Cantou com Nossa Senhora e os Anjos

No convento do qual São Félix de Valois era Superior, certa madrugada um irmão esqueceu de soar Matinas. O varão de Deus foi, então, ao coro para fazer os arranjos necessários e viu Nossa Senhora sentada num trono magnífico, e os Anjos nas estalas. Todos trajavam o hábito de sua Ordem e começaram a cantar. Com serenidade, ele mesclou o seu canto com aquelas vozes celestes.

São Félix de Valois, da família real francesa, fundou com São João da Matha a Ordem dos Trinitários para resgate dos cativos. O modo em que viviam e eram tratados os cativos nos explica bem porque uma Ordem religiosa foi fundada especialmente para essa finalidade.

Libertar os cativos visava resgatar principalmente os irmãos na Fé

Um reino maometano não era, propriamente, um Estado organizado como nós o concebemos. Quem vê aqueles palácios, como Alhambra por exemplo, pensa que moravam ali reis com um mínimo de decência da praxe inerente a todo Estado organizado, com uma sucessão dinástica regular.

Ora, na realidade, tratava-se de uma espécie de Estado-bandido vivendo, como os bárbaros, numa luta habitual de saques e pilhagens contra quem não fosse eles, e muitas vezes contra eles mesmos também.
De maneira que cada um daqueles reinos, como o de Granada, não possuía uma verdadeira elite e constituía, até certo ponto, uma espécie de antro de bandidos que viviam de pirataria no mar e em terra, roubando como uma fonte habitual de renda e apoderando-se de cativos como um modo costumeiro de conquistar mão de obra e de incutir terror no adversário.
Notem o paralelismo: do lado católico o prisioneiro de guerra era muito melhor tratado do que do lado muçulmano. Assim, quando estavam em guerra, os católicos lutavam em inferioridade de condições, porque os mouros tinham menos medo de ser presos do que os cristãos, os quais, se fossem capturados, seriam pessimamente tratados ao chegarem à zona maometana. Por vezes, prisioneiros importantes eram desfigurados, horrorosamente maltratados, mortos e, com muita frequência, corrompidos moralmente. Era, portanto, uma situação miserável também do ponto de vista moral.
Então, a ideia de libertar os cativos visava resgatar os irmãos na raça, mas principalmente os irmãos na Fé. Era muito mais para salvar dos perigos da alma do que dos tremendos riscos do corpo. Pairava em toda a população uma preocupação: a perdição eterna daqueles que tinham sido aprisionados pelos maometanos.

 

Miséria do mundo atual: pactuar com os regimes perseguidores dos católicos

Muitas vezes, libertar os cativos era uma das razões das expedições católicas contra os muçulmanos. Os cristãos que delas participavam punham em risco suas vidas, sua liberdade e, de algum modo, sua própria salvação eterna, porque também eles podiam ser presos ao tentarem resgatar seus irmãos na Fé.
Havia alguns que não partiam em expedição, mas pediam esmolas para pagar o resgate dos cativos. Enfim, trabalhava-se constantemente com essa intenção de libertar os cristãos capturados pelos mouros.
A ideia de que uma parte da Cristandade estava sujeita ao regime pagão, a todos os sofrimentos e perigos do cativeiro entre os pagãos, gerava nos católicos uma imensa compaixão, um enorme zelo pela salvação daquelas almas, um grande senso de honra cristã.
Como sempre aconteceu na História da Igreja, quando há uma grande necessidade da Esposa Mística de Cristo a Providência suscita uma Ordem religiosa para socorrê-la, a qual é, ao mesmo tempo, uma família de almas e um instrumento de ação novo.
São Félix de Valois surgiu, portanto, como um dos Santos que encarnaram esse ideal, que sentia o problema com toda a energia das graças sobrenaturais que ele recebeu para isso e, por assim dizer, polarizou essa preocupação disseminada por todo o corpo social, chamando a si o encargo da fundação dessa Ordem.
A Ordem da Santíssima Trindade tornou-se famosa e realizou um trabalho prodigioso, atuando até o fim do século XVIII. As nações árabes do Norte da África perderam qualquer possibilidade de fazer novos cativos, e essa Ordem religiosa encheu-se de glória.
Chamo a atenção para o contraste entre a atitude dos católicos do tempo de São Félix de Valois em face dos cativos, e a indiferença reinante em nossos dias diante dos milhares de católicos que sofrem perseguição – muitas vezes tão brutal como outrora – por quererem permanecer fiéis à sua Fé.
Quase ninguém se incomoda com isso. Não se tem zelo nem vontade de combater. Pior ainda, há uma espécie de apetência de ceder, de pactuar com os regimes que promovem essa perseguição. Compreendemos, então, a miséria que se apoderou da Cristandade.

