Com Nossa Senhora não se brinca

Há certos temas que nos são tão familiares e caros ao coração que se tornaram objeto de inúmeros comentários de nossa parte. Porém, não poderíamos deixar passar o dia 13 de outubro sem determos um instante nossa atenção no assunto Fátima. Desta vez não vou comentar tanto a Mensagem quanto a atitude do mundo perante ela.

A Santíssima Virgem documenta a autenticidade de seu anúncio de dois modos. Em primeiro lugar, Ela a confia a pastorezinhos incapazes de compreender seu significado, limitando-se a repetir o que ouviram. Por vezes, discursos longos e complexos que eles transmitiam sem se contradizerem, mesmo submetidos a inquéritos policiais brutais.

De outro lado, Nossa Senhora produziu milagres que provavam à multidão ali reunida, e mesmo a gente de muito longe, que algo de sobrenatural se passara, como, por exemplo, a famosa “dança” do Sol. Tudo atestado por pessoas que moravam muito distante de Fátima.

Entretanto, chama a atenção no modo de o mundo receber a Mensagem de Fátima, não só a incredulidade de muitos à vista de episódios tão impressionantes, mas o fato de não se encontrar quem fizesse o seguinte comentário: tomada a Mensagem em si mesma, apenas pelo seu conteúdo, abstração feita de todos os prodígios que a cercaram, já havia todas as razões para admitir sua veracidade.

Quem conhecesse um pouco de Moral não podia duvidar que o mundo estava imerso num processo de pecados gravíssimos, cujo dinamismo permitia antever aonde levariam a humanidade.

Portanto, teologicamente falando, bastaria raciocinar um pouco para se ter a certeza de que, a não haver uma grande conversão, viria um castigo.

Assim, com um pouco de conhecimento da Teologia da História, ver-se-ia tratar-se de uma mensagem condizente com o que um homem de Fé, analista dos acontecimentos da época, dotado de alguma profundidade, deveria pensar.

Ora, as crianças transmitiram, assim, uma comunicação sábia e verdadeira em si mesma, de uma sabedoria e uma riqueza de conteúdo que excedia a capacidade delas. Logo, a mensagem é intrinsecamente verdadeira.

Em última análise, alguém que observasse o mundo daquele tempo à luz da Revolução e da Contra-Revolução distinguiria na Mensagem três aspectos: uma descrição teológica dos pecados daquele tempo, o anúncio de um castigo e a indicação dos meios de escapar deste, isto é, a penitência e a consagração ao Imaculado Coração de Maria.

A Porta da misericórdia é precisamente Nossa Senhora, chamada a Porta do Céu. Quer dizer, é ultra teológico que Ela tenha dito: “Cessem de pecar e recorram a Mim que obtenho a eliminação do castigo”. Nada mais razoável.

Contudo, a humanidade recebeu a Mensagem de Fátima com orgulho, quando ela exigia um ato de humildade, ou seja, que os homens reconhecessem: “Nós pecamos, andamos mal”. Exigia a emenda, o abandono da impiedade e da imoralidade na qual iam caindo. Por isso houve uma rejeição global em relação a essa Mensagem. Os resultados, vemos por toda parte.

Façamos um exame de consciência. Temos os olhos suficientemente abertos para a Mensagem de Fátima? Compreendamos que com Nossa Senhora não se brinca, e peçamos a Ela que tenha pena de nós(*).

Plinio Corrêa de Oliveira

* Excertos da conferência de 13/10/1970.

 

Fátima, profetismo e mudança de mentalidade

A devoção a Nossa Senhora de Fátima se desdobra em duas outras invocações: Nossa Senhora do Carmo e Imaculado Coração de Maria. Assim, naquele conjunto de fatos nos quais se inserem as aparições em Fátima, a Santíssima Virgem quer ser venerada também por meio desses dois títulos. Que relação têm eles com o assunto Fátima?

Nossa Senhora do Carmo está relacionada com o Monte Carmelo e, portanto, com o Profeta Elias e toda a família de almas que, passando por São João Batista e chegando  até São Luís Grignion de Montfort, representam o profetismo dentro da Igreja. Isso representa um convite a que tenhamos o espírito profético.

Outro é o significado de Nossa Senhora apresentar-Se sob o título de Imaculado Coração de Maria. O coração simboliza a mentalidade. Essa devoção supõe a renúncia à  nossa mentalidade revolucionária para assumirmos a participação na mentalidade do Imaculado Coração de Maria. Quer dizer, é o esmagamento do orgulho e da  sensualidade que são as duas raízes da Revolução. Sem dúvida, a Virgem Maria brilhou de um modo perfeito em todas as virtudes, mas aquelas que, a justo título, os  pregadores costumam pôr mais em realce são a humildade e a pureza. Isso corresponde, portanto, a assumir uma mentalidade contrarrevolucionária.

Há, pois, um sentido profundo na jaculatória que costumamos rezar: “Cor Sapientiale et Immaculatum Mariæ, opus tuum fac – Ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria,  realizai a vossa obra”.

O Coração Sapiencial de Maria é a mentalidade cheia de sabedoria da Mãe de Deus, oposta à demência revolucionária. Poder-se-ia dizer: “Coração contrarrevolucionário de  Maria”. “Opus tuum fac” significa que a completa mudança da alma para assumir a mentalidade de Nossa Senhora depende de uma iniciativa d’Ela. Corresponde, portanto, a pedir à Rainha dos corações que faça a obra específica de mudar a mentalidade dos homens.

Então, se quisermos ter uma devoção inteiramente refletida, ponderada a Nossa Senhora de Fátima, devemos desenvolver essa reflexão: Nossa Senhora de Fátima  acompanhada com uma impostação de alma rumo ao profetismo representado na Rainha do Carmo, e ao Sapiencial e Imaculado Coração de Maria enquanto Aquela que age nos corações dando às pessoas a verdadeira mentalidade que devem ter.

