Na encruzilhada entre a cordialidade e a combatividade

Em sua primeiríssima infância, Dr. Plinio tinha a alma em extremo delicada, afetiva e amiga da paz. Em certo momento, pôs-se diante dele uma alternativa: ou sua delicadeza se completava com uma grande combatividade, ou não defenderia aquilo que o entusiasmava. Seria ele capaz de sacrificar suas primaveris afetividades?

 

O  ponto de partida do assunto a ser tratado é o seguinte: deve-se ter fortaleza ou bondade com as pessoas, e a que regras da Moral isto se relaciona? A Moral indica as circunstâncias, as situações em que ora a fortaleza, ora a bondade é necessária e se impõe como imperativo moral.

Se todos recorressem ao Espírito Santo, o pecado de Revolução pesaria muito menos sobre as pessoas

Essas regras são universais, não variam. Mas há outro conjunto de circunstâncias que pesam muito na fixação da conduta e se ligam ao modo de a Providência querer tocar as almas. Há almas às quais a Providência, por um desígnio misterioso especial, quer fazer o bem por meio da bondade, e outras sendo exigente para com elas. Devemos ter o discernimento necessário para perceber quando é o caso para uma coisa ou para outra.

No mundo contemporâneo, os espíritos são movidos pelo princípio de que toda desigualdade é uma injustiça e corresponde a um trato de uma certa crueldade, dureza de alma, porque a desigualdade faz sofrer quem é inferior. Ora, fazer sofrer é uma falta de clemência, de bondade; portanto deve-se ser a favor da igualdade porque é a ordem de coisas em que ninguém sofre os pesares da desigualdade. Por causa disso, metafisicamente falando, a igualdade é um bem e a desigualdade um mal.

Há muita gente que tem disso uma noção confusa e não é capaz de formular este erro como estou dizendo, pois a ideia não está explícita, a pessoa nunca conseguiu ou não quis exprimir em palavras, mas tem isso na cabeça. Entretanto quem pensa assim é levado a tomar uma posição igualitária diante das coisas, e entra na caudal da Revolução.

Se essas pessoas tivessem visto claramente isso, elas teriam resistido à Revolução? Seriam contrarrevolucionárias? Neste caso, não se poderia dizer que a graça não as ajudou e elas caíram no poço da Revolução sem a ajuda do Espírito Santo e, portanto, sem culpa? É uma pergunta odiosa, mas que pode surgir.

A resposta só pode ser negativa. O Espírito Santo ajuda todos que a Ele recorrem, esta é uma promessa de Nosso Senhor. Logo, essa quantidade enorme de pessoas não chegou a ver bem porque não quis, não se aplicou, não deu importância ao problema, teve vontade de ceder à opinião dos outros, pois, do contrário, teriam visto. Por esse motivo o pecado de Revolução pesa muito fortemente sobre um número colossal de pessoas.

Ora, como se explica que se aproxima de nós um rapaz, às vezes muito novo, dizemos-lhe essas verdades e ele aceita de boa vontade, contente? E o mais curioso é que antes de tomar contato conosco ele não aceitaria. Mais ainda, ele adere tanto que, praticamente, acaba dedicando toda a sua vida para a defesa desses princípios. O que aconteceu para que tão poucos pensassem assim e tantos outros não?

Uma graça especial, à medida da correspondência

Devemos, pois, concluir que nós, pensando assim, recebemos uma graça especial, à qual, em alguma medida, correspondemos, e que nos leva a fazer um ato de Fé, de coragem e uma renúncia muito grande que a Providência nos pede. Por causa disso Ela quer também tratar nossas almas de modo especial.

Então, para pessoas que lutam tanto contra o espírito revolucionário e, portanto, aguentam um fardo muito grande, é compreensível que seja reservada uma bondade igualmente grande, toda especial.

Entretanto, os que se colocam como inimigos da Igreja e da Civilização Cristã estão na posição oposta. São almas endurecidas que não têm nenhuma reverência, são capazes de todos os desaforos e de toda indecência. São pessoas que devem ser tratadas do modo oposto. Portanto, enquanto devemos fazer o possível para ser pai e mãe para uns, temos que ser leões em relação aos outros. É natural.

