De inquisidor a apóstolo do Peru

Felipe II, tendo conhecido um homem bom e virtuoso como São Toríbio de Mongrovejo, retirou-o das doçuras da sua piedade e nomeou-o Presidente da Inquisição na Espanha. Exercendo tão bem o seu cargo, foi sagrado Bispo de Lima, no Peru, onde combateu os costumes devassos e tornou-se o açoite dos maus padres.

No dia 23 de março comemora-se a festa de São Toríbio de Mongrovejo, cujos dados biográficos a seguir sintetizamos.

 

Em Granada, foi Presidente da Inquisição por cinco anos

São Toríbio nasceu em 1558 em Mayorga, Espanha, de uma nobre família. Desde a infância revelou amor pela virtude e um extremo horror ao pecado, ao lado de uma grande devoção à Santíssima Virgem. Cada dia recitava seu Ofício e o Rosário, e aos sábados jejuava em sua honra.
Com inclinação para os estudos, fê-los em Valladolid e Salamanca. Felipe II veio a conhecê-lo e, notando suas qualidades, o nomeou primeiro magistrado de Granada e presidente do Tribunal da Inquisição dessa cidade, cargo que exerceu de forma excepcional durante cinco anos. Vagando a Sé episcopal em Lima, no Peru, o soberano chamou-o para o cargo apesar de seus veementes protestos. Foi sagrado sacerdote e bispo, e assumiu o seu posto aos 43 anos de idade.
Sua diocese era imensa e os costumes dos espanhóis e outros conquistadores, ao lado do clero, deixavam muito a desejar.

Os selvagens por sua vez estavam abandonados ou eram perseguidos. São Toríbio não se deixou desanimar e resolveu aplicar as decisões do Concilio de Trento para reformar a região.

Em Lima, começou sua ação pela reforma do clero

Dotado de excepcional prudência, bem como de zelo ativo e vigoroso, começou pela reforma do clero, mantendo-se inflexível para qualquer escândalo que daí viesse. Tornou-se açoite dos pecadores públicos e protetor dos oprimidos. Foi duramente perseguido por isso.
Como alguns cristãos dessem à Lei de Deus alguma interpretação que favorecia os pendores desregrados da natureza, mostrou-lhes que Cristo era a Verdade e não um costume, e que em seu tribunal nossos atos seriam pesados não pela falsa balança do mundo, mas pela balança do Santuário.
Conseguiu o nosso santo o que queria e voltou-se à prática das máximas evangélicas com enorme fervor, principalmente com a chegada do virtuoso Vice-Rei Dom Francisco de Toledo.
Infatigável pela salvação da menor das almas de seu rebanho, não poupava nenhum trabalho. Protegeu os índios chegando a aprender, em idade avançada, vários de seus dialetos para poder ensinar-lhes o Catecismo. Toda essa atividade era iluminada por intensa vida de piedade, Missa, longa meditação, confissão diária, longas horas de oração e severas penitências. Sua prece era contínua, pois a glória de Deus era o fim de todas as suas palavras e ações.
São Toríbio caiu doente em Sana, uma cidade distante de Lima. Previu sua morte e distribuiu seus bens aos seus criados e aos pobres, repetindo sem cessar as palavras de São Paulo: “Desejo ser libertado dos laços de meu corpo para unir-me a Cristo.” Morreu dizendo com o profeta: “Senhor, em tuas mãos entrego meu espírito.” Era 23 de março de 1606, quando expirou o grande apóstolo do Peru.

 

Saiu das doçuras da sua piedade para ser o açoite dos hereges

É uma tão bonita biografia que quase não dá vontade de fazer comentários. Em todo caso, vamos tomar alguns aspectos desse assunto e considerá-los.
O primeiro deles, naturalmente, é a excepcional devoção desse Santo a Nossa Senhora. Todos nós sabemos bem que sem veneração enlevada à Virgem Maria não há santidade, a qual de algum modo existe na medida da devoção a Nossa Senhora. Passemos um pouco para a consideração de coisas do tempo.
Tão logo o Rei Felipe II notou esse homem tão piedoso, chamou-o para exercer o Poder Judiciário.
Imaginem que, em nossos dias, fosse publicada uma notícia dizendo: “O Presidente Fulano esteve em tal lugar e, ouvindo falar de um homem muito religioso que jejuava, fazia penitência todos os sábados, rezava o Ofício Parvo de Nossa Senhora, exclamou: ‘Oh, aqui está o magistrado!’” Ninguém acreditaria nessa notícia porque todo o mundo sabe que nenhum Chefe de Estado contemporâneo seleciona os homens verdadeiramente piedosos e religiosos.

