades com a Igreja, mas estava doente e temia morrer. E ele achava que ia para o Inferno se, antes de falecer, não evitasse para a Igreja a catástrofe de uma má nomeação; por isso ele queria nomear um bom arcebispo para Cantuária.

Quer dizer, o rei estava com a espada da ameaça do Inferno colocada no peito, e nós sabemos que o medo do Inferno tem levado muita gente para o Céu. Para a grande maioria dos homens, poucas coisas fecham tanto a porta do Inferno quanto o medo de ir para lá. 

Então todos queriam que Santo Anselmo ficasse Arcebispo de Cantuária.

Uma violência tipicamente medieval

Aí se dá a cena muito curiosa. Os bispos pedem, ele recusa dando um argumento que está à altura de um Santo. Não é um argumento baseado em falsa modéstia, mas é uma coisa verdadeira. Sendo um homem velho, que mal se carrega a si próprio, exausto por anteriores serviços à Igreja, é natural que ele tenha receio de não conseguir desempenhar satisfatoriamente um cargo tão pesado; e, portanto, procure tirar o corpo.

Tanto mais que ele devia conhecer bem o rei e sua entourage, e o Santo poderia conjecturar que o rei, tendo já criado encrenca com a Igreja, criaria outra, caso ficasse curado — como diz o ditado: cesteiro que faz um cesto, faz um cento.

Os sucessores do monarca, que faziam parte daquela entourage do palácio, tinham a mesma mentalidade. Santo Anselmo teria que travar uma luta, portanto, contra o poder temporal, coisa muito mais difícil do que qualquer outra batalha. E ele naturalmente temia por sua própria fraqueza; achava que um homem moço estaria mais em condições de conduzir essa luta.

Mas tal era a força da virtude dele, a confiança que tinham no auxílio que a graça lhe prestaria, que todos queriam que ele ficasse arcebispo.

Então se dá esta cena: Os bispos, não conseguindo nada, levam Santo Anselmo ao quarto onde o rei estava doente. Depois de muita insistência, acaba havendo uma espécie de violência bem medieval.

Pegam uma cruz e dizem ao rei: “Põe na mão dele!” O Santo declara: “Não, não quero!”

Com força, abrem a mão dele, a ponto de doer; ele segura a cruz e levam-no, então, para ser sagrado.

Por meio dessa violência material, que talvez tivesse tido um caráter afetuoso e feita no meio de sorrisos — a crônica é muda a respeito deste particular —, o que houve foi isto. Mas o fato é tão estranho que não é de se repelir como absurda a hipótese deste ter sido feito no meio de sorrisos.

Houve um momento em que Santo Anselmo, pelo extremo desejo dos outros, que chegou até à violência, resolveu ceder. Ceder não mais coagido fisicamente, mas moralmente persuadido de que ele não deveria resistir a um anseio tão unânime.

E, então, ele mesmo aceitou a sagração, a qual não aceitaria se estivesse convencido de que outra era a vontade de Deus. Ele teria certamente — sendo um Santo — morrido mártir, mas não se deixaria sagrar, se tal fosse a vontade do Altíssimo. Seria o primeiro caso de martírio de um padre que se faz matar para não ser bispo.

Uma vez que Santo Anselmo está no Céu, devemos estar persuadidos de que ele de fato quis, em determinado momento e por esta forma, ele foi Arcebispo de Cantuária.

Devemos ser insistentes em nossas orações

Podíamos nos perguntar se essa violência feita na pessoa dele é censurável. Às vezes a graça, na sua sabedoria e imensa liberdade de movimentos, se serve de meios muito estranhos. Meios imorais ou ilegítimos jamais. Meios surpreendentes e desconcertantes, bem possivelmente.

Quem sabe se a graça quis que a insistência chegasse até esse ponto para mostrar o desapego deste homem, e depois lhe dar mais liberdade de lutar contra o rei, mostrando que ele tinha sido forçado a aceitar o cargo?

De qualquer forma, lembramo-nos das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho: “O Reino dos Céus padece violência”(4). É preciso fazer violência para se entrar no Céu.