A realeza de Nossa Senhora, fato incontestável em todas as épocas da Igreja, veio sendo explicitada cada vez mais a partir de São Luís Grignion de Montfort, até aquele 13 de  julho de 1917, quando Maria anunciou em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará”. É uma vitória conquistada pela Virgem, é o seu calcanhar que outra vez  esmagará a cabeça da serpente, quebrará o domínio do demônio, e Ela, como triunfadora, implantará seu Reino. Portanto, devemos confiar em que Maria já determinou atender as súplicas de seus filhos contrarrevolucionários, e que Ela, Soberana do universo, pode fazer a Contra-Revolução conquistar, num relance, incontável número de almas. Nossa Senhora Rainha haverá de expulsar desta Terra os revolucionários impenitentes, que não querem atender ao seu apelo, de maneira que um dia Ela possa dizer: “Por fim o meu Coração Imaculado triunfou!”

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora, o céu e o mar: reflexos da beleza divina

E se fala a respeito da sabedoria do Criador, mostra-se quase sempre como as coisas estão concatenadas de tal forma que elas não se destroem, nem colidem umas com as outras, mas que coexistem com harmonia e mutuamente se apoiam. É uma visão funcional do universo inteiramente verdadeira, por certo, mas que mostra apenas um aspecto, que nossa época mecanicista e ultra técnica mais facilmente compreende.

Mas há um outro aspecto do Universo relacionado com Deus enquanto causa exemplar, enquanto Ser incriado e infinitamente belo, que se reflete de mil maneiras em todos os outros seres que Ele criou. De maneira tal que não há nenhum ser que, a um título ou outro, não seja um reflexo da beleza incriada de Deus. […]

O mar: exemplo do princípio da unidade na variedade

Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no Universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica da unidade e da variedade.

Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e a uma definição fria desses princípios, seria, talvez, mais interessante que os consideremos enquanto realizados em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos.

Comecemos pelo mar. Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre. Assim, numa orla do mar, em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida, que se estende diante de nós até as fímbrias do horizonte, não se encerra ali, e tem atrás de si imensidades a que se sucedem outras imensidades, para formar a grande e única imensidade do mar, que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da terra.

Mas, ao mesmo tempo que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.

Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranqüilidade e de quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender-se nosso espírito, como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis, para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder que existe no mais profundo dele, e que não se suspeitava nem um pouco nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heroicos da História.

Também há variedades estéticas no mar. Às vezes é ele tão claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes, ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros panoramas ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos fechados em que, por assim dizer, ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.

O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo que parece com a prosa de um velho amigo, que já muitas vezes se ouviu. Mas, pouco depois, ele nos fala com o bramido dominador de um rei, que quer impor a sua vontade a todos os elementos.

O modo por que ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante, outras vezes caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado, que se diria quase que ele se contenta em ver a terra sem tocá-la.

Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto, se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade.

Caracteres específicos da variedade harmônica

Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas oferecer em alto grau os caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.

Tais caracteres são: primeiro, essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Essa variedade, pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não soubesse ser, por exemplo, tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e do extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.

Essa variedade de oposição deve comportar uma certa simetria. Quer dizer, é necessário que, quando uma coisa tem um caráter levado a um extremo, no lado oposto ela chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa ser tão furioso em umas horas quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.

Mas, ao mesmo tempo, as variedade harmônicas das gamas intermediárias também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Estas situações de transição são tão harmônicas que nós, em determinados momentos, nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará obscuro? Não o sabemos dizer, porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas, que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.

Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso; mas quando se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição, tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos coexistentes no mesmo meio termo, tem-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários que o mar atravessa.

Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo ao outro, o mar não salta, mas passa sempre, com rapidez maior ou menor, por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Quando, porém, tal sucessão de matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo, e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis, que até excederam a precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.

Na abóbada celeste, a variedade do progresso

Há, por outro lado, uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas que é muito relevante no céu: a variedade do progresso.

Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite posta, de maneira tal que ele oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vai ganhando em colorido, em força e em majestade até chegar à gloriosa plenitude do meio dia. Em seguida, ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e, por fim, toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora.

Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aparências, que vão dos primórdios ao apogeu e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.

Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação das múltiplas formas da variedade em torno de um elemento ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do sol no firmamento. Em função dele, no céu todas as variedades não são senão fundos de quadro, que cooperam para o realçar de mil modos em toda a sua beleza.

Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente debaixo dos nossos olhos e que são esplêndidas semelhanças da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.

A beleza da santidade na mais alta das criaturas: Nossa Senhora

Mas sabemos pela doutrina católica que se a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito, assim também, já que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também imagens do homem. E que o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus, Nosso Senhor.

Desta maneira, essas regras

de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade, no homem, sim, e, pois, na mais alta de todas as meras criaturas: em nossa Senhora, que, com tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.

Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente, da qual nenhum de nós pode ter uma ideia exata. […] [Ela reúne] numa perfeita harmonia contrastes aparentemente irreconciliáveis: é a Virgem Mãe, chamada a Virgem das Virgens, que poderia, muito lícita e validamente, também ser chamada a Mãe das Mães. Ninguém mais plenamente Mãe, Mãe por excelência, do que Ela. Ninguém mais plenamente Virgem, Virgem por excelência, do que Ela também.

Em Nossa Senhora se encontra, outrossim, a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se nota bem no fato de que, sendo una, Ela se apresenta a nós na diversidade admirável das suas invocações. Ela é a Nossa Senhora da Paz, é a Nossa Senhora dos Prazeres, a Saúde dos enfermos, mas é também Nossa Senhora das Dores, Ela é Nossa Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo Auxílio dos cristãos, mas Refúgio dos pecadores; Ela é glorificada pela sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar nas aparições comentam a sua soberana majestade. Ela é Nossa Senhora que se apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata” (“como um exército em ordem de batalha”), mas, ao mesmo tempo, Ela é “Mater clementiae et misericordiae” (Mãe de clemência e de misericórdia).

Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes, diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado, e, com todas as suas forças, deve procurar amar e imitar.

