São João Eudes: Combate à tibieza e à heresia

Para evitar as tragédias e as apostasias causadas pela Revolução Francesa, Deus suscitou grandes santos, como São João Eudes que difundiu com ardor a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e fustigou energicamente os vícios e os erros doutrinários de seu tempo. Não se intimidou inclusive diante de Luís XIV, ao censurar os costumes da corte, em Versailles.

Ao tratarmos de São João Eudes, convém tomar em consideração que a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria suscitou, nos séculos XVII e XVIII, toda espécie de movimentos destinados a evitar a Revolução Francesa. No século XIX, e durante uma parte do XX, foi também a devoção própria de to-dos os contrarrevolucionários.

É preciso notar que essa devoção, tão combatida pelos jansenistas, é de uma substância teológica extraordinária, muito recomendada pelos documentos pontifícios e por vários santos.

Grandes praças públicas se enchiam para ouvir suas prédicas

São João Eudes nasceu em Ery, pequena cidade da Normandia, a 14 de novembro de 1601. Era o filho mais velho do casal Isac Eudes e Maria Ruber. Depois dele, seus pais tiveram mais quatro filhas e dois filhos. Família profundamente religiosa, cresceram todos num ambiente sério, impregnado de vida sobrenatural. Receberam excelente educação, orientada pelos ensinamentos da Igreja.

Em 1615, sendo educado pelos jesuítas de Caen, fez voto de virgindade, doou-se a Maria e votou-Lhe, desde então, um culto fervoroso. Da Universidade de Caen entrou na Congregação do Oratório, fundada por Bérulle, onde permaneceu durante vinte anos.

Bérulle quisera restabelecer entre o clero a doutrina e a santidade, mas não havia pensado em seminários, e foi para instituí-los que São João Eudes, em 1643, deixou o Oratório e fundou a Congregação de Jesus e Maria; e com seus cinco companheiros padres abriu o primeiro seminário de Caen, logo seguido de muitos outros.

Para reconduzir os pecadores à vida cristã, fundou a Ordem de Nossa Senhora da Caridade e, para evangelizar as almas desamparadas, fez-se missionário durante longos anos, pregando nos campos abandonados, nas cidades e até na corte, com uma liberdade e uma eloquência que tinham como suporte a sua eminente santidade.

Pai, apóstolo e doutor da devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, quando morreu já tinha conseguido a introdução dessa festa em um grande número de dioceses, não só da França, como de outros países. Foi ele também que compôs o seu primeiro ofício. Grande pregador, nas suas missões atraía multidões. E, muitas vezes, era obrigado a falar em grandes praças públicas completamente tomadas pelo povo. Novo São Vicente Ferrer, conquistava os ouvintes pelo ardor de sua fé, pela energia com que fustigava os vícios e pela caridade com que tratava os arrependidos e penitentes.

Existe um testemunho histórico de grande valor que comprova o seu êxito. É uma carta de São Vicente de Paula, comentando as missões que assistira. Diz ela:

“Alguns sacerdotes da Normandia, conduzidos pelo Padre Eudes, pregaram uma missão em Paris com uma bênção extraordinária. O pátio dos Quinze Ventos é muito grande, porém tornou-se pequeno, dado o grande número de pessoas que desejavam ouvi-lo.”

O Bispo pró jansenista, Ana d’Áustria e Luís XIV

Os hereges não lhe perdoavam o combate enérgico que movia contra os seus erros. Sendo a heresia o maior dos males, ele não compreendia ter, com os seus adeptos, nem a mais leve aparência de relações, chegando mesmo a não cumprimentá-los.

Conta-se um fato que, de um lado mostra o cuidado com que guardava a pureza de sua Fé, e de outro, a frivolidade, a prepotência dos eclesiásticos de então.

Um dia, o Bispo de Bayeux convidou-o a subir em sua carruagem na qual já se encontrava outro sacerdote. Quando ela se pôs em movimento, o bispo lhe perguntou se sabia com quem viajava.

Sendo um grande orador e um santo muito fogoso, ele fundou uma Congregação para ver se, com o prestígio de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na França.

Santos de fogo

Na vida de São João Eudes há uma coincidência entre a obra jurídica e a obra espiritual, que é muito bonito assinalar. Ele viveu num país católico, como era a França, e sua tarefa não foi a de combater os inimigos expressos e extrínsecos da Igreja. Ele estava num país corroído por uma profunda crise religiosa da qual haveria de nascer, afinal, a Revolução Francesa.

