Nos mares do ideal

Com sua habitual maestria em tecer metáforas, Dr. Plinio imagina um hipotético marinheiro numa das naus de Cristóvão Colombo, durante uma suposta viagem do grande descobridor, desde o porto de Barcelona até as Américas. E traça vívido paralelo entre os diversos estados de espírito daquele marujo com os de uma alma chamada a seguir um grande ideal, em meio às seduções do mundo que a atraem em sentido contrário à vocação.

 

Para seguirmos a linha de exposição que nos agrada adotar, isto é, valendo-nos das metáforas, lanço mão da imagem dos navegadores que partiram da Europa na perspectiva de descobrir e conquistar novos mundos. A estes se assemelham as almas que deixam a existência quotidiana comum e trivial, para se dedicarem a uma vocação que as conduz à conquista de horizontes mais altos, mais sublimes. Infelizmente, porém, nem todas se entregam com inteira fidelidade a esse chamado.

Nesse sentido, se me fosse dado narrar a história de quantas naus tenho visto partir na mesma direção em que me dirijo, à procura dos mesmos sóis que queremos ver nascer — os sóis do Reino de Maria —, e que se extraviaram, seria uma triste e lamentável descrição…

A lassidão no meio do caminho

Muitos navegantes principiam com entusiasmo, dedicação e, repentina ou paulatinamente, mudam de estado de espírito, remam cada vez com menor força e se deixam ficar pelo caminho. Desaparecem tragados por um torvelinho ou encostam junto a um porto onde se erguem estabelecimentos de diversões censuráveis.

Quantas promessas não realizadas! Quantas pessoas desabrocharam, depois decaíram e, em circunstâncias várias, não raro admiráveis, ainda tiveram ocasiões extremas de um reflorescimento, mas não corresponderam aos desígnios da Providência, tornaram-se insignificantes e afundaram em pantanais, numa vida vergonhosa, precisamente porque lhes aconteceu algo parecido com alguns participantes das expedições dos grandes conquistadores, como a de Cristóvão Colombo, o descobridor das Américas.

Esses maus navegantes praticaram uma ação reprovável, na aparência não ofensiva a nenhum dos Mandamentos, porém contrária diretamente ao primeiro, o mais essencial, “amar a Deus sobre todas as coisas”. Partiram repletos de entusiasmo. Em certo momento, contudo, começaram a se preocupar com bagatelas e, ao cabo de algum tempo, somente com elas. Ou seja, “ensabugaram”(1).

Se houvesse história dos homens que não merecem tê-la, a das navegações estaria semeada de narrações sobre aqueles que se transviaram e se perderam pelos mares, porque se tornaram medíocres. Quando os oceanos representavam um perigo, transformavam-se em sepulturas da mediocridade. Sem dúvida, há heróis sepultados no fundo dos mares. Mas, sobretudo, muitos insignificantes e pusilânimes, que pretenderam fazer uma navegação apenas gostosa, ou em certo instante pensaram apenas no agradável da viagem, e soçobraram em meio à tempestade, ao maremoto, ou a qualquer perigo que não souberam nem quiseram enfrentar.

Colhidos nas “Barcelonas” da vida

Suponhamos que as três naus de Colombo — “Santa Maria, Pinta e Niña” — deixaram Barcelona, então um dos portos mais ricos e movimentados do Mediterrâneo, para sua grande aventura.

Em certo momento, era natural que os navegadores começassem a sentir saudades daquilo que deixaram para trás. “Natural”, aqui, não quer dizer justo. Por exemplo, na natureza degradada de Caim, concebido no pecado original, era natural que invejasse Abel. E que, movido por esse vício, quisesse matar seu irmão, como de fato o fez. Donde se compreende que, muitas vezes, a palavra “natural” é empregada num sentido que significa o contrário de legítimo, por designar algo de acordo com a natureza decaída do homem.

Também nós partimos para uma grande “navegação”, visando não a conquista de terras, mas a do Reino de Maria, a conquista das almas e dos corações para Nossa Senhora. Cada um nasceu numa pequena “Barcelona” individual, onde julgávamos haver todos os aconchegos, todas as delícias, tanto mais deleitáveis quanto mais imaginárias. Mas, como sói acontecer, o homem se apega mais às ilusões fabricadas por ele mesmo do que às coisas reais.

