Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – II

Viver para um ideal é o melhor remédio contra os problemas da vida espiritual ou os desequilíbrios nervosos. Entretanto, isso só é possível se este ideal está constantemente voltado ao amor à transesfera, que é o início, a orla do amor de Deus.

 

Certa ocasião caiu-me nas mãos uma fotografia minha tirada em menino. Eu estava no último período dessa fase, antes de encontrar a Revolução e ter que começar a pensar nela.

Brisas e cores absolutas que não existem nesta Terra

Entrei no Colégio São Luís pelos dez anos de idade, e aí começou outra fase. Fui tirar uma fotografia, porque naquele tempo, de quando em quando, as pessoas punham uma roupa melhor e se faziam fotografar, o que depois ficava no balaio das recordações da família. Balaios esses que a minha geração jogou todos no lixo. Em casa se conservou porque mamãe guardava.

Nessa fotografia eu estava vestido não com traje de gala, mas com a roupa que um menino fino punha para ir passear, tomar um lanche numa confeitaria, umas coisas assim.

Lembro-me perfeitamente do estado de espírito com que me encontrava naquela ocasião. Eu estava inundado de cogitações destas e fui para o fotógrafo, o qual me olhou e percebeu que eu permanecia inteiramente alheio a ele, à “Fräulein” e a tudo mais, e que não estava, portanto, com “cara fotográfica”. Então, ele me recomendou:

— Tome uma atitude.

Eu fiquei em pé e disse:

— Estou aqui!

— Não, não. Uma atitude viva!

— Mas eu não sei tomar uma atitude viva.

— Olhe, fique bem perto deste sofá, ponha seu pé aqui, sua mão no queixo…

Eu executei o que ele quis, mas pensando em outras coisas. Ele me fotografou nessa situação.

No que eu pensava? Era um meio-pensar e meio-sentir. Nessa minha idade, não podia ser uma especulação filosófica, abstrata, nem eu tinha talento para fazer isso. Era algo quase prosaico, mas assim: sempre gostei enormemente de toda espécie e grau de vento: brisa, ventinho, ventania, tufão… Lembro-me de que naquele dia soprava sobre mim uma brisa ligeiramente tendente para fresca, e eu estava vestindo uma roupa muito arejada. Sentia-me, assim, inundado pela brisa, leve, refrigerado, e a claridade do dia parecia ter uma reversibilidade com o frescor discreto da brisa. Parecia-me haver um nexo, mas não sabia qual, entre todos aqueles prazeres e um lado invisível onde havia brisas e cores absolutas, como esta Terra não tem.

Naturalmente, nesta comparação entram as características minhas. Portanto, sendo eminentemente colorista, as cores, brisas e temperaturas falam-me muito.

Então, por exemplo, um nácar, num dia como aquele, mais do que em outros, levava-me a ideia para um nácar perfeito, mas que me parecia ter um parentesco com uma porção de outras cores perfeitas simbolizadas pelas cores contingentes que eu via em torno de mim. Isso eu percebia vagamente, não tinha inteligência para formular, mas a minha sensibilidade era como se esse nácar perfeito fosse meio vivo, ou habitasse numa terra, fosse de uma zona onde as cores eram bem vivas. De fato, não era assim, mas uma sensação do absoluto e de Deus, e de que, com a ajuda de Nossa Senhora, eu chegaria até lá.

Eu mantinha o olhar voltado para essa zona de modo permanente, mas com graus de intensidade muito desiguais. No dia dessa fotografia, não sei por que, era muito maior. Entretanto, quer nos dias maiores, quer nos menores, mais ou menos eu percebia o nexo disso com milhares de outras coisas que formavam uma transesfera(1).

A parte mais rica, produtiva e fina da inteligência de um homem

Parece-me que isso tem certa relação com o discernimento dos espíritos. Quando se tem isso muito fino, percebe-se melhor nos outros qual é o estado de alma. Sobretudo, a primeira nota que se toma a respeito de alguém, e que dá a clave em função da qual essa pessoa deve ser interpretada, é ver como ela está em relação a essas riquezas de alma. Sem isso as correlações não se fazem.

A meu ver, essa é a parte mais rica, mais produtiva e fina da inteligência de um homem. Não é inteligência universitária. É um pensar, sentir, querer, onde a reversibilidade entre essas três potências da alma se nota melhor.

O amor a essa transesfera é o início, a orla do amor de Deus. Para esse amor, o homem se volta por interesse ou desinteresse? Esta é uma pergunta fundamentalmente mal feita, porque aí o interesse e o desinteresse se fundem num píncaro mais alto. Aí está o verdadeiro amor de Deus. Exatamente, a dissociação entre interesse e desinteresse põe-se num nível menor. Se eu tiver que renunciar a um interesse para conservar isso, eu o farei. Mas nisso há uma coisa que supera o interesse e o desinteresse. É o movimento inteiro de minha alma; por todas as razões de meu desinteresse e de meu interesse eu pendo para lá.

Não sei quantos problemas há na vida espiritual em que nós passamos dez, quinze, vinte anos remexendo inutilmente; e quanto mais remexe, mais desgasta o terreno e mais o cobre com a poeira das decepções, porque a solução não está ali, mas sim no que estou dizendo. Como também problemas de desequilíbrio nervoso. Então, toma um remédio para se equilibrar. Eu até sou favorável ao remédio quando o desequilíbrio chegou a tal ponto que não tem outro jeito. Mas esta é uma contemporização necessária, não a solução. A solução é isto de que estamos tratando. Seria até a nossa resposta à Psiquiatria contemporânea. O absoluto é melhor do que a Psiquiatria. Viver para um ideal resolve problemas de nervos.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)

Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

 

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