Essa crise religiosa provinha do fato de que o fervor tinha decaído inteiramente, o senso católico estava muito baixo. Para evitar as tragédias e, sobretudo, as apostasias provocadas pela Revolução, a Providência suscitava grandes almas que, de várias maneiras, procuravam reacender o fervor na França.

Todos os santos dos séculos XVII e XVIII foram santos de fogo. Não foram tanto grandes teólogos quanto santos que tomavam por intenção contaminar, com o amor de Deus, essa mecha que ainda fumegava, mas na qual havia apenas um fogo em estado de brasa e não mais em estado de chama.

Vemos, então, entre outros, São Vicente de Paula, que era um homem de um amor de Deus irradiante; São Francisco de Sales, que exercia uma penetração profunda de amor de Deus nas camadas da alta sociedade. Para essa obra de combustão de amor de Deus, de acender de caridade, encontramos, sobretudo, duas obras fundamentais: a de São Luís Grignion de Montfort, no século XVIII, na Vendeia e na Bretanha, da qual nasceu de-pois a Chouannerie; e a de São João Eudes, que devemos analisar mais especialmente hoje.

Quem lê as revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque, nota que elas tiveram como intenção expressa enunciar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, dizendo que essa devoção, especificamente considerada, tinha um dom de tirar os tíbios de sua tibieza, de acender o amor de Deus nas almas frias. É a finalidade específica dessa devoção.

Quando se toma um tíbio, um homem que está mais amando suas coisas pessoais do que as de Deus, a devoção indicada para acender nele o amor de Deus desfalecente é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e naturalmente também ao Imaculado Coração de Maria.

Luís XIV recusou acolher o pedido de Nosso Senhor

Santa Margarida Maria, portanto, recebeu essa devoção, mas era uma freira visitandina reclusa e não podia sair do convento. Ela não tinha como missão difundir essa devoção, mas sim registrá-la, praticá-la, e com isso ser canonizada o que significaria uma espécie de aprovação dessa nova devoção. Ela possuía como missão fazer conhecer essa devoção aos homens que poderiam difundi-la. Entre outros, Luís XIV.

Ela mandou pedir a Luís XIV que fizesse uma alteração na bandeira da França, incluindo a figura do Sagrado Coração de Jesus, e realizasse a consagração desse país ao Sagrado Coração de Jesus. Luís XIV recusou- se a isso. Como resultado dessa recusa, no que diz respeito ao poder real, foi água abaixo a monarquia francesa.

Luís XVI, na prisão do Templo, fez essa consagração e prometeu que, se fosse salvo dos perigos da morte que já o circundavam, ele a realizaria de modo solene. Mas já era tarde! Ele ainda tinha o poder de direito, porém não mais o de fato. E a França estava em tais condições que essa consagração não podia mais ser considerada um ato nacional — como o seria se feita por Luís XIV —, mas era o ato de um rei desacompanhado da população, que estava naquelas convulsões da Revolução e não podia acompanhar esse ato.

Além do rei, Santa Margarida Maria quis também fazer chegar essa devoção a missionários. E assim, espalhando-se nos círculos piedosos, tal devoção tocou São João Eudes que chamou sobre si a tarefa de difundi-la.

Um profeta não atendido que combateu tenazmente contra a tibieza

Sendo um grande orador e um santo muito fogoso, ele fundou uma Congregação para ver se, com o prestígio de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na França. E aí nós vemos uma outra recusa, já não do rei, mas do povo francês, pecador solidariamente com o monarca. A devoção impressionou pouco.

Os escritos de São João Eudes foram muito aproveitados para a generalização que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus teve, no século XIX. Mas no século XVIII não pegou.

Temos, então, um grande santo o qual é uma espécie de profeta não atendido, e que empregou todas as suas forças no campo espiritual para combater a tibieza francesa, por meio dessa devoção.

Com esse objetivo, São João Eudes utilizou dois métodos: um de caráter espiritual, fundando uma Congregação destinada a difundir tal devoção; outro de cunho jurídico, erigindo um tipo de organização de ensino, os seminários, já existentes em tese, mas ainda não de fato na França, e que ele constituiu dando-lhes as características atuais.

