Ponto de partida da Civilização Cristã

Um jovem de família nobre abandonou tudo para viver na solidão, numa gruta entre montanhas agrestes. Toda a natureza fazia eco aos seus ideais, e cada vez que ele dava um passo ascendente no caminho da fidelidade, os Anjos cantavam e os demônios rugiam. Esse foi São Bento, árvore da qual brotaram todas as sementes que se espalharam pela Europa, dando origem à Cristandade ocidental.

 

Subíaco foi o ponto de partida da Civilização Cristã, tomando em consideração a Cristandade na Europa Ocidental. Não me refiro, portanto, a Bizâncio e àquela parte do  Oriente, nem ao Norte da África, mas sim à parte da Cristandade que depois viria a se desenvolver mais, e da qual nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

“Eu me dou por inteiro”

Tudo estava na seguinte situação: os bárbaros tinham ocupado todo o Império Romano e havia restos de civilização romana; ao lado disso, pagãos e bárbaros em grande quantidade, formando um caos do qual era preciso que emergisse uma coisa diferente.

A Igreja estava trabalhando empenhadamente nisso, e agindo como ela o faz. A Igreja não trabalha sempre à raiz de grandes homens, mas sempre à raiz da graça. O grande  homem às vezes aparece, e quando ele é grande santo, humilde, casto, sai alguma coisa que preste. Então, na base da conjunção de todos esses fatores a Igreja ia fazendo o  seu dever, pregando, ensinando a cada um nas paróquias, nas dioceses, segundo a ordenação posta por Nosso Senhor Jesus Cristo, e que ela mesma, orientada pelo Espírito  Santo, ia completando, acomodando as circunstâncias, etc. Nisso tudo a Igreja, dia a dia, ia fazendo penetrar a graça nas almas que quisessem recebê-la. E muitas dessas  almas recebiam essas graças. E as acolhiam melhor do que se recebe a graça hoje em dia.

Mas poder-se-ia dizer que nessa situação em que a graça soprava por todos os lados e abria algumas flores de cá, de lá e de acolá, algo estava por acontecer de muito grande e  e muito bonito como desfecho desta semeadura semi bem recebida por toda parte. E o desfecho é exatamente o fato de que um jovem, de família senatorial, quer dizer,  família nobre, patrícia, São Bento, com um imenso chamado divino para a obra especial dele, resolveu dar-se totalmente. A graça lhe disse: “Meu filho, eu o quero e o quero  inteiro. Você se dá inteiro?” E ele respondeu: “Sim, eu me dou por inteiro”.

Mas para dar-se por inteiro a experiência mostrava que ele não poderia ficar naquele misto de barbárie e de cultura romana decadente, em que se encontrava a Europa. Ele então se retirou para um local a fim de ali morar só. E por quê? Para ser santo. São Bento provavelmente não notava que ele era a árvore da qual brotariam todas as  sementes a serem espalhadas pela Europa. Esse é o fato beneditino. E ele foi só, a fim de ser só de Deus e de Nossa Senhora, para um lugar completamente ermo, onde não  houvesse nada que perturbasse a inteira entrega dele a Nosso Senhor, e ali entregar-se à devoção, à meditação, à penitência, para que a graça tomasse cada vez mais conta da pessoa dele.

Através de São Bento, Deus tomou inteiramente conta da Europa

Nós o podemos imaginar jovem – como consta que ele era –, de boa apresentação, bem dotado, com os predicados de uma família senatorial, despreocupado de tudo isso, não pensando nos seus dotes nem como seria comovedor naquela gruta, ou naquele castelo de grutas, ou silvestre palácio de grutas em que ele se embrenhou, onde cada   gruta dava abertura para outra como em um palácio um salão dá acesso para outro. Não estava pensando como era comovente ver o isolamento  de um jovem da figura, dos antecedentes dele, com as possibilidades dele, renunciando a tudo e entregando-se a Deus. Porque não pensava em si, mas em Deus.

Naquela solidão, ele começava, portanto, a vida de virtude que faria da sua alma o elemento modelador de toda uma família religiosa, que se prolonga até hoje e se  prolongará até não sei quando. Eu tenho a vaga ideia de ter lido que a Ordem beneditina tem mais de dois mil santos canonizados. Isso sem falar de outras Ordens religiosas que são beneditinas na origem, mas tomam a regra de São Bento e dão outras acomodações, interpretações, são outras vocações dentro da Ordem beneditina: trapistas, cistercienses, olivetanos e outros ramos ainda.

São Bento cuidava apenas de se dar inteiramente a Deus. O Criador tomava conta inteiramente dele, para através dele tomar completamente conta da Europa.

Mas é preciso notar o seguinte: nesta situação, entregue a essa solidão extraordinária, ele recebia comida de um outro anacoreta que vivia em uma gruta acima, com quem não conversava nunca. O anacoreta recebia alimento de um corvo, se não me engano, amarrava a comida em uma corda e a passava para baixo, e ele comia o que mandavam. Mais nada. O único contato que ele tinha com o mundo exterior era numa certa hora na qual via uma corda descer. Ele comia e a corda subia. E nada dos dois ficarem se olhando, fazendo sinaizinhos, comentários como “o tempo hoje está ruim”. Solidão total, total, total.

Grutas que ouviram o eco dos seus passos, prantos e cânticos de alegria

Nesse ambiente, nessa solidão predestinada o espírito humano gosta de imaginar que até as ervinhas, as grandes árvores, a vegetação e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças, que tinham um pressentimento profético do que ele deveria ser. E quem menos sabia o que estava para nascer era São Bento. Ele tinha os seus ideais, e todos os montes, vales, colinas – usando a expressão de Camões empregada para um fim muito inferior – e ervinhas davam repercussão, faziam eco aos seus ideais,  e os ventos quando sopravam cantavam; e tudo isso ele não notava.