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de “O Mensageiro Carmelitano”, de 15/5/59)

Diante de Fátima, duas famílias de almas

Ante as afirmações, de uma grandeza apocalíptica, feitas por Nossa Senhora aos três pastorinhos de Fátima em 1917, o mundo vai se dividindo cada vez mais em duas famílias de almas. Uma considera que a humanidade é presa de um feixe de erros e iniquidades, as quais começaram na esfera religiosa e cultural com o humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante. Tais erros se agravaram com o iluminismo e o racionalismo, culminando na esfera política com a Revolução Francesa. Do terreno político passaram para o campo social e econômico, no século XIX, com o socialismo utópico e o socialismo dito científico.

Com o advento do comunismo na Rússia, toda essa congérie de erros passou a ter um começo de transposição, incipiente, mas maciça, para a ordem concreta dos fatos, nascendo daí o império comunista, desde o coração da Alemanha até o Vietnã, e cuja unidade é indiscutível. Ao mesmo tempo, sobretudo a partir da Grande Guerra, a moralidade se pôs a declinar com rapidez espantosa no Ocidente, preparando-o para a capitulação ante o comunismo, o qual é a mais audaciosa expressão doutrinária e institucional da  amoralidade. Para incontáveis almas de todos os estados, condições de vida e nações, que adotam este modo de pensar, a mensagem de Fátima é tudo quanto há de mais coerente com a Doutrina  Católica e com a realidade dos fatos.

Há também outra família de almas para a qual os problemas do mundo contemporâneo pouca ou nenhuma relação têm com a impiedade e a imoralidade. Nascem eles exclusivamente de  equívocos involuntários resultantes de carências econômicas, e que uma boa difusão doutrinária e um conhecimento objetivo da realidade podem dissipar. Com o auxílio da ciência e da técnica a  crise da humanidade se resolverá. Não havendo, como nota tônica das catástrofes e dos perigos em meio aos quais nos debatemos, o fator culpa, a noção de um castigo universal se torna  incompreensível.

Entre essas famílias de almas há muitas gamas. À medida que qualquer das correntes intermediárias se aproxima de um polo ou de outro, para ela se vai tornando compreensível ou  incompreensível a mensagem da Santíssima Virgem. Fátima se encontra, pois, neste sentido, como um verdadeiro divisor de águas das mentalidades contemporâneas.

Dar-se-ão os acontecimentos previstos em Fátima, e ainda não realizados até aqui? Em princípio, não há como duvidar. Pois o fato de uma parte das profecias já se haver realizado com  impressionante precisão prova o caráter sobrenatural delas.

Sobreleva notar que, na Cova da Iria, Nossa Senhora formulou duas condições, ambas indispensáveis para que se desviassem os castigos com que Ela nos ameaçava: a consagração da Rússia ao  seu Coração Puríssimo e a divulgação da prática da Comunhão reparadora dos cinco primeiros sábados.

Há ainda outra condição, implícita na mensagem, mas também indispensável: a vitória do mundo sobre as mil formas de impiedade e de impureza que o vêm dominando. Tudo indica que esta  vitória não foi alcançada e, pelo contrário, nos aproximamos cada vez mais do paroxismo nesta matéria. E à medida que caminhamos para esse paroxismo, mais provável se vai tornando que  rumemos para a efetivação dos castigos.

A não serem vistas as coisas assim, a mensagem de Fátima seria absurda. Pois, se Nossa Senhora afirmou em 1917 que os pecados do mundo haviam chegado a tal cúmulo que clamavam pelo  castigo de Deus, não pareceria lógico que esses pecados continuassem a crescer, o mundo se recusasse obstinadamente e até o fim a ouvir o que lhe foi dito em Fátima, e o castigo não viesse.

Desde que não se operou no orbe a imensa transformação espiritual pedida na Cova da Iria, vamos cada vez mais caminhando para o abismo, e aquela transformação se vai tornando sempre mais  improvável(*).

 

* Cf. Bifurcação do mundo, em Última hora, 4/6/1982.

SANTOS JACINTA E FRANCISCO, modelos de aceitação do sofrimento

Vinte de fevereiro, dia da morte de Jacinta Marto, foi a data escolhida pelo Papa João Paulo II para que a Igreja celebrasse a festa da jovem pastora de Fátima e do seu irmão, Francisco, aos quais Nossa Senhora apareceu em 1917. Ao recordar essa piedosíssima morte, Dr. Plinio teceu valiosos comentários sobre o papel do sofrimento na existência humana.

Como se sabe, dos três videntes, dois morreram pouco depois das aparições, conforme a promessa da Santíssima Virgem: Francisco e Jacinta. Ambos deviam ir para o Céu. Antes disso, porém, haveriam de cumprir nesta Terra duas missões diferentes. A de Jacinta era rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, enquanto a de Francisco consistia numa reparação ante a tristeza de Nosso Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados do mundo, que tinham motivado a mensagem de Fátima.

A importância do sofrimento humano nas grandes obras de Deus

A missão de Jacinta nos revela a necessidade de vítimas expiatórias que contribuíssem com a sua dor e o sacrifício de sua vida — as duas crianças morreram em circunstâncias  extraordinariamente difíceis e dolorosas — para que as palavras de Nossa Senhora encontrassem terreno fértil nos corações dos homens, dando todos os frutos por Ela desejados.

Compreende-se, pois, como esse apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível, e como abre os caminhos para a Igreja. Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do  sofrimento humano.

Sem ele, nada de grande se faz.

Certa vez, um talentoso pintor expôs um de seus quadros que retratava Nosso Senhor como Bom Pastor batendo à porta de uma choupana. A pintura, tocante e piedosa, atraía muitas atenções. Em determinado momento, um visitante julgou notar um defeito no quadro, e disse ao artista: “O senhor cometeu um erro de execução, pois a porta dessa cabana não tem fechadura”. Sorrindo, o pintor lhe respondeu: “É verdade. Isto, porém, não foi um erro. Esta porta simboliza a porta do coração humano, onde Nosso Senhor vem bater. Ela não possui fechadura no lado de fora, mas somente no de dentro, para significar que há certos tipos de abertura de alma onde ninguém consegue intervir: ou a alma toma a iniciativa de se abrir, ou permanecerá fechada”.

