Por que cultuamos as relíquias?

Reproduzimos a seguir uma valiosa exposição de Dr. Plinio sobre a tradição de prestar culto às relíquias dos santos, prática que ele prezava sobremodo e cumpria diariamente.

 

A palavra relíquia vem do latim “reliquus” (restante) ou “relinquere” (deixar). Relíquias são, pois, as coisas que restaram ou foram deixadas. Nesse sentido, a relíquia de um santo é aquilo que dele restou ou o que ele deixou.

Como se sabe, a Igreja distingue entre duas espécies de relíquias: as diretas e as indiretas.

A relíquia direta provém do corpo, dos ossos ou das cinzas de um santo. A relíquia indireta é algo que nele foi tocado. Da relíquia indireta temos ainda duas espécies: ou são os objetos com os quais o santo teve contato em vida, ou são coisas que se tocam nos corpos de santos depois de mortos.

Acontece às vezes ouvirmos falar de uma quantidade imensa de relíquias indiretas, e alguns objetam dizendo que os santos não poderiam ter tocado em tantas coisas. Na realidade, eles não o fizeram, mas certas coisas foram encostadas nos ossos deles ou em suas relíquias diretas, para serem distribuídas.

Fundamentação do culto às relíquias

O fundamento do culto às relíquias indiretas é algo um tanto difícil de exprimir, mas cujo valor é intuitivo e vem do seguinte: quando uma pessoa toca em alguma coisa, algo dessa pessoa passa para aquilo que foi tocado. Por exemplo, uma cadeira na qual Napoleão se sentou quando esteve em determinado lugar. Algo da dignidade, da importância e mesmo dos defeitos de Napoleão passa para a cadeira.

Teríamos uma ideia ainda melhor disso, se nos oferecessem de presente a corda com que Judas se enforcou. Em si, é uma corda como qualquer outra. Dir-se-ia apenas estar muito velha, com cerca de dois mil anos. Se estivesse em razoável estado de conservação, daria até para amarrar um cachorro. Contudo, nem quereríamos tocar nela. Como que um pouco da infâmia de Judas passou para a corda.

Então, há esse fato de que algo “impregna” aquilo que foi tocado.

Encontramos, aliás, na Sagrada Escritura um episódio curioso nessa linha. Quando o Evangelho relata a cura de uma mulher que tocou na túnica de Nosso Senhor, acrescenta que o Divino Mestre perguntou quem a tinha tocado, porque sentiu que uma virtude curativa saíra d’Ele.

A túnica tinha servido de elemento de transmissão de uma força terapêutica proveniente de um corpo Sagrado, o qual como que enobreceu e dignificou a vestimenta.

Por causa disso, no tesouro da Igreja encontramos algumas relíquias indiretas de uma importância tão grande que elas, por assim dizer, valem mais do que as relíquias diretas.

Por exemplo, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma relíquia indireta; o Santo Sepulcro é uma relíquia indireta, assim como o são também os fragmentos que restam da manjedoura onde Jesus nasceu.

Como são sagrados esses objetos que, afinal de contas, são relíquias indiretas, mas que veneramos quase como se fossem relíquias diretas!

Inestimável valor das relíquias diretas

Devemos considerar igualmente as relíquias em que a pessoa não só tocou, mas se serviu delas como instrumento para a realização de uma ação insigne. O fato de se ter prestado um gesto eminente, aumenta muito o valor da relíquia.

Considere-se, por exemplo, um pedaço do pano com que Verônica enxugou o rosto de Nosso Senhor. Ainda que não tivesse sido estampada ali a verdadeira face dele, pela razão de ter servido para consolar a Nosso Senhor numa situação muito difícil, por ter sido instrumento de uma ação nobre, de um ato de generosidade e de coragem, aquela relíquia vale muito, pois adquiriu algo da dignidade da ação da qual participou.

Vimos, então, que relíquias indiretas são as coisas tocadas por alguém, ou aquelas que lhe serviram como meio de ação. Num sentido muito mais amplo, já não no religioso, mas analógico da palavra, podemos também considerar relíquias as obras que alguém deixou, os livros que escreveu, os pensamentos que transmitiu.

Outrossim, como relíquia poderíamos considerar os filhos de uma pessoa, a prole deixada por ela e que, de algum modo, no-la recorda. Tome-se toda essa doutrina das relíquias, ampliada como a estou dando, e teremos o fundamento da Tradição.

Esta é, exatamente, a continuidade de algo, é a transmissão de notícias, memórias, hábitos, costumes, de uma geração à outra através do exemplo, ou mediante informações, testemunhos, ensinamentos orais ou escritos. Vemos como isso tem analogia com o culto católico das relíquias, e, portanto, como o fundo do nosso pensamento, enquanto defendendo a tradição, toca no mais recôndito do pensamento católico.

Agora, se, como observamos, as relíquias indiretas têm tanto valor e são tão sagradas, o que dizer das relíquias diretas?