Ressuscitou um jovem príncipe

A respeito de São Félix de Valois, temos os seguintes dados biográficos extraídos do livro Vida dos Santos, do Abbé Daras:
São Félix de Valois foi grande por seu nascimento e maior ainda por suas virtudes. Seu pai era Conde de Vermandois e de Valois, filho do Duque de França e neto de Henrique I, Rei de França. Sua mãe era filha de Thibaud III, chamado o Grande, Conde de Blois e de Champagne.
Quando de sua gestação, sua mãe fez uma novena a São Hugo, Bispo de Rouen. No último dia da novena, estando de joelhos diante do altar do santo prelado, ela adormeceu e viu em sonho a Bem-aventurada Virgem Maria segurando seu Divino Filho em seus braços. Ao seu lado estava uma outra criança, bela e graciosa. Nosso Senhor levava uma cruz nos ombros, e a outra criança segurava uma coroa de flores nas mãos. Então fizeram uma troca: Nosso Senhor deu sua cruz à criança, que Lhe entregou a coroa.
A princesa procurava entender o sentido da visão quando São Hugo apareceu e lhe disse: “Esta criança que tu não conhecias é teu filho, que trocará as flores-de-lis de França pela cruz de Jesus Cristo, e ele a dividirá contigo para que ambos se assemelhem a Jesus Crucificado.”
Com efeito, o menino dividiu a cruz em duas partes, dando uma a sua mãe e guardando outra consigo.
Após a morte de sua mãe, São Félix foi chamado à corte onde tomou a cruz para acompanhar o rei numa Cruzada. Um dia em que se exercitava num torneio com o príncipe, este caiu do cavalo vindo a falecer. O Santo correu ao local, tomou a mão do cadáver e lhe disse: “Em nome da Trindade Santa, levanta-te!” No mesmo instante, o jovem levantou-se curado.

União da coragem militar à modéstia do religioso

ostras do seu valor e virtude. Mantinha, no meio do campo de luta, a vida austera de Claraval, unindo ao ardor e coragem militar a modéstia e discrição do religioso. Distinguiu-se em todas as batalhas das quais tomou parte e, quando voltou a Paris, quis se dar a Deus.
Embora fosse um dos mais próximos herdeiros do rei, trocou realmente a flor-de-lis pela cruz e fez-se religioso.
Após a fundação da Ordem dos Trinitários para a redenção dos cativos, São Félix foi encarregado da direção de um convento. Instruídos por sua palavra e seus exemplos, os religiosos levavam vida exemplar, de tal forma que a Santíssima Virgem e os Anjos dignaram-se honrar com sua presença esse mosteiro.
Em certa véspera da natividade de Nossa Senhora, tendo o sacristão esquecido de soar as Matinas, São Félix desceu ao coro para preparar o que era necessário. Mas ele já o encontrou ocupado pelos Anjos, vestidos com o hábito de sua Ordem. A Santíssima Virgem, também de hábito, sentada sobre um trono, presidia essa assembleia. Parecia que esperavam o Santo para começar as Matinas, porque logo que este entrou a Santíssima Virgem entoou a antífona, a qual foi continuada pelos Anjos com uma harmonia incomparável. E São Félix cantou com os Anjos. Quando a visão desapareceu, ficou em sua face extraordinário esplendor.

A Santíssima Virgem entoou a antífona

Que cena maravilhosa! Um convento com tanto fervor, onde se dá tal glória a Deus que, num dia, por um desígnio divino, um irmão esquece de soar Matinas e a Providência faz isso para operar uma maravilha maior!
Os Anjos vestidos de religiosos enchem as estalas do coro, Nossa Senhora, sentada num trono magnífico, entoa a antífona e todos os espíritos celestes cantam! São Félix de Valois chega ali e, em vez de se espantar e perder a cabeça, mistura o seu canto com o dos Anjos e da Santíssima Virgem!
Esse foi um ponto-ápice da vida desse príncipe, toda ela constante de uma série de fatos tão bonitos que davam para se fazer com eles um verdadeiro colar constituído de placas de esmalte, em que cada uma reproduzisse um desses episódios. Teríamos, assim, um dos mais belos colares da História, de tal maneira essa vida é maravilhosa.
Deparamo-nos, nesta narração, com o mistério da predestinação. Antes de o príncipe nascer, a Providência tinha resolvido fazer dele uma verdadeira maravilha. Donde aquele sonho admirável que sua mãe teve, no qual aparece o príncipe, o Menino Jesus e Nossa Senhora, e as relações que haveria entre o Divino Infante e São Félix são explicadas para a mãe.
Mais tarde vemo-lo como lutador, como grande guerreiro, e depois como religioso que renuncia a todas as coisas da Terra para se ocupar só com a Ordem religiosa. Afinal de contas, essa espécie de glorificação na Terra, que é a entrada de Maria Santíssima e dos Anjos no seu convento para junto com ele glorificarem a Deus.