Ora, o modo de se obter que as almas fechadas se abram é exatamente por meio da oração, dos sacrifícios e das dores que a Providência dispõe em nossas vidas. É por meio do carregar  amorosamente a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, compreendendo que assim se cumpre a superior vontade divina. Essas são as almas decisivas na História, e que levam a cabo as grandes obras
de Deus.

Claro está que não se trata de um sofrer meramente passivo, mas também de um sofrer ativo. O que significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, rompendo  com aqueles que prejudicam nossa alma.

Significa arrostar a opinião dos outros, aceitando ser posto em situações difíceis e contrafeitas. Significa, enfim todo o sofrimento da batalha mais intrépida, mais ousada e mais repleta de determinação. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência.

O contrário do mito do “happy end”

Não nos esqueçamos, porém, de que, se todas as formas de sacrifícios são agradáveis a Nossa Senhora, o que mais deseja Ela receber dos homens é virtude. Acima dos sofrimentos, Lhe compraz oferecermos a Ela a retidão e a pureza de nossa alma. Se quisermos de fato pesar nas deliberações da Providência, devemos apresentar a Ela almas contritas e humilhadas, almas que se tornem pequenas diante de Deus, renunciando a toda forma de orgulho, vanglória e vaidade, para se mostrarem diante d’Ele como realmente são. Reconhecendo a sua própria impotência, pelas vias naturais, para corrigir os seus defeitos; e, portanto, implorando o auxílio de Maria, para que Ela por nós interceda e nos alcance a tão esperada conversão.

E isto exatamente nos é dito pelo sacrifício de Jacinta. Devemos, portanto, pedir a ela que nos obtenha de Nossa Senhora esse senso de sofrimento, indispensável para que qualquer católico seja verdadeiramente um fiel generoso e dedicado.

Essa aceitação da cruz é contrária ao mito do homem moderno, que se reflete na mentalidade do “happy end”, segundo a qual tudo é alegria, tudo é luz, e o padecimento é uma espécie de bicho de  sete cabeças irrompendo estouvadamente na vida das pessoas.

A verdade é outra: uma existência sem cruzes, pouco vale. São Luís Grignion de Montfort chega mesmo a afirmar que, vendo-se alguém poupado pelos sofrimentos, deve — após judiciosa  orientação de seu diretor espiritual — pedi-los a Deus, fazer romarias e rezar com empenho nessa intenção, pois sua salvação eterna pode estar correndo um risco não pequeno.

Mais do que nunca, a necessidade de sacrifícios

Análogas considerações poderiam ser feitas a propósito da missão de Francisco, isto é, a de reparar os Sacratíssimos Corações de Jesus e de Maria pelos pecados e ofensas contra Eles cometidos na face da Terra.

Ora, de 1917 até nossos dias, a maré montante dos pecados não fez senão crescer de modo incomensurável: pecados individuais, pecados públicos, pecados das nações, pecados das instituições, etc.

Tal constatação nos obriga a concluir que, se a ofensa cresceu, a reparação também se faz mais necessária e mais intensa no que ela tem de mais excelente, ou seja, alimentar em nossas almas a indignação pelos ultrajes que são feitos ao Coração Imaculado de Maria; acrisolar nosso desejo de sermos instrumentos de Nossa Senhora para a implantação de seu Reino sobre a Terra.

Devemos pedir ao Francisco que nos obtenha esse espírito, esse ardoroso anelo de assim reparar o Coração Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Frescor de alma na espera

Durante uma longa espera de algo que se deseja muito, por vezes ocorre o seguinte: primeiro, um susto por não ter recebido; depois a vontade aumenta e não só se vence o espanto, mas o desejo se multiplica pelo desejo, a ponto de se tornar abrasado. Quando não se recebe ainda, a situação passa além de todo meridiano e fica-se com uma vontade por assim dizer trans sonora que canta diante de Nossa Senhora continuamente a súplica daqueles que emudeceram de tanto querer.

Neste caso estão aqueles que há muitas décadas anseiam pela realização das promessas de Fátima. Só se pode encontrar um paralelo para isso: é dos homens que vão esperar a vinda de Nosso Senhor no fim do mundo, dos quais está dito que se esses dias não fossem abreviados, nem eles perseverariam.Esses sofrerão tanto com a espera que, segundo alguns intérpretes das Sagradas Escrituras,serão poupados da morte, tal o tormento deles e tal o desejo de Deus de glorificá-los por terem passado por um sofrimento equivalente à morte.

Nós passamos propriamente pela prova da espera porque se tivéssemos, de um momento para outro,a declaração de que o desejo será realizado em tal data, nós exultaríamos e reverdejaríamos. Porém, Nossa Senhora não nos comunica isso.

Para a espera ser assim premiada é preciso que seja perfeita. E a espera perfeita não é apenas a que chega até o dia da realização da promessa, mas sim aquela na qual a alma arde mais ou menos como a sarça ardente vista por Moisés, a qual o fogo queimava sem destruir.

É preciso que a alma seja queimada pelo desejo da vinda dos acontecimentos e pelo tormento da espera, sem perder com isso nada de seu verdor, de sua indestrutível juventude. Espere com o frescor de alma do primeiro momento, de maneira que as sucessivas desilusões não crestem a alma.

Como fazer para que a espera não nos creste a alma? Ser incondicional com Deus no modo de esperar.

Há dois modos de se colocar diante da eventual proximidade do cumprimento das promessas. Um é o de quem diz: “Virá, e eu não tolero a ideia de que não venha logo”. Neste caso, se não vier, a alma cresta um pouco.

Outro é: “Virá, e é provável que seja em breve, certeza não tenho. Porém, de Deus tolero tudo, porque Ele é meu Senhor. Ele e minha Mãe celeste dispõem de mim como quiserem. Se dispuserem outra delonga, eu a bendirei e andarei com paz nas sombras da demora, certo de estar fazendo a divina vontade”.

