“Meu filho…”

Ao tecer enlevados comentários a uma passagem do livro do Eclesiástico, Dr. Plinio nos mostra a Sabedoria divina ensinando aos filhos de Deus — verdadeiro Pai e protetor dos que O amam — a paciência, a humildade e a confiança, especialmente nos momentos de infelicidade e provação nos quais a alma se edifica e se modela, conformando-se aos desígnios que lhe reserva a Providência.

 

Inspirados pelo Divino Espírito Santo, os livros da Bíblia estão permeados de uma riqueza de ensinamentos, aliada a uma beleza literária e poética, que nunca cansamos de admirar e haurir para o engrandecimento de nossa alma.

A título de exemplo, consideremos os seguintes versículos do Eclesiástico (2, 1-6;11-12):

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Inefável timbre da Escritura

A Escritura como que possui um timbre de voz próprio, em virtude do qual quando diz “meu filho”, sente-se realmente o desvelo materno ou paterno para com seu filho. Quase nos tomamos de remorso ao ler tais palavras em voz alta, acrescentando nosso verbo ao inefável, mas verdadeiro, que os livros sagrados expressam.

Nota-se, aliás, um reflexo desse predicado na frase que São Bento escreveu na introdução de sua regra: “Escuta, filho meu,  os preceitos do mestre, e inclina o ouvido do teu coração. Recebe de bom grado o conselho de um bom pai, e cumpre-o eficazmente, para que, pelo trabalho da obediência, voltes Àquele de quem te havias afastado” (Regra de São Bento, Prólogo).

Dever-se-ia aprender a exprimir frases semelhantes, não se fazendo a pergunta: “Qual o melhor efeito que posso tirar de minha voz pronunciando essas palavras?”, mas formulando outra indagação: “Qual o timbre com que a Escritura afirma tal coisa? De que modo posso obrigar minha laringe a emitir os acentos dessa voz inspirada por Deus?”

Esta última seria a disposição correta para se saborear a beleza do texto do Eclesiástico acima citado.

Humildade e paciência

Então diz o autor sagrado:

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação.

Ou seja, na prática das virtudes e no temor de Deus, preparamos nossa alma para o momento da tentação. É um esplêndido conselho! “Começastes a amar o Criador? Atenção: prepara-te, pois a provação virá.”

E prossegue:

Humilha teu coração, espera com paciência…

É interessante notar a correlação estabelecida pela Escritura entre humildade e paciência. O homem humilde espera com paciência; o orgulhoso se exaspera com a demora.

Dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade.

Ou seja, no tempo difícil, não tenha pressa em sair dele. É o que a sabedoria sussurra em nosso espírito. Trata-se de outro ensinamento admirável.

Suportar a demora com heroísmo

Sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

“Sofre” aqui significa aturar, suportar. Pelo que se depreende do texto, a vitória é concedida a quem sofreu com paciência. Paciência esta que não é indolência, mas a virtude forte por onde se aguenta a dor da espera. E ai do homem para o qual a demora não representa uma dor! Ai daquele, portanto, que não suporta pacientemente o sofrimento da espera!  Deve fazê-lo como um herói. Nisto se acha a beleza desse conselho do Eclesiástico, numa íntima conexão com aquele da humildade.

O homem reto poderia pensar: “Minha paciência me dá o direito de presenciar em vida a realização de tudo que desejo, o triunfo da Igreja no Reino de Maria”. É verdade… Porém, por humildade, devo compreender que Deus faz de mim o que quiser. Posso, inclusive, ser posto de lado em seus divinos planos. Resultado, essa provação me granjeará riquezas no fim de minha existência: “…no derradeiro momento tua vida se enriqueça”.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência.

Em outros termos, sinta a dor, sofra, porque é terrível o que te acontece. Não sejas um inerte e tolo que, à força de apanhar, não tens mais dor. Não. Suporta teu sofrimento, por amor a Deus. Adiante!”

Não se trata de uma atitude simples de ser tomada, mas é profundamente formativa.

Deus prova aquele a quem ama

Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Quer dizer, a quem Deus ama, fá-lo passar pela humilhação. Como diz o Salmista, “de torrente in via bibet” (Sl 109, 7) — “beberei da torrente do caminho”, isto é, sofrerá grandes abatimentos, depois dos quais poderá chegar aos píncaros. Tais humilhações hão de estar no seu caminho nesta ou naquela ocasião, ou durante a vida inteira, conforme os desígnios do Altíssimo, que por isso aconselha: Sê paciente e caminha!

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Outra bela expressão do autor sagrado, indicando que devemos, até o fim dos nossos dias, cultivar não apenas nossa confiança no socorro divino, como também o temor filial e reverencial a Deus.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Para dizer tudo numa palavra, esses versículos se compaginam de modo maravilhoso com a tocante súplica dirigida por São Bernardo a Nossa Senhora, no Lembrai-Vos: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenham recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado…”

Guiados pela sabedoria, ao encontro da Santa Igreja

Para concluir esses comentários, recordo outra linda passagem da Escritura, desta feita do Livro da Sabedoria (6, 12-17):

Resplandecente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente. Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam. Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta. Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado. Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos, porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

Desdobrando o luminoso pensamento contido nesse trecho, pode-se deduzir que se um homem, ao longo de sua existência, encontrou o que deveria procurar, no fim de seus dias poderá dizer: “Eu vivi!”. Do contrário, lamentar-se-á: “Andei pelas ruas como um cão sem dono, comi nas latas de lixo, bebi nas sarjetas, dormi na garoa, na chuva e ao sol, porém não vivi. Porque não encontrei a mão amiga que me agradasse, o dono que me afagasse. O cachorro foi criado para ser fiel e eu, para servir. Mas, não achei senhor. Tive uma via vazia e morro de modo desprezível”.

E se a pessoa, em qualquer etapa de sua existência — infância, juventude, idade madura, ancianidade — procura realmente o que deve, ela encontra, na proporção de seu entendimento em cada uma dessas etapas, a sabedoria. Esta se acha à nossa porta, esperando-nos despertar. Ao acordarmos, ela, com seu esplendor de rainha, suas carícias de mãe e iluminações incomparáveis, convida-nos a segui-la.

E, deixando-nos guiar pela sabedoria, encontraremos os esplendores ainda maiores da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

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