E uma pessoa estando lá, hoje em dia, pode ainda encontrar aquelas ervas, remotas bisnetas das ervas da época dele. Aqueles montes ainda são os mesmos e na sua  imobilidade pétrea ou térrea ainda têm a configuração de outrora, aquelas grutas que são as mesmas e ouviram o eco dos passos, os soluços, os prantos dele durante as crises, as tentações, as orações, os cânticos de alegria, etc., durante toda a vida dele repercutiram ali, e algo se poderia sentir. E quem vai a um lugar assim procura de algum modo sentir esses ecos de uma história que lá se passou.

Locais que ficam impregnados por maldições ou bênçãos

Esta procura se dá, aliás, com histórias de outra natureza. Vou dar um exemplo horrendo, que me ocorre no momento. Parece que Judas se enforcou numa figueira brava,  que dá figos não comestíveis pelo homem.

Mas imaginem que ele se tivesse pendurado em uma macieira, a qual ainda estivesse viva e dando frutos. Há um homem no mundo que quereria comer uma maçã dessa árvore? E se alguém tocasse numa delas, dever-se-ia dizer-lhe: “Vá lavar suas mãos na água benta! Queime essa maçã! Sepulte nas entranhas da terra, onde os vermes irão  liquidá-las, as cinzas que dessa maçã possam resultar. Procure esquecer o lugar onde essa cinza ficou. Em todo caso, nunca mais passe por perto. Porque com Judas nada! É  um homem cujo nome próprio é ultraje. Chamar alguém de Judas é insultá-lo do modo mais pesado possível!”

Em volta dessa macieira nenhum de nós teria surpresa de saber que o cheiro é mau, quebrando aquele pau sai uma resina asquerosa misturada com vermes, e a doença, a  maldição, a infelicidade, as tentações do demônio assediam a quem se aproxima da macieira da maldição. Por quê? Porque as coisas ficam impregnadas.

É assim também  com as bênçãos. Uma pessoa pensar, olhando de dentro daquelas grutas as montanhas: “Houve tardes em que o tempo estava bonito como o de hoje, e São Bento sentindo  que o dia tinha passado na virtude, e auscultando os movimentos interiores da graça, conjeturando com probabilidade que a noite seria tranquila, sentado no átrio externo dessa gruta, olhava o Sol se pôr e dava graças a Deus, porque tinha sido mais um dia aparentemente tão vazio para o homem, mas na realidade tão cheio  para ele”. Então visita-se um lugar desses procurando fazer a recomposição.

Estes são imponderáveis que talvez realmente existam no lugar por disposição da Providência, e que algumas almas têm feitio para pensar. Elas têm mais disposição, mais  aptidão, talvez um pouco mais de graça do que outras. É um lado. Mas também pode acontecer que algumas almas sejam mais poéticas, e tenham o dom de imaginar as  coisas como foram, e sabem que estão fazendo apenas uma poesia, uma irrealidade pela qual possam saborear um pouco a realidade que houve.

E muitas vezes o que se dá é uma coisa trançada: há uma poesia, uma imaginação que se sabe não ser real, mas existe qualquer palpitar da graça que diz: “Meu filho, há algo  verdadeiro dentro disso sem que você possa distinguir bem o que é, saboreie porque no meio desse gosto existe o sabor da verdade”.

Lógica, força e calma

Analisemos, então, algumas fotografias de Subíaco.

Isto certamente São Bento não viu. Portanto não fez parte do quadro que ele teve diante de si, porque foi construído depois. Homens chamados antes de tudo para a vida  religiosa se fixaram aqui, atraídos pela graça, certos de que a presença nesse lugar abençoado lhes trazia uma participação nas enormes graças que  São Bento recebeu.

Eu tenho tantas e tantas vezes elogiado a ogiva; deixem-me fazer um pouquinho de elogio do arco românico. Encontram-se na base quatro arcos desiguais.

O arco da esquerda é bem grande, e suporta sozinho uma parte maior do peso que vem de cima. Os dois arcos teriam talvez a metade do tamanho do arco grande; cada um sustenta um peso bem menor do que suporta o arco maior. E no extremo oposto há um arco o qual me parece ligeiramente ogival, e que provavelmente foi posterior. 

Também pode ter saído ogival mais ou menos por acaso, sem intenção nenhuma dos indivíduos de cultura românica que construíram isso. Mas esses arcos românicos dão  uma ideia de lógica, de força, de calma, que é muito bonita e não deixa até de ter sua majestade.

O mosteiro em cima  seria um edifício de favela. É construído com tanta irregularidade que as janelinhas, as portinhas fazem no andar térreo um zigue-zague, ora para cima, ora para baixo, que parece não ter finalidade ornamental.

Da terceira janela para a direita há uma janela solta pelo meio, e não se sabe bem por que ela é tão grandona; enfim, nada é bonito. Entretanto, o todo tem uma beleza  inegável,  indefinível, que se sente na situação de um monge beneditino passeando e rezando seu Rosário no terraço que fica em cima desses arcos todos.

Viver é olhar para o Céu

Imaginem um monge andando sozinho, rezando e meditando sobre São Bento, tal episódio da vida de Nosso Senhor, o Rosário, tal fato da vida de Nossa Senhora. Como teria São Bento meditado esses fatos? O Rosário ainda não existia no tempo dele; foi revelado por Nossa Senhora, em plena Idade Média, a São Domingos de Gusmão.

Mas vamos imaginar aquele monge andando de um lado para outro, sozinho, e posto nessa solidão onde não há nenhum barulho, porque não existe agricultura, não se vê  passar um homem, um bicho, nada se muda a não ser um arvoredo encaracolado que, às vezes, é seguido por uma grama escassa sobre uma terra feia e dura, e que parece  não servir para nada. É a negação de tudo, o vazio, mas ali está um monge com grandes ideias, grandes considerações, fenômenos místicos dos quais ele tem ou não tem  consciência e que o unem enormemente a Nossa Senhora. Dir-se-ia que os passos dele fazem eco aos passos de São Bento, e que esses arcos embaixo possuem algo da lógica,  da força simples, robusta e despretensiosa da alma de São Bento, o qual era uma alma em arcadas assim, imagino eu.