Assim o frescor da alma até se revigora, por ser o fruto da obediência incondicional.

Contudo, se alguém receia já não ter conservado esse frescor de alma, poderá dirigir a Deus esta oração:

“Meu Deus, não aceitei de Vós o caminho que passava pela inteira obediência. Deixai-me ao menos aceitar a via que passa pela punição justa. Adoro vossa infinita perfeição enquanto tendo me castigado, pois eu merecia. Mas Vós me destes por Advogada a Mãe de Misericórdia. A Ela eu suplico que tenha pena de mim, ‘desencrespe’ minha alma e a restaure.”

Com isso poderemos nos revigorar, pois para os que tiverem qualquer grão de esperança haverá sempre uma enorme possibilidade de salvação.

Peçamos a Nossa Senhora que nos dê esse grau de esperança flexível e íntegra que nunca se cansa nem se cresta; essa contrição perfeita que adora o castigo, a intransigência e a repulsa de Deus, mas recorre confiante à Mãe de Misericórdia

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações de Jacinta e Francisco por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

 

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1).

A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia.

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados!  Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:

— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?

— Então, pediram-me tanto!…  — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:

— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:

— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:

— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:

— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:

— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:

— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas.

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. 

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Jacinta e Francisco: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:

— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:

— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:

— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos videntes de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

 

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.

Fátima

Maio de 1944. A Segunda Guerra mundial convulsionava largas regiões do globo. Havia pouco, Dr. Plinio tomara conhecimento da mensagem de Nossa Senhora em Fátima, vendo logo, na correspondência da humanidade a ela, o único meio de interromper a decadência da civilização. O jovem líder católico utilizou, então, as páginas do “Legionário” para analisar pela primeira vez os acontecimentos da Cova da Iria. Pôs empenho em destacar a integridade moral de Lúcia e dos Bem-aventurados Jacinta e Francisco, como ponderável argumento em prol da autenticidade das aparições.

Há pouco menos de 30 anos, a primeira conflagração mundial caminhava para seu declínio. Contido o ímpeto inicial da invasão teutônica, os franceses se dispunham a reconquistar o território perdido. Para os políticos de alto bordo e os observadores militares, já não era duvidoso o êxito final da luta. Toda a estratégia alemã se baseara na esperança do triunfo da “blitzkrieg” (guerra relâmpago). A primeira cartada se jogaria com imensas possibilidades de êxito. Mas era a única. Os alemães a tinham perdido. O resto, para os aliados, era apenas questão de tempo. Os financistas, os sociólogos, os politiqueiros, já começavam seu burburinho de antecâmaras e bastidores, para saber como o mundo se reorganizaria no após-guerra. E isto enquanto nos campos de batalha a luta ainda ia acesa, e os canhões germânicos troavam não muito longe de Paris.

Esse burburinho tinha real importância. Tinha, mesmo, muito mais importância do que o troar dos canhões. Nos campos de batalha, se liquidava uma guerra já decidida “in radice”. Nos gabinetes, não se liquidava uma guerra, mas se elaborava uma nova era. O futuro já não estava na retranca das metralhadoras, mas nos “pourparlers”(negociações) dos bacharéis e dos técnicos.

Grande Jato da história contemporânea

Quando começavam a delinear-se apenas, timidamente, as primeiras linhas desse mundo novo, verificou-se um dos fatos mais consideráveis da história contemporânea. Em nosso mundo são muitos os céticos que não acreditam nesse fato. Os que não são céticos são tímidos, e não ousam proclamar os fatos em que acreditam. Uns por falta de Fé, outros por falta de coragem, não ousam incorporar à história contemporânea esse acontecimento. Mas, os mais graves motivos sobre que a inteligência humana pode basear-se aí estão patentes, a atestar que Nossa Senhora baixou dos céus à terra, e que manifestou a três pequenos pastores de um recanto ignorado e perdido do pequeno Portugal, as condições verdadeiras, os fundamentos indispensáveis para a reorganização do mundo. Ouvida essa mensagem, a humanidade encontraria verdadeiramente a paz. Negada, ignorada essa mensagem, a paz seria falsa e o mundo emergirá em nova guerra. A guerra veio. A guerra aí está. Cogita-se agora, como há 30 anos atrás, de reorganizar novamente o mundo. Nenhum momento é mais oportuno do que este, para recordar a aparição de Nossa Senhora em Fátima. E isto tanto mais quanto, há precisamente três dias, a Igreja celebrou a festa litúrgica de Nossa Senhora de Fátima.

Analisemos primeiramente o fato.

Lúcia, Francisco e Jacinta eram três pastores como os há tantos em Portugal. Educados em zona inteiramente isolada dos miasmas contemporâneos, conservam intacta a flor de sua inocência batismal, e, à falta de cartilhas e de grupos escolares, desenvolviam sua personalidade, sua formação, sua virtude, em contato com as belezas do campo, com os encantos da arte e da música popular de sua terra, com a suave austeridade dos ensinamentos cristãos recebidos dos lábios de suas mães, ou do singelo e piedoso magistério do Pároco da aldeia. Neles, como em todos os filhos da Igreja, era generoso o ânimo com que lhe correspondiam. Não passavam porém de três excelentes crianças, que cumpriam seus deveres, rezavam com uma piedade sincera à qual não era alheia por vezes certa preguiça, e passavam seus dias guardando conscienciosamente os rebanhos paternos.

Foi num dia destes, igual a todos os outros, que se manifestou para eles a primeira aparição, à qual depois muitas outras se seguiram. Eram crianças tão extremamente simples e ignorantes, que seriam incapazes de forjar qualquer quimera que por fim os sugestionasse. Quando vieram as primeiras aparições, nem sabiam com Quem tratavam. Descrevendo maravilhados a Pessoa que lhes aparecera, retratavam por suas palavras uma figura de uma elegância, uma majestade, uma nobreza que sua imaginação de pequenos pastores nunca teria podido forjar gratuitamente.