Os seminários eram destinados a tirar os seminaristas das respectivas famílias e educá-los num ambiente fervoroso, de maneira tal que, quando eles fossem padres, tivessem verdadeiro entusiasmo, verdadeira consagração à sua vocação e não ficassem presos às coisas do mundo. Os seminários constituíram um elemento realmente admirável para a formação do clero, e uma das grandes alavancas para a restauração religiosa da Europa, no século XIX.

Repulsa ao herege e respeito à autoridade eclesiástica

Eu gostaria de lembrar três aspectos mencionados por essa ficha biográfica de São João Eudes: a presença do herege na carruagem, o mal-estar do santo com esta presença e a atitude do bispo. Vê-se que o bispo, pregando ao santo aquela cilada, não era inimigo dos jansenistas. Para ter um jansenista viajando com ele, evidentemente é porque não sentia esse mal-estar.

O bispo tratava São João Eudes com a atitude com a qual a impiedade trata quem é verdadeiramente piedoso, ou seja, divertindo-se durante a viagem com o mal-estar de São João Eudes, pela vizinhança daquele herege. Enquanto o prelado, naturalmente, bancava que se encontrava com muito bem-estar com o herege, São João Eudes manifestava uma espécie de repulsa, de horror, de aversão, como se houvesse uma possibilidade de contágio. E o bispo, então, caçoando do santo, divertia-se com o fato. É a velha atitude do ímpio em relação ao piedoso que se recata e, por isso, defende-se contra coisas dessas, e é tido como imaginoso, fantasioso, medroso, homem sem coragem, sem decisão.

E, por se tratar de um bispo, São João Eudes, que era um homem tão enérgico, não queria tomar a atitude enérgica que adotara com Luís XIV. Nota-se o grande respeito de São João Eudes pela autoridade do bispo. Porque, quem era capaz de dizer ao maior rei da Terra o que ele afirmou, evidentemente teria facilidade também de dizer para o bispo. Não lhe faltava personalidade nem coragem.

Mas, uma é a autoridade eclesiástica, outra é a autoridade civil. E sempre que se pode tomar uma atitude submissa em relação à autoridade eclesiástica, a melhor via é a da submissão. De maneira que, diante da má atitude do bispo e do outro jansenista, a posição de São João Eudes nos mostra bem qual é o amor que o católico deve ter à obediência, sempre que, em consciência, lhe seja possível manter essa obediência. E, de outro lado, em que alta conta se deve ter a autoridade eclesiástica.

Pecados que preparavam as monstruosidades de hoje

O episódio com Ana d’Áustria mereceria ser narrado depois do fato ocorrido com Luís XIV.

Não pensem que a atitude dele elogiando Luís XIV, como vem narrada na ficha, não ia sem uma censura ao rei, porque era óbvio que Luís XIV sabia o que estava se passando ali, pois eram esses os costumes da corte precedida pelo monarca.

Havia, portanto, ao lado do modo cortês de começar por elogiar o rei, uma verdadeira censura. E, de fato, o mal que podia ser ali removido, de tal forma dependia do soberano, que bastou o rei olhar para os fidalgos que todos se ajoelharam.

Mas não é este o único fato da vida de Luís XIV em que ele ouviu — humildemente, como filho da Igreja — uma porção de verdades do alto do púlpito. Ele era, sem dúvida, um pecador público e prestou à Igreja, ao lado de alguns serviços, alguns desserviços insignes. Mas a profundidade e o modo de ser do pecado — e até do pecado grave — nas almas daquele tempo, não era a profundidade nem o modo de ser do pecado nas almas de hoje em dia.

Se considerarmos pecadores daquela época, às vezes de má vida, encontraremos neles restos de moralidade, de piedade, de fé, de humildade que, no pecador de hoje, absolutamente não se encontram.

Isso indica bem que naqueles tempos, em que se preparavam as monstruosidades de hoje, havia ainda muita seiva, muita possibilidade de resistência, a qual só não foi levada a cabo inteiramente por um conjunto de circunstâncias históricas, que não vem ao caso narrar no momento. Mas era, em todo caso, uma época muito mais católica do que a nossa.

Característico também é o caso com Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV. Ela era uma soberana que, embora tivesse um oratório em seu palácio, absolutamente não se distinguia por uma piedade saliente nem deu uma educação muito piedosa a seus filhos. Entretanto, quando toma conhecimento de que São João Eudes falou fortemente na corte contra a imoralidade, ela o apoia e manda dizer-lhe que gostou. Ela mesma tinha como seu conselheiro São Vicente de Paula.