Veem-se duas montanhas que se encontram na base, formando uma espécie de “V”. Alguém perguntaria, por curiosidade: “O que há além?” Existe outro tanto igual a esse,  vazio, árido, inútil, servindo apenas para essa coisa também inútil, da qual vive a Terra: a solidão. A solidão dos homens chamados para a solidão. Mais adiante se forma  outro “V” e depois outro, e só o que se vê são montes assim. O homem se sente perdido na solidão, na terra árida, para ele a vida não reserva mais nada. Viver é olhar para o  Céu: “Pater noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum…”

A Cristandade europeia estava nascendo

No prédio da esquerda há um pouco mais de arquitetura. Existem uma rosácea e um campanariozinho construídos muito tempo depois, certos adornozinhos quão pobres e modestos, o suficiente para, com os ecos do Angelus na aurora e no pôr do Sol, às seis da manhã e às seis da tarde, saudar a Nossa Senhora e fazer com que esses ecos  santifiquem aquelas solidões.

Notem aquelas montanhas. Nenhuma delas desce de modo bonito, não tem aquelas flexões e deflexões doces dos montes da Baía da Guanabara, nem é amiga da montanha  seguinte. Essas são montanhas agrestes justapostas pela mão de Deus, que não se conhecem umas às outras, e parecem dilaceradas diante do céu.

Em outra fotografia vemos a gruta. Tudo é desconforto, solidão. Devemos imaginar São Bento sentado lá, lendo um livro e pensando… Ele  não sabia, mas a Europa estava nascendo. Muito melhor que a Europa, a Cristandade europeia estava surgindo.

Ele não teria a menor ideia da quantidade dos peregrinos que iriam humildes, reverentes,  oscular esse lugar. Mas cada peregrino que vai ao Mosteiro de Subíaco leva uma gotasinha de glória extrínseca para São Bento no Céu.

Os Anjos cantavam e os demônios rugiam

Temos um conjunto bem construído, que foi edificado depois, com ogivas, etc. Construído a legítimo título, mas nos dá apenas um aspecto da glória de São Bento: homens com chamado menos excepcional do que o de São Bento, mas atraídos a alguma coisa que era o chamado dele. E então compreenderam que a graça os chamava a tornar um pouco menos hirto o isolamento naquele lugar, a viverem em grupo, mas no silêncio e em edifícios que amenizavam um pouco a gruta, porém não faziam desaparecer inteiramente o ar imponderável que aquela gruta traz consigo; estão escavados naquelas grutas.

Observam-se também construções do mesmo jeito, muito respeitáveis, veneráveis, até são pintadas, etc., onde viveu o cortejo enorme dos filhos menos excepcionais, menos fortes, mais fracos, mas que Deus chamou para serem assim, e que poderiam encontrar – e muitos encontraram – o seu lugar no Céu, pois foram canonizados, levando a vida  nessas condições – e não nas condições de São Bento –, e que estavam aí porque queriam respirar um pouco do ar que São Bento respirou.

Eu admito como provável, tanto quanto consigo cogitar nessas coisas, que, sem ter a certeza do que ia nascer de lá, São Bento sentia que qualquer coisa de muito grande se  jogava no Céu, cada vez que ele dava um passo ascendente no caminho da fidelidade. Os Anjos cantavam e os demônios rugiam. Ele percebia todo o ódio que o demônio punha contra ele e, portanto, quanto estava sendo hostil, nocivo ao demônio, resistindo às tentações jeitosas com as quais, a todo momento e de um modo tormentoso, o  demônio o assediava.

A bandeira que tremula ao vento ou cai ao longo do fuste

E quando São Bento se jogou naqueles espinhos para que atormentassem a sua carne e assim, chamando a atenção dele para a dor, a desviassem do desejo que a carne  concebida no pecado original pode ter sem o homem consentir – o anseio da lascívia, do pecado impuro –, embora sem saber o que seria tudo isto, ele sentia que tinha muito mais do que fazia. E com esta particularidade interessante: talvez a Providência lhe desse não uma certeza detalhada – pão, pão; queijo, queijo –, mas grandes e ventosas intuições, que passavam de cá e de lá e lhe deixavam um fundo de certezas imprecisas, as quais ele não sabia interpretar bem. E perguntava: “O que é isto? Uma  graça ou uma ilusão?” Mas que o ajudava a andar.

Eu digo isso porque em muitas vocações há coisas dessas. Em nossa vida mesmo existe algo semelhante: horas em que estamos como uma bandeira que tremula ao vento, quer dizer, sentimos a certeza do futuro e que realizamos uma coisa enorme, extraordinária, fazendo-nos  flutuar como uma bandeira ao vento.

Há momentos, pelo contrário, em que o vento cessa e a bandeira cai ao longo do fuste. E a pessoa pensa:  “Agora eu tenho que cuidar da roupa de cama e de mesa que vai para a lavadeira. Então vou mexer com a roupa suja, para ajudar a proclamar o Reino de Maria… Godofredo de Bouillon, Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa onde estais?  Vós que fazíeis coisas tão grandes e tínheis certeza da grandeza do que realizáveis, aqui está este católico, debaixo de certo ponto de vista vosso filho – porque nós somos  filhos de todos os filhos da luz –, contando as peças de roupa. Estou vendo o guardanapo sujo de vinho que tal irmão meu derramou desajeitadamente na mesa; mais adiante   toalha de mesa que está toda manchada porque tal pessoa pinga feijão na toalha; estou notando a nossa vida cotidiana, as misérias de cada um nas toalhas de mesa  que vão para a lavadeira. E isto é a escada de Jacó pela qual eu subo ao Céu?”

