O mais belo mar! — III

Depois de nos fazer velejar pelos mares da Filosofia, Dr. Plinio chega ao auge de sua conferência. Ao concluí-la, ele descreve  as diversas espécies de raciocínio mostrando o papel da abstração  no conhecimento humano.

 

Dou tornar mais concreto o meu pensamento. Quando cogitamos em nosso pai Adão e em nossa mãe Eva, pensamos no pecado. Mas não devemos pensar neles só por ocasião do pecado, mas antes do pecado.

Adão e Eva: duas cordas de um alaúde

Adão e Eva continham todo o gênero humano, como a árvore contém os frutos. Por causa disso o pecado deles foi o pecado do gênero humano. Mais ou menos parecido ao que ocorre com uma árvore atingida por uma doença: adoecem os frutos que vão nascer. O fruto ainda não foi concebido na árvore, mas nasce doentio porque a árvore está enferma.

Devemos, então, imaginá-los como eles eram antes do pecado: inocentes e tinham em si, em gérmen, todas as qualidades que o gênero humano iria possuir, até o fim do mundo. Eles eram, portanto, inteligentíssimos, inocentíssimos, retíssimos, pulquérrimos, distintíssimos, nobilíssimos, autoritários, amenos e gentis.

Se cada homem conseguisse contemplar Adão e Eva na sua inocência, poderia, como que, reconhecer-se a si próprio em um veio da personalidade deles, levado a um grau de esplendor originário e extraordinário! Adão era como que o homem dos homens, no qual havia a raiz de todos os homens, daquele Homem que havia de superá-lo tanto: a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E Eva, a mulher das mulheres, contendo em si todas as variedades possíveis de mulheres, com todos os seus charmes, mas, sobretudo, d’Aquela que por vontade de Deus a superaria tanto: Nossa Senhora.

Poder-se-ia dizer que Adão e Eva eram como duas cordas de um alaúde: Deus tocando a masculinidade emitiria o som “Jesus”, e tocando a feminilidade, o som “Maria”! O dedo de Deus tem incomparavelmente mais poder do que uma corda inerte ou tocada pelos ventos. É sabido que certas harpas se deixam tocar pelos ventos. Mas o dedo de Deus extrai de uma harpa uma harmonia que ninguém consegue tirar.

Para dar uma noção do que é ideia abstrata, digo que esta seria como que um Adão e uma Eva de todo o gênero. A ideia abstrata de navio, bem concebida, não se reduz ao seco que apresentei, mas à soma do seco que indiquei com aquilo que ficou no fundo de minha imaginação, quando virei todo o meu caleidoscópio a respeito dos navios.

Complemento cultural da abstração

Então nós agarramos a ideia abstrata e nos deleitamos.

Seria como alguém que, vendo uma bolha de sabão na minha mão, não a furasse, mas me dissesse: “Dr. Plínio, sabe o que é essa bolha? É água cristalina de tal fonte, misturada com o melhor e o mais perfumado dos sabonetes: o “Pears” da Inglaterra!” Ele definiu a bolha sem estourá-la. E para o meu espírito foi um lucro saber o que era aquela bolha.

Não sei se estou conseguindo fazer andar esse barco complicado…

A bolha de sabão é feita de água e de sabão, dois elementos tão comuns que formam uma casca tão ligeira, uma esfera tão perfeita, maravilhosa. Ela como que se estende e constitui uma espécie de membrana tão delicada, que eu nunca pensei que dormisse na água a possibilidade de se deixar “membranar” assim por um pouquinho de sabão. “Ó cristal! Água, como eu te entendo melhor! Sabão, que benemérito!” E, sentindo um pouco do bom perfume do “Pears” inglês, eu digo: “Ah! Categoria! Classe!”

Sem estourar a bolha, eu lucrei. Então o que é o estourar?

Um indivíduo com espírito “ploc-ploc(1)” fura a bolha e diz: “Está vendo? Não era senão água e sabão! Quá-quá-quá”. Esse é um celerado porque destruiu uma coisa bela. Mas, sobretudo porque ele mentiu. Pois a bolha não se reduz a simples água e sabão; senão qualquer água com sabão, que está escorrendo dentro da pia, seria bolha.