Ora – maravilha das maravilhas! –, Felipe II encontrou um homem piedoso que não era, todavia, “heresia branca”1, e esse Monarca – também ele bem o contrário da “heresia branca” –, vendo

esse homem tão bom, chamou-o para um ramo especial do Judiciário que é a nossa bem-amada “Inquisição contra a perfídia dos hereges”. Ei-lo, então, transformado em perseguidor dos hereges. Esse varão sai das sombras do santuário, das doçuras da sua piedade, para ser o açoite dos hereges. E exerce tão bem o seu cargo que é nomeado Bispo de Lima, no Peru.

Isto significa, afinal de contas, toda uma atmosfera de uma época na qual a virtude era procurada, galardoada e considerada como um instrumento para o bom andamento do governo de um reino.

Implantou e consolidou os fundamentos do Reino de Cristo no Peru

Vê-se qual era o pensamento de Felipe II ao mandar para o Peru um homem como esse. O Rei, compreendendo muito bem toda a corrupção a que uma nação colonial estava sujeita, com a presença da elite na Espanha ou em Portugal e a vinda da borra para a América do Sul, sua preocupação foi a de tomar um homem eminente para implantar e consolidar os fundamentos do Reino de Cristo no Peru.

Essa atitude nos faz perceber melhor como havia da parte de Felipe II verdadeiro zelo na propagação da Fé. Há uns patoteiros por aí que dizem que Espanha e Portugal, quando fizeram o descobrimento, só se interessavam por dinheiro. O que lucrava monetariamente Felipe II em mandar um homem deste valor para o Peru, a fim de fazer uma reforma de caráter espiritual? Nada!
São Toríbio começa a agir e, porque é um Santo autêntico, sabe vergastar quando necessário e se transforma no açoite dos maus padres, reformando o clero. Sua ação é prestigiada por outro homem de altas virtudes, que Felipe II manda para o cargo de Vice-Rei do Peru: Dom Francisco de Toledo.Vemos, portanto, o grande Monarca, a quem Santa Teresa chamava de “nosso santo Rei Felipe”, nomear um santo bispo inquisidor e um virtuoso vice-rei. Quem é que ouve falar dessas coisas nos dias de hoje? Como nós caímos! Estamos numa tal decadência que achamos natural que esses excêntricos estejam por aí governando, dominando, mandando, falando, dirigindo…

Nós não compreendemos o fundo do abismo em que estamos, porque o normal é que um bispo seja como São Toríbio de Mongrovejo, e o poder político esteja entregue a um rei ou a um vice-rei virtuoso, não à “mercadoria” que vemos por aí. Mas nós até já perdemos a noção disso.
Então, devemos pedir a São Toríbio de Mongrovejo que nos obtenha a graça de lutar ativamente para derrubar esse estado de impiedade em que a normalidade parece um conto da carochinha, e esse horror que se vê por aí passa a ser o normal.
É, pois, a derrota da ordem revolucionária e o triunfo da Contra-Revolução que devemos rogar a este Santo que, como inquisidor, tanto lutou pela causa contrarrevolucionária. Do alto dos Céus, certamente ele ouvirá com benignidade e alegria a nossa prece.

(Extraído de conferência de 22/3/1966)

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

São Leandro, Bispo de Sevilha

Sem o auxílio da graça, o homem é incapaz de obter êxito em seu apostolado; porém, amparado por ela, consegue o inimaginável. Disto nos dá um belo exemplo São Leandro de Sevilha, o qual extirpou a heresia que havia quase dois séculos grassava na Espanha.

Os grandes movimentos da História, em geral, são impulsionados por homens a quem Deus concede uma grandiosa missão, comunicando-lhes seu espírito e sua força. Um destes homens foi São Leandro de Sevilha. Convertendo os godos e salvando uma nação inteira do jugo dos arianos, ele bem pode ser considerado um dos fundadores da Idade Média.

Acompanhemos com especial veneração sua ficha biográfica(1):

São Leandro nasceu em Cartagena, Espanha. Seus pais pertenciam à alta nobreza, e sua família estava repleta de santos. Um de seus irmãos, Santo Isidoro, sucedeu-o no trono episcopal de Sevilha; o outro, São Fulgêncio, foi Bispo de Cartagena. Sua irmã, Santa Florentina, tornou-se religiosa.