Autenticidade dos três mensageiros

Imediatamente se abateu sobre eles uma verdadeira perseguição. Estiveram na cadeia, foram ameaçados de morte, e até conduzidos ao lugar de seu suposto suplício; portaram-se com a dignidade dos mártires do Coliseu. Depois, foram objeto dos agrados indiscretos e frenéticos da multidão. Conservaram-se, no meio deste triunfo, sóbrios, simples, desinteressados como um Cincinato(1). Interrogados muitas vezes em separado, com mil artifícios destinados a induzi-los ao exagero, ou à diminuição da verdade, sempre souberam conservá-la íntegra.

Dois deles morreram ainda na infância, Jacinta e Francisco. Jacinta profetizou sua morte, quando nada faria suspeitar um fim tão prematuro. E ao morrer como dissera, fê-lo afirmando a verdade das revelações. Francisco também testemunhou  a  verdade   do que vira, até morrer. Lúcia não morreu, mas tomou o hábito religioso. Pertence hoje à Congregação das beneméritas Irmãs Doroteias [transferiu-se depois para o Carmelo], e com sua responsabilidade de Esposa de Jesus Cristo confirma plenamente na idade adulta as afirmações que fizera em sua juventude. Ela estaria em pecado mortal, se não desmentisse as visões, no caso de as ter falseado de parceria com seus pequenos primos. Ela recebe, entretanto, continuamente o Santo Sacramento com a tranqüilidade dos justos. Essas são as testemunhas. O selo do martírio, o prestígio da inocência, a dignidade do hábito religioso, lhes asseguram a veracidade.

Realmente, quando, diante de uma multidão calculada em milhares de pessoas, os pequenos pastores sustentavam que estavam vendo Nossa Senhora, não mentiam. Tudo em sua vida no-lo atesta. Até sua ignorância serve de credencial a esses pequenos arautos. Crianças que ao tempo das aparições nem sabiam quem é o Papa, não poderiam inventar o que disseram, como um analfabeto não inventa uma teoria de trigonometria, ignorando até as quatro operações da aritmética.

Majestade e beleza da Senhora

Examinados os mensageiros, analisemos a Senhora que lhes deu a mensagem. Faça-se um teste: tomem-se várias crianças em separado, e mande-se-lhes que fantasiem a título de composição literária uma aparição de Nossa Senhora, descrevendo seu semblante, seu traje, suas expressões fisionômicas, seus gestos, anotando-lhe as palavras, o que sairia de tudo isto? Quanta coisa infantil, quanta concepção grotesca, quanto pormenor francamente ridículo!

O nível de instrução das crianças de Fátima era incomparavelmente inferior ao de uma criança de cidade. Não conheciam teatros nem cinemas, não tinham visto livros com figuras representando rainhas, senhoras de corte dos tempos antigos, etc. Não tinham, pois, outra ideia de beleza, elegância e distinção, que não a que filtrava até elas em que luscofusco! através dos tipos femininos que viam em redor de si na aldeia. Não possuíam a menor noção da beleza própria aos vários coloridos e a suas respectivas combinações. Tudo isto não obstante, a Senhora que lhes aparece, eles a descrevem com pormenores suficientes para se ver que era uma figura de sublime beleza, trajada com uma rara majestade e simplicidade. Senhora, aliás, tão diferente de tudo quanto eles conheciam em matéria de imagens, que não suspeitariam que fosse Nossa Senhora, e nem sequer uma Santa. Foi só quando a Senhora se declarou, que souberam com Quem tratavam.

Essa Senhora lhes disse coisas muito elevadas. Falou-lhes da guerra, falou-lhes do Papa (que Jacinta, a menor, não sabia que existisse), falou-lhes da pureza dos costumes e do respeito aos domingos, falou-lhes de política e de sociologia. E essas crianças repetem a mensagem com uma fidelidade extraordinária!

Realmente, como diz a Escritura, Deus tira para si, “da boca das crianças, um louvor perfeito”.

Mensagem absolutamente ortodoxa

É o momento de considerarmos a mensagem. Antes de tudo, notemos que ela é absolutamente ortodoxa. Não é fácil inventar uma mensagem ortodoxa. Muito figurão “católico” que serve para discursos de inauguração, de luto, etc., etc., etc., toma um cuidado tremendo para não preparar um discurso que cheire a heresia… e solta duas ou três heresias em seu discurso. Ora, todas, absolutamente todas as palavras da Senhora aos pequenos Pastores são de uma ortodoxia absoluta. Tratando temas complexíssimos, Ela nem uma só vez erra em doutrina. Positivamente, isto não poderia ser invenção de pequenos pastores.

Mas há mais. A mensagem da Senhora, que sobreveio precisamente no momento crucial em que se preparava o após-guerra, desprezando as manifestações aparatosas de falso patriotismo e de cientificismo dos “técnicos”, colocou com grande simplicidade todas as coisas em seus termos únicos e fundamentais. A guerra fora um castigo do mundo, por sua impiedade, pela impureza de seus costumes, por seu hábito de transgredir os domingos e dias santos. Isto resolvido, todos os assuntos se resolveriam por si. Isto não resolvido, todas as soluções nada resolveriam… E se o mundo não ouvisse a voz da Senhora, se ele não respeitasse esses princípios, nova conflagração viria, precedida de fenômeno celeste extraordinário. E essa conflagração seria muito mais terrível que a primeira.

Desprezo, mais pecados e novo castigo

Reuniram-se os técnicos …. “et convenerunt in unum adversus Dominum” (e decidiram por unanimidade contra o Senhor). Construíram uma paz sem Cristo, uma paz contra Cristo. O mundo se afundou ainda mais no pecado, a despeito da mensagem de Nossa Senhora. Em Fátima, os milagres se multiplicavam, às dezenas, às centenas, aos milhares. Ali estavam eles, acessíveis a todos, podendo ser examinados por todos os médicos de qualquer raça ou religião. As conversões já não tinham número. E, tudo isto não obstante, ninguém dava ouvidos a Fátima. Uns duvidavam sem quererem estudar. Outros negavam sem examinar. Outros criam mas não tinham coragem de o dizer. A voz da Senhora não se ouviu. Passaram-se mais de vinte anos. Um belo dia, sinais estranhos se viram no céu… Era uma aurora boreal, noticiada por todas as agências telegráficas da terra. Do fundo de seu convento, Lúcia escreveu a seu Bispo: era o sinal, e dentro em breve a guerra viria. A guerra veio dentro em breve. Ela está aí, e hoje se cuida novamente de “reorganizar o mundo”, aos últimos clarões desta luta potencialmente já vencida.