Um paradoxo cruel que se resolve numa ogiva sublime

Tenho certeza que alguma alma, contemplando aquelas montanhas, pensaria em coisas análogas. E se perguntaria se não é uma graça que São Bento está obtendo para ela no Céu. Naqueles montes ásperos, íngremes, naquela batalha da natureza, naquela inutilidade do que ele fazia, no paradoxo constante do homem, que por sua natureza é  social, a graça o chama para viver isolado. Isso não é uma contradição, mas um paradoxo.

Nesse paradoxo, que eu não hesitaria de chamar de cruel – no sentido em que o sacrifício da Cruz foi cruel –, o homem deve dizer: No fundo tudo isso se resolve numa ogiva  sublime, faz um sentido que eu compreenderei um dia no Céu. Continuarei a andar, andar. E sei que caminhando assim, contando as peças de roupa e vendo as falhas  morais nas manchas da toalha de mesa – são pequenas falhas morais, mas às vezes indicativas de algo tão maior –, pedindo a Deus que perdoe a eles e a mim, a todos que  têm essas falhas, e faça subir todos para o Céu, eu estou preparando uma glória enorme para daqui a duzentos anos.

Nas particularidades da nossa vocação, senão para daqui a duzentos anos, daqui a duzentos dias ou duzentos minutos, porque o dia da intervenção de Nossa Senhora é  incerto e poderia vir de uma hora para outra, como o esposo da parábola das virgens loucas e das virgens fiéis do Evangelho. As primeiras ficaram esperando, foram fiéis, e  eu devo esperar que meu Deus chegue de uma hora para outra e diga: “Meu filho, o cárcere da Revolução acabou. E se esse dia demorou para chegar, eu não fui frustrado.

Pelo contrário, fui glorificado. Esperei longamente, mas não perdi a esperança. A glória me chega como uma coroa”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1988)

Maravilhas do espírito da Igreja

Enquanto as areias dos circos romanos se embebiam do sangue dos mártires, os desertos se povoavam de eremitas e penitentes. Assim era nos tempos do Papa São Pio I, ele mesmo imolado por ódio à Fé cristã. Ao comentar a vida deste Sumo Pontífice, Dr. Plinio nos faz admirar a santidade da Igreja a qual, em meio às maiores vicissitudes, sempre triunfou sobre as portas do inferno, conforme lhe prometeu o Divino Salvador.

 

No dia 11 deste mês, celebra-se a festa de São Pio I, Papa e mártir do século II. Sobre ele encontramos alguns interessantes dados biográficos, extraídos da obra “Vie des Saints”, do Padre J. E. Darras. Narra-nos este:

São Pio I nasceu na cidade de Aquiléia [Itália], e sucedeu a Santo Higino na Sé Apostólica. Foi amigo de São Policarpo e São  Justino, o Apologista, lutando com eles contra a heresia gnóstica que assolava a Igreja. Fez um especial decreto para que o sacerdote, ao celebrar, cuidasse das espécies sagradas. Por exemplo, se por negligência deixasse cair uma gota do sangue de Nosso Senhor, deveria penitenciar-se por quarenta dias. Se o sangue caísse sobre o altar, e não no solo, a penitência seria somente de três, quatro ou nove dias, conforme a quantidade derramada.

Prescreveu o máximo respeito ao vinho e ao pão consagrados, exigindo que neles não se permitisse a mínima profanação. Testemunhava assim a grande fé da Igreja na presença real de Nosso Senhor na Eucaristia.

Consagrou ainda a igreja de Santa Pudenciana, no palácio onde São Pedro e São Paulo haviam trabalhado. Depois de ter governado a Igreja por nove anos, São Pio I foi martirizado sob o Imperador Marco Aurélio.

Nas catacumbas, um perfeito trabalho de estruturação

Trata-se, portanto, de um papa que exerceu suas funções ainda no período das perseguições, e em pleno apuro que cercava os católicos fez este trabalho admirável — ao qual muitos papas estiveram associados — de organização interna da Igreja.

A epopeia de São Pio I nos leva, assim, a considerar um fato muito importante e talvez pouco apreciado, que é o seguinte. Durante o período catacumbal a Igreja se viu perseguida, pisada, calcada aos pés, deitando sangue por todas as vertentes e por todos os poros. Quando Constantino a liberta, ela sai das catacumbas e passa a viver à luz do dia, apresentando desde logo uma organização perfeita e acabada. Possui uma hierarquia estruturada, um direito próprio, uma liturgia definida, um depósito estabelecido de doutrina, etc.

Quer dizer, desde a chegada de São Pedro a Roma e das viagens dos apóstolos — especialmente as de São Paulo — até o momento em que a Igreja adquire a emancipação, houve dentro das catacumbas um imenso trabalho de organização. E surge uma entidade se declarando e sendo imortal, de caráter universal, a primeira até então existente.

Estruturada com sabedoria, critério e acerto tais que, quando abandona os subterrâneos de Roma, basta-lhe continuar a viver. Vê-se por esse fato a maravilha de serenidade e sapiência que foi a Igreja em relação ao perigo. Dir-se-ia que uma obra tão delicada quanto a de fazer germinar a estrutura eclesiástica de dentro de suas próprias sementes pediria, normalmente, uma situação de calma e tranqüilidade invulgares, pois os homens atormentados com a perseguição não poderiam cogitar em outra coisa. Porém, o   contrário é a verdade. Durante todo aquele período em que se achavam acuados, acossados, no risco de caírem de um momento para outro nas mãos do carrasco, tais homens continuavam a pensar, a rezar, e nas catacumbas, entre as invasões dos soldados romanos, aperfeiçoavam uma parte da liturgia, estruturavam um ponto da doutrina, criavam um costume novo.