Às vezes é necessário fazer até uma santa violência com Deus. O próprio Redentor contou aquela parábola admirável de um homem que está deitado na cama junto com seus filhos,

 e um indivíduo cacete bate do lado de fora pedindo pão.

O dono da casa explica que já está deitado e não pode atender. Afinal, o outro é tão cacete que o primeiro se levanta, abre a porta e lhe dá os pães.

E Nosso Senhor afirma que o dono da casa atendeu por causa da importunidade do outro; e acrescenta que isto é o modelo daquele que reza.

Quer dizer, quando não temos méritos, devemos ser muito insistentes. Porque à força de insistência, como que caceteamos a Deus Nosso Senhor e obtemos aquilo que nós queremos.

No caso ocorrido com Santo Anselmo, houve qualquer coisa de parecido com isso, e vemos as vias superiores de Deus, insondáveis, nem sempre inteiramente explicáveis e que formam uma das belezas da História da Igreja.

Mistérios de Deus e da vida da Igreja

Se na História da Igreja tudo fosse explicavelzinho, clarinho, limpinho, não seria a História da Igreja de Deus. Faltaria a ela uma das notas daquilo que é verdadeiramente divino.

Naquilo que é autenticamente divino precisaria haver mistério. E vou dizer mais, quanto mais claro que determinada coisa é divina, tanto mais convém que nela haja mistérios. Porque a presença do mistério é uma marca de superioridade divina, que impõe respeito aos homens.

Aqui também, são os mistérios da vida da Igreja, os fatos misteriosos por onde Deus mostra a sua divina grandeza. Depois as coisas se explicam.

Com certeza, para alguns contemporâneos de Nosso Senhor, a Paixão há de ter parecido um mistério inexplicável, e foi preciso a Ressurreição para que se compreendesse esse mistério.

Atualmente, nós estamos em presença do maior mistério dentro de vinte séculos de vida da Igreja. Creiamos na divindade dela e amemos a Santa Igreja Católica mais do que nunca… eu jamais diria apesar do mistério, mas sim por causa deste mistério.

Só uma Igreja santa e divina pode ter uma fortaleza, uma grandeza tal que nela caiba um mistério tão profundo, tão tenebroso. É preciso ser uma Igreja divina para não morrer deste mistério, para atravessar a era de mistério e, do outro lado, se mostrar gloriosa e resplandecente como se tivesse ressuscitado.

Nós, desse pequeno fato misterioso da vida de Santo Anselmo, devemos voar para regiões muito mais altas dos grandes mistérios da Igreja Católica. E então façamos hoje à noite, a Nossa Senhora, um ato de amor pelo mistério tremendo diante do qual nós vivemos, certos de que os grandes mistérios têm depois as suas grandes explicações.

Nunca um homem se defrontou com um mistério tão terrível quanto São José, mas depois, que explicação, que esclarecimento! É a explicação das explicações.# v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 20/4/1966 e 20/4/1967)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada por Dr. Plinio.

2) Cf. Ef 6, 12.

3) Cf. ROHRBACHER, René François. Vies des Saints pour tous les jours de l’année. Volume II. Paris: Gaume frères, libraires-éditeurs, 1853. p. 401-410.

4) Mt 11, 12.

São Conrado: Abnegado apóstolo porteiro

Quando menino, a simples presença de São Conrado entre seus colegas afugentava aqueles que diziam palavras imorais. Esse Santo, por ser inteiramente abnegado de si mesmo era um homem puro.

O inteiro desapego de nós mesmos é a condição de nossa perseverança e da fecundidade de nosso apostolado.

Sobre  São Conrado de Parzham, em Schamoni, O verdadeiro rosto dos Santos, nós encontramos alguns trechos biográficos.

Meu livro é a Cruz

Conrado de Parzham, no século Johann Birndorfer, nasceu no dia 22 de dezembro de 1818, em Parzham, perto de Passau, na Alemanha, descendente de uma piedosa família de camponeses. Quando menino ainda, seus colegas falavam coisas menos dignas e, ao vê-lo aproximar-se, exclamavam: “Calemos, aí vem o João”. Sentiam já respeito pela majestade de Deus. E nas tarefas do campo, em pleno calor estival, recusava cobrir a cabeça porque, estando continuamente em oração, acreditava que somente com a cabeça descoberta podia rezar.