É uma atitude completamente diferente do afastamento sistemático de todo contrarrevolucionário, de todo aquele que reage e procura ser séria e sinceramente católico, nos dias de hoje.

Quer dizer, não havia o boicote completo do católico verdadeiro, como existe atualmente. O que indica, exatamente, que o vício, o erro, o mal ainda estavam num estado de debilidade, e não se permitiam as insolências, os despotismos que se permitem hoje.

Isso nos faz ver, com toda clareza, o tamanho de nossa decadência e acende em nós a esperança de um castigo, bem como de um auxílio de Nossa Senhora para nos tirar desta triste era histórica
na qual estamos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/8/1965, 18/8/1966 e 19/8/1970)

"Vi, decidi e entrei!”

Analisem a fisionomia do Santo Ezequiel Moreno Díaz. É um rosto inteiramente distendido, sem a menor contração. Porém, não é a distensão comum do homem que dorme. Há algo  nesse modo de estar distendido que corresponde àquela espécie de distensão que os irresolutos não possuem. Estes têm a distensão da moleza.

Nele vemos a distensão das grandes resoluções tomadas, do homem que resolveu tudo e entrou rijo no caminho por onde tinha de entrar e disse: “Eu vi, decidi e entrei. Agora vamos até o fim!”

As dúvidas ficaram para trás e todos os sacrifícios que esse caminho trouxesse consigo, de algum modo ele os mediu, aceitou e pediu a Nossa Senhora que o ajudasse a não recuar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1980)

O Bem-aventurado da grande resolução

Por meio de seus Santos, Deus faz brilhar de mil maneiras a fortaleza católica. Em Santo Ezequiel Moreno y Díaz essa virtude reluz de modo enlevante, por sua vontade resoluta em cumprir a vontade divina, disposto aos maiores sacrifícios.

Mandaram-me um quadro de um Bem-aventurado colombiano, famoso por seu antiliberalismo, Ezequiel Moreno y Díaz1. Sua fisionomia me agrada muito.

Batalhador destemido contra o liberalismo

A expressão fisionômica é digna, forte, nobre, dentro de uma grande serenidade. Nota-se uma determinação e uma resolução que não precisa de fogachos para se firmar. Ele é calmo, tranquilo, mas o que ele resolveu, resolveu.

Parece-me uma fisionomia que, a seu modo, pode emular, ser colocada à altura do semblante de Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, Bispo de Olinda e Recife no tempo do Império. Com a diferença de que o Beato Ezequiel é espanhol, o que se percebe considerando algo no rosto que dá essa ideia. Dom Vital é tipicamente brasileiro, inclusive a vivacidade no olhar é do estilo de vivacidade brasileira.

Fizeram-me um pequeno relato sobre esse Bem-aventurado, que passo a ler.

O Bem-aventurado Ezequiel Moreno y Díaz foi Bispo da cidade de Pasto, que faz fronteira com o Equador, onde está o Santuário de Nossa Senhora de Las Lajas, grande devoto d’Ela e importante promotor da construção do atual santuário.

Um dado que chama especialmente a atenção é seu combate ao liberalismo que nessa época – fins do século XIX –, tanto na Colômbia quanto no Equador, estava atacando fortemente a Igreja, desapropriando os bens eclesiásticos e perseguindo o clero.

Ele levou a luta contra o liberalismo ao ponto de escrever pastorais, nas quais chamava os católicos a se levantarem em armas contra o liberalismo, inclusive citando-lhes o exemplo dos Macabeus: Mais vale morrer do que viver numa terra devastada e sem honra (cf. I Mac 3, 59).

A prédica desse prelado deu calor aos católicos especialmente durante uma guerra havida na Colômbia entre exércitos católicos e liberais, que se desenrolou ao longo de três anos, intitulada a “Guerra dos Mil Dias”.

Outro traço da firmeza deste Bem-aventurado foi o fato de ele ter lançado uma excomunhão contra todos os pais de família que enviassem os seus filhos a um colégio, cujo diretor era uma pessoa de doutrinas liberais. O tal diretor se transladou para o outro lado da fronteira e, com a anuência de um bispo equatoriano de ideologia liberal, começou a funcionar ali uma escola.