A bolha é água com sabão mais certa relação de ambos, própria a sofrer do ar uma pressão por onde ela se mantém coesa em forma esférica. Eu dei a definição.

Mas não é apenas isto. A bolha é água com sabão mais algo.

Quanto à definição de barco que apresentei, a mentira está no seguinte: o barco se reduz àquela definição. Porque seria uma substância — vou usar uma expressão filosófica — sem acidentes, uma coisa sem predicados, sem qualidades. Nada existe sem qualidades.

Barco não é só isto! De fato, todas as espécies possíveis de barcos estão contidas na definição. É uma coisa diferente, um jogo diverso.

Então qual é a definição verdadeira? Eu completo agora a definição de barco com um pressuposto: é um veículo aquático destinado ao transporte de homens, mercadorias e, digamos, correspondência. Está bem! Eu acrescentaria algo que filosoficamente não é preciso, porque está subentendido; eu completaria dizendo o seguinte: variável indefinidamente, segundo as mentalidades e os lugares.

Assim, os que estão neste auditório estariam reconciliados com a definição. Ela não lhes pareceria mais “ploc-ploc”; sentiriam o Bucentauro pendurado no ponto final da frase.

Por que a definição não contém esse acréscimo? Porque está pressuposto! Tudo quanto existe nesta Terra fugidia é variável ao infinito, segundo as circunstâncias de tempo e de lugar. Então o barco não se reduz a isto, mas é isto com todas as suas variabilidades. Está pego algo, sem o qual uma pessoa não entenderia o que é barco.

Dessa forma, fica expresso qual é o complemento cultural da abstração. Com isso bem entendido, demos um passo no caminho da Metafísica.

O que é a Metafísica aqui? Notem que o conceito de barco contém, portanto, todos os graus de perfeição e de excelência que uma embarcação pode abranger, e se une à imagem do barco dos barcos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, há também barcos furados, rachados, grotescos; por que tais barcos cheios de defeitos não estão contidos na definição?” Respondo: Porque não fazem parte da definição! O barco rachado, por exemplo, em algo escapa à categoria de barco. Quem fabricasse um barco rachado não poderia dizer que construiu um barco, porque não é destinado à navegação. Posto na água, ele vai ao fundo.

Quer dizer, os defeitos da coisa são o contrário da sua natureza; o que está conforme com a natureza de uma coisa são as qualidades dela.

O raciocínio é mais belo quando ele é rápido como um corisco

Será bem verdade que o conceito de barco nasceu em minha mente só depois de eu pensar numa porção deles? Eu apresentei assim, e é verdade. Mas a verdade é só essa? Vejo um barco e me encanto, depois observo outro e prefiro este ao primeiro; faço essa comparação porque, no fundo, já formei um conceito abstrato de barco. Se eu digo que um barco é melhor do que outro, é porque fiz antes uma ideia subconsciente de como é o barco teoricamente e comparei os dois com o barco teórico.

Ou seja, eu não seria capaz de comparar os dois barcos se, de um modo subconsciente, eu já não tivesse feito, no primeiro olhar, aquela ideia que vai aflorar ao final da minha longa elucubração explicitamente.

Rápido como um clarão; não percebi que raciocinei. No total, quando eu raciocinei talvez estivesse esfregando os olhos ou caçando um mosquito. Mas meu raciocínio pegou logo. Aliás, essa é uma das belezas do raciocínio.

O raciocínio é muito bonito quando sobe uma longa escada majestosa e chega até suas conclusões. Mas como é mais belo quando ele é como um corisco! A pessoa nem teve tempo de perceber os vários elementos que o constituíram, e chega à conclusão. Um fulgor!

Seres criados desde todo o sempre

Passemos para outro ponto.

A respeito de tudo que vejo na Terra, formo ideias abstratas: cadeira, mesa, barco, pão, homem, espada, lustre. Ao que me conduzem essas ideias?