Um pedaço de carne ou um fragmento de osso de um santo é uma parte, um elemento constitutivo da própria pessoa do santo. E está em união — que não é viva, mas entretanto profunda, de caráter metafísico — com a alma do santo no Céu. Aquela relíquia é, pois parte de uma pessoa que se encontra no Céu.

De tal maneira que quando o santo ressuscitar, aquele fragmento vai ser incorporado ao corpo dele e passará para o estado glorioso. Aquele pedaço de carne e aqueles ossos que se acham em nossos relicários irão se reunir novamente no corpo ressurrecto do santo, e vão dar glória a Deus durante toda a eternidade no Paraíso!

Compreende-se, portanto, como tais fragmentos são mais do que qualquer outra relíquia indireta, posto serem, em certo sentido, a presença física do próprio santo entre nós.

É claro que, se de uma túnica de Nosso Senhor saíam graças, estas também sairão dos santos de Deus. Destes o Divino Mestre declarou que eram mais unidos a Ele do que sua Mãe e seus irmãos. Podemos por aí imaginar o quanto os bem-aventurados estão ligados a Ele, muito mais do que uma túnica!

A garantia de se “arrancar” as graças de um Santo

Então, compreendamos quanto essa presença das relíquias constitui uma graça para aqueles que as levam.

Para melhor frisá-lo, reporto-me mais uma vez às palavras que Santa Marta disse a Nosso Senhor. Ela havia mandado chamar Jesus para atender a Lázaro, que estava muito mal. Nosso Senhor não veio, e Lázaro morreu. Ela então disse esta frase curiosa: “Mestre, se tivésseis estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

Ou seja, ela tinha certeza de que a presença física de Nosso Senhor determinaria uma atitude d’Ele, que era a de curar o irmão. Portanto, quando se tem a presença física de Jesus, a graça se torna quase irrecusável.

Ora, pode-se dizer mais ou menos o mesmo da relíquia de um santo: guardadas as devidas proporções, tem um valor semelhante ao da presença física de Nosso Senhor.

Quer dizer, é uma garantia de que o santo de algum modo está fisicamente presente onde se encontra a relíquia, e que quase podemos arrancar as graças dele, por atenção às relíquias que são parte dele.

Compreende-se então que, nesse sentido, as relíquias têm um grande significado e são fontes colossais de graças, devendo ser tratadas com muito respeito.

Sendo, em última análise, fragmentos de santos, e nada havendo de mais respeitável, abaixo de Deus, no Céu e na Terra, do que esses heróis da Fé, claro está que devemos ter suma veneração para com tais fragmentos. Uma relíquia direta é algo de imensamente mais respeitável do que qualquer dignidade régia, e por isso os antigos construíam catedrais para abrigá-las.

Por exemplo, a Sainte Chapelle, com toda a sua magnificência, foi edificada para custodiar uma das mais preciosas relíquias indiretas de Nosso Senhor: um dos espinhos da coroa sagrada.

Cuidados que devemos ter no cultuar as relíquias

Cumpre termos sempre em mente tudo o que acaba de ser dito, para entendermos o tesouro que é uma relíquia.

Cabe aqui fazer uma aplicação concreta acerca do modo de guardá-las e de venerá-las.

Não é correto conservar as relíquias jogadas em gavetas, no meio de outros objetos: repelentes contra mosquitos, remédios, “band-aid”, etc., e, chocando-se com eles, relíquias de três ou quatro santos. Essa é uma forma muito incorreta de tratá-las.

Se não se dispõe de recursos, é preciso ter uma pequena caixa, mesmo de papelão, mas inteiramente separada, colocada de preferência num lugar onde não haja outros elementos, para nela guardar todas as relíquias juntas, em vez de mantê-las separadas nos locais mais díspares.

Portanto, todas devem estar reunidas e ser objeto de nosso culto.

E como prestar essa veneração a elas?

Pelo menos da seguinte forma: todos os dias, de manhã e à noite, oscularmos as relíquias que temos, para pedir a intercessão daqueles santos em nosso favor. Devemos procurar conhecer a biografia deles, a fim nos darmos bem conta de quem está ali presente, e por essa forma lhes render o merecido culto através de suas relíquias.

Resumindo, portanto:

guardá-las condignamente — não quero dizer luxuosamente;

prestar-lhes culto. E para fazê-lo bem, sugiro que este se transforme numa rotina, que consista, por exemplo, em oscular todos os dias as relíquias, de manhã e à noite. É triste termos uma relíquia jogada em casa, desprovida de culto ou devoção. Seria o caso de dá-la a outra pessoa que a honre, pois não se compreende que o santo esteja ali presente, com um elemento constitutivo de sua pessoa, e não seja objeto de nossa veneração!

Há ainda um último ponto a considerar: pode-se carregar as relíquias consigo?

Sim, desde que se tenha o necessário cuidado para não perdê-las. Por exemplo, conservando-as sempre no mesmo bolso. Certos militares levavam uma relíquia incrustada na própria espada. Eu compreenderia que, com a necessária prudência, houvesse uma relíquia num boa caneta ou num digno instrumento de trabalho. Mas, sempre com o necessário  cuidado.

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