Havia, pois, essa calma e essa serenidade extraordinárias na perseguição, conjugando-se harmonicamente com a paz de alma da qual os cristãos davam provas na arena. Aquela sobranceria e tranqüilidade diante da morte não se manifestavam apenas na hora patética em que eram postos na presença das feras e dos verdugos, mas constituía todo um estado de espírito sapiencial. Esta sabedoria os levava a se conservarem confiantes e plácidos ante os perigos que sentiam, cuja profundidade às vezes lhes fazia  vibrar o instinto de conservação. Mas, apesar de tudo, fazia-os também construir, pedra por pedra, o edifício admirável da Igreja.

Florescimento do eremitismo

Ainda nessa época de São Pio I teve início uma das realizações mais belas da Igreja, como aspecto positivo de sua organização: o eremitismo.

Apavorados diante das crueldades e perseguições nos circos romanos, muitos cristãos fugiam para o deserto a fim de não serem presos pela polícia do imperador.  Principiavam então uma vida isolada, a existência eremítica de contemplação. Desta sorte, o estado contemplativo começou a nascer dentro da Igreja ao mesmo tempo em que floresciam os mártires.

Vê-se por aí quantas riquezas desabrochavam na Igreja e que panorama admirável de sua gesta naquele período nos é dado observar. Os mártires se multiplicavam, o apostolado crescia e a Esposa Mística de Cristo penetrava por toda parte. De outro lado, ela se enclausurava e o estado contemplativo se expandia. Tudo isso a uma vez, como produto, expressão, fruto de uma germinação admirável!

Ação do Espírito Santo na Igreja ao longo dos séculos

Poder-se-ia perguntar o que há por trás de todo esse espetacular desenvolvimento. E a resposta recairia sobre algo para o qual é preciso sempre chamar a atenção: a presença do Espírito Santo na Igreja Católica Apostólica Romana.

O que constitui propriamente a Igreja não é apenas o fato de ela ser uma sociedade de pessoas definidas, isto é, o Papa, os bispos, os clérigos e os fiéis. Além desse elemento humano, há algo que se chama o espírito da Igreja. E este espírito é a continuidade, dentro dela, de uma determinada mentalidade, de uma sabedoria, da fé e da virtude que  existem na Igreja, não por obra do homem, mas devido a um fator sobre-humano.

Trata-se dessa ação do Espírito Santo pela qual, através dos séculos, em todos os lugares os bons católicos se entendem, se conhecem, se apoiam. Eles são um só, e quando morrem, outros lhes sucedem com a mesma mentalidade, o mesmo espírito e até mais característicos que seus antecessores.

Por exemplo, tenho a satisfação de me dirigir a pessoas provenientes de alguns países hispânicos, bem como a brasileiros de todos os quadrantes que receberam a  hereditariedade de inúmeros contingentes de imigração. Entretanto, nos entusiasmamos por formas de pensar e sentir, estilos de vida, pelo espírito de uma era que não  conhecemos, que é a da Igreja do século II. E temos entusiasmo porque isto não foi inventado por nós, mas resultou de uma tradição transmitida por nossos maiores. É o  espírito da Igreja, ou seja, é o Divino Espírito Santo, que realiza essa continuidade entre nós e aqueles que “nos precederam com o sinal da Fé”, marcados com a mesma cruz.

Somos fagulhas da fogueira da Igreja

A esse propósito, lembro-me de que certa vez um sacerdote me ouviu com fisionomia muito embevecida quando lhe falei a respeito de nosso grupo. Percebendo-o tão agradado, perguntei-lhe.

— Padre, o que o senhor está apreciando nesses meus comentários?

E ele me disse:

— É o lado teológico da coisa, porque na efervescência desse espírito e dessa atividade dos senhores está a vida da Igreja. É exatamente o espírito dela que os orienta e os  move a essas realizações.

Portanto, nós não somos senão rebentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Sem dúvida, todos já tiveram oportunidade de observar uma fogueira acesa durante a noite. 

E verificaram este fato: de vez em quando se desprende uma fagulha, eleva-se pelos ares e cai de novo no meio do fogo. Assim também, somos fagulhas que se evolam da  Igreja Católica, porém sempre ligados a ela. Não somos senão pedras do seu edifício, amorosas e encantadas de pertencerem a ela. E qualquer coisa que em nós possa haver  de bom, é fruto dessa pertencença à Igreja, templo do Espírito Santo, do qual nascem todas as formas de boas disposições, de virtudes, de Contra-Revolução, etc. Esse é o  processo espiritual pelo qual se forma um movimento como o nosso.

E vale dizer, existe uma semelhança de situação entre os fiéis do tempo de São Pio I e o nosso grupo. Certo, não sofremos em nossos países a perseguição cruenta, mas sim a incruenta, manifestada pelo fato de sermos muito combatidos. Contudo, Nossa Senhora nos ajuda para, em plena luta, irmos construindo pedra por pedra nossa obra, a qual vamos estruturando, explicitando sua doutrina, estabelecendo uma organização, tornando cada vez mais protuberante um determinado espírito, a fim de que, quando chegar o dia do triunfo do Imaculado Coração de Maria, a Igreja tenha recebido um contributo de filhos que a serviram com dedicação.

Estas são algumas reflexões que a festa de São Pio I nos deve sugerir.

São Bento

Por vezes na História aparecem grandes homens, e quando estes são também grandes santos, humildes e castos, deles nascem maravilhas para o mundo. São Bento foi um grande homem e um grande santo que decidiu corresponder inteiramente ao chamado divino. Por isso tornou-se o fundador da Ordem religiosa que seria a árvore de cujos frutos brotariam todas as sementes que, espalhadas, germinariam e floresceriam na cristandade européia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 18/11/1988)

Santa Marciana e o testemunho dos mártires

Nos primeiros séculos da História da Igreja, milhões de mártires deram sua vida por Nosso Senhor. Por que não reagiram contra os tiranos? A Providência chamou-os para uma forma de heroísmo que correspondia aos desígnios d’Ela naquele tempo e que não era liquidar e vencer, mas aguentar e morrer. O testemunho dos mártires é uma das grandes provas da veracidade dos fatos narrados no Evangelho.