Pela superposição das figuras do meu caleidoscópio, formei uma ideia de cadeira enquanto cadeira, mas é uma cadeira “cadeiríssima”, em comparação com a qual eu confiro todas as cadeiras que vejo. Analogamente, elaborei a ideia de espada “espadíssima”, que contém todas as qualidades imagináveis de uma espada; eu não a desenho, mas sou capaz de concebê-la. E assim vou concebendo com a abstração a ideia de outra ordem de seres que não existem, mas poderiam existir.

E, com uma perfeição incomparável, o Homem prototípico: A humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo! A mulher prototípica: Nossa Senhora! Jesus Cristo e Maria Santíssima, eu poderia imaginá-los na sua mera humanidade e, abstração feita do sobrenatural, numa ordem de coisas que também ainda não existiu.

São Tomás de Aquino nos ensina que, quando Deus criou as criaturas e elas começaram a se relacionar, iniciou o tempo. Vejam o livro do Gênesis: primeiro dia, Ele faz o primeiro ato criador e, como em roldana, começa a série de dias: entrou o tempo.

Mas São Tomás diz uma coisa curiosa: Deus poderia ter criado criaturas desde todo o sempre, fora do tempo, e que, naturalmente, seriam mais excelentes do que nós, que somos sujeitos a essas mudanças. Mais excelentes do que Adão e Eva e até mesmo do que os anjos! Porque os anjos não foram criados desde todo o sempre.

E nossa imaginação, nosso senso do ser, palpita com essa ideia de conhecer criaturas criadas desde todo o sempre. Se houvesse uma espada criada desde todo o sempre e reunindo em si todos os predicados de uma espada, na medida em que isso coubesse nas limitações da matéria; e se existisse também um puro espírito criado desde todo o sempre, e assim por diante, a ponta de nossa alma sente o mais alto frêmito da admiração, mas não consegue precisar nem definir.

É a ponta mais alcandorada da inocência que vibra sem sabermos como. É uma chispa que constitui em cada pessoa certo traço de genialidade, porque quando o homem chega a essa ponta, um pouco de genialidade que há nas mentes de homens comuns, e que existe às torrentes nas mentes dos gênios — São Tomás de Aquino, por exemplo —, essa ponta vibra com uma luz especial. Aí, temos o metafísico!

Termo último da Metafísica

E se nos voltarmos para esse mundo que não foi, mas poderia ter sido criado, mesmo assim nossa alma ainda não fica satisfeita. Porque se imagino um anjo criado desde todo o sempre, eu penso: “Do vale da Criação onde nasci, eu venero a tua culminância e te admiro, mas tu és para mim algo que revela e que vela. Revela porque no teu esplendor, para mim inimaginável, eu compreendo algo; vela porque, olhando-te, não posso ver o que está por detrás de ti. Anjo altíssimo, puríssimo, Alguém te deu o ser e tudo o que tens; foi teu Criador, logo há Alguém melhor do que tu. Tu és para mim uma imagem d’Ele, oh deleite! Mas tu não és senão imagem. Como será Ele?”

Aqui nós subimos ao ponto dos pontos, quer dizer, tudo que tem o anjo está para o Criador numa relação inferior àquela de uma árvore — que passasse mil anos dando constantemente frutas em todas as estações do ano — com uma só de suas frutas. Todas as frutas que a árvore produziu têm um fundamento no ser da árvore; senão não existiriam. Mas o Criador é eterno, Ele é absoluto, ninguém O criou. Tudo, para existir, tem um fundamento n’Ele. Logo, todas as belezas, perfeições, santidades, retidões têm um fundamento n’Ele, que é o padrão. Ele não é reto, mas a Retidão, não é santo, mas a Santidade!

De onde a santidade se identifica com o Ser d’Ele. Ele é suas qualidades, e suas qualidades são Ele. Ah! “Te Deum laudamus, Te Dominum confitemur…” Aqui é o caso de passar a palavra a Santo Ambrósio e Santo Agostinho.