Não endureçamos nossos corações…

“Si vocem ejus hodie audieritis, nolite obdurare corda vestra – se hoje ouvirdes sua voz, não endureçais vossos corações”, diz a Escritura. Inscrevendo a festa de Nossa Senhora de Fátima no rol das celebrações litúrgicas, a Santa Igreja proclama a perenidade da mensagem de Nossa Senhora dada ao mundo através dos pequenos pastores. No dia de sua festa, mais uma vez a voz de Fátima chegou a nós: não endureçamos nossos corações, porque só assim teremos achado o caminho da paz verdadeira.

 

(Transcrito do “Legionário”, nº 614, 14/5/1944. Subtítulos nossos.)

1) Romano célebre pela simplicidade e austeridade de seus costumes.

Não endureçamos nossos corações

“Hodie si vocem eius audieritis, nolite obdurare corda vestra — se hoje ouvirdes sua voz, não endureçais vossos corações” (Sl 94, 7-8), diz a Escritura. Inscrevendo a festa de Nossa Senhora de Fátima no rol das celebrações litúrgicas, a Santa Igreja proclama a perenidade da mensagem de Nossa Senhora dada ao mundo através dos pequenos pastores. No dia de sua festa, mais uma vez a voz de Fátima chegou a nós: não endureçamos nossos corações, porque só assim teremos achado o caminho da paz verdadeira.

(Transcrito do “Legionário”, nº 614, de 14/5/44)

O Deus das vinganças está se aproximando e vai vencer

Não podemos considerar que os castigos preditos por Nossa Senhora em Fátima estão por se realizar, pois já começaram a acontecer. O que está ocorrendo com a Igreja é, segundo toda a evidência, um castigo.

A Igreja é o centro do gênero humano, a entidade que a Santíssima Virgem mais ama na Terra. Se o castigo começou na parte mais nobre, que é a Igreja, não tem todas as razões para temer esse castigo a parte inferior, a sociedade civil, se esta persevera no mal?

 

Devemos fazer um comentário a respeito de Nossa Senhora de Fátima, tema tantas vezes tratado entre nós e que, entretanto, precisa ser comemorado sempre com uma especial solenidade.

De 1917 para cá, o mundo piorou espetacularmente

Dos múltiplos aspectos que o acontecimento de Fátima desperta, creio haver um que vem mais a propósito assinalar no presente comentário. Antes de tudo, devemos considerar nesse acontecimento – o qual está revestido de um caráter profético –, como traço saliente no meio de todos os aspectos, o fato de Nossa Senhora ter prometido ao mundo misericórdia se houvesse emenda de vida e fosse feita a consagração pedida por Ela; e, ao mesmo tempo, ameaçando com castigos caso o mundo não se emendasse e não se realizasse essa consagração. Esse esquema, que é a essência das revelações de Fátima, é também a substância de várias profecias do Antigo Testamento.

Em relação ao povo judeu e seus inimigos, vários profetas se levantaram tendo exatamente a mesma linguagem e apresentando esta mesma alternativa: bênção e louvores caso se emendassem, castigo se não se convertessem.

Já a ameaça é um ato de misericórdia, porque Nossa Senhora adverte por bondade, para não castigar, como uma mãe que, não querendo punir o filho, diz: “Não faça tal coisa, porque se fizer, eu serei obrigada a castigar”. Como quem afirma: “Ameaço não porque eu esteja com vontade de punir, mas porque sua situação é tal que, a perseverar nela, apesar de minha misericórdia, serei obrigada a castigar”.

Várias profecias são assim, e Nossa Senhora fez tipicamente em Fátima uma profecia, segundo esse esquema.

Passaram-se, de 1917 para cá, cinquenta e dois anos. Ao longo desse tempo, tudo quanto afligia Nossa Senhora em Fátima, e do que Ela se queixou no procedimento do mundo contemporâneo, não só não melhorou, mas piorou espetacularmente.

O castigo já começou com o que está ocorrendo com a Igreja…

Quando temos em vista que nos encontramos, portanto, na pista do castigo, não podemos deixar de entender que essa fabulosa crise que se desenrola na Igreja está na linha desse castigo. Porque, quando consideramos uma entidade como a Igreja, que está sendo castigada – pois o que está ocorrendo com a Igreja é, segundo toda a evidência, um castigo –, e vemos que a Santíssima Virgem prometeu uma punição ao mundo, do qual essa entidade é o eixo, entendemos que, atingindo o eixo, a punição atinge toda a circunferência e, portanto, essa crise que lavra dentro da Igreja está compreendida, implícita ou explicitamente, nos castigos profetizados em Fátima.

Agora, poderíamos nos perguntar se esta situação dentro da Igreja não foi realmente prenunciada em Fátima . Se Nossa Senhora tivesse prenunciado em Fátima o castigo da Igreja, é certo que isso teria sido mantido secreto. Ora, há um segredo que ainda está sendo mantido, o que leva a crer ser esse um dos elementos do segredo. A Santíssima Virgem deve ter dito coisas muito duras a respeito do futuro da Igreja e do clero. E porque não se deu importância a isso, naturalmente aconteceu o que Ela prometeu.

…e virá também a punição do mundo

Então, em vista disso, não podemos considerar que os castigos preditos por Nossa Senhora em Fátima estão por se realizar, mas nós devemos julgar que já começaram a acontecer. Quer dizer, é um sistema de castigos, um processo punitivo que já se desencadeou . E tendo se desencadeado, é muito mais provável admitir que ele chegue até o fim do que pare.