 

O Reino de Maria será mil vezes mais esplendoroso

 

ria fazer uma iluminura ou um esmalte maravilhoso, constituindo-se uma biografia das mais bonitas que se possa conceber.
Em última análise, essa biografia significa o seguinte: a Idade Média dando muita glória a Nossa Senhora que, contente com essa era histórica, multiplica os prodígios para manifestar o quanto Ela estava satisfeita. Este é um desses gêneros de prodígios em série, feitos para exprimir a alegria de Maria Santíssima.
Devemos nos deter embevecidos na contemplação desses fatos, porque assim compreendemos o que é a misericórdia de Deus e de quantos esplendores a Civilização Cristã é capaz. Se esses episódios se passaram na Idade Média, que maravilhas veremos no Reino de Maria, o qual vai ser ainda superior àquela era histórica?
Assim, compreendemos que todo suor, sangue e lágrimas que vertemos atualmente para instaurar o Reino de Maria na Terra, estão muito bem recompensados. Quando contemplarmos essa época histórica vindoura e descobrirmos coisas ainda mais bonitas que as de outrora, e pensarmos que a Providência quis servir-Se de nós a fim de fazer cessar estes horrores contemporâneos para vir a era dessas maravilhas, então poderemos dizer, parafraseando Jó: “Bendito o dia que me viu nascer, benditas as estrelas que me viram pequenino, bendito o momento em que minha mãe disse: nasceu um homem!”
Realmente, cada um de nós poderá dizer isso, pois teremos, pela força de Nossa Senhora, derrubado toda a cidade da iniquidade e feito nascer o Reino de Maria, mil vezes mais esplendoroso do que esses esplendores que acabamos de considerar.v

(Extraído de conferências de 20/11/1964 e 19/11/1965)

 

Modelo perfeito de bispo

São Carlos Borromeu não foi apenas um grande bispo contrarreformista, mas, em algum sentido, o Bispo da Contra-Reforma. Não só por ser um homem de grande preparo e cultura, que irradiou sua sabedoria em seu tempo, mas por ter realizado o modelo  perfeito de bispo.

Não basta redigir obras refutando isso ou aquilo. A pessoa precisa ser a personificação, o próprio símbolo, o tipo humano das obras que escreveu. O trabalho que ele realizou, sendo o Bispo da Contra-Reforma e o modelo de bispo, foi de uma eficácia para a Igreja certamente maior do que a dos próprios escritos dele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1963)

São Carlos Borromeu, o Bispo da Contra-Reforma

A Pseudo-Reforma Protestante foi um dos grandes lances da Revolução. Porém, em contrapartida, Deus suscitou almas que muito contribuíram para explicitar e definir as verdades negadas pelo Protestantismo. Uma delas foi São Carlos Borromeu, grande figura da Contra-Reforma.

Sobre São Carlos Borromeu há os seguintes dados. Apesar de curtos, creio serem muito elucidativos:
Feito cardeal aos 23 anos, São Carlos Borromeu foi suscitado por Deus para a verdadeira reforma da Igreja.

Presidiu sínodos e concílios, estabeleceu colégios e comunidades, renovou o espírito de seu clero e das ordens religiosas.

À sua prudência deve-se, em grande parte, a feliz conclusão do Concílio Tridentino.

Modelo de Bispo da Contra-Reforma

São Carlos Borromeu tornou-se uma grande figura da Contra-Reforma, a qual nos interessa especialmente. Se a Pseudo-Reforma foi um dos grandes lances da Revolução, a Contra-Reforma foi, evidentemente, um dos grandes lances da Contra-Revolução.

As grandes figuras da Contra-Reforma auxiliaram muito a definir, na Igreja, todas as verdades que o protestantismo negava. Representam um grande exemplo para nós, tendo sido o contrário de certos teólogos vazios, que não têm os olhos postos nos problemas do tempo, mas escarafuncham, por curiosidade, questões dentro dos jardins da Teologia. Os personagens da Contra-Reforma tinham sua atenção posta no mal como se apresentava naquele tempo, e tomaram posição contra esse mal; por essa forma fizeram progredir muito a doutrina católica.

