Santidade, o ideal de todo homem

De que aproveitará ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26) — é a advertência, repassada de solicitude, que nos faz o Divino Mestre. Na verdade, riquezas e glórias  terrenas, reconhecimento e aplausos nesta vida, de nada nos valerão para a eternidade, se não procurarmos a perfeição. Por isso Dr. Plinio tomava tanto a peito formar seus filhos e discípulos no  maior e mais belo dos ideais: a santidade.

 

Neste mundo em que o existir humano se volta, cada dia mais, para os interesses meramente terrenos, é muito importante termos bem claro qual o verdadeiro fim a que o homem deve aspirar na sua vida.

A felicidade da perfeita realização

Em primeiro lugar, consideremos que a criatura humana, por sua natureza, é dotada de valores e possibilidades que ela deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se realizar por inteiro. Para  e valer de uma comparação, tomemos por exemplo um vidro de perfume aberto numa sala. Ele contém uma fragrância da qual o próprio é evaporar-se e impregnar com seu envolvente  aroma o ambiente em que se encontra. Suponhamos que o perfume, posto no frasco, pudesse pensar. E imaginemos que ele permanecesse tampado no seu invólucro de cristal sem que ninguém  jamais o cheirasse, guardado numa gaveta, esquecido, durante 100, 150 anos, até que alguém, ao arranjar um armário velho, numa velha casa de família, o achasse, o destampasse, e dissesse: “Isto  é um perfume antigo que não vale para nada”.

E logo em seguida o espalhasse pelo jardim, deixando que seu cheiro deteriorado e repelente espante as minhocas e bichinhos que vivem dentro da terra. Se esse perfume pensasse, ele julgaria que  ua existência foi bem sucedida?

Reflitamos um momento. Dentro de um vidro de cristal que abafa, colocado na semi-obscuridade de uma gaveta segura, ele teria todo o conforto e a tranqüilidade das coisas nas quais ninguém mexe, que não passam por nenhum susto, que não trabalham, das coisas que, afinal de contas, são zero. Ele estaria ali cercado de toda comodidade. Um perfume não come, não bebe, não dorme; um perfume simplesmente se limita a existir, e existir dentro de um vidro. Um bonito frasco de cristal é um palácio para um perfume, com todas as facilidades de uma boa existência.

Entretanto, algo nele lhe é motivo de sofrimento. É que está na natureza dele perfumar, e ele preferiria qualquer coisa a não poder fazê-lo, pois esta lacuna é contrária à sua essência.

Semelhante raciocínio se aplicaria, por exemplo, às águas que correm sob a terra. Existem rios, fontes subterrâneas que não chegam a aflorar na superfície, e vêem suas águas caudalosas, abundantes, viverem numa perpétua obscuridade. Essas águas poderiam pensar o seguinte: “Felizes somos nós, que não temos bichos, que não precisamos suportar o peso de nenhum barco, e não temos de fazer outra coisa senão deixar a força da gravidade nos ir levando para onde for. Para nós é o ideal!”

Mas, imaginemos que uma dessas águas, de repente, passasse por uma fenda qualquer, encontrasse finalmente a luz do sol e começasse a longa travessia de uma massa líquida desde a sua nascente até o oceano onde ela deve sumir.  É uma epopeia que atravessa mil vicissitudes: um pouco dessa água é absorvida pela terra, outro tanto se evapora, forma-se em nuvem e vai cobrir os céus de algum lugar distante do mundo; um pouco dessa água é derramada aos pés de uma flor, transforma-se em matéria que fará desabrochar uma linda magnólia ou uma bela rosa…

A água passará por mil vicissitudes, mas quando ela saísse da terra e começasse a sua movimentada trajetória, se ela pudesse pensar, se ela pudesse cantar, ela cantaria depois de ter pensado, e diria: “Chegou a minha vez de ser flor, de ser bebida pelos homens e pelos animais, chegou a minha vez de ser nuvem, chegou a minha vez de ser tudo! Afinal, realizarei aquilo que está na minha natureza ser!”

E por mais aventurosa que fosse a existência daquela água, nisto ela encontraria uma felicidade que não lhe seria dada em nenhuma outra condição.

Todo homem procura um ideal

Se essa  necessidade da existência realizada parece tão evidente nos seres inanimados quando nós os imaginamos vivos, como não o será para o homem? Ao procurar a sua felicidade, a sua realização, o  que ele deseja? Ficar engarrafado? Ser um curso de água subterrâneo? Ele procura não ter história, nem vencer dificuldades?

Não. Inteligente, dotado de uma alma espiritual, a primeira coisa que o homem procura, pela sua natureza, é ter um ideal: uma verdade suprema de onde ele deduza todas as outras verdades; uma  beleza suprema da qual ele deduza todas as outras belezas; uma santidade suprema em cuja luz ele contemple todas as outras santidades. Isto o homem deseja, sem que lhe baste ficar apenas no  pensamento. Depois de pensar, ele quer agir, quer ter uma vida em que mexa as coisas e as faça andar num determinado rumo, ainda que isto lhe custe muito. E ao atingir o anoitecer da existência, o homem se perguntar á sobre seus dias neste mundo. E terá imensa alegria se compreender que ele foi um perfume que se evaporou, foi uma água que fecundou terras ou se transformou em flor; se ele compreender, sobretudo, que foi um herói, enfrentando riscos, realizando seu ideal. Então, feliz, ele pode encarar de frente o pouco tempo que lhe resta, e dizer:

“Eu fiz o que eu deveria ter feito, a minha vida está realizada! Vivi! E agora só me resta a coroação da vida: é morrer.”