Se estou tratando com uma pessoa que me considera como um pai, devo tratá-lo como um filho. Mas se alguém está procurando qualquer ocasião para me ridicularizar e, na minha pessoa, zombar da Fé, da Doutrina Católica, da Igreja, perseguir Nosso Senhor Jesus Cristo, eu tenho a obrigação de mostrar a esse indivíduo e a terceiros qual é a força de alma que a Fé pode dar. Donde o princípio adotado por nós: devemos ser cordeiros para os de dentro e leões para os de fora.

A força simbolizada pelo leão é majestosa e provém da grandeza.  Com efeito, da grandeza, enquanto se mostrando na sua superioridade, emana uma certa força inerente à majestade e que esmaga, derruba, contunde o adversário, o que nosso leão exprime muito bem na dignidade daquele gesto de garra magnífico.

O primeiro estandarte da TFP

Aliás, cabe aqui um parêntese para contar a origem desse leão e desse estandarte. Na Vila Formosa, bairro da Zona Leste de São Paulo, havia um convento de dominicanas que eram muito amigas nossas. Às vezes íamos lá, aos domingos. Havia uma madre que era francófona – não me lembro se francesa, canadense ou belga, mas falava francês – e tinha muita habilidade para desenhar.

Nessa época, éramos seis ou sete pessoas remanescentes do Grupo do Legionário. Mas, tendo a convicção de que nosso grupo um dia cresceria e precisaria de um símbolo, pensei: “Vou cuidar do emblema enquanto o Grupo é pequeno, porque quando for grande já não terei tempo para isso.” Então consultei os demais, eles concordaram, e fomos pedir a essa madre que desenhasse um leão com as características que indicássemos. Ela desenhou, eu gostei bastante porque a madre apanhou muito bem o movimento de patas do leão. Dissemos, então, que mandaríamos bordar. Ela mesma bordou o nosso primeiro estandarte.

Com o tempo, fui indicando mudanças com vistas a tornar nosso leão elancé(1), de maneira a conferir-lhe esse aspecto de força majestosa que faltava no original.

Notem como ele está bem firme sobre suas patas traseiras, numa atitude ereta, a cabeça alta, olhando de frente como quem não teme o olhar de ninguém. Esse leão dá a entender que sua força não é a de um aventureiro, de um brutamontes, mas a de quem tem o direito de mandar.

No fundo da ideia de majestade está o direito e a superioridade intrínseca que confere certa força própria a quem sente que tem razão. A noção do bem encontra-se muito marcada nisso.

Táticas para todas as circunstâncias

Consideremos outro animal também muito forte, o qual, entretanto, não dá a impressão de ter o direito de mandar: o tigre. Ele tem o “direito” de ser admirado – há tigres lindos –, mas não possui o direito de ser obedecido. Se alguém afirmasse que o tigre é o rei das selvas, não diria a verdade. Porque ele não é, por sua natureza, um dominador. Ele capta as situações e dá um pulo quando a oportunidade se apresenta. É, portanto, um explorador de oportunidades, um aventureiro que sabe aproveitar a ocasião, não um governador. E como tem força se impõe, mas não com a força do direito e sim a do músculo.

O tigre é um “grand seigneur” que impõe admiração e medo, não obediência. A agilidade do tigre está, antes de tudo, na percepção. Ele tem notícia dos perigos e dos movimentos da presa. É a agilidade da surpresa. Com efeito, uma das mais altas formas de agilidade é saber pregar surpresa.

Assim, a Providência deu a cada animal o seu processo de defesa e de ataque especial. Vejam como os bichinhos muito pequenininhos têm facilidade de fugir. A desproporção de forças entre o tigre e o homem é muito menor do que a existente entre o homem e a mosca. Mas a mosca foge. Para o homem pegar uma mosca, que trabalho!