Aos 31 anos, tendo certeza de sua vocação religiosa, abandonou a casa e a herança e entrou como leigo na Ordem Capuchinha. Depois dos votos,  o Irmão Conrado foi destinado a ao convento de Altötting, junto ao qual há um santuário da Virgem, visitado anualmente por milhares de peregrinos. Em tal mosteiro, que no ambiente do campo não encontra um mo-mento de repouso, o cargo de porteiro é sumamente difícil.

O Irmão Conrado cuidou da portaria do convento por quarenta e um anos e, aplicando-se em sua missão com tato e atenção, teve inalterável paciência, sempre cheio de deferência, humilde, serviçal, piedoso, laborioso. Nunca foi visto mal-humorado, jamais pronunciou uma palavra inútil. Assim converteu–se num pregador silencioso, que infundia respeito aos visitantes, convertia os pecadores, consolava os aflitos e ajudava os pobres.

Escreveu uma vez a um amigo: “Minha regra de vida consiste em amar, sofrer e maravilhar-me em êxtases e orações pelo amor de Deus para conosco, pobres criaturas. Nunca termina esse divino amor. Nada há que me impeça, em minhas  ocupações, de me afastar de minha união com Deus. Meu livro é a Cruz, basta-me um olhar para ela para saber em cada ocasião qual há de ser minha conduta”. Três dias antes de morrer, renunciou a seu cargo de porteiro, falecendo a 20 de abril de 1894.

Ele morreu, portanto, bastante idoso.

A Revolução hoje vai progredindo como um câncer

É muito interessante a figura desse Santo. Eu já vi em livros com gravuras de Santos uma reproduzindo seu perfil, oposto ao de São Leão IX que era um aristocrata, homem de grande formosura e talento. Um varão superior, debaixo do ponto de vista de suas qualidades naturais, no qual se inseriu, como um facho de luz maravilhoso, a vida sobrenatural e a sua própria santidade.

São Conrado de Parzham é o contrário. Um humilde irmão franciscano, que na gravura aparece muito branco, de barba e cabelos brancos, com um maço de chaves na cintura, indicando a sua função de porteiro. Com toda essa inferioridade humana em relação a um São Leão IX, por exemplo, é, entretanto, uma figura esplêndida, de tal maneira que poderia ser colocada como par desse Papa Santo, pois todas as qualidades naturais se eclipsam e desaparecem quando estão em jogo os valores de caráter sobrenatural.

Temos aqui vários dados da vida de São Conrado a considerar.

Em primeiro lugar, como ele afugentava – sendo simples camponês – os colegas que diziam palavras imorais. Vemos aí uma preservação daquela época, ao menos no lugar em que ele vivia. Porque hoje eu duvido que até um Santo consiga afugentar os meninos de colégio que falam palavras obscenas. Vê-se por aí como a Revolução vai progredindo à maneira de um câncer, invadindo tudo. Naquele tempo ainda havia gente amedrontável; hoje não existe mais.

O mal se mostra completamente desatado e inteiramente triunfante. É exatamente um dos elementos que tornam necessários os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. É também digno de nota a intensidade da piedade dele, rezando de tal maneira, de um modo contínuo, que durante o período de trabalho no campo  ele orava também. E por isso não queria cobrir a cabeça porque, como estava falando com Deus, ele preferia receber todo o calor, mas permanecer numa atitude de respeito diante de Nosso Senhor.

Observa-se, por um lado, a falta de respeito humano e, por outro, uma piedade ininterrupta e acendrada, um grande espírito de mortificação. Porque o trabalho manual já é de si penoso; realizá-lo com o sol incidindo na cabeça descoberta o torna mais difícil ainda. E no meio disso ele conseguia se concentrar. É uma capacidade de atenção, de oração, digna de nota. Sobretudo para os homens de nossa época tão fáceis de se dissiparem.