Quando era jovem ainda, São Leandro retirou-se para um mosteiro, tornando-se perfeito modelo de ciência e piedade. Seus méritos o levaram à Sé Episcopal de Sevilha, onde não diminuíram em nada as austeridades que praticava.

Quando Leandro foi nomeado bispo, parte do território espanhol estava dominada pelos visigodos arianos havia cento e setenta anos. Entregando-se imediatamente ao combate da heresia, o novo Bispo rezava e implorava o auxílio de Deus. O sucesso coroou seu zelo, e em pouco tempo a heresia já contava com menos adeptos.

Entretanto, Leovigildo, então rei dos visigodos, e também ariano, irritado com a atividade de São Leandro, e principalmente com a conversão de seu filho primogênito, condenou o santo ao exílio e o filho à morte.

Seu segundo filho, Recaredo, que vindo a ser um fervoroso católico, ao herdar o trono conseguiu a conversão de todos os seus súditos.

São Leandro dedicou-se a manter o fervor dos fiéis e foi a alma de dois grandes concílios: o de Sevilha e o de Toledo, os quais condenaram o arianismo.

Homem de ação, Leandro a todos inspirava o amor à prece, especialmente aos religiosos. Escreveu instruções admiráveis à sua irmã sobre o exercício da oração e o desprezo do mundo. Reformou a liturgia na Espanha.

Afligido por numerosas enfermidades, o apóstolo dos visigodos faleceu em 596.

A ação do Espírito Santo e a pujança da santidade

A ficha é riquíssima de aspectos passíveis de comentário. O primeiro deles é o florescimento de santos numa mesma família da alta nobreza espanhola: Santo Isidoro de Sevilha — um dos maiores santos da história da Espanha —, São Fulgêncio, Santa Florentina e São Leandro.

Vemos que beleza há na conjunção de tantos santos numa mesma estirpe. Com isso, Deus faz sentir a importância do fenômeno “estirpe” na formação dos santos e na realização dos planos da Providência.

Por outro lado, observamos a pujança de santidade existente naquela época. Trata-se de um dos mais belos fenômenos da História, onde inúmeros santos inauguraram o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo durante a Idade Média; fenômeno não atribuível a nenhum homem, a nenhuma Ordem religiosa, mas diretamente oriundo da ação do Espírito Santo.

De fato, a não ser por um verdadeiro sopro universal do Divino Espírito Santo, não seria possível o surgimento de tantas almas santas ao mesmo tempo.

Em pleno domínio dos bárbaros arianos…

Ao ser eleito Bispo de Sevilha, São Leandro encontrou-se diante do seguinte problema: havia cento e setenta anos, bárbaros hereges exerciam uma função dominadora na Espanha.

Ao contrário do que muitos pensam, a maior parte dos bárbaros não era pagã, mas sim ariana. Quando invadiram o Império Romano, muitas tribos bárbaras já haviam sido visitadas, em suas respectivas regiões, por um Bispo ariano chamado Úlfilas(2), o qual as perverteu para o arianismo.

Desta maneira, enquanto descendentes dos antigos cidadãos do Império Romano, os católicos eram os vencidos, os pobres, estavam por baixo e gemiam sob o jugo dos arianos, os quais, por sua vez, constituíam o povo novo, forte e vencedor.

…a Providência suscita São Leandro de Sevilha

São Leandro recebeu, então, da parte de Deus, a missão de derrubar o domínio ariano. De que maneira ele o fez?

Em primeiro lugar, chorando diante de Deus e pedindo, por meio de Nossa Senhora, os auxílios necessários para a tarefa que deveria realizar de modo admirável. Cônscio da incapacidade humana perante as tarefas apostólicas, São Leandro sabia que o homem não é senão um instrumento de Deus e de Nossa Senhora, os verdadeiros realizadores do apostolado. Assim, as conversões deram-se em número colossal e o poder ariano foi diminuindo graças às suas pregações.

Aspectos fugazes, porém importantes, se desvendam na vida de São Leandro, uma das maiores figuras da hagiografia e da história espanhola.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/2/1964 e 27/2/1967)

1) Butler, Alban. Lives of the Saints – With Reflections for Every Day in the Year.
2) Educado no Catolicismo, Úlfilas aderiu ao arianismo por ocasião de uma viagem a Constantinopla, onde Eusébio o sagrou bispo. Tendo voltado para o grêmio dos godos, dedicou-se à conversão de seus irmãos de raça à fé ariana.