E quantos de nós foram colhidos nas respectivas “Barcelonas” por um anjo que, com o rebrilhar dourado e prateado de suas asas, nos indicou um rumo o qual decidimos seguir, tomados de encantamento? Se alguém nos dissesse nesse instante: “Fique aqui, porque em Barcelona há um fio de linha especial para se costurar com ele…” Nós responderíamos com um riso sonoro: “Não quero seu fio de linha! Desejo, sim, caminhar em direção àquela luz!”

Saudades da mediocridade

Porém, assim como há no homem reservas boas, provindas de sua própria natureza, que o levam a atender o convite das asas do anjo, existem também algumas ruins, as quais o induzem a permanecer na inércia. Movido por essas últimas, ele, embora não proteste, pensa: “Vou avançar em direção ao bem, mais tarde…”

E asas de anjo são caprichosas. Passam iluminadas pelo sol, para que o homem as contemple e as siga. Se as deixa escapar, quando anoitece não as encontra mais. Batalha para alcançá-las, tem a impressão de que se esqueceram dele. Nestas horas de cansaço, de abandono, em que tudo lhe parece difícil ou trivial, emergem as saudades de “Barcelona”, sussurrando-lhe: “Lembra-se da sua Barceloninha? De sua caminha? De tal petisco, de tal elogio… recorda-se do fio de linha?!”

Se não resistir, é levado a pensar: “Ó asas de anjo, não me aparecei! Não quero os grandes panoramas, mas o fio de linha!”. E o homem acaba desertando da grandiosa caminhada que havia encetado. Ou pratica uma deserção velada, à maneira dos operários que fazem uma espécie de greve — legítima em certas ocasiões — freqüente nos dias de hoje: em vez de pararem inteiramente o serviço, adotam a chamada “operação tartaruga”, trabalhando de maneira incompleta, vagarosa, o que redunda na diminuição da produção.

Às vezes, as saudades do fio de linha de “Barcelona” não leva a pessoa a abandonar a vocação, ela não deserta do caminho, mas faz a “operação tartaruga”. Anda devagar e com preguiça, seus serviços são mal feitos, ama e espera pouco. Resultado: cada vez mais envereda nas trilhas da decadência.

Em determinando momento, dá-se conta de que a esquadra está longe, desaparecendo na zona do mar banhada pelas refulgências da lua. E a pessoa ficou para trás, onde a bruma impera, os escolhos perigosos se apresentam. E, apanhada pelas saudades de “Barcelona”, diz para consigo: “É preciso andar bem devagar, do contrário, como me arranjarei?”

Perde o contato com seus irmãos de ideal, tem pensamentos semelhantes aos de alguns marinheiros de Colombo: “Já estou tão longe da Europa que não vale a pena voltar para trás. E tão distante da esquadra que não consigo acompanhá-la. Vou remando lentamente. Quando meus companheiros voltarem, perguntar-lhes-ei como se chega até a América. Serei dos medíocres, dos que chegam atrasados e se arrastam. Desertor, não!”

A superior nobreza do ideal

É muito nobre ter sido chamado para descobrir a América. Porém, muito mais elevado é o ideal de lutar pela Santa Igreja, pela conquista das almas e para instaurar o Reino de Maria.

Imaginemos que fosse dado a alguém, não descobrir um novo continente, mas, através de um gesto, fazer surgir das águas a mais bela das terras que jamais existiu. Maravilhosa como o paraíso terrestre, ordenada e santa como uma catedral, sólida como uma fortaleza, atraente como um pedaço do céu!

Tal gesto poderia ser, digamos, o oferecimento da vida feito por um mártir, uma pessoa que morre por sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo e deposita este holocausto aos pés do trono do Altíssimo, pelas mãos de Maria Santíssima, a fim que Ele derrame graças superabundantes para o nascimento de uma nova civilização cristã. Poderia ser.

Entretanto, o gesto a que aludimos é, antes, uma postura de alma. Sentimos o roçar das asas de anjo ao nosso redor, as cintilações da graça da vocação no espírito deste ou daquele irmão de ideal, ou sentimos o brilho do nosso próprio chamado se acender, compreendendo que todos nos movemos na direção desse reluzimento. Não nos preocupamos com banalidades, procuramos ver em todas as coisas aquilo que nos conduz a Deus, e nos leva a alcançar a vitória que desejamos para Ele e Nossa Senhora. Desejamos o estabelecimento de uma ordem espiritual e temporal em tudo conforme os planos divinos para a criação, especialmente tendo em vista a exaltação da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Exaltar significa elevar, colocar no alto. Queremos que a Igreja seja posta no cume da mais avultada montanha, cujas vertentes se dobrem respeitosas diante daquele píncaro onde se ergue a Esposa Mística de Cristo. No melhor de sua correspondência ao ideal, nossa alma se dirige para essa glorificação da Igreja.