Um porteiro edificante, solícito, digno, respeitoso

Ele entrou como irmão leigo na Ordem Capuchinha aos 31 anos de idade, e foi destinado como porteiro do convento junto a um santuário de Nossa Senhora. E tornou-se aí o contrário dos porteiros de convento que habitualmente se conhecem. Manda-se telefonar, chamar um frade, passa meia hora…; em parte devido à lentidão do porteiro em chamar o frade, em parte à demora deste em vir ao telefone. São as duas coisas que se conjugam: displicência e desinteresse.

Em São Conrado vemos o oposto: era um mero porteiro de convento, mas tão edificante, tão solícito, tão digno, tão respeitoso, que todo mundo se edificava com ele. E então a ficha diz muito bem que, sendo um mero porteiro de convento, pela sua ação de presença, pela sua virtude, ele pregou uma grande lição de quarenta e um anos, se transformou num grande missionário, num grande pregador.

Isso nos faz ver que os homens eficientes para o apostolado de nenhum modo são apenas aqueles que têm capacidades intelectuais, como a de falar em público. Esses também podem ser eficientes, mas a chave da eficiência deles não está no talento, e sim na vida sobrenatural que habita neles e se comunica aos outros.

Por causa disso, vemos um simples porteiro, irmão leigo, ter feito pela Causa Católica um apostolado enorme no mais obscuro dos cargos, um homem com uma ciência mui to pequena. Apostolado de portaria. Como isso indica qualquer coisa de restrito, de circunscrito em matéria de apostolado! Entretanto, o êxito do brilho desse apostolado deve-se à vida interior.

O apostolado seriamente conduzido exige abnegação e renúncia completas

Eis o pensamento dele a respeito da oração contínua: “Minha regra de vida consiste em amar, sofrer e maravilhar-me em êxtases e orações pelo amor de Deus para conosco, pobres criaturas”.

É uma ilustração da tese de Dom Chautard, em seu livro A alma de todo apostolado: Se queremos que nosso apostolado seja fecundo, tratemos de fazê-lo por amor de Deus e não por nosso amor, não para aparecermos nem sermos importantes, mas considerando a Causa de Nossa Senhora e mais nada. Se fizermos isso, nosso apostolado será um canal de graças. Por tentar qualquer forma de desejo de nos mostrar, de recebermos aplausos, nosso apostolado será como um canal obstruído por onde as águas não passam, e as almas terão fome de graça e não serão nutridas por causa de nossa falta de correspondência. Essa é a abnegação inteira, a renúncia completa que o apostolado seriamente conduzido exige. É muito duro isso.

Eu compreendo que, para a natureza humana, a vontade de se mostrar é uma coisa primeira, elementar e veemente, como o desejo de respirar, mas é preciso a todo custo vencer isso. Quem quer ser um verdadeiro apóstolo precisa ser uma pessoa abnegada, cheia de renúncia; se for tirada de qualquer cargo ela não geme, não sofre, não protesta. E que, sendo desconhecida pelo seu chefe, dá graças a Deus, porque assim ela está imitando a Nosso Senhor que também sofreu o desprezo dos outros. Uma pessoa, enfim, inteiramente abnegada de si mesma.

Deem-me um homem inteiramente abnegado de si mesmo e eu lhes darei um homem puro. No fundo, as tentações contra a pureza provêm de orgulho, falta de abnegação, vaidade, apego si mesmo.

Se consideramos um homem abnegado, ele não só será puro, mas um apóstolo perfeito; seu apostolado produzirá resultados por vezes surpreendentes. Mas se ele tiver um apego, o seu apostolado não dá nada; é uma tristeza.

Pode haver uma frustração pior para um apóstolo do que, tendo deixado tudo para dedicar-se ao apostolado, ver que sua vida não teve fecundidade?

Não tenhamos ilusão: nossa vida será estéril, infecunda, nosso apostolado inútil, passam-se os anos sem que conquistemos nada. Tudo isso decorrente de um apego a nós mesmos.

O inteiro desapego de nós mesmos, de que São Conrado de Parzham foi um exemplo, é condição de nossa perseverança e da fecundidade de nosso apostolado.

(Extraído de conferência de 19/4/1967)