 

Tecerei comentários sobre Santa Marciana, virgem e mártir, cujos dados biográficos foram tirados da obra do Abbé Ferrier: “La grande fleur de la vie des Saintes”.

“Ó meu Divino Mestre, vou feliz para Vós!”

Em Rouzucourt, pequena cidade da Mauritânia, Argélia de hoje, vivia em fins do século III uma jovem chamada Marciana, tão piedosa quanto bela, que consagrou muito cedo sua virgindade a Deus e deixou tudo para viver numa cela perto da cidade romana.

Ora, um dia a virgem, inspirada sem dúvida pela voz do Senhor, saiu de sua cela e veio se misturar à multidão que circulava na cidade, agitada por uma emoção porque corriam os dias sangrentos da perseguição desencadeada no mundo inteiro pelo ímpio Diocleciano.

Marciana, chegando pela porta Tipásia, viu colocada numa praça uma estátua de mármore da deusa Diana. Aos pés da deusa corriam águas límpidas num tanque também de mármore.

A intrépida virgem não pôde suportar a visão do ídolo impuro e fez o ídolo em mil pedaços. Uma multidão furiosa se lançou sobre ela e a maltratou horrivelmente. Depois a arrastaram ao pretório, perante o juiz imperial.

A altiva cristã riu-se dos deuses de pedra e de madeira e gloriou-se de adorar o Deus vivo, e O exaltou no templo, com voz eloquente.

O juiz pagão irritou-se e entregou-a aos gladiadores para que servisse de joguete a infames ultrajes. A virgem permaneceu serena e sem medo. Durante três horas, com efeito, Deus a defendeu no meio desses brutos, atacados de terror e imobilidade. Pela oração da angélica mártir um deles se converteu a Jesus Cristo.

O tirano, confuso, redobrou seu ódio ímpio e, não podendo desonrar a virgem cristã, condenou-a a ser estraçalhada por animais ferozes.

Marciana, quando chegou a hora, caminhou para a arena como para uma alegre festa, bendizendo a Jesus Cristo. Amarraram-na ao local do suplício e contra ela foi lançado um leão furioso, que logo se atirou sobre a vítima, ficou em pé e colocou suas garras sobre seu peito. Depois se afastou bruscamente e não a tocou mais.

O povo, tomado de admiração, gritou que libertassem a jovem mártir, mas um grupo misturado à multidão e sempre sedento de sangue cristão pediu que lançassem agora contra Marciana um touro selvagem. A fera aproximou-se dela e com seus chifres furiosos lhe fez no peito uma horrível ferida. O sangue jorrou e a virgem caiu agonizante na arena.

Tiraram-na de lá por um momento, estancaram-lhe o sangue e, como ainda lhe restasse um pouco de vida, o bárbaro tirano a fez amarrar ainda uma terceira vez.

Marciana ergueu seus olhos ao céu, um sorriso iluminou seu rosto marcado pelo sofrimento. “Ó Cristo! — gritou — eu Vos adoro e Vos amo. Vós estivestes comigo na prisão, Vós me guardastes pura, e agora Vós me chamais. Ó meu Divino Mestre, vou feliz para Vós! Recebei a minha alma!”

Neste momento o tirano lançou-lhe um leopardo monstruoso que, com suas garras horríveis, despedaçou os membros da heroica virgem e lhe abriu o glorioso caminho do Céu.

Desafio à idolatria numa atitude carregada do mais belo espírito épico

Esta ficha belíssima merece alguns comentários debaixo de um ponto de vista que não será, talvez, o que ocorre logo de início.

À primeira vista temos o espetáculo de um heroísmo extraordinário, que nos deixa desconcertados. Para dizer tudo numa palavra só, um heroísmo milagroso.

Trata-se de uma santa que é uma eremita no sentido próprio da palavra, quer dizer, ela vive inteiramente isolada, nas proximidades de uma pequena cidade da África, no tempo do Império Romano, época na qual o Norte da África era todo constituído de colônias romanas e estava tão latinizado quanto a Europa latina. Depois, a invasão dos vândalos derrubou o domínio romano e eliminou de lá a raça latina. Mas naquele tempo se tratava de uma região inteiramente latinizada. Ela era, provavelmente, uma latina; seu nome indica isso.

E como uma eremita, ela não se misturava com nada nem com ninguém.

Um dia, tocada pela graça e sem saber ela mesma por que, Marciana vai para a cidade e encontra, então, a cena típica das épocas de perseguição: uma praça pública para onde tinham transportado o ídolo de Diana, a deusa da caça. Foi colocada junto a uma fonte, cujas águas estavam represadas por um recipiente de mármore. E o povo era obrigado a ir adorar esse ídolo. Quem não o adorasse, seria morto.

Ela, tomada de um justo ódio contra esse ídolo que era a afirmação de uma religião oposta à de Nosso Senhor Jesus Cristo, revestida de uma força que não se sabe bem de onde lhe vinha — porque a imagem que dela nos dá a ficha é de uma jovem bela, graciosa, portanto frágil —, empurra o ídolo para o chão, a cabeça se separa do corpo e ele fica em pedaços.

O crime de si, debaixo do ponto de vista romano, era muito grande, principalmente se tomamos em consideração que essas estátuas não eram para eles o que são as imagens para nós. Uma imagem de Nossa Senhora, por exemplo, quem a quebra comete um sacrilégio porque rompe algo que é a figura de Nossa Senhora, mas não é Nossa Senhora em pessoa. Sabemos que essa estátua não faz senão representar a Santíssima Virgem, que está realmente no Céu em corpo e alma. Mas para os idólatras pagãos a estátua era o próprio deus. Este era um dos aspectos da idolatria deles, que acreditavam ser aquela estátua a deusa Diana. Havia várias Dianas, em diversas cidades, aquela era a deusa Diana daquela cidade.

