Nada é tão necessário, útil, doce e glorioso!

Na Idade Média, uma homilia sobre a Cruz e os novíssimos do homem comovia as pessoas, e muitas vezes os pecadores mudavam de vida. Entretanto, a Revolução instaurou nas almas tal forma de dureza, de frieza, que em nossos dias os homens não se interessam por esses temas fundamentais.

 

Continuação dos comentários sobre a “Carta-circular aos Amigos da Cruz”, de autoria de São Luís Maria Grignion de Montfort(1).

Se Deus nos tratasse apenas com justiça, mereceríamos o Inferno

[20] “Crucem”, a cruz; que ele a leve, pois nada existe que seja tão necessário, tão útil, tão doce ou tão glorioso quanto sofrer alguma coisa por Jesus Cristo.

Então, necessário, útil, doce e glorioso; são quatro proposições. São Luís Grignion vai começar por provar como é necessário.

  1. a) Nada tão necessário — para os pecadores!

[21] Com efeito, queridos Amigos da Cruz, sois todos pecadores; não há um só dentre vós que não mereça o Inferno, e eu mais que ninguém. É preciso que nossos pecados sejam castigados neste mundo ou no outro; se o forem neste, não o serão no outro.

Essa afirmação de que todos nós mereceríamos o Inferno pode parecer uma demasia, uma coisa maluca e, entretanto, não é. Ela se baseia na ideia de que nenhum homem é capaz, por si mesmo, de corresponder à graça de Deus, constantemente, durante a vida inteira. Não se trata aqui da possibilidade do homem agradar a Deus com a graça, mas é uma outra ideia: se a graça for dada ao homem parcimoniosamente, apenas a graça suficiente, ele faz dela um tão mal uso que acaba desmerecendo-a e, portanto, perde-a, e por isso merece o Inferno. Nesse sentido, só quem não teria merecido o Inferno seria Nossa Senhora, porque Ela, em todos os dias de sua vida, correspondeu de um modo perfeito às graças que Deus lhe dava. Então, isto coincide com a metáfora apresentada por São Luís, segundo a qual todo homem é como o sapo, a serpente, o porco(2).

Então, é coerente que ele ache que todos os homens mereceriam o Inferno se Deus os tratasse, não com misericórdia, mas apenas com justiça. Essa noção é fundamental numa visão contrarrevolucionária das coisas, como é fundamental na própria doutrina católica.

Trata-se da compreensão da maldade fundamental do homem e, portanto, de como devemos viver de pé atrás em relação aos outros, e em relação a nós mesmos. E isso vale também para os santos. Por essa razão, São Luís de Montfort diz que ele mesmo, se não fosse a misericórdia de Deus, teria ido para o Inferno.

Somos filhos da misericórdia

Alguém objetará: “Mas, Dr. Plinio, isso não está em contradição com as palavras de São Paulo, antes de morrer: ‘Combati o bom combate…’?(3)” A resposta é muito simples: não está nem um pouco em contradição. São Paulo não diz que ele conseguiu combater o bom combate e fazer o percurso todo da pista por mera justiça de Deus. Ele faz tal afirmação, mas sem entrar na indagação. É claro que o conseguiu pela misericórdia. Se Deus não tivesse sido misericordioso, ele não conseguiria preencher as condições que lhe davam, em justiça, o direito ao Céu. De maneira que o Paraíso é devido, em justiça, à alma que morre bem, mas é por causa da misericórdia que a alma morre bem, de maneira que todos nós somos filhos da misericórdia, e com a mera justiça nós nos perderíamos.

A esse propósito é preciso dizer — eu insisto um pouquinho nesse ponto — que não é uma doutrina muito esplanada, em geral. Creio que vale a pena desenvolver esse assunto. A doutrina que não se ensinava, mas ao menos se insinuava no meu tempo de aluno de colégio, era essa: Deus me dá a graça suficiente. Eu correspondendo inteiramente à graça — o que está inteiramente em meu poder — obtenho, em justiça, mais graças. Assim, vou merecendo do Altíssimo promoção e mais promoção, até o estado em que deverei ficar quando eu morrer. E aí eu me apresento perante Deus com um sorriso, de igual a igual, e com um cheque na mão. Quer dizer: “Eu fiz, eu mereci, agora cumpra sua palavra, honre sua promessa, porque realizei o que era de minha parte”.