Uma categoria de pensamento do contrarrevolucionário é exatamente não estar fazendo estudos no ar, os quais não têm relação com o aspecto que a Revolução apresenta no momento; mas realizar estudos a serviço da Igreja, para salvar as almas, refutar ideias falsas e, mais ainda, em que o suco do pensamento é acrescido pela análise acurada do erro.

É próprio do sentido cultural de nosso Movimento conhecer a verdade por duas formas.

Primeira: deduzindo as verdades ainda não sabidas daquelas que já são conhecidas. Segunda: analisar o erro e, ao refutá-lo, conhecer melhor e mais profundamente a verdade estudando a negação dela. Não aproveitando os fragmentos de verdade existentes no erro, mas, por exclusão, entendendo a verdade que se deve sustentar. Por essa razão, os doutores da Contra-Reforma nos são muito caros.

São Carlos Borromeu foi, não apenas um grande bispo contrarreformista, mas, em algum sentido, o Bispo da Contra-Reforma. Não só porque ele era um homem muito preparado, de grande cultura e que era irradiada por ele a toda a Igreja em seu tempo, mas por ter realizado o modelo perfeito do bispo. Muitos dos bispos bons, que viveram desde a Contra-Reforma até nossos dias, tinham o ideal de serem bispos como o foi São Carlos Borromeu.

Eficácia do tipo humano

Não basta redigir obras refutando isso ou aquilo. A pessoa precisa ser a personificação, o próprio símbolo, o tipo humano, das obras que escreveu. O trabalho que ele realizou, sendo o Bispo da Contra-Reforma e o modelo de bispo, foi de uma eficácia para a Igreja certamente maior do que a dos próprios escritos dele. Não quero dizer que sempre o exemplo vale mais do que o escrito –– seria exagerado. Mas, nesse caso concreto, ele valeu mais pelo exemplo do que pelos seus escritos.

Para não me alongar demasiado, conto um fato da vida desse santo:
Naquele tempo, julgava-se — como também nós julgamos — que um cardeal deve revestir-se de pompa, de grandeza, de solenidade, para fazer brilhar a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo diante dos homens. São Carlos Borromeu pertencia a uma grande família italiana; além de Príncipe da Igreja ele era, até certo ponto, senhor temporal de Milão e, durante certo tempo, foi Cardeal Secretário de Estado. Por todas essas razões devia cercar-se de grandeza, e de fato ele assim o fez.

Certa vez, ele andava numa esplêndida carruagem, com acolchoados, e toda a pompa, pelas ruas de Milão — ou numa estrada, não me lembro exatamente — quando passa perto dele um frade simples, pobre, montado a cavalo. Cumprimentos de parte a parte, e o frade lhe diz: “Eminência, como é agradável ser cardeal! Viaja-se de modo mais cômodo do que um simples frade!” O Cardeal Borromeu voltou-se muito gentilmente para o frade e convidou-o então a viajar com ele. O frade entrou na carruagem, sentou-se e começou a dar gritos devido aos cilícios existentes por debaixo do banco. O cardeal viajava sobre cilícios, sofrendo com as sacudidelas próprias de uma estrada ou rua daquele tempo, embora metido nas sedas, nos cristais e púrpuras de uma carruagem provavelmente toda dourada e ainda com plumas e lacaios.

A santa prudência

Quanto à “prudência” de São Carlos, não significa que ele tenha sido um homem cauteloso, que evitou qualquer risco. Esse é o sentido comum da palavra prudência. A prudência é a virtude cardeal que nos faz conhecer e aplicar bem os métodos necessários para os fins que temos em vista.

Por exemplo, um membro prudentíssimo de uma empresa de contabilidade é aquele que emprega as boas regras para tocar para a frente a escrituração. Nós agimos com prudência em relação à legislação trabalhista, não só pagando o necessário para evitar problemas, mas também tomando as necessárias providências para receber aquilo a que temos direito. Quer dizer, a prudência é o acerto no agir. Então, o texto da ficha elogia São Carlos Borromeu porque teve esse acerto. Para a conclusão do Concílio de Trento ele empregou, com grande sabedoria e prudência, os métodos adequados.

Na Ladainha Lauretana se invoca Nossa Senhora como “Virgo Prudentíssima”, a Virgem que com muito acerto fez as coisas para chegar ao fim que a super excelsa vocação d’Ela pedia ou indicava.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/10/1963 e 4/11/1968)