Com uma coragem muito grande, numa atitude carregada do mais belo espírito épico, ela joga o ídolo no chão — e já entro na análise do épico do acontecimento. Vemos, então, uma virgem frágil, débil, uma eremita solitária, recolhida, reclusa, que sai do seu êremo e faz aquilo que os homens de vida ativa não realizariam, que os católicos da região, com certeza, não tinham coragem de fazer: ela vai ao ídolo, o derruba e o espatifa. Quer dizer, ela desafia a idolatria no que essa tem de mais central, de modo ostensivo. Ela não derruba apenas a imagem, mas esta se quebra em vários pedaços.

Atacada por gladiadores e animais ferozes

Marciana se encontra ali de pé, afrontando o tirano que, em nome do Imperador Diocleciano, está condenando à morte a todos os católicos. E ela enfrenta, então, a morte, com uma coragem e serenidade absolutas.

Por que ela não parte para matar o tirano? Entre outras razões porque é uma jovem e não tem forças para isso. Deus não lhe deu essa missão. Ela não é uma Santa Joana d’Arc. De momento, a sua missão é diferente. Ela deve desafiar, mostrar a força de Deus de um modo diverso.

Como Marciana mostra a força de Deus? Ela é exposta a vários tormentos e a epopeia continua. É sujeita aos ataques de um grupo de gladiadores, quer dizer, de homens da ralé, extremamente sensuais, que têm ordem de pular em cima da jovem, abusar dela como entenderem, e depois matá-la.

Então se dá este fato incrível: ela se encontra ali tranquila, e o que ela mais ama na Terra, sua virgindade, sua fidelidade a Deus, está exposta ao risco iminente, ou seja, que os gladiadores podem pular em cima dela de um momento para outro. Durante três horas esses homens estão ali imobilizados e não conseguem se aproximar dela. Uma força misteriosa vence os gladiadores.

Temos aí a primeira manifestação dos traços característicos da Idade Média: é o domínio do Direito sobre a força, do espírito sobre a matéria, da virgindade sobre a concupiscência. Na ordem natural das coisas, ela representa tudo aquilo que na Civilização Cristã é frágil. Mas ela desafia. E por uma força sobrenatural mostra que soou outra era da História: tudo quanto é frágil, reto, digno vai começar a dominar tudo quanto é turbulento e representa a força material, tudo quanto é bestial, tudo quanto, segundo a ordem natural das coisas depois do pecado original, costuma dominar, avassalar a Terra.

Ela reza tranquila, e ninguém se comove. Era normal que várias pessoas se comovessem, que o tirano se abalasse. Um gladiador se converte; os outros, não. O gladiador que se converte é ele mesmo uma prova do caráter sobrenatural do que se passava.

E mandam logo vir outro animal para saltar em cima dela: é um leão. Mais uma vez se repete o contraste maravilhoso; é épico: a virgem que está de pé e o leão que avança sobre ela e, para trucidá-la, deita a pata nela. Podem imaginar o que representa uma patada de um leão numa donzela! De repente a fera para e sai. O povo todo se entusiasma, começa a aplaudir e pede clemência para ela.

Cria-se, então, uma agitação e começam a pedir que vá um touro por cima de Marciana. Soltam o touro que avança, lhe dá uma chifrada e ela cai. E então se vê o sangue purpúreo, o sangue virginal daquela donzela, daquela mártir, que sai generosamente da horrível ferida. Mas os perseguidores não se contentam com isso. Querem de fato matá-la e soltam então um leopardo que pula em cima dela e a estraçalha. Marciana morre docemente, chamando a Deus Nosso Senhor e confessando que ela vai para o Céu.

Conversão dos povos da bacia do Mediterrâneo

Alguém dirá: que sentido tem esse acontecimento? Ele é apenas manifestação de uma epopeia? Toda epopeia tem uma finalidade. Qual é a finalidade dessa? Era apenas mostrar que ela não queria ceder ante o paganismo? Ou somente desejava impressionar a opinião pública por meio de seu martírio?

Vê-se que foi tudo miraculoso, desde o princípio ao fim. Esse foi um dos milagres que deveriam atestar, junto ao povo ainda pagão, a veracidade da Religião Católica e com isso contribuir para a conversão da Bacia do Mediterrâneo.

A grande obra da Igreja Católica, nos séculos da antiguidade, foi a conversão dos povos da Bacia do Mediterrâneo, os quais converteram, por sua vez, os povos bárbaros que vinham do Norte. E foi porque estes se converteram também que nasceu a Europa católica, a Idade Média, a Civilização católica. As missões de todos os outros Apóstolos que partiram para outras terras — como São Tomé, na Índia, na Etiópia, etc. — foram mais ou menos, ou inteiramente, rejeitadas. No Mediterrâneo, por desígnio da Providência, a quantidade enorme de mártires e de milagres converteu os povos. E daí veio, por sua vez, toda a epopeia da Civilização católica.

Para abrir os olhos desses povos, era preciso um grande número de milagres e que, ao mesmo tempo, esses não fossem puros fatos materiais: o leão saltou em cima da virgem e não conseguiu devorá-la; os gladiadores tiveram missão de estraçalhá-la e não conseguiram avançar contra ela. Era necessário que nesses milagres se visse a beleza da Doutrina Católica, da Civilização Católica que ia jorrar daí. Era a civilização da virgindade, da castidade; a civilização dos fracos que recebem forças sobrenaturais e enfrentam todas as forças materiais; a civilização daqueles que sabem que para a alma que tem Fé nada é impossível, e que enfrentam todos os obstáculos, pouco ligando para estes, porque, Deus estando com eles, conseguem tudo. Aqui está verdadeiramente o senso de epopeia afirmado.