A Igreja é o centro do gênero humano, uma sociedade espiritual, o que há de mais elevado entre os homens; e toda a História gira em torno dela. A Igreja é o que Nossa Senhora mais ama na Terra. A salubridade da Igreja é a condição para a salubridade de todas as coisas morais e espirituais nesta Terra.

Destaco estes dois traços: o que a Santíssima Virgem mais ama na Terra é a Igreja, primeiro traço. Segundo: a salubridade da Igreja é condição para a salubridade de todas as coisas da Terra. Ora, se considero o primeiro traço, vejo que Nossa Senhora castigou aquilo que Ela mais ama. Será que Ela poupará todo o resto, que também não está se emendando? Se o castigo começou na parte mais nobre e que menos deveria recear, que é a Igreja, não tem todas as razões para temer esse castigo a parte mais vil, se esta persevera no mal?

Então, o castigo da Igreja nos faz ver que seria muito de espantar se não viesse a punição para o mundo.

O segundo aspecto da questão é a salubridade da Igreja, como condição da sanidade de tudo. Ora, a Igreja está insalubre como nunca na História. É possível que o mundo não seja contaminado com essa insalubridade?

Portanto, precisamos ver já em curso todos os castigos profetizados por Nossa Senhora. Isso deve nos levar a preparar as nossas almas para crer na mensagem de Fátima.

Processo punitivo que está chegando ao seu paroxismo

Eu repito esquematicamente o raciocínio.

Primeiro ponto: a mensagem de Fátima é uma profecia. Não é uma profecia oficial, como foi a dos profetas do Antigo Testamento, do Apocalipse, mas é uma profecia autêntica com todas as características de uma profecia: a denúncia de um estado altamente censurável, um convite amoroso a abandonar esse estado, uma ameaça e, mais do que isso, a previsão de um castigo caso esse estado de coisas não seja abandonado.

Segundo ponto: essa profecia, no que ela tem de público, não fala de um castigo à Igreja, ou pelo menos não trata de um modo frisante, saliente, de um castigo à Igreja, mas sim de um castigo para o gênero humano. Fala a certa altura que o Papa vai ter muito de sofrer, porém não diz diretamente que os sofrimentos do Papa são por causa dos pecados da Igreja.

Mas a profecia tem um aspecto secreto, um segredo. Ora, nós vemos que a Igreja foi e está sendo duramente castigada. Nossa Senhora não terá falado desse castigo da Igreja? Naturalmente sim. Pois quem fala de castigo para o mundo, é normal que fale do pior desse castigo que é o castigo para a Igreja. Logo é sumamente provável, tudo leva a crer que o castigo da Igreja seja um dos elementos da profecia de Fátima.

Se isto é verdade, a profecia de Fátima não está para se cumprir, mas já começou a se realizar. Sendo assim, devemos nos perguntar se há razões para esperar que esse processo punitivo se detenha.

Então, a resposta é: se esse processo está chegando, quase se diria, a seu termo, ao seu paroxismo em relação à parte mais amada e mais nobre, por que não chegará também ao seu paroxismo em relação à parte menos nobre e menos amada, que é a sociedade civil? Enormemente amada, mas menos do que a Igreja. Tanto mais que a sociedade civil não se emendou. Ela persevera no pecado.

Depois, quando a Igreja está insalubre, o mundo se torna insalubre. E esta insalubridade do orbe chegou a tal ponto que tem de trazer uma convulsão suprema para o mundo. Portanto, nós devemos dizer que começou já na Igreja e, por causa disso, estão postas as causas por onde é inevitável que atinja a sociedade civil. Então, não é só dizer que o castigo já começou, mas começou na sua raiz. E quem golpeia a raiz, golpeia a árvore toda. É assim que nós devemos ver a profecia de Fátima.

Alegria porque afinal de contas o Reino de Maria vai chegar

Alguém poderá dizer: “Dr . Plinio, o que eu não compreendo é o seguinte. Dia de Nossa Senhora de Fátima é dia de nossa Mãe, dia da ternura, do afeto. Ao invés de tratar da ternura e do afeto d’Ela, o senhor nos mostra Nossa Senhora numa análise seca da profecia d’Ela, para tirar algo que nos atormenta, que nos estremece. É esta a festa de uma mãe?”

Eu afirmo o seguinte: qual é o modo de festejar um profeta a não ser por um ato de fé na sua profecia? Foi por amor que a Santíssima Virgem revelou tudo isso. Ela nos dá a possibilidade de admirar os altos desígnios de Deus, de contemplá-Lo enquanto Regedor de toda a História, como Autor de todos os movimentos que se fazem na História, inclusive enquanto Ele permite o mal, para daí tirar para Si sua maior glória. Há, portanto, mil razões que não cabem numa conferência, para nos enlevarmos com isso e adorarmos a Deus.

Mas, uma vez que Nossa Senhora falou, não há melhor ato de reconhecimento às palavras amorosas d’Ela do que procurarmos entender essas palavras e tomá-las a sério. E por isso uma comemoração séria do dia de Fátima é uma análise séria da profecia.

Oxalá, a Santíssima Virgem, na alma de cada um de nós, dê as graças por onde isso frutifique naquela espécie de alegria, de entusiasmo, de desprendimento que a certeza da realização da profecia dá. Porque há uma graça própria a essa realização por onde ela não atormenta, não apavora, nem sequer é recebida com uma fria indiferença, mas enche de alegria. É uma forma de zelo pela Lei e pela glória de Deus, por onde se tem um alívio de ver que, afinal de contas, o Deus das vinganças está se aproximando e vai vencer, e que o Reino de Maria vai chegar. É a única forma de alegria que enche a alma do contrarrevolucionário que abnegou completamente a si mesmo. É essa alegria que eu desejo a todos nesta data. Vamos rezar a ladainha do Imaculado Coração de Maria, uma vez que Nossa Senhora, numa de suas aparições, manifestou-Se com o Coração à mostra, circundado de espinhos.

 

(Extraído de conferência de 13/5/1969)