Nossa admiração toca num Ser de uma densidade tal que Ele não é como as qualidades que nós temos. Como estas qualidades são efêmeras! Eu estou falando neste auditório não só com uma facilidade, mas, digamos, com um relativo desembaraço.

Estou com setenta anos, e devo fazer setenta e um no próximo mês. Sejamos muito otimistas, e otimistas até o delírio; daqui a trinta anos, se eu estivesse vivo, tudo se teria apagado! Aonde a facilidade de conjugar as palavras? De escolher a esmo os exemplos? Aonde a comunicação com o auditório? Uma voz hesitante, arrastante, um olhar vidrado…

Ou morto! Nós não nos identificamos com nossas qualidades. Nossas qualidades passam e nós ficamos. Nós as recebemos quando pequenos e as desenvolvemos a duras penas. E quando elas atingirem o apogeu, o ciclo de nossa vida está fechado; nós baixamos para a sepultura.

É verdade que nossa alma vai para o Céu, e no dia da ressurreição nossos corpos renascerão. Aí é a eternidade! Mas nessa vida, como tudo é instável, mutável! Lembro-me de uma frase de Bossuet, uma trilogia, num dos seus sermões sobre a Semana Santa. Falando a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, ele faz uma linda conjugação de adjetivos, mandando os fiéis contemplarem “un Dieu brisé, rompu, anéanti”. Um Homem-Deus quebrado, roto, aniquilado, na sua humanidade.

Até a musicalidade é bonita: “brisé, rompu, anéanti”!

Tudo que está em nós é destinado a ser “brisé, rompu, anéanti”, porque tudo passa.

Porque nós não somos nossas qualidades. E Deus é tudo! Ele pode tudo, sabe tudo! Ele sobrepaira a todos! Puríssimo espírito! Ele cria ao infinito, sem o menor esforço, apenas para criar. Compreendemos assim o que é o termo último para onde a Metafísica se dirige.

Esses paradoxos, que são próprios à ordem do ser, ao menos para mim, dão certo repouso.

A beleza do movimento tem fundamento no Ser imutável

Encontro aí algo que talvez seja uma peculiaridade minha. Essa eterna mutabilidade das coisas me cansa. Por um lado, ela me deleita, pois se não houvesse mutabilidade também me cansaria. A imobilidade me cansa e a mobilidade também. Mas há alguns homens que se cansam mais com a imobilidade, e outros que se cansam mais com a mobilidade. Cada um dos presentes neste auditório se examine um pouco. É um ponto interessante para se definirem.

A mim a mobilidade cansa mais do que imobilidade. Eu posso ficar, no mesmo lugar, durante um ano sem me cansar. Enquanto que, ao cabo de uma hora de mobilidade, eu já estou aspirando à imobilidade. Assim sou eu.

Por isso, quando viajo de automóvel logo me pergunto quanto tempo vai demorar até chegar ao destino: “Acaba com esse perpétuo roda-roda! Vamos fazer uma coisa fixa em que se possa olhar e pensar!”

Gosto de sentar-me para analisar, refletir e distender-me. Há outros que são o contrário: quanto mais mobilidade, melhor.

Depois dessa longa caminhada, no decurso da qual eu colhi cada flor que fui capaz de ver, e comi cada fruto que consegui notar, tenho um alívio quando penso no Absoluto. Então, tudo isto para num Ser terminal e inicial supremo, fixo e eterno. Ele não muda nunca e a sucessão dos aspectos das coisas n’Ele está parada. E numa posição eterna! Riquíssima! Esplendorosa!

Imutável? Sim, mas com toda a força e a graça do motor primeiro, que move sem se mover e do qual todo movimento nasce. De maneira que a própria beleza do movimento tem seu fundamento nesse Ser imutável. E tudo que eu vejo de belo na mutabilidade, no Imutável com “I” maiúsculo existe também.

Repouso, afinal! Encontrei o que eu queria! A minha vida teve sua razão de ser. Adoremo-Lo e percamo-nos n’Ele.

O que eu fiz? Metafísica! Fazendo Metafísica, atendi ao pedido que me foi feito no início de nossa reunião.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

1) Expressão criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

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