Isso não é verdade. Eu sou filho da misericórdia. Com a graça suficiente — que é suficiente mesmo! — eu poderia corresponder bem; mas é certo que não vou corresponder, e fico, portanto, em débito perante Deus. E se não houver uma intervenção contínua da misericórdia, a restaurar aquilo que usei mal, não vou para o Céu. E isso comanda as minhas orações com o Criador. É um colorido que entra em todas as perspectivas de minhas relações com Deus. Estou continuamente precisando da misericórdia d’Ele. E é por isso que se veem os maiores santos morrerem, recomendando-se à misericórdia do Altíssimo. Não é por um ato de humildade.

Quer dizer, se no fundo de minha cabeça eu penso que vou me salvar por justiça mesmo — e me impondo à justiça de Deus, mas, em última análise, vou ser humilde e direi ao Criador que tenha compaixão de mim —, estou errado. Deus precisa ter compaixão de mim para que eu me salve, senão não me salvo. Ou seja, a salvação é uma obra da misericórdia de Deus.

Misericórdia e espírito conservador; o papel de Nossa Senhora

Alguém poderia perguntar: “Compreende-se que a justiça tenha fundamento em Deus, mas que fundamento tem no Criador a misericórdia?”

Não sei se os presentes neste auditório se lembram de uma conferência, na qual eu mostrava que a virtude da misericórdia e o espírito conservador são coisas conexas. Todo artista, por exemplo, gosta de conservar as suas obras de arte porque são reflexos dele; de maneira que, se uma delas se estraga, ele por amor a si mesmo trabalhará para conservar essa obra de arte. Ora, cada um de nós é uma obra de arte irrepetível de Deus. E Ele, por amor ao plano que teve ao criar aquela obra de arte, condescende em restaurá-la, e nisso está a misericórdia do Criador. Não é um direito da obra de arte ser restaurada por Ele.

E é por isso que Deus usa para conosco de um espírito conservador, na misericórdia. A misericórdia e o espírito conservador são a mesma coisa. E o homem, querendo que tudo que existe e possa continuar a existir, continue a existir, é conservador; quer dizer, essa espécie de amor a tudo quanto existe é uma perfeição, que no homem é análoga à perfeição de Deus enquanto misericordioso. De maneira que o verdadeiro misericordioso é conservador; e o verdadeiro conservador é o homem de misericórdia. Essas são noções conexas e que dão a ideia da misericórdia divina. É dessa misericórdia que eu vivo; não vivo da justiça de Deus.

Aí também se compreende melhor o papel de Nossa Senhora. Porque a misericórdia é um dom. Se é preciso ter esse dom, deve-se pedi-lo. Mas só poderei ser atendido por misericórdia. Como posso obter misericórdia se eu não pedir? A solução é rogar a Nossa Senhora, cuja oração é perfeita e imaculada, que reze por mim. E, se Ela rezar por mim, poderei ter certeza de que serei atendido. Então, Nossa Senhora é a ponte entre Deus e os homens; é o canal da misericórdia d’Ele; uma pessoa que o Altíssimo criou para que a misericórdia d’Ele se realizasse de um modo esplêndido. Ela é Mãe de misericórdia.

É melhor sermos castigados nesta vida do que na outra

Compreendemos, assim, como toda a nossa vida espiritual é filha da misericórdia. E uma vida espiritual que faça abstração disso se torna insuportavelmente pesada, dura, fria. Se tivermos apenas a ideia de um Deus justo em relação a nós, é-nos impossível amá-Lo. Precisamos compreender que Ele é um Deus misericordioso, que condescende conosco, tem pena de nós, perdoa as nossas faltas. É essa ideia de Deus misericordioso, que São Luís Grignion inculca e está subjacente nesse trecho.

Então, diz ele que é melhor sermos castigados nesta vida, do que na outra. Portanto, as cruzes afastam de nós o Inferno.

Se Deus os castigar neste mundo de concerto conosco, sua punição será amorosa. Quem há de castigar será a misericórdia, que reina neste mundo, e não a justiça rigorosa; o castigo será leve e passageiro, acompanhado de atenuantes e de mérito, seguido de recompensas no tempo e na eternidade.

Quando formos julgados no fim do mundo, termina o reino da misericórdia e começa o da justiça. As pessoas serão depois enviadas para o Inferno ou para o Céu, de acordo com o “veredictum” final, que é da justiça. Ora, afirma São Luís, se nós formos castigados neste mundo — ainda não é o reino da justiça, mas da misericórdia —, então, virão mil cruzes, mas consentidas por nós, com atenuantes, com mil provas de amor; enquanto que no Inferno o tormento é eterno, que nem sequer merece o nome de cruz.