Alguns pais colombianos mandaram seus filhos a esse colégio do Equador. Então, o Beato Ezequiel renovou a excomunhão, o que levou o bispo equatoriano a se queixar junto à Santa Sé. Resultado: a Sagrada Congregação dos Bispos desautorou o Bem-aventurado. Este foi a Roma – viagem que naquela época durava vários meses –, fez revisar todos os documentos no Vaticano e obteve que Leão XIII levantasse a condenação que havia recebido.

A correia de São Tomé, característica dos agostinianos

Isso é saber lutar bem! Notem a analogia com Dom Vital que, desautorado por uma carta de Pio IX, inspirada pelo Cardeal Antonelli, foi a Roma, obteve o julgamento do caso dele e a afirmação de Pio IX de que ele tinha andado bem. Portanto, a intriga havia subido até dentro do Vaticano.

Passo a comentar o quadro. Estamos na presença de um religioso da Ordem de Santo Agostinho. Notam-se as insígnias episcopais: o solidéu roxo, a cruz peitoral e o anel pastoral. Em seu hábito ele traz a correia característica dos agostinianos, a qual, segundo me disseram, é uma reminiscência do cinto que Nossa Senhora levava consigo e que atirou a São Tomé, enquanto Ela subia ao Céu.

Como sabemos, São Tomé foi o único Apóstolo que não assistiu à dormição e Assunção da Santíssima Virgem, no que se poderia ver uma severidade por causa daquela dúvida dele a respeito da Ressurreição de Nosso Senhor. E o que Nosso Senhor disse a ele: “Tu creste, Tomé, porque Me viste; bem-aventurados os que não viram e creram.” (Jo 20, 29); é uma censura. Santo Agostinho diz sobre essa censura uma coisa extraordinária: que a Fé de milhões de homens pelo futuro pendeu do dedo de São Tomé, porque como há muita gente com a mentalidade que São Tomé tinha antes de tocar nas Chagas de Jesus, essas pessoas se sentem tranquilizadas com tal narração.

Mais uma vez entram os desígnios ocultos, misteriosos e superiores da Providência. Em última análise, São Tomé teve um momento de dúvida, mas desta dúvida a Providência tirou uma vantagem tão grande que nos perguntamos como Ela Se teria arranjado para produzir esse efeito, se São Tomé não tivesse duvidado. Tal é a complexidade dos fatos considerados do ponto de vista da Providência.

São Tomé chegou atrasado, quando Nossa Senhora já ia subindo, e ficou naquele encantamento por vê-La. Ela sorriu, desprendeu de Si o cinto e atirou para ele. Onde, uma vez mais, entram os tais desígnios da Providência. O único Apóstolo que não esteve presente foi ele; entretanto, pelo que conste, o único a receber uma lembrança d’Ela, quando já Se destacava da vida terrena e ia subindo ao Céu, foi ele. Tem-se vontade de dizer: “Bem-aventurado Tomé!”

Distensão das grandes resoluções tomadas

Mas voltando ao quadro, o olhar do Bem-aventurado Ezequiel Moreno está fitando alto no horizonte. Esta atitude do olhar, uma pessoa romântica não tem. Porque ele está olhando para um ponto fixo, e o romântico não gosta de olhar nada de fixo, é um olhar “melado” que não se crava em nada porque fita sonhos interiores.

O rosto dele está inteiramente distendido, não se nota nele a menor contração. Entretanto, não é a distensão comum do homem que dorme, mas é aquela forma de distensão que os irresolutos não têm. Estes possuem a distensão da moleza, parecem carnudos ainda que sejam magros. Aqui ele tem a distensão das grandes resoluções tomadas, do homem que resolveu tudo, entrou rijo no caminho por onde tinha que entrar e disse: “Vi, decidi e entrei! Haja o que houver, venha o que vier e custe o que custar, eu resolvi, aquilo eu faço!”

Alguém poderia me perguntar: “Como o senhor nota isso?”

Como notaria numa fisionomia viva. Quando o homem tomou uma grande resolução, algo fica marcado no rosto, onde a musculatura é definida e rija, mas ao mesmo tempo distendida, porque as dúvidas ficaram para trás e todos os sacrifícios que esse caminho traga consigo, vê-se que de algum modo ele os mediu, aceitou e pede a Nossa Senhora que o ajude a não recuar.