Ser santo, a mais bela ambição humana

Trata-se de um impulso interno  existente em todo homem, e que se reveste de particular riqueza se considerarmos o seguinte: quando uma criatura humana procura se realizar, procura ser “perfume”, procura ser “água”, procura ser herói, ela não pode ter ambição mais bela e mais nobre diante de si, do que a de ser santa.

Enganar-se-ia quem pensasse que o ideal de santidade não está ao alcance de qualquer um, mas apenas para aqueles expoentes da humanidade que um dia chegam à glória dos altares.

Na verdade, segundo a doutrina católica, sabemos que, pela ação da graça, dom sobrenatural de Deus, todos nós podemos ter uma participação criada na existência incriada do Altíssimo. Com  isto, algo de divino penetra em nós, e recebemos uma força para conhecer e crer em coisas as quais nossa inteligência, por maior que fosse, não teria capacidade de compreender sem esse auxílio da graça. Assim como à nossa vontade é comunicado um vigor para fazer e conseguir coisas que, sem a ajuda sobrenatural, não faria nem conseguiria.

Quer dizer, a graça eleva o homem a uma tal condição que o menor indivíduo — como capacidade, como apresentação, como cultura, como tudo —, sob o influxo da vida sobrenatural vale mais do que  o maior dos homens sem aquele dom divino.

Convidados para a corte celestial

E o primeiro convite que Deus Nosso Senhor nos dirige, quando a Providência d’Ele nos encaminha para o batismo, é este: “Meu filho, Eu te dei a condição de homem; não queres mais? Não queres  ser um príncipe na minha Criação? Eu te concedo uma participação criada na minha própria vida. Com isso Eu habitarei em ti, e tu serás o templo no qual Eu viverei. Far-te-ei meu herdeiro.”

É um chamado maravilhoso, que se desdobra em outros não menos extraordinários. Depois de ser dado ao homem o Batismo, após ser infundida nele esta virtualidade incomparável que é a graça,   própria graça o impele para coisas inauditas, superiores à sua estatura, coisas em que o homem galgue acima de si mesmo e realize feitos de heróis de sonho, de heróis de paraíso, numa palavra, de heróis do Céu.

O verdadeiro católico no qual vive a vida sobrenatural deseja, portanto, o maior. E se ele não chegar ao maior, não chega a nada. Ele quer o quê? Ser um cortesão de Deus no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça, imorredoura, na contemplação e no diálogo contínuo com o Ser Supremo, Perfeito, que é Deus Nosso Senhor, por toda a eternidade.

Ali teremos esse convívio perpétuo com o Criador, no qual Ele nunca se cansa de nós, e nós nunca nos cansamos d’Ele: Verdade, Bondade, Virtude, Santidade e Beleza personificadas, recompensa  demasiadamente grande que encontraremos no fim desta altíssima escada que todos subimos, degrau após degrau, passando por aventuras, batalhas, sacrifícios e privações. Ali, Deus se revela a nós na sua eternidade, com todo o atrativo daquilo que existiu sempre e daquilo que sempre existirá — o passado no seu esplendor, o futuro na sua magnificência.

É uma situação simplesmente admirável a que somos chamados, fazendo-nos santos, postos na visão e na adoração contínuas da Trindade Santíssima. Então, compreendamos que um homem de fé não se sente talhado para a vida insípida do perfume engarrafado, que envelhece e em determinado momento é jogado fora. Ele se sente, sim, feito para uma imensa, criteriosa, sábia, mas ousada aventura, aquela em que ele ordena sua alma para Deus, a purifica e embeleza, preparando-a para o salto dentro da morte. E com a proteção de Nossa Senhora, Mãe e Rainha de Misericórdia, este salto será para a bem-aventurança eterna, para a corte celestial onde um assento nos está reservado.

Julgados e premiados segundo o amor

Para concluir, é oportuno lembrarmos ainda que Deus tem seus mistérios, e não há quem possa afirmar com toda a certeza que tal bem-aventurado é maior que outro aos olhos do Senhor. Quem  poderá conhecer os arcanos da maravilhosa história das almas? Quem poderá ter exata noção de quantas pessoas se sacrificaram pela Fé nos desertos da África e da Ásia, nas vastidões das Américas, em  meio a populações bárbaras e indígenas, aqui, lá e acolá? E com quanto amor essas pessoas aceitaram esse sacrifício?

Ora, é pelo amor que somos grandes aos olhos de Deus. E se alguém, apagado e obscuro no entender do mundo, entretanto fez um imenso sacrifício com imenso amor, quando forem reveladas todas as coisas no Juízo Final, o maior será esse.

Donde, também, não devemos nos pôr a pergunta se os homens reconhecerão nossas realizações e nossas grandezas. Importa sabermos que Deus nos assiste a todo momento, perscrutando no fundo das almas o amor com que O servimos. E se é verdade o ensinamento de São João da Cruz, segundo o qual “no entardecer desta vida, seremos julgados segundo o amor”, o amor que tivemos a Deus, é verdade então que Ele olhará para quem mais O adorou e glorificou, de forma notória ou oculta, e lhe dirá: “Este me amou de modo extraordinário e merece a maior recompensa!

Por sua vez, este homem que santificou sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer as palavras mais magníficas que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Eu percorri toda a extensão que deveria percorrer; combati por Vós o bom combate, o combate pelo bem; dai-me Senhor, agora, o prêmio de vossa glória!”

É na esperança de podermos viver, de batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve graças para nos tornarmos  outros heróis da Fé e príncipes do Céu, que devemos atravessar nossos dias nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2011)

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