Há animais pequenos que encontram na sua própria pequenez a defesa. Uma pulga é tão pequenina que dificilmente a vemos. De repente ela pula, mas não sabemos onde ela caiu. São as defesas dos pequeninos.

A cobra, por exemplo, arrasta-se pelo solo e, como ninguém olha com atenção para o chão, ela tem mais condições de nos pegar de surpresa, ainda mais quando se oculta no meio das ervas e passa um homem. Ela é uma das rainhas da agilidade, mas se erra o bote está liquidada.

Há, portanto, nos animais uma espécie de equilíbrio que a Providência pôs entre a capacidade de atacar e de defender, que é colossal. A seu modo, eles não erram, seus instintos se desenvolvem corretamente e sempre agem de acordo com a lei inerente à natureza deles, embora não sejam dotados de inteligência.

Quem erra somos nós. De maneira que de um general ou de um advogado pode-se dizer que adotou uma tática errada. Já não se pode afirmar o mesmo de um leão, de um tigre, nem de uma pulga. É aquela mesma tática que serve para todas as circunstâncias.

O poder limitado do ser humano

Isso porque fomos concebidos no pecado original e eles não. O resultado é que em nós existe o erro. Para nós é uma lição e uma humilhação tremendas. Por exemplo, só de pensar na dificuldade de capturar uma pulga… Conforme o lugar onde ela se esconda, não há inseticida que a alcance. Quer dizer, ficamos pequenos em comparação com a pulga.

Mas também se passa com certas belezas da natureza. Como temos vontade de pegar uma borboleta azul e prateada, que voa perto de nós! Entretanto ela vai embora, não temos domínio sobre ela.

Para mim, as mais belas aves são a arara e o pavão. Por vezes acontece que estamos admirando o pavão, e ele fecha a cauda; não podemos mandar-lhe que a abra porque estamos com vontade de vê-la. A arara, por sua vez, é de uma beleza maravilhosa, uma joia. Suas penas são sempre lindíssimas. Mas é o único bicho que conheço o qual tem o corpo lindo e a cara nojenta, com a carne de que é composta e aquela espécie de olheiras medonhas com uns olhos imbecis dentro; um bico bonito feito para agredir, mas pendendo de uma cabeça mole sobre um pescoço incapaz de agressão. No Paraíso, se araras havia, tenho a impressão de que não eram assim, mas se assemelhavam a mini-águias, voando esplendidamente.

Tudo isso nos leva a considerar o que perdemos com o pecado original, e como o nosso poder é limitado. Entretanto convida-nos a nos voltarmos amorosamente a Nossa Senhora com esperança do Céu, porque no Paraíso Celeste nossa situação será muito melhor do que a de Adão no Paraíso Terrestre.

Nesta Terra é muito difícil haver criaturas que conjuguem capacidades aparentemente opostas. Por exemplo, para que um ser majestoso possa ser ágil, é fácil que perca algo de sua majestade; como também um ente ágil facilmente perderia alguma coisa de sua agilidade ao tentar ser majestoso. Não são qualidades contraditórias, mas com facilidade se chocam entre si.

Houve Quem tivesse todas as qualidades no mais alto grau e na mais perfeita harmonia: Nosso Senhor Jesus Cristo; e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora. Porém a Providência tem um modo peculiar de tocar cada alma com vistas a realizar sua missão.

Num pequeno hotel de São Vicente

Na minha primeiríssima infância, eu tinha a alma em extremo delicada, afetiva e, portanto, em sumo grau amiga da paz, da ordem, das coisas que andam bem e não se chocam entre si. As brigas me causavam verdadeiro horror, como episódios que não deveriam ocorrer.

Eu me lembro de que minha mãe me contava um caso ocorrido numa ocasião em que ela foi passar uma temporada em São Vicente conosco, e se hospedou numa pensão de um alemão chamado Herr Kinker. Era um estabelecimento muito bom, bem mantido, perto do mar, para que minha irmã e eu respirássemos o ar marítimo muito saudável. Mas o Herr Kinker, dotado de uma porção de qualidades de hoteleiro, não tinha a virtude da temperança, especialmente quando estava em presença de uma garrafa; e, de vez em quando, entregava-se a bebedeiras ferozes.