Argumento apologético para os séculos vindouros

Alguém dirá: “Dr. Plinio, então o senhor assinala dois pontos: milagres para converter os povos do Mediterrâneo, o perfume da Doutrina Católica e a beleza simbólica desses acontecimentos para atrair as almas a essa Doutrina. Mas por que essa santa, em vez de morrer dilacerada por um touro, não foi protegida por Deus até o fim? E o Criador não deu ordens para o touro liquidar com o governador romano? Não teria sido uma coisa muito mais bonita ver o touro, o leão, o leopardo de repente pularem, como um cavalo alado, por cima da tribuna do governador romano, matá-lo e depois fazer uma chacina e implantar ali o domínio dos católicos? Não seria então, muito antes de Constantino, uma espécie de revanche católica que nos daria as glórias da vitória? Para que tanta gente que morre praticamente sem resistir, tantos milagres que não dão numa vitória que só Constantino veio alcançar?”

Uma pessoa, com muito fundamento, muita razão, muito bom senso, dias atrás me fez essa pergunta. Eu estava apressado, não dei a resposta, mas a dou agora: Uma das provas de que Nosso Senhor Jesus Cristo existiu e de que os fatos narrados pelo Evangelho são verdadeiros — provas válidas para os homens de hoje, de quinhentos anos atrás, para os homens até o fim do mundo —, está precisamente no testemunho dos mártires. Não se tratava apenas de vencer, mas de dar um argumento apologético para os séculos vindouros. Qual era esse argumento apologético? Os fatos narrados no Evangelho se deram na presença de muitíssima gente. Por sua vez, as testemunhas desses fatos, ou os filhos delas, foram dispersas por todo o Império Romano, pela pressão de Tito à nação judaica. Os inimigos acérrimos dos católicos poderiam alegar que os fatos narrados pelo Evangelho eram falsos, dizendo: fale com esse, com aquele, com aquele outro; eles dirão que isso não existiu, que esses fatos não são verdadeiros.

Havia judeus por todo o Império Romano. De mais a mais, muitos deles que ali viviam já não eram propriamente procedentes da Judeia, mas chamados da diáspora, que se tinham dispersado antes de Jesus Cristo. Esses judeus viajavam frequentemente a Jerusalém, o ponto de atração de interesse máximo para eles, e se inteiravam das coisas que lá aconteciam.

Todos eles poderiam ter desmentido o Evangelho, o que deveria criar nas pessoas que ouvissem os Apóstolos, ou seus seguidores, uma dúvida.

Entretanto, os judeus não desmentiam fatos públicos notoríssimos, e isso confirmava os cristãos na Fé. Estes estavam tão certos de que aqueles fatos eram verdadeiros que, como Marciana, deixavam-se estrangular, eram as testemunhas vivas da veracidade da narração do Evangelho.

Isso levou um escritor não católico, Pascal, a dizer uma coisa muito verdadeira: “Eu creio no que contam testemunhas que se deixam estrangular.” E é verdade. Essas testemunhas, para provarem que a Religião Católica é verdadeira, se deixavam estrangular. Nenhuma prova melhor da veracidade da coisa do que a estrangulação.

O testemunho dos mártires prova a veracidade do Evangelho

Então, durante muitos séculos e até hoje, uma das melhores provas de que a Religião Católica é verdadeira e de que os fatos narrados no Evangelho são verdadeiros, é o testemunho dos mártires por toda a extensão do Império Romano. Assim, se compreende que a Providência dava a esses homens o apelo para uma forma de heroísmo que correspondia aos desígnios d’Ela naquele tempo e que não era liquidar e vencer, mas aguentar e morrer. Se eles tivessem vencido, dir-se-ia: uma seita venceu. E não se teria um argumento inteiramente seguro. Dessa forma, ficou a prova: milhões e milhões tiveram tanta certeza que eles se deixavam matar. Quer dizer, a prova do sangue foi dada exuberantemente e todas as gerações vindouras creram por causa deles. E é por causa disso que a Providência não os convidou a uma cruzada contra os pagãos, mas, pelo contrário, a essa forma de reação cujo sentido profundo hoje se percebe, e naquele tempo não se percebia.

Fica, então, patente o milagre da Providência. Se Ela deu a Santa Marciana a força para derrubar o ídolo, não lhe concederia energias para ir até a tribuna do representante do imperador, do procônsul, para esbofeteá-lo, jogá-lo no chão, apunhalá-lo, liquidá-lo? É evidente que sim. Para Deus nada é impossível. Mas que prova seria para nós a vida de Marciana, se ela tivesse ficado pro-consulesa depois? Que prova seria para os séculos futuros? Nenhuma. Era preciso que houvesse dois milagres: primeiro, da resistência contra todos os obstáculos; e depois, em determinado momento, um obstáculo que vem e a respeito do qual Deus não dá mais resistência.

Então, volto a dizer, existem três operações sobre a opinião pública: ela vai e quebra o ídolo; há a prova do milagre e a prova do martírio. Essas provas são tão boas que duram até nossos dias.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/2/1972)

São Bento

No início da Idade Média, São Bento, sendo ainda muito jovem retirou-se à gruta de Subiaco, onde passou a levar vida contemplativa. Fundou depois a Ordem beneditina a qual lhe deu grande número de filhos espirituais que se espalharam por diversas regiões, tornando-se o principal fator da conversão da Europa.

Os beneditinos fugiam das cidades porque eram centros de perdição; porém os habitantes iam atrás deles. Quando erigiam um mosteiro, a população católica se estabelecia em volta. E assim foi-se povoando a Europa. Promoveram a construção de catedrais e universidades.

Fizeram uma obra extraordinária porque visavam a glória de Deus, a conquista de coisas muito mais valiosas do que terras, cidades e tesouros: as almas. E estas almas, por sua vez, realizavam um sacrifício maior do que o de um soldado que dissesse: “Vou para a frente, morro, mas alcanço o Céu”.

Eles afirmavam: “Vou para a frente. Levo uma longa e dura vida na Terra. Mas, custe o que custar, eu me santificarei! Vencerei meus defeitos até a raiz, para pertencer inteiramente a Deus Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima. Faço o maior dos sacrifícios; eu me dou a mim mesmo!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1991)