Resolução absoluta do Redentor e de sua Mãe Santíssima durante a Paixão

Creio que o modelo transcendental e infinito dessa resolução deveria estampar-se na face de Nosso Senhor depois que o Anjo O consolou, considerando etimologicamente o termo, ou seja, deu-Lhe força. No Horto das Oliveiras Ele pediu: “Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a tua vontade e não a minha” (Mt 26, 39). Veio o Anjo e O fortaleceu (cf. Lc 22, 43). Ele que nunca estivera irresoluto, entretanto estava com toda a natureza humana d’Ele posta diante da previsão terrível da Paixão, mas com a determinação: “Deus Me ajuda, Eu aguento, agora vou.”

Podemos notar essa resolução de um modo divino no Santo Sudário. Uma das notas que a Sagrada Face dá é precisamente de uma resolução absoluta: ela está machucada, cuspida, nota-se que o nariz sofreu uma pancada. Nosso Senhor morreu no auge de todas as dores, mas Ele deliberou resgatar o gênero humano e resgatou.

Algo disso se deveria notar também em Nossa Senhora, no momento e depois do consummatum est: “Eu resolvi, Ele é meu Filho, Eu O ofereci ao Padre Eterno para isto. Aconteceu que meu oferecimento foi aceito e Ele morreu. Era o que Eu queria. Vamos para a frente!” É indizível isso, mas é assim. Esta é uma das razões pelas quais, sem ter nem de longe o atrevimento de negar o valor artístico da Pietà de Michelangelo, nego o valor religioso. A Pietà é um conjunto lindo; entretanto, o jeito de Nossa Senhora olhar para Ele não é aquela compaixão de quem contempla o fruto doloroso de sua própria resolução. Há qualquer coisa de mole, que não corresponde a quem acaba de beber a derradeira gota de fel e ver a última consequência da resolução tomada: “É terrível, é trágico, porém é o que Eu queria!” Compaixão é ter dor, sem dúvida, mas é participar da intenção sacrifical d’Ele.

Diversidades de brilho da graça nas almas dos Santos

Na fisionomia do Beato Ezequiel Moreno y Díaz notamos algo que eu poderia dizer que está à altura de alguém que adorou e se embebeu profundamente do consummatum est. Vê-se que ele está para além dos sacrifícios, das resoluções e das dúvidas. A atitude dele é de como quem diz: “Já sofri muito e talvez tenha muito por padecer, mas resolvi sofrer isso para atender à vontade de Deus. Nossa Senhora obteve d’Ele esta força, e eu sigo até o fim.”

Percebe-se isso na postura do corpo. A cabeça não está nem um pouco numa atitude de galo de briga; é uma posição normal, mas alta, não tem nada de cabeça “heresia branca”2, de nenhum modo. O corpo não está arqueado nem é preguiçoso, mas tem qualquer coisa de quem diz: “Não estou sequer fazendo força, porque todas as forças foram feitas. Está tudo consumado, chegarei até o fim.”

Ele poderia se chamar “o Bem-aventurado da grande resolução”.

É bonito compararmos um Santo com outro, não para saber qual é o maior, mas para ver as diversidades de brilho da graça conforme a alma. Considerem este Santo em face de seus adversários. A atitude dele é: “Eu vos combato, mas estou muito além de vós! Meus olhos pousam em outros horizontes e minha alma ama outras grandezas.”

Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, o Bispo de Olinda e Recife, é diferente. Ele olha para o adversário como quem diz: “Atrevido, que ousaste levantar-te contra o Senhor Deus dos Exércitos e contra a Imaculada Conceição de Maria. Eu te enfrento! Estou te combatendo e tenho o gáudio de estar te derrotando.”

O Beato Ezequiel polemiza, mas paira acima das polêmicas. Dom Vital não. Ele entra na polêmica como um tufão que leva tudo consigo. É outro modo de ser.

A Igreja se exprime assim, e ainda de muitos outros modos. Por exemplo, a face triste, inabalável, resoluta e angelical de São Pio X; a fisionomia batalhadora, desconfiada, férrea e dulcíssima de Santa Bernadete Soubirous. E assim poderíamos ir comparando as mil maneiras de brilhar a fortaleza católica. A do Bem-aventurado Ezequiel Moreno y Díaz é uma maneira altamente enlevante.    v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1980)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Canonizado em 11/10/1992.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.