Meu pai estava em São Paulo, as ligações interurbanas eram muito difíceis naquele tempo, tudo muito mais atrasado do que hoje, e não podendo voltar para São Paulo a fim de fugirmos do bêbado, minha mãe ficava sumamente preocupada, esperando que meu pai chegasse em breve para resolver o que fazer. Um dia caiu uma chuva medonha e ela me perdeu um pouco de vista. Em certo momento, começou a me procurar na casa inteira e não encontrava. Naturalmente sua aflição aumentou muito e ela, ao deparar-se com o Herr Kinker, perguntou-lhe onde eu estava, mas ele deu uma resposta pastosa, ambígua. Então Dona Lucilia foi ao terraço em frente da casa e me viu embaixo, sentado bem no meio de um canteiro, com a chuva caindo às torrentes sobre mim, e dizendo:

— Isso é uma injustiça, eu não merecia isso.

Eu tinha uns dois anos, mais ou menos, e repetia em voz alta essa frase, sem ninguém me ouvir.

Evidentemente ela foi correndo, pegou-me e me levou para dentro de casa, cumulando-me de carinhos. Até o fim da vida ela contava emocionada esse contraste entre minha inocência e o castigo imerecido que eu tinha sofrido.

Havia uma predisposição minha para manter as coisas como me parece que devem ser, mas com muita paz. Não fiz nenhum desaforo contra o Kinker, eu não estava irritado, protestava em paz. Porém se é injusto, é injusto.

Destinado pela Providência a sofrer os choques mais duros

Em certo sentido, essas são matrizes que Nossa Senhora pôs em minha alma. Em outros Ela colocará matrizes diversas. Depende de como Ela queira orientar e formar cada alma.

Essa minha disposição de alma estava, entretanto, destinada pela Providência a sofrer os choques mais duros no que eu tinha de bom. Em meus oitenta anos de vida, a Revolução não fez outra coisa senão chocar os meus lados bons o tempo inteiro.

Como não podia deixar de ser, pôs-se diante de mim uma alternativa: “Ou essa sua delicadeza se completa com uma grande combatividade, ou você será rejeitado, liquidado, porque não soube lutar contra os inimigos de Deus. Se não soube lutar contra os inimigos de Deus, todo o maravilhoso, todo o grandioso que você ama, toda a hierarquia que o entusiasma tiveram em você um mau defensor, um admirador vazio e sem valor, digno de ser rejeitado, porque não foi capaz de se sacrificar. Agora vamos ver, sacrifique-se!” Não era um sacrifício qualquer, mas um holocausto, uma vida feita de dor. “Você aguenta ou não aguenta essa vida feita de dor? Agora toque para a frente!”

Notem, portanto, que não é uma contradição, mas uma antítese, duas posições em extremo contrárias. Lembro-me de que, vendo-me na contingência de ser tão combativo, eu me perguntava o que faria das minhas primeiras cordialidades, das minhas primaveris afetividades. Aquilo tudo estaria liquidado? Minha resposta para comigo mesmo foi: “Não! Não renuncie a isso. Conserve no fundo de sua alma para quando algum dia acontecer de você tratar com gente que mereça isso. Mas por ora, se você vive no meio dos jaguares, saiba ser jaguar com os jaguares, saiba lutar! E, portanto, força!”

Mais tarde, compreendi que a hora da bondade tinha chegado quando comecei a perceber as novas gerações que se aproximavam de mim. Ao passar-lhes uns pitos, como eu fazia ao pessoal de minha idade, ao invés de tentar se revoltar – para o que eu já estava armado –, choravam. Então levei uma surpresa: “Que negócio é esse?! Bem, então começou outra canção…”            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/9/1988)
Revista Dr Plinio  268 (Julho de 2020)

 

1) Do francês: esbelto, esguio.

 

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