Um suave e brilhante corolário da vocação

No cerne desse chamado há um aspecto mais discreto que vale salientar. Quando se é fiel à graça da vocação, juntamente com o imenso desejo de implantar o Reino de Maria, lateja no interior da alma um sentimento que equivale a uma promessa feita mais aos nossos olhos que aos ouvidos: “Verás o triunfo de Nossa Senhora. É possível que imoles toda tua vida. Mas teus olhos não se cerrarão sem teres contemplado a terra prometida, ou seja, o Reino de Maria. Poderá haver mais demora ou menos, um número maior ou menor de batalhas, pouco importa desde que esta certeza continue em teu espírito”.

Essa promessa é um suave, brilhante e forte corolário da vocação, um efeito da ação de uma asa de anjo que não mente. E quando ela passa junto a nós, coruscando e nos assinalando que devemos segui-la, é preciso atendê-la, embora encontremos muitas dificuldades. No fim do caminho encontraremos o anjo!

Evidentemente, “asa de anjo” não significa sermos objeto de visão ou revelação. Trata-se de uma ação da graça pela qual se percebe, como conseqüência do chamado, uma promessa de triunfo: “Vencerás!”

Em qualquer situação, imensidade de confiança

Cumpre considerarmos, ainda, outro aspecto no caminho de nossa vocação.

Maria Santíssima se recorda de todas as graças que pediu a Deus em nosso favor e as obteve. Recorda-se da alegria que teve ao ver o thau(2)  iluminando nossas almas. Os poetas não se cansam de elogiar a beleza das auroras. A Santíssima Virgem, dando o devido valor às coisas espirituais, por certo se encanta muito mais vendo o alvorecer de um thau numa alma do que o de qualquer sol em qualquer lindo panorama do mundo.

Pelo contrário, percebendo o fenecimento espiritual de uma pessoa, a Mãe de Deus a acompanha solícita, desejando seu reerguimento, alcançado-lhe de Deus graças particulares de fervor e entusiasmo. Por exemplo, durante uma exposição como esta, Ela obtém da misericórdia divina que essas palavras produzam bons efeitos na alma dos ouvintes, e sejam depois lembradas, repetidas, e ajudem algum tíbio — alguém que se esqueceu do tesouro posto em suas mãos e começou a sentir saudades do fio de linha de “Barcelona” — a retornar ao caminho do ardor e do entusiasmo na vocação.

Seja como for, em quaisquer situações nas quais nos encontremos, devemos rezar à Santíssima Virgem com uma imensidade de confiança: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!”

Quem recorre a Ela é sempre atendido. Alguém poderá dizer: “Mas, Dr. Plinio, pedi e tive a impressão de que as coisas pioraram”. E eu respondo: “Meu filho, felicito-o, pois muitas vezes quem começa a melhorar tem a sensação de que está piorando. Na verdade, Nossa Senhora o está provando e o fez desejar mais aquilo que lhe parece estar escapando. Ela o está atraindo para si, no momento em que, na aparência, se retira de perto de você. Esteja contente, tenha coragem e confiança. Ela o atenderá.”

Além de Maria Santíssima, foram-nos dados anjos da guarda e santos padroeiros que igualmente intercedem por nós, através das orações de Nossa Senhora. Peçamos a eles, com não menor insistência: “Assisti-nos! Ajudai-nos!”

A oração feita nas devidas condições, humilde e perseverante, nunca será recusada. E se passarmos muito tempo pedindo, aparentemente sem êxito, de repente uma aurora surge diante de nossos olhos. É o resultado esperado que se nos apresenta, multiplicado por mil.

Lembremo-nos, então, desta palavra de esperança, desta promessa, deste conselho de confiança. E em todas as ocasiões ou circunstâncias, caminhemos sempre para frente e para o alto. Queira Nossa Senhora que vejamos juntos o advento do Reino de Jesus por Maria.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 101 (Agosto de 2006)

 

1) De “sabugo”, termo usado por Dr. Plinio para indicar o estado de alma de quem feneceu na vida espiritual, estagnando-se numa piedade medíocre e insípida. Ver “Dr. Plinio” número 79.

2) Nome da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir em favor da Igreja e da implantação do Reino de Maria.

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