[22] Mas, se o castigo necessário dos pecados que cometemos for reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue! Castigo espantoso, “horrendum”, inefável, incompreensível: “quis novit potestatem iræ tuæ”? — Quem conhece o poder de tua cólera?(4) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericórdia”(5), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim.

É o castigo do Inferno.

“Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes, esse pensamento mau e voluntário, que escapou a vosso conhecimento(6), essa palavra que o vento levou, essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, serão punidos eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônio no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem misericórdia e sem fim!

Ele coloca esta antítese: os sofrimentos desta vida e os sofrimentos do Inferno.

O Purgatório

[23] Será que pensamos nisso, queridos irmãos e irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes por podermos trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência!

Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, para cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Então, ele passa a falar do Purgatório.

Ah! paguemos neste mundo, de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último ceitil, mesmo uma palavra ociosa(7). Se pudéssemos arrebatar ao demônio o livro de morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande “debet”(8) verificaríamos, e como nos sentiríamos encantados em sofrer durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Esse é um pensamento que a pessoa deve ter quando sofre. A maior parte dos homens, quando tem um sofrimento, sofre inconformada; não se lembra do Inferno, do Purgatório. Entretanto, a pessoa deve dizer: “Como me alegro de sofrer! Estou padecendo agora, mas esse sofrimento vai me tirar outro, mil vezes pior. Esse padecimento, por pior que seja, afinal de contas acaba. E o sofrimento nesta Terra é menos ruim do que no Purgatório, para não falar no Inferno”.

Então, com espírito de Fé, com amor, devemos abraçar esse pensamento, e cada vez que sofremos precisamos aceitar de bom grado esse sofrimento.

Modorra do homem contemporâneo diante dessas verdades

A respeito disso, há uma coisa curiosa e que faz parte da crise religiosa do Ocidente. Quando um pregador dizia coisas dessas, na Idade Média, as pessoas se comoviam, os pecadores muitas vezes se arrependiam, mudavam de vida. Eu não sei o que aconteceu, o que caiu sobre o gênero humano, mas essas verdades tão fundamentais — que todos nós deveríamos amar — encontram uma espécie de modorra no homem contemporâneo, e mesmo nos homens piedosos. Enquanto que os santos meditavam essas verdades com delícias.

E eu tenho uma certa vergonha de desenvolver isso aqui, com a sensação de estar tratando de uma coisa tão banal, tão sabida, que as pessoas se espantam ao ouvir o que estou dizendo. Entretanto, se formos analisar, o proveito que tiramos para a nossa vida espiritual é muito bom. “Meditai em vossos novíssimos e não pecareis eternamente”(9). Os novíssimos do homem, as últimas coisas que lhe sucederão, são quatro: a morte, o Juízo, o Céu e o Inferno.

Não sei o que há, mas a meditação sobre a bem-aventurança do Céu, a visão beatífica, com todos os mil enlevos que deveriam decorrer daí, tudo isso acabou ficando como fonte estancada; procura-se tirar dela alguma água para a vida espiritual, porém as almas não se abeberam nem se dessedentam com isso.

Entretanto, pensamentos às vezes menos importantes, menos nobres, produzem um efeito maior do que o causado por tal meditação.

Ora, para quem tem Fé não é razoável que isso seja assim. O que pode mover mais alguém a aceitar a cruz do que isso? Entretanto, acaba sendo — e tenho impressão que os presentes neste auditório sentem isso na própria pele — que isso não move as pessoas; parece que a fonte está seca, se estancou.

Vemos aqui o mistério da dureza que a Revolução fez cair sobre os homens. Porque essa atitude de alma do homem contemporâneo é a mesma com relação à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, à meditação sobre o amor misericordioso d’Ele, sobre a Sagrada Eucaristia. Por exemplo, Deus está na Sagrada Eucaristia, continuamente oferecendo reparações por nós, mas não há quase ninguém que vá adorá-Lo.

Essas meditações dizem pouco às pessoas. Entretanto, isto é o melhor suco, o melhor leite da vida espiritual, a flor de trigo da piedade. São os pensamentos inspirados por Nosso Senhor para nos salvar. Nossa Senhora ditou a Santo Inácio, em Manresa, meditações a respeito desses temas sobre os quais acabo de falar. Entretanto, qualquer coisa secou.

Cogitações ao passar em frente da Igreja da Consolação, à noite

Às vezes, por exemplo, quando estou voltando à noite de um restaurante, o automóvel passa em frente da Igreja da Consolação e a pequena distância das janelas da capela do Santíssimo; ali dentro está o tabernáculo. E faço pequenos comentários: que maravilha deve estar se passando dentro dessa capela!

É uma capela qualquer do Santíssimo Sacramento, à noite, no auge da solidão. Pensar nas coisas inenarráveis que Nosso Senhor está dizendo para as outras Pessoas da Santíssima Trindade! Nos Anjos e nos Santos que estão ali presentes, pelo menos pela atenção e pelo espírito, adorando-O! E aquela lamparina vermelha com a luzinha acesa; aquele silêncio próprio de capela do Santíssimo, onde os menores estalidos se ouvem, os ruídos da rua passam cortando o ar, como se fossem profanações, mas cessam também e continua um longo silêncio grosso de abandono, de recolhimento, de soledade — que coisa magnífica a soledade! É um silêncio assim que impregna a capela.

Como eu gostaria de poder abrir àquela hora da noite a igreja, entrar sozinho na capela do Santíssimo Sacramento e ficar o resto da noite rezando lá. E o ideal é ir sozinho, sem mais ninguém, para termos a sensação de que Nosso Senhor está ali só para nós, de que Ele não presta atenção em mais ninguém, e de que penetramos, a bem dizer, no Coração de Jesus. E ter ali uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual possamos rezar. E até às primeiras claridades da aurora, ficarmos envoltos nesse mistério, nesse fluxo de orações que há ali dentro. Isso é uma coisa verdadeiramente celeste. Ainda que seja algo insensível, sabemos que é assim.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, que diferença faz noite e dia? O senhor pensa que Nosso Senhor adora menos ao Padre Eterno durante o dia do que à noite? E que nossos miseráveis barulhinhos terrenos são capazes de perturbar a Ele?”

Certas coisas não se sofismam assim… Por exemplo, São João Batista e Nosso Senhor iam para o deserto rezar. Deus está tão presente nos desertos quanto nas cidades. Mas há uma graça da solidão total no deserto, onde se tem a impressão de que o Altíssimo, na solidão d’Ele, se manifesta melhor ao homem que está só. E que o Criador abraça o homem, e o homem como que pode também abraçá-Lo melhor. E este é exatamente o deserto eucarístico, que é uma capela do Santíssimo Sacramento à noite.

E se não fosse chamar a atenção, eu teria vontade de, numa noite, mandar parar o automóvel bem junto à parede da capela do Santíssimo, e ficar adorando Nosso Senhor do lado de fora. São coisas tão verdadeiras e tão evidentes!

Se prestarmos atenção nos automóveis que passam por ali a toda velocidade, podemos perguntar qual é a alma que se lembra de Deus e seja capaz de fazer, pelo menos, uma jaculatória ao Santíssimo Sacramento.

Pior! Muitas daquelas pessoas estão voltando do pecado, ou indo para o pecado; vão descansar para pecar, ou descansar do pecado. E no meio daquela praça, com aquele trânsito todo, está a Igreja da Consolação; então, o abandono de Nosso Senhor fica ainda mais pungente!

Por que isso ocorre? Porque essas coisas acabaram um tanto gastas. Mas o gasto não está nelas e sim em nós, porque elas são insondáveis, eternas. Por que isto está gasto em nós? Que mistério houve para que essas coisas sumamente tocantes tenham deixado de tocar?

E é claro que este gasto é o resultado do pecado de Revolução. Quer dizer, a Revolução instaurou na alma humana uma forma de dureza, de frieza, que gastou essas coisas e fechou as almas para isso.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/8/1967)

 

1) Outros trechos comentados por Dr. Plinio encontram-se nos números 109, 112, 113, 114, 115, 116, 118, 122, 123, 127, 184, 186 desta Revista.

2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 79.

3) 2Tm 4, 7.

4) Sl 89, 11.

5) Tg, 2, 13.

6) Nota da edição de 1954: Isto é, que esquecestes por falta de exame.

7) Mt 12, 36.

8) Do latim: dívida.

9